Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Reforma do CPP (1): o artigo 340º

Primeiro foi a lógica do consenso como bandeira da celeridade a querer impor-se ao poder judicial, fazendo os acordos entre o Ministério Público e os Advogados a determinaram a pena, assim negociada, quisesse o juiz ou não, tudo com o aplauso de certos magistrