Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Caótica tramitação

«Não obstante ter sido caótica a tramitação deste processo e de o recorrente ter sido prejudicado por esse facto, a sua pretensão de ser declarado nulo o despacho recorrido e, em consequência, todos os actos processuais subsequentes, designadamente, o julgamento já realizado é, pelo exposto, manifestamente improcedente», lê-se num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 19.09.07 [proferido no processo n.º 7216/07, da 3ª Secção, relator Carlos Almeida].

Nele decidiu-se que, mau grado o caos, «I – A notificação ao lesado da possibilidade de deduzir pedido de indemnização civil em processo penal e das formalidades a observar, realizada quando já se encontrava encerrado o inquérito e depois de terem decorrido os prazos estabelecidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 77º do Código de Processo Penal para essa dedução, não determina, só por si, a anulação de qualquer acto processual praticado. II – Essa irregularidade apenas legitima a dedução do pedido civil em separado [alínea i) do n.º 1 do artigo 72º do Código de Processo Penal]».

O que não se diz é que ao ter de formular o pedido cível em separado, o prejudicado lesado, vai ter se suportar mais despesas com advogado, pagar custas, etc., sem ter tido culpa alguma na caótica tramitação. E esperar mais uns anos pela decisão, claro.

Decisão sumária em recurso: suspensão provisória

Eis a primeira decisão sumária que leio, proferida em sede de recurso, ao abrigo do novo CPP.

O MP propôs s suspensão provisória do processo; o juiz, não se pronunciando sobre o requerido, ordenou diligências de prova, tendo em vista decidir sobre o pretendido. A Relação de Lisboa por decisão sumária do relator, proferida em 20.09.07, considerou o despacho judicial irrecorrível [processo n.º 7293/07 5ª Secção, relator José Adriano].

Eis o sumário da decisão, citado da base da PGDL:

«I. Interpôs o Ministério Público recurso do despacho que, não se tendo pronunciado sobre a proposta de suspensão provisória do processo que fora por si formulada, ordenou diligências que considerou necessárias, em vista de ulterior tomada de decisão de concordância ou de discordância com tal proposta. II. O despacho recorrido é assim meramente preparatório da decisão e, não tendo sido deferida nem indeferida a pretensão do Ministério Público, tal despacho é irrecorrível, o que conduz à rejeição liminar do recurso, nos termos do art.417º., nº.6 al.b) e 420º., nº.1 al.b), com referência ao art.414º., nº2 do C.P.P.».

Recordando dois anos de uniformização

Agora que estamos ante uma aplicação de legislação penal nova, aplicável a processos pendentes, será interessante recordar as vezes em que o STJ teve de fixar jurisprudência, para pôr termo à diversidade de entendimentos das instâncias.

No que diz respeito à infixidez jurisprudencial, as coisas chegaram a um ponto em que começou a grassar o entendimento segundo o qual, no linguajar comum, há sempre um acórdão para todas as ocasiões.

No ano de 2006, o STJ fixou jurisprudência neste sentido, como se vê com mais pormenor na sua base de dados, aqui:

* A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal.

* O crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção previsto no artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, consuma-se com a disponibilização ou entrega do subsídio ou subvenção ao agente.

* Nos termos dos n.ºs 5 do artigo 61.º e 3 do artigo 62.º do Código Penal, é obrigatória a libertação condicional do condenado logo que este, nela consentindo, cumpra cinco sextos de pena de prisão superior a 6 anos ou de soma de penas sucessivas que exceda 6 anos de prisão, mesmo que no decurso do cumprimento se tenha ausentado ilegitimamente do estabelecimento prisional.

*A Portaria n.º 248/2001, de 22 de Março, revogada pela Portaria n.º 1179/2002, de 29 de Agosto, não era uma lei temporária, pelo que, por via daquela revogação, os factos nela tipificados e ocorridos na sua vigência deixaram de ser punidos, por força do n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal, ex vi o artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

* No requerimento de interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência (artigo 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), o recorrente, ao pedir a resolução do conflito (artigo 445.º, n.º 1), não tem de indicar o ‘sentido em que deve fixar-se jurisprudência’ (artigo 442.º, n.º 2).

* No domínio da versão originária do artigo 31.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, o exercício da actividade de segurança privada em regime de autoprotecção sem a licença prevista no n.º 2 do artigo 21.º do mesmo diploma integrava o tipo contra-ordenacional descrito na primeira disposição citada.

*No crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º do Código Penal, o caluniado tem legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado contra o caluniador.

No ano de 2007, a uniformização jurisprudencial, conforme se vê aqui, levou às seguintes decisões:

* Integra o conceito de «prejuízo patrimonial» a que se reporta o n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, o não recebimento, para si ou para terceiro, pelo portador do cheque, aquando da sua apresentação a pagamento, do montante devido, correspondente à obrigação subjacente relativamente à qual o cheque constituía meio de pagamento.

* Na vigência do artigo 50.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, a impugnação judicial tributária determinava, independentemente de despacho, a suspensão do processo penal fiscal e, enquanto esta suspensão se mantivesse, a suspensão da prescrição do procedimento penal por crime fiscal.

Medite-se e imagine-se o que aí vem. Note-se que estes actos de uniformização ocorreram na maioria dos casos mais de seis e sete anos depois das leis estarem a vigorar, no meio das maiores diversidades de entendimentos nas várias instâncias. Quanta contradição decisória, quantos prejuízos para os cidadãos, quanto atentado à segurança jurídica, pilar fundamental do Estado de Direito.

O Apocalipse Processual Penal

O novo Código de Processo Penal tem normas que são mais favoráveis do que as do seu antecedente, mas tem outras normas que são mais gravosas do que aquele que substituiu.
Ora o novo CPP aplica-se aos processos pendentes, pois o legislador assim o determinou, deliberada e conscientemente.
Ora diz o artigo 5º do Código em causa, como dizia o anterior, que:

1 — A lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior.
2 — A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:
a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou
b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.


Quer isto dizer que vai haver arguidos num processo que vão querer a aplicação da vei velha, outros a lei nova. Vai haver em relação a certos actos processuais situações em que a lei velha era melhor, para logo em relação a outros ser pior. Vai haver juízes que em relação a certas situações vão decidir num sentido, outros noutro. Vai haver toda a gente a reclamar, a arguir nulidades, a recorrer.
Vai sair daqui a maior confusão, o maior caos, que alguma vez se imaginou, agora sim a paralização total da Justiça, o descrédito.
Quando o Código saiu a Dra. Mata-Mouros e o Dr. Rui Pereira polemizarem quanto a saber se o que ia sair da Unidade de Missão era uma reforma ou uma revisão. Agora está esclarecido: é a subversão!

