Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




A geografia de uma vida

Não é este um blog referente à minha actividade profissional. Mas é um blog pessoal, um espaço de liberdade. Tento que seja informativo e por vezes falha-me tempo para informar-me e poder divulgar. Quero que seja crítico mas nem sempre tenho possibilidade de meditar para me precaver do comentário superficial. Venho hoje falar de um assunto meu.
Este mês a Ordem dos Advogados concedeu-me a reforma como Advogado. Por causa dos encargos a que estou a amarrado, terei de continuar, porém, a trabalhar nos tribunais. Estou naquela idade a quem já ninguém daria outro emprego. E depois viciei-me neste.
Num momento destes pensa-se no que foi ter sido Advogado, no que poderia ter sido, no que acabou por ser. No meu caso a data não se tornou numa efeméride, apenas um momento de encontro de contas com a Caixa de Previdência da minha Ordem, uma das que restam livres neste País em que o Estado engoliu o sociedade civil.
Comecei a advogar em Sintra, feito o estágio em Lisboa no escritório do Dr. Francisco Salgado Zenha. Naquela vila o Tribunal eram dois juízos, instalados no edifício da Câmara Municipal. Lembro-me do nome dos escrivães, o Senhor Alvarez e o Senhor Aleluia. Quando comecei eram a minha referência directa, o primeiro lado visível da Justiça. Não me atrevia a confessar-lhes a minha ignorância, estudava dia e noite por pudor.
Eu era então o benjamim da comarca. Comecei a fazer de tudo, desde registos prediais, a escrituras de habilitação. Propus acções cíveis, execuções de letra, divórcios, processos-crime. Nos dias de mercado esperava que me chegassem "clientes". Vinham da Sintra rural, da Várzea, da Ulgueira, de Pero Pinheiro, de Dona Maria.
Tinha aberto escritório com cinquenta contos que a minha Mãe poupara. Comprados os tarecos e uma máquina de escrever, assinalei-me o propósito de continuar se aquele dinheiro não acabasse sem eu ter ganho algum para ir repondo. Não tinha fotocopiadora. Não havia faxes. Escrevia-se em papel selado.
Tem sido assim, no bom e nos maus momentos, um mundo que pode terminar a cada instante. Os que tomam os outros pelo que deles fantasiam, imaginarão coisas, muitos a medida da frustração, outros do que ambicionam. 
O real, mesmo quando invisível, existe.
Ao longo da vida conheci de tudo. Ninguém tem o monopólio da virtude. Um dia mudei-me para Lisboa, para um pequeno gabinete, na Rua Marquês de Fronteira. 
Talvez por ter estado sete anos ligado à docência na Faculdade de Direito da Universidade Clássica, na área do Direito Criminal e do Processo Penal, e depois mais dez nas Universidades Lusíada e Internacional, fui-me centrando nestes ramos do Direito. De vez em quando aventuro-me por outros territórios. Com gosto e frequentemente com resultado. Mas acabei por ficar um Advogado criminalista em prática isolada. O modo de ser profissional é o modo de ser da pessoa que exerce a profissão.
Não há Advogados que ganhem sempre; quem o diz ou não advoga ou cruza os dedos atrás das costas. Aliás a Advocacia não é o mundo onde tenha se se alcançar o orgulho de ganhar uma causa para não sofrer a humilhação de perdê-la. 
Tenho perdido processos que merecia ter ganho e ganho outros que merecia ter perdido. Em ambos os casos a Justiça perdeu sempre. Houve coisas que gostaria de não ter sabido, outras que gostaria de não ter feito ou visto fazer.
Se eu tivesse a arrogância de escrever um livro sobre como é advogar não saberia escrevê-lo. É uma Arte, não uma Ciência. Quando se tem o holofote em cima, o público ilude-se com o ruído das luzes, porque não se notam os bastidores nem as horas a fio de ensaio.
Com o 25 de Abril o meu patrono foi o primeiro ministro da Justiça da democracia. Chamou-me para seu secretário. Julguei que a Pátria precisava de mim e eu podia oferecer-me ao Governo. Fui para secretário do ministro. Desde então ficou-me o gosto pela causa pública. Deixou-me no final de tantos tombos gosto amargo. Regressei sempre à minha banca de Advogado.É o útero onde me fiz.
Hoje acabei um prazo, amanhã tenho um julgamento. E serviço acumulado por cansaço. Tenho vergonha de o dizer porque há centenas de colegas sem trabalho. Sou nisso um privilegiado. Fiz o que quis fazer de mim. Tudo começou há muitos anos. Em Fevereiro de 1972 comecei o estágio. A fotografia deste postal mostra como era o meu eu exterior nesse tempo. 
A geografia de uma vida é o mapa que a vida nos desenha no rosto.