Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Proscrever a prescrição?

A prescrição [do procedimento criminal] é injusta para as vítimas, útil para os autores de crimes, faz parte da essência do Estado liberal. Na sua base estão duas ideias utilitaristas e uma moral: a primeira, a de que a Justiça ou é eficazmente tempestiva ou não o é; a segunda é que o Estado, que se desacreditou ao não conseguir resolver-se quanto ao crime é melhor esquecer-se dele, porque fica exposto ao opróbio da impotência enquanto durar a pendência e esta já foi castigo sobejante para quem esteve em risco de vir surgir, tardia mas inexorável, a longa manus da Justiça.
Claro que tudo é discutível. O próprio marquês de Beccaria, animado de propósitos humanitários para o seu tempo, encarou a segunda, mas com reservas. Cito-o da sua pequena grande obra sobre os delitos e as penas: «Quando se trata desses crimes atrozes cuja memória subsiste por muito tempo entre os homens, se os mesmos forem provados, não deve haver nenhuma prescrição em favor do criminoso que se subtrai ao castigo pela fuga. Não é esse, todavia, o caso dos delitos ignorados e pouco consideráveis: é mister fixar um tempo após o qual o acusado, bastante punido pelo exílio voluntário, possa reaparecer sem recear novos castigos».
O tema, porque cívico, tem vindo para as páginas dos jornais e mais comunicação social. As reacções são expectáveis. Cada leitor sente-se mais potencial vítima de um crime do que possível autor dele. E vota na imprescritibilidade quer do crime que o Estado deixou por perseguir, quer quanto ao que não tem dúvidas ser o crime de o Estado não ter sido capaz de perseguir.
O problema é quando o relativo se torna problemático. Ao ter defendido o "carrasco de Lyon", o responsável pela Gestapo naquela cidade, preso já na fase terminal da vida, o controverso advogado francês Jacques Vergès pediu certidão a todos os processos em que torturadores franceses tinham ficado impunes na Argélia por estarem prescritos os seus crimes. E argumentou que no caso do julgamento do nazi que defendia estava em causa a "Justiça dos vencedores", porque entendiam que aquele crime, porque era «contra a Humanidade» pertencia à categoria dos crimes imprescritíveis e de incriminação retroactiva.
Na pequenez do nosso quotidiano de uma coisa me lembro eu e vejo que tantos a esqueceram: quando aqui há uns anos, por causa de uma alteração que não foi feita ao Código Penal [artigo sobre a interrupção da prescrição] quando entrou em vigor o nosso Código de Processo Penal [que acabou com a «instrução preparatória»] milhares de processos criminais prescreveram. Concluiu-se que isso sucedeu porque há mais de dez anos que se arrastavam em fase de inquérito, ou seja, sem terem visto um juiz pela frente. Foram tempos fantásticos, esses, em que, por um momento, os que já então clamavam contra o alegado «excesso de garantismo» [na forma: são os advogados, com os seus expedientes, os culpados do atraso na Justiça] tiveram que baixar o cornetim da exclamação [porque no inquérito penal os advogados tinham em matéria de possibilidades de intervenção praticamente zero], tempos em que, para interromper a prescrição havia quem passasse e validasse mandados de detenção apenas para levar o detido ao juiz e fazê-lo soltar a seguir, interrompida por esta forma a prescrição, a liberdade cidadã como instrumento de salvação da incapacidade do Estado.
Cuidado, pois, com coisas sérias. Que de uma vez por todas se não legisle ao sabor das notícias.

P. S. Honra seja feita ao legislador da Lei n.º 32/2010, de 02.09 que decretou que prescreveriam em 15 anos os «crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for superior a 10 anos ou dos crimes previstos nos artigos 372.º, 373.º, 374.º, 374.º-A, 375.º, n.º 1, 377.º, n.º 1, 379.º, n.º 1, 382.º, 383.º e 384.º do Código Penal, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, alterada pelas Leis n.os 108/2001, de 28 de Novembro, e 30/2008, de 10 de Julho, e 8.º, 9.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 50/2007, de 31 de Agosto, e ainda do crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção». Quaisquer que sejam as críticas que mereça essa inovação essa reforma teve «por pano de fundo a criminalidade associada à corrupção», por se reconhecer que os prazos em vigor até então «eram patentemente reduzidos» [leia-se, porque muito interessante o estudo de José Manuel Damião da Cunha, A Reforma Legislativa em Matéria de Corrupção [editado em Abril deste ano pela Coimbra Editora].