4ª feira, 26, na RTP-2

Esta tarde perguntei ao Secretário de Estado da Justiça, Dr. Conde Rodrigues, por que razão o governo não explicava o motivo pelo qual, à última hora, introduzira, nas leis que alteraram os Códigos Penal e de Processo Penal, normas que surpreenderam o país, pois não constavam do Projecto da Unidade de Missão presidida pelo hoje ministro Dr. Rui Pereira, nem das propostas que chegaram ao Parlamento. Uma dessas normas tem a ver com a repressão aos jornalistas que divulguem, de forma não autorizada, escutas telefónicas. Lançada a pergunta, fiquei sem resposta.
Aqui há segredo! Mas há mais.
Tudo se passou na gravação do programa Clube de Jornalistas, que será transmitido amanhã, 4ª feira, dia 26 de Setembro, na RTP 2, com início depois das 23h30.

Justiça apainelada

O Vexata Quaestio, de leitura obrigatória, dedica hoje algum do seu espaço, sob o tema «Justiça e arte», a um painel cerâmico, que está numa sala de Audiências do Palácio de Justiça de Setúbal, obra de Eduardo Neri, realizada em 1993.
O trabalho é bonito. A beleza é, porém, enganadora. É que, ao olhar para a sala de julgamento, assim lindamente retratada, lembrei-me de coisas feias: do ar condicionado que encrava constantemente, tornando o local uma fornalha, do sistema de gravação que passa a vida a avariar, pondo em risco a prova documentada e a eficácia dos processos, dos advogados aos tropeções quando os processos são maiores e ninguém cabe na sala, e quando para alguém se levantar e ir consultar um documento tem de entrar no empurra-empurra, no com licença-desculpe, ai o meu pé, dos funcionários que não chegam, no trabalhar-se em condições de quase milagre.
Se isto vai mal, não é à falta de decoradores. Como diz um provérbio popular, por cima são tudo rendas, por baixo nem fraldas há.

O PGR e a PJ à mercê de um SISI

«Para anular o atributo de competência reservada da PJ, entregando a investigação a outro OPC, basta que o PGR - depois de ouvir, obrigatoriamente, o secretário-geral do SISI - considere não existir uma especial complexidade do crime em questão, refere o artigo 8.º. Também ao secretário-geral, segundo o mesmo articulado, é reconhecido o poder de, por sua própria iniciativa, solicitar ao PGR que a investigação de um crime de competência reservada da PJ seja entregue a outro OPC, com base nos mesmos pressupostos».
O SISI, diga-se, é o Secretário-Geral do Sistema Integrado de Segurança Interna, personagem nomeado pelo primeiro-ministro ou seja pelo poder executivo. No campo das siglas, sempre se podia encontrar outra melhor, co'a breca!
Tudo isto, segundo o DN «é o que resulta da proposta de Lei da Organização da Investigação Criminal (LOIC) que o Governo está a preparar para levar à Assembleia da República (AR)».
A ânsia de encontrar um critério que passe por lógico, para justificar o mando autoritário é tal, que se chega ao ponto de descaradamente se tornarem os conceitos jurídicos meros pretextos verbais, noções vazias, palavras ao serviço dos interesses da política, legislando em pouco tempo uma coisa e a sua contrária.
De facto enquanto que o novo CPP considera que o conceito de especial complexidade possa aplicar-se a realidades que, de especial complexidade só têm o nome, e isto para justificar a prisão preventiva e outras agressões, agora para se poder tirar poderes à PJ o que era especialmente complexo pode passar a especialmente simples.
A conveniência dos que mandam precisa só, atrevida, de usar o arbítrio e a habilidade contra a submissão, conformista, dos complacentes e permissivos, os que sabem servir.
P. S. Ante o alarme público da notícia, o MAI veio esclarecer que o que há sobre este assunto são «esboços elaborados por um grupo de trabalho que englobou representantes da PSP, GNR, PJ, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e vários juristas, mas que não foi ainda apreciado pelos ministros da Administração Interna e da Justiça». Registamos o que pensam os esboçadores que por aí andam.

Irrecorribilidade da pronúncia

«De harmonia com o artº 310º, n. 1 do CPP não há lugar a recurso da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos narrados na acusação do MPº ou do assistente. Este regime legal, aferido dentro do quadro 'das garantias de defesa' (artº 32º, n. 1 CRP) já mereceu tratamento pelo Tribunal Constitucional, concluindo-se não violar a Constituição (V.gr. Ac. nº 610/96, de 17 de Abril, in BMJ 456, 158; nº 79/05, de 6 de Abril, in DR 2ª série; nº 30/2001, de 23 de Março, in DR 2ª série)», diz o Acórdão da Relação de Lisboa de 13.09.07 [proferido no 6983/07 9ª Secção, relatora Filomena Clemente Lima].

Agora com o novo Código fica pior. Eis a nova redacção para o n.º do artigo 310º do CPP: «A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento».

Não é já só o triunfo do juiz seguidista face ao MP, o qual vê a sua decisão blindada pela irrecorribilidade! Não é já só o apelo ao conformismo judicial ante aos «diktats» acusatórios do MP, é nem as nulidades do inquério arguidas na instrução poderem merecer recurso. Serão decididas sem apelo nem agravo. Será que o Tribunal Constitucional continuará a achar que tudo isto é permitido pela Lei Fundamental?

Alguns advogados que tão contentes estão com este novo CPP que se previnam.

Audição impessoal do preso

Diz o artigo 495º, n.º 2 do CP, a propósito da falta de cumprimento das condições de suspensão, que: «o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia».
Estabeleceu o Acórdão da Relação de Lisboa de 13.09.07 [proferido no processo n.º 6839/07, da 9ª Secção, relator Fernando Estrela]: «a audição a que alude o art. 495.º n.º 2 do C.P.P. não é uma audição pessoal, consistindo na possibiildade do arguido se pronunciar sobre todas as questões que pessoalmente o afectem».
Então se o condenado é ouvido na presença do técnico, não sendo uma audição pessoal, é-o como? Venha o Acórdão que há coisas que não consigo perceber.

Prevenindo o argumento sobre o número de preventivos

Fazendo-se eco de números recolhidos pelo King's College, o Vexata Quaestio dá conta da proporção de presos preventivos por habitantes e pergunta com pertinência: «...afinal estaremos assim tão mal?». Poder ler-se aqui.
Interessante será chamar também à colação o tempo de duração da prisão preventiva, comparando-nos também com outros países. Discutir com números à frente, sempre é outra coisa.

Advogados em Angola

Segundo a imprensa angolana, «o membro do conselho provincial da Ordem dos Advogados de Angola, Rufino Narciso, considerou nesta quinta-feira, em Benguela, insuficiente o número de profissionais ao exercício da advocacia, para atender a demanda dos nove municípios da província (...) Adiantou que no tempo colonial nos municípios do interior de Benguela, nos chamados julgados de primeira classe, existiam tribunais, procuradores e juízes, bem como dois ou três advogados para cada região, que segundo ele eram maioritariamente estrangeiros, que mais tarde abandonaram o país, ficando os não profissionais que estudavam direito, que lhes foram atribuídos a qualificação média, actualmente terminado o curso, integram a Ordem dos advogados».
A Ordem dos Advogados de Angola, afilhado de Advogado que ali exerceu, comemora o seu 11º ano de existência. Nascido em Malanje, muitos anos de vida!

Os «onorevole»!

«Os peritos são escolhidos de entre indivíduos constantes de lista, com vínculo à Administração Pública, de reconhecida honorabilidade e experiência, detentores dos conhecimentos necessários sobre a natureza e as características dos bens a avaliar», diz a Portaria n.º n.º 1215/2007, de 20 de Setembro, que «estabelece os termos em que deve ser efectuada a nomeação de peritos de bens apreendidos pelos órgãos de polícia criminal no âmbito de processos crime e contra -ordenacionais, conforme disposto no Decreto -Lei n.º 11/2007, de 19 de Janeiro, definindo ainda o respectivo estatuto e procedimentos».
É fantástico que por lei se diga, numa interpretação a contrario que há indivíduos «com vínculo à Administração Pública» e sem «reconhecida honorabilidade». Pensava eu que, em relação a esses, o Estado de Direito, pessoa de bem, tinha meios imediatos para os pôr na rua pelo que nem sequer a questão da sua nomeação para o quer que fosse se colocasse! Pelos vistos não!
Outra coisa extraordinária: o OPC apreende um bem - um automóvel, um barco, o que for - usa-o, dá-lhe estrago e chega ao fim e devolve-o ao seu dono, pagando uma indemnização pela deterioração causada pelo uso. É justo. Mas quem fixa o valor? Segundo esta portaria, quem o OPC, que usou e estragou, indicar! Diz o artigo 5º da lei que a «avaliação visa determinar o valor de indemnização a pagar ao proprietário caso o bem não venha a final ser declarado perdido a favor do Estado» e acrescenta o artigo 3º, n.º 2 que «cada órgão de polícia criminal organiza uma lista de peritos nomeados nos termos da presente portaria, que, anualmente, remeterá para conhecimento da respectiva tutela».
Extraordinário não é? É isto a moralidade em vigor. Assim, com as coisas dos outros, a usar à farta e a pagar ao preço da casa também eu equipo as minhas polícias!

Quero o meu direito de volta!

Se eu estou sob o domínio de uma lei processual penal que me dá um direito e vem o legislador e, rasteirando-me, me amputa o direito, para que se cumpra o Direito há que fazer sobreviver a lei revogada, ultractivamente.
Aprende-se isto quando se estuda Direito Processual Penal. Vem logo nas primeiras folhas de qualquer Manual.
O país jurídico vai ter de conviver com isto à força, no meio dos escombros do que será a aplicação deste novo Código de Processo Penal aos processos pendentes.
Vai ser grande maravilha de se ver esta de saber qual a lei mais favorável, qual o Direito em vigor, o que vale e o que vai ser invalidado.
O Governo arranjou, enfim, o ariete legislativo que arromba os muros do próprio caso julgado judicial. Há advogados contentes sem saber a sorte que os espera.

Advogados: o horror dos prazos!

Lê-se na imprensa brasileira: «Com o argumento de que já sofreu com as conseqüências da perda de um prazo processual, que estava sob responsabilidade de seu advogado, e de ver amigos próximos e familiares passarem pelo mesmo problema, o deputado federal e pecuarista Ernandes Amorim (PTB-RO) propôs um projeto de lei. A idéia é punir com suspensão os profissionais que forem negligentes com o prazo processual. Ao propor a inclusão de um dispositivo no Estatuto dos Advogados, o deputado diz que “não existe uma punição exemplar para o mau profissional, que age com desídia, desleixo ou incúria, no trato de uma demanda judicial”. O projeto não ressalva a eventualidade de motivo justificado para a perda do prazo da parte do advogado, nem prevê modificações nas leis que tratam da observância de prazos por parte dos cartórios, de juízes ou do Ministério Público. Os advogados defendem que um novo dispositivo no Estatuto dos Advogados para prever a punição é desnecessário. Motivo: a lei e também o regimento interno da OAB prevêem sanção para os profissionais que desistem da ação sem motivo para tanto ou àqueles que realmente não tratam o processo com a merecida dedicação. “A OAB já tem entendido que a má defesa gera falta disciplinar”, afirmou o presidente do Conselho Federal da OAB, Cezar Britto. Além disso, constatada a ineficiência do advogado, a OAB pode submetê-lo a novo Exame de Ordem, conta Britto. Segundo ele, já houve casos de aplicação de novos exames, quando o advogado teve várias petições ineptas e o juiz chamou a atenção da entidade para o assunto. Mas o presidente da OAB nacional observa que “não há relação de consumo em que o advogado é obrigado a ganhar a causa. Até porque a aplicação do direito é tarefa do juiz, não do advogado.” Para o advogado Reginaldo Castro, que também já presidiu o Conselho Federal, a proposta é uma extravagância, além de desnecessária e ineficaz. Ele reconhece a responsabilidade do advogado, mas reafirma que os casos de desídia já estão previstos no Estatuto da profissão. Segundo Castro, o cliente que se sentir prejudicado pela perda de prazo pode processar o advogado e ser ressarcido pelas perdas e danos sofridos.
A juíza Maria Lúcia Pizzotti Mendes, coordenadora do setor de Conciliação do Fórum João Mendes, acha excelente a proposta. Segundo ela, a freqüência com que a perda de prazos acontece é tão alta que justifica uma medida como essa, que serviria para intimidar e educar o mau advogado. “São graves os atos de desídia, que prejudicam o direito da parte”, alerta. E ressalta que, por mais que o juiz veja que a falha do advogado, não tem como reverter a situação, porque iria contra a lei. “Temos muitos advogados e muitos não têm condições de advogar. Quando a pessoa é mal representada, acha que a culpa é do Judiciário”, observa».

CPP: mais sobre a coacção

Artigo 204.º

Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: (...) c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.



Comentário: comparando com a formulação anterior [«perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa»] conclui-se que o legislador quis, através do advérbio «gravemente», tornar mais exigente este requisito. Mas como já vimos entender que ele se verifica quando certos arguidos presos protestam nos autos, através dos seus advogados, contra o facto de outros, seus comparticipantes, estarem em liberdade, verificamos que, na prática, ele pode continuar a aplicar-se com alguma latitude discricionária. Isto para não mencionar na geração deliberada da intranquilidade, através de campanhas de imprensa manipuladas através de violação de segredo de justiça e destinadas a diabolizar certos arguidos e tornando-os assim candidatos à prisão preventiva para satisfação das fabricadas expectativas punitivas da comunidade.
O paradoxal é que a aplicação do novo regime do CPP acabou por gerar, na psicologia colectiva, uma profunda intranquilidade, ante a notícia da libertação de casos em que a comunidade sentiu poder haver perigosidade à vista. Um CPP que só releva a grave intranquilidade, gerou-a como seu efeito!



Artigo 212º



«(...) 4 - A revogação e a substituição previstas neste artigo têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, devendo estes ser ouvidos, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada. Se, porém, o juiz julgar o requerimento do arguido manifestamente infundado, condena-o ao pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC».



Comentário: a lei anterior previa uma norma de audiência do arguido e do MP assim formulada: «devendo estes, sempre que necessário, ser ouvidos». Aqui alterou-se para a fórmula já usada no artigo 194º, n.º 3, na expectativa de que isso alere a mentalidade ainda reinante em alguns magistrados e a audição se torne mais generalizada.

Como já vivi a situação de um ilustre desembargador que ouvia os detidos extraditandos directamente no estabelecimento prisional, nem se dignando mandar transportá-los ao tribunal, porque, no dizer explicativo do solícito senhor escrivão «assim já lá ficavam», não tenho excesso de esperanças nem grande reserva de ilusões. É só uma questão de se não fazer aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti!

Basta dar uma olhadela de relance pelos critérios jurisprudenciais em matéria de audição prévia quando da mutação de medidas coactivas para ver o sentir repressivo que por aí grassa.

Aliás a norma ameaçadora da condenação em UC's lá está para desencorajar os mais atrevidos e sobretudo os mais pobres.



Artigo 213.º



«1 - O juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, decidindo se elas são de manter ou devem ser substituídas ou revogadas: a) No prazo máximo de três meses a contar da data da sua aplicação ou do último reexame; e b) Quando no processo forem proferidos despacho de acusação ou de pronúncia ou decisão que conheça, a final, do objecto do processo e não determine a extinção da medida aplicada.

2 - Na decisão a que se refere o número anterior, ou sempre que necessário, o juiz verifica os fundamentos da elevação dos prazos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.os 2, 3 e 5 do artigo 215.º e no n.º 3 do artigo 218.º

(...) 4 - A fim de fundamentar as decisões sobre a manutenção, substituição ou revogação da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, o juiz, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, pode solicitar a elaboração de perícia sobre a personalidade e de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, desde que o arguido consinta na sua realização.

5 - A decisão que mantenha a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação é susceptível de recurso nos termos gerais, mas não determina a inutilidade superveniente de recurso interposto de decisão prévia que haja aplicado ou mantido a medida em causa».



Comentário: em primeiro lugar torna-se claro [através da nova formulação dada paa o n.º 1 e 2] que o reexame se estende à medida de obrigação de permanência na habitação. Depois mantendo-se a regra da periodicidade do exame [trimestral], determina-se a obrigatoriedade de tal exame em certos momentos-chave do processo: «quando no processo forem proferidos despacho de acusação ou de pronúncia ou decisão que conheça, a final, do objecto do processo e não determine a extinção da medida aplicada».

Quanto à audição do arguido, garantia essencial do contrário e direito fundamental daquele [artigo 61º do CPP] manteve-se a fórmula da lei substituída: ela ocorre «sempre que necessário», ou seja, a talante de quem decide.

Finalmente e expressando que se legisla sob a inspiração de casos judiciais concretos que finalmente dão ênfase a problemas até aí desconsiderados, estatui-se que «a decisão que mantenha a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação é susceptível de recurso nos termos gerais, mas não determina a inutilidade superveniente de recurso interposto de decisão prévia que haja aplicado ou mantido a medida em causa». A primeira parte da norma quase seria desnecessária, ante a regra geral da recorribilidade prevista no artigo 399º do CPP, não fosse certa jurisprudência ávida de encontrar razões de tolher as vias de recurso, suspeitas por uma certa cultura, de serem «excessos de garantismos» e meios dilatórios e de chicana, empecilhos ao bom despacho processual. A segunda parte visou pôr termo ao sistema pelo qual a retenção ilegal dos recursos para além do prazo em que deveriam ser conhecidos abria a porta à possibilidade de os inutilizar: era a inércia como expediente de rejeição liminar!

Comentário ao novo CPP: ainda a liberdade (2)

Artigo 198º, n.º 2

«2 - A obrigação de apresentação periódica pode ser cumulada com qualquer outra medida de coacção, com a excepção da obrigação de permanência na habitação e da prisão preventiva».

Comentário: concretiza a regra da cumulação que o artigo 205º consagrava quanto à caução. Que se tenha previsto a impossibilidade de cumular a apresentação periódica em posto policial com a obrigação de apresentação parte do pressuposto de que esta medida é controlada por vigilância electrónica, o que nem sempre resulta. Casos houve em que o arguido conseguiu libertar-se da pulseira que apôs num gato! Contaram-ma como verdadeira. E eu acredito na imaginação criadora!

Artigo 199.º

«1 - Se o crime imputado for punível com pena de prisão de máximo superior a 2 anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativamente, se disso for caso, com qualquer outra medida de coacção, a suspensão do exercício: a) De profissão, função ou actividade, públicas ou privadas; b) [Anterior alínea c).] sempre que a interdição do respectivo exercício possa vir a ser decretada como efeito do crime imputado.
«2 - Quando se referir a função pública, a profissão ou actividade cujo exercício dependa de um título público ou de uma autorização ou homologação da autoridade pública, ou ao exercício dos direitos previstos na alínea b) do número anterior, a suspensão é comunicada à autoridade administrativa, civil ou judiciária normalmente competente para decretar a suspensão ou a interdição respectivas».

Comentário: estende-se a possibilidade de suspensão a «função ou actividade» privada, enquanto que na formulação antecedente a possibilidade era circunscrita a «profissão ou actividade cujo exercício dependa de um título público ou de uma autorização ou homologação da autoridade pública».
Ora tratando-se de meio de obtenção de sustento, como compatibilizar o regime com as regras constitucionais?

Artigo 200º, ns.º 1 e 4

«1 - Se houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativa ou separadamente, as obrigações de: a) ... b) ... c) ... d) Não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas ou não frequentar certos lugares ou certos meios; e) Não adquirir, não usar ou, no prazo que lhe for fixado, entregar armas ou outros objectos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a prática de outro crime; f) Se sujeitar, mediante prévio consentimento, a tratamento de dependência de que padeça e haja favorecido a prática do crime, em instituição adequada».
(...)
«4 - A aplicação das medidas previstas neste artigo é cumulável com a da medida contida no artigo 198.º».

Comentário: reformulou-se no n.º 1 a alínea d) [eliminando a expressão «por qualquer meio» que ali constava, visando o contacto indirecto, por interposta pessoa, que assim fica desguarnecido] e aditam-se duas alíneas, a e) e a f). Quanto à primeira, imaginando que uma faca é um dos meios «capazes de facilitar a prática de outro crime», eis os arguidos proibidos de comer à mesa de garfo e faca? Ironia? Talvez! Mas poderia ter havido melhor redacção? Seguramente.
Quanto ao n.º 4 estipulou-se a cumulação possível desta regra com a medida de obrigação de apresentação periódica. De acordo.

Artigo 201º

«1 - Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a obrigação de não se ausentar, ou de não se ausentar sem autorização, da habitação própria ou de outra em que de momento resida ou, nomeadamente, quando tal se justifique, em instituição adequada a prestar-lhe apoio social e de saúde, se houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.
2 - A obrigação de permanência na habitação é cumulável com a obrigação de não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas.
3 - Para fiscalização do cumprimento das obrigações referidas nos números anteriores podem ser utilizados meios técnicos de controlo à distância, nos termos previstos na lei».

Comentário: estende-se a obrigação de permanência [que é aliás uma variante da proibição de ausência] «nomeadamente, quando tal se justifique, em instituição adequada a prestar-lhe apoio social e de saúde», o que é uma forma de internamento compulsivo ditado por outra forma. E por o ser tal regime pode gerar conflitos com normas em vigor sobre a legislação sobre a matéria.
O n.º 2 ao estabelecer que «a obrigação de permanência na habitação é cumulável com a obrigação de não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas», expressa uma regra de cumulação de umas medidas coactivas com outras em que, nesse aspecto, o Código inovou.

Artigo 202.º
«1 - Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando: a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos; b) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos; ou (...)».

Comentário: é uma das inovações mais polémicas, mas já resultava, consensualmente [na aparência das coisas, descontando mesmo a maioria então silenciosa dos hoje críticos], do Congresso da Justiça.
A alínea b), quando articulada com a noção do que seja criminalidade violenta ou altamente organizada cobre muitos dos casos em que a prisão preventiva [devido à benigna dosimetria abstracta da pena] seria inaplicável.

Artigo 203º

«2 - O juiz pode impor a prisão preventiva nos termos do número anterior, quando o arguido não cumpra a obrigação de permanência na habitação, mesmo que ao crime caiba pena de prisão de máximo igual ou inferior a 5 e superior a 3 anos».

Comentário: clausulou-se a prisão preventiva/sanção para os casos em que, pela medida abstracta da pena ela não seria aplicável, havendo incumprimento de obrigação de permanência na habitação.

Comentando o novo CPP: a Santa Liberdade (1)

Artigo 193º, n.º 3

«3 - Quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares».

Comentário: a formulação nova traduz um critério de favor à liberdade, louvável, mas que pode levar à mesma situação em que caíu a regra generosa prevista e mantida no n.º 2, segundo a qual «a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção».
É que esta excepcionalidade da prisão preventiva, que o legislador de 1987 clausulou, com ingénua expectativa, deu numa prática inversa da pretendida. Ora, visto o histórico, esta proclamação amável para com os arguidos, poderá ser mais uma ilusão, a juntar a outras, em que a jurisprudência real não acompanhará a reforma virtual.

Artigo 194º, n.º 2

«2 - Durante o inquérito, o juiz não pode aplicar medida de coacção ou de garantia patrimonial mais grave que a requerida pelo Ministério Público, sob pena de nulidade».

Comentário: ante a polémica jurisprudencial sobre se o juiz poderia aplicar medida coactiva ou de garantia patrimonial diversa ou mais grave do que a proposta pelo MP, o legislador limita-se a impedir o agravamento judicial, deixando em aberto a possibilidade de convolação para medida diversa daquela que lhe houver sido requerida.
Consagra-se a lógica do juiz de instrução como mero fiscal da legalidade formal em matérias atinentes com a liberdade, como se o estatuto de liberdade individual fosse algo cuja aferição concreta coubesse ao MP, pois que mero instrumento ao serviço da investigação. É a filosofia do ao MP é que cabe dizer se lhe «interessa» um arguido em liberdade ou preso, tão presente na mentalidade de alguns.
O sistema agora consagrado é, ademais, equívoco, pois, por exemplo, ante uma medida de tiplogia aberta como a prevista no artigo 200º [proibição de permanência, de ausência e de contactos] fica por resolver se o juiz pode decretar medida tipificada em alínea diversa daquela outra que o MP houver requerido. Conflitos de entendimento jurisprudencial à vista!

Artigo 194º, n.º 3

«3 - A aplicação referida no n.º 1 é precedida de audição do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141.º»

Comentário: ao sistema pelo qual a aplicação de uma medida de coacção é «precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido», segue-se um outro em que a regra é o contraditório, só excepcionado em casos de «impossibilidade devidamente fundamentada». Na aparência, excelente.
O problema grave da não audição prévia não surge, porém, a propósito a propósito da aplicação de uma medida, pois, em regra, esta é precedida de detenção com subsequente sujeição do detido ao primeiro interrogatório judicial.
A questão coloca-se quando se trata do reexame dos pressupostos da prisão preventiva [artigo 213º], em que se manteve o insuportável regime segundo o qual «sempre que necessário, o juiz ouve o Ministério Público e o arguido», porta aberta para a lesão à audiência.
Ou seja, estando o arguido privado da liberdade, tratando-se de controlar a legalidade do acto de mantutenção da prisão, o preso só é ouvido quando «necessário»!
O caricatural é que, dispensando-se ouvir o interessado numa matéria com este relevo, mantem-se uma regra geral de pura aparência liberal segundo a qual o arguido goza do direito de «ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoamente o afecte» [alínea b) do n.º 1 do artigo 61º do CPP]. Rever a manutenção da prisão só pode ser algo que não afecta o arguido pessoalmente, para que tudo isto tenha lógica!

Artigo 194º, ns.º 4 e 5

«4 - A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade: a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime; c) A qualificação jurídica dos factos imputados; d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º
«5 - Sem prejuízo do disposto na alínea b) do número anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o n.º 3.

Comentário: é louvável este afã de fazer fundamentar a decisão sobre medidas coactivas e de garantia patrimonial e de taxar como nulidade a violação respectiva.
A alínea b) do n.º 4 parece pressupor uma regra que o legislador se esqueceu de enunciar - a de que a «descrição dos factos concretamente imputados» pressupõe uma referência aos «elementos do processo» que os indiciam.
Abre-se, assim, uma excepção a uma regra inexistente. E, se regra existisse, aliás, o conteúdo da excepção esvaziava o seu alcance, permitindo entorses ao dever de fundamentar que, enunciados que estão através de conceitos abertos [«puser gravemente em causa a investigação»] são essencialmente insindicáveis em recurso, dada a sua amplitude discricionária.
Além disso a alínea d) deveria ter sido unificada com a alínea a), até porque, a não o ter sido, legitima-se a ideia de que a excepção prevista na alínea b), já referida, aplica-se à situação tipificada na segunda e não na primeira, o que é ilógico.

Artigos 194º, n.º 6

6 - Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 4, o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição de recurso.

Comentário: uma vez mais a excepção liquida a regra. O direito de acesso a auto pode ser negado de modo insindicável, pois que negável discricionariamente.
Além disso, a lei prevê que o acesso pelo arguido e seu defensor seja aos «elementos do pocesso determinantes da apliação da medida de coacção ou de garantia patrimonial» e como o legislador, como vimos, se esqueceu de prever uma regra pela qual o juiz deve mencionar quais os elementos do processo relevantes, fica-se sem saber de que acesso estamos a falar. Ao limite, pois que tudo é relevante para indiciar o crime, e é em função do tipo de crime que se decreta uma medida como as que estão em causa, o arguido e o seu defensor podem ter acesso a todo o processo. Duvido que o legislador tenha querido isso ou a jurisprudência aceite um tal desventramento dos autos em favor do investigado.

Vacatio e carneiros

O Governo está a conseguir fazer passar a mensagem de que o novo CPP traz coisas tão boas que tem de entrar em vigor depressa. O Bastonário Rogério Alves, dizendo embora que o hiato entre a publicação e a entrada em vigor devia ser maior, opina também assim pois «considera a reforma do Código do Processo Penal "muito positiva e inovadora" em matéria de direitos, liberdades e garantias». O Governo deve estar feliz com ele e ele contente com o Governo.
Só o Bastonário Pires de Lima, no seu estilo peculiar, introduz uma nota dissonante, ao considerar que «a atitude dos advogados é de um “carneirismo terrível”».
Vamos a ver se marram!

Procuradores fora de jogo

Entendo que haja procuradores mais aptos a investigar do que a sustentar um caso na barra do tribunal e vice-versa. Como os advogados é o mesmo.
Mas o que não entendo é que no Ministério Público, por sistema, quem investiga não vá dar a cara pelo trabalho que fez e com base no qual foi deduzida a acusação em julgamento e quem tem a tarefa de vestir no campo da audiência a camisola da acusação não a tenho redigido e seja a ela alheio.
Que o sistema seja eficaz, duvido muito! Que o sistema serve para um passa-culpas, entendo, quando as coisas saem mal à Procuradoria: o procurador em julgamento sempre pode dizer que o caso já vinha moribundo, e o procurador que escreveu a acusação pode dizer que foi o colega de julgamento quem o matou. Disse o que agora disse no último Congresso do MP.
Agora há uma variante num processo que tem todos os tiques de um processo especial: é o quem investiga já saber a priori que não vai ter de enfrentar o produto do investigado quando for sindicado em julgamento e sabê-lo por definição ao mais alto nível, contra a opinião da «hierarquia» que parece ter deixado de o ser Pelo menos é o que li hoje.
Ora ante tão alto colocar do problema, que se imputa a uma opção pessoal do próprio Procurador-Geral da República, será que não temos o direito de perguntar: porquê? Ou talvez: o que se passa? Então apita-se assim um off side e nem uma explicação capaz há?

Resolver e punir

A noção de que o «número de incendiários detidos não acompanha descida de fogos», como li hoje, devia iluminar o espírito dos legisladores. O sobrepunir é sempre um expediente fácil, demagógico e que serve para os políticos mostrarem à população que o problema está resolvido. No mais, basta uns rudimentos de saber criminológico, como os meus, para saber que não é por aumentar as penas que diminuem os crimes. Sobretudo porque o fosso entre as penas abstractas e as punições concretas aplicadas pelos tribunais é enorme. Ao excesso legislativo corresponde a temperança judicial. No mais, o país continua a arder.

O tal canal

Eu achava estranho o PGR fazer não declarações sobre não notícias e silenciar posições necessárias sobre coisas tão importantes como o súbito novo CPP, cuja entrada em vigor apanhou o país judiciário à traição, em indigna emboscada legislativa.
Agora vi que, ante a anunciada, propalada e inesperada saída do país de um casal sobre o qual se diz o que se diz, PJ inclusivé, o mesmo alto magistrado «soube pela televisão» do facto escandaloso.
Na próxima, o Palácio de Palmela quando o país esperar uma posição oficial e os magistrados no terreno uma orientação de serviço talvez venha de lá uma circular: «por razões de ordem técnica, o programa segue dentro de momentos».

A retroacção da lei melhor ante o caso julgado

O atento e cívico In Verbis, ante as alterações às leis penais sobre a eficácia da lei posterior mais benigna sobre o caso julgado veio abrir a polémica, com este comentário num post afixado em 6 de Setembro: «sabendo que "a lei processual penal é de aplicação imediata" (art.º 5.º, n.º 1 do CPP), basta qualquer alteração legislativa, qualquer que seja o fundamento, da moldura penal de um tipo de crime, para que uma decisão penal transitada em julgado carecer de objecto de revisão, por novo julgamento».
Pergunto-me outra coisa: ante a ausência de normas reguladoras da matéria do caso julgado em geral, ao contrário do que se passava no domínio do CPP de 1929, não havendo asssim preceitos legais que enquadrem um aspecto nevrálgico para a segurança jurídica e para a paz dos julgados, não integrará tal omissão uma forma de inconstitucionalidade?
E face a ela, que sentido faz, em termos de coerência constitucional, não tendo regulado, pela positiva, a substância ingente do tema, prever, em discurso fragmentário, a quebra da autoridade do caso julgado como decorrência do Direito Penal intertemporal?
Ou seja: quer-se mesmo a total defesa dos arguidos e a segurança jurídica, ou quer-se para já a fragilidade das sentenças judiciais e o reino da eterna incerteza?

Advogado: nem morto!

As questões jurídicas debatem-se normalmente a pretexto da sua ocorrência mediática, nunca pela sua essência abstracta. Daí que normalmente seja tudo muito acalorado, vago, às vezes a raiar o pugilato verbal. O legislador entra amiúde nesta feira de varapau argumentativo e altera as leis que a propósito regulam a questão controversa, para parecer atento e mostrar-se activo. Depois as coisas esquecem-se e voltamos à mesma.
Veio agora à tona de água o drama do justo impedimento, por causa de uma situação controvertida, cujos contornos só conheço pelos jornais.
De há muito que se sabe e se convive com duas coisas: primeiro, uma jurisprudência ultra-restritiva sobre o justo impedimento, segundo, uma lei para a qual a falta do advogado, ainda que moribundo, não é motivo de adiamento de nenhum acto processual.
Este sistema odioso, parte de um pressuposto: um critério mais permissivo quanto ao justo impedimento e uma lei que desse causa ao adiamento do acto processual por ausência legítima do advogado seriam a porta aberta ao abuso, ao desregramento, à chicana.
A lei que temos, a jurisprudência que se formou, a praxis com que convivemos são também o produto de uma advocacia que foi perdendo categoria e dignidade, uma advocacia que faz presumir que o mínimo de contemplação seria logo o aproveitanço abusador e o nada funcionar na Justiça que ela deveria servir.
Temos deputados advogados, tivemos ministros advogados, o essencial do sistema não mudou e só mudará no dia em que a classe no seu todo retomar elevação de maneiras, respeitabilidade e força de liderança para impor aquele mínimo de decência na gestão processual: a doença do juiz e do procurador que obstam ao julgamento deve ser a mesma que obrigue a adiar sendo o advogado por ela atingido. Aquele, juiz, procurador ou advogado que «meter atestado» a declarar doença falsa, que pague a sério a ousadia. Até lá seremos tratados como presuntivos falsários.
Ridículo, ofensivo, o advogado doente a ter de trabalhar, hipócrita um sistema em que o juiz compreensivo tem que se violentar a arranjar um motivo para que o acto processual não ocorra, respeitando a ausência do advogado que compreendeu ser justa na razão e verdadeira no motivo.
Num livro que escrevi sobre «Actos Processuais» e que não cheguei a publicar - pois entretanto largaram a alterar a lei - citei esta mimo: «é jurisprudência assente que a doença do mandatário, a acumulação ou azáfama profissional, a ausência do mesmo por via desta actividade ordenada pelo tribunal, não dilata os prazos estabelecidos na lei para a prática de determinados actos - cfr. acs. RL de 18.6.91- proc. 1638; Proc. 1442, ambos da 5ª Secção; acs. da RP de 14.5.65, JR 1965-454; do Supremo Tribunal de Justiça de 3.3.65, BMJ 328, proc. 31.673). O instituto do justo impedimento em processo penal tem uma malha muito apertada de hipóteses por forma que, bastante difícil é encontrar leque alargado de circunstâncias que o justifiquem. A morte do mandatário, na forma indicada, não é motivo de justo impedimento».
Não está tudo dito? Pela boca da Relação de Lisboa, em 1991.

O conveniente silêncio

Dizem que a frase pertence a Thomas Jefferson: a ter de escolher entre um país com Governo mas sem jornais e um país com jornais e sem Governo preferia esta última opção. É este o drama que se vive mesmo nos círculos da Justiça: a dependência dos jornais.
Vem isto a propósito de muitos posts e comentários que vejo em blogs jurídicos em que a fonte da informação é o facto tal como o jornal o noticia. Atrás da sua divulgação os próprios organismos responsáveis emitem opinião e assim nasce a polémica. Depois vem o desmentido e a correcção.
Não quer isto dizer que não haja fundamento em muitas notícias. Felizmente há jornais. A imprensa abusa menos do que os abusos que denuncia.
O que nem sempre há é rigor no modo de noticiar, sobretudo no que se refere à fonte da notícia.
O Correio da Manhã, por exemplo escreve que «as questões suscitadas pelas novas leis penais – que têm motivado muitas críticas por parte dos juízes e principalmente dos procuradores», e acrescenta que «estão a ser estudadas por diversos grupos do Ministério Público», aditando ainda que «apesar da polémica que já levou alguns magistrados a sugerirem a intervenção do procurador-geral da República ou do Presidente da República». O respeitabilíssimo bog Defensor Oficioso divulga a notícia, onde a li.
Mas, pensando por um instante no que se lê: quais são as «muitas críticas»? Quem são os «juízes» e os «procuradores»? Quem são os «diversos grupos»? Quem são os «alguns magistrados»?.
Lendo, não se sabe. Sabe-se apenas, segundo o mesmo jornal, que, ante as «muitas» «dos» e as dos «diversos grupos» e de «alguns magistrados», Pinto Monteiro, «não se pronuncia sobre o assunto, de momento».
Ou seja, uma não notícia e uma não declaração sobre um não assunto. É fácil asssim, silenciar. Ora se o PGR falasse, não sobre o que, não tendo cara, parece que nem é, mas desse a cara pelo que há e é e exige assim que se enfrente, cara a cara e de viva voz, ficaríamos todos mais contentes. Todos menos o Governo, claro. E aí está a causa e o motivo!

Alteração ao Código Penal: outra para 15 de Setembro, claro!

Claro que a reforma do processo penal tinha de entrar em vigor em concomitância com a do Código Penal, que tardava em aparecer. Ei-la hoje, aqui mesmo, publicada no Diário da República. Para entrar em vigor a 15 de Setembro!
Já disse sobre isto o que tinha para dizer. Não há maior prova de arrogância, de desprezo sobre os que trabalham na Justiça do que configurar inícios de vigência com esta duração tão curta, leis publicadas concomitantemente com a reabertura dos trabalhos judiciais. Ou, é verdade, pode não ser intencional! Pode tratar-se de negligência pura, da consciente!

Quem é quem onde no MP

Quem quiser saber onde estão os nossos procuradores é ver aqui: há os promovidos por mérito e também os promovidos por antiguidade; há os colocados em lugares, que se mantêm onde estão, os transferidos para lugares de onde não saem; e há os destacados por conveniência «de serviço». É o chamado «movimento extraordinário». Mais arrumado, só aqui: quem quiser estar atento compreende e até entende!

Não justificação da difamação por formulação de juízos de valor

O Acórdão 40/07 do TC teve de decidir a seguinte questão, saber se seria «inconstitucional a determinação contida na norma do artigo 180.º do Código Penal aplicada como ratio decidendi no sentido defendido da inaplicabilidade das circunstâncias previstas como causa de exclusão da ilicitude no n.o 2 do artigo 180.º do Código Penal aos casos em que a ofensa à honra e consideração de terceiros decorram de juízos valorativos, e não de factos hoc sensu, ainda que tais juízos sejam acompanhados da referência ou menção desses mesmos factos, por ‘impossibilidade de preenchimento da condição da alínea b)’ (do n.o 2 do artigo 180.º do CP)».

Como se sabe, a causa de justificação no crime de difamação só ocorre quando alguém imputa factos e prove
que visava fim legítimo, prove a verdade do afirmado ou a convicção séria da verosimilhança e não se exceda face ao fim em vista. Tem sido este o entender uniforme da doutrina e a jurisprudência: a causa de exclusão da ilicitude referida no n.o 2 do artigo 180.o do Código Penal não se aplica a juízos de valor. Eis o que se sujeitou ao TC agora numa lógica de aferição da constitucionalidade material.
No caso estava em apreço o uso por jornalista da «expressão aldrabão (...) acompanhada da
descrição factual—a mentira ao Parlamento», em concreto «o aldrabão do governador civil de (...), usada num artigo de jornal.
A defesa quis a justificação do facto, pois que a formulação do dito juízo de (des) valor viera acompanhada da descrição de factos. E tentou que a norma nesta dimensão normativa concreta, fosse declarada materialmente desconforme à CRP.

Para que melhor se entenda, em causa o artigo 180º, n.os 1 e 2, do Código Penal:
«1—Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto ou formular sobre ela um juízo ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2—A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira».

Ora o TC, citando o acórdão recorrido, lembrou que «se a específica causa de justificação sobre que nos
debruçámos (a do artigo 180.º, n.o 2, do Código Penal) é inaplicável à formulação de juízos de valor ofensivos, por impossibilidade de preenchimento da condição da alínea b), tal não implica que a formulação de juízos de valor seja, em absoluto, insusceptível de justificação. No caso de formulação de juízos ofensivos, poder-se-ão aplicar, se for caso disso, as regras gerais contidas no artigo 31.o, designadamente a constante da alínea b) do n.o 2, tendo-se em especial atenção o princípio da ponderação de interesses».

Estatui o citado n.º 2 do artigo 31º do Código Penal que:
«1—O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.
2—Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado:
(...)
b) No exercício de um direito.»

E assim consignou o TC, em remate, que: «daqui decorre que a interpretação normativa adoptada pela
decisão recorrida não viola a exigência constitucional de que os direitos à liberdade de imprensa e à honra sejam conciliados através duma operação de harmonização proporcional, uma vez que não considera que o artigo 180.o, n.o 2, do Código Penal seja a única norma, no plano do direito infraconstitucional, convocável para julgar se os juízos de valor ofensivos da honra duma pessoa se possam traduzir no exercício do direito de liberdade de imprensa, tendo-se socorrido do disposto no artigo 31.o, n.o 2, alínea b), do Código Penal, para efectuar essa ponderação. Assim, tal como também concluiu o Acórdão n.o 201/2004, do Tribunal Constitucional (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 58, p. 965), o artigo 180.o, n.o 2, alínea b), do Código Penal, quando interpretado em termos de ele não abranger juízos de valor, mesmo que tais juízos sejam acompanhados da referência aos factos que lhe estão subjacentes, não viola qualquer princípio ou preceito constitucional, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente nesta parte».

Ou seja, porque justificável nos termos do artigo 31º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, a formuação de juízos
de valor, ao não estar prevista, como causa de justificação do facto, no n.º 2 do artigo 180º do mesmo diploma, não infringe a Constituição, pois «não viola a exigência constitucional de que os direitos à liberdade de imprensa e à honra sejam conciliados através duma operação de harmonização proporcional».

Faz sentido para quem se habitua à estranha lógica jurídica: o Direito prevê ali o que parecia negar aqui.

Processo penal, processo disciplinar: o jogo duplo

O artigo 5º da nova Lei 50/07, de 31 de Agosto, que estabelece um novo regime de responsabilidade penal por comportamentos susceptíveis de afectar a verdade, a lealdade e a correcção da competição e do seu resultado na actividade desportiva, consagra que: «o exercício da acção penal ou a aplicação de penas ou medidas de segurança pelos crimes previstos na presente lei não impedem, suspendem ou prejudicam o exercício do poder disciplinar ou a aplicação de sanções disciplinares nos termos dos regulamentos desportivos».
Trata-se da manifestação do que pode vir a ser uma injustiça grave. Julgo que a ideia consagrada sempre valeria nos termos gerais pelo que, o consagrá-la, é uma imprudência legislativa, pois transmite a ideia de que, se não houvesse lei expressa, a solução seria outra!
A punição disciplinar - quantas vezes acelerada - a que se siga um não provado, judicialmente decretado em processo penal, quanto aos factos que deram origem à procedimento por violação de regras de diciplina, não abre a porta a uma revisão da decisão punitiva. Disse-o o STA em vários acórdãos, em relação a funcionários demitidos por factos que, por serem possíveis crimes, a justiça penal considerou mais tarde serem inexistentes; funcionários e que, na ânsia de retomarem o emprego que lhes garantia a subsistência, tentaram em vão o recurso extraordinário de revisão disiciplinar.

Ainda diz a Constituição que as decisões dos tribunais prevalecem sobre as de todas as outras autoridades! Se
isto fosse assim, esta legislação estava mais do que fora de jogo, era um verdadeiro penalty!

As escutas e os jornais

É curioso o que está a surgir em torno da possibilidade de divulgação jornalística de escutas telefónicas. Sobretudo a falta de lógica nas críticas.
Sabe-se em que medida as escutas telefónicas são uma intromissão e uma devassa.
Sabe-se quantas vezes elas são uma habilidosa colagem do que interessa à acusação, uma selecção maldosa de partes de conversas enxovalhantes para os escutados.
Sabe-se em que medida o Tribunal Constitucional teve de intervir para se moralizar o sistema e que o apagar das escutas, fonte de todas as truncaturas e mãe de todas as caricaturas, não sucedesse sem que ao menos os escutados, ouvidos, pudessem opor-se a que se destruíssem as escutas que podiam defendê-los.
Sabe-se isso tudo.
Mas é curioso que os que sabem exacatamente isto, conhecem em que medida as escutas que estão nos processos enlameiam, enxovalham, devassam, ridicularizam, surpreendem o escutado à traição, apanham-no nos momentos em que a investigação quer, esses mesmos berram e gritam o «aqui d'El Rei» que há que permitir que a imprensa venda papel à conta desssa intrusão desleal na privacidade alheia.

Compreendo uns: querem que se perpetue o circo mediático, o boxe na lama em que se converteu a nossa
vida pública. Mas há outros que é melhor pararem um pouco para reflectirem: ou são juristas ou jornalistas! Tertium non datur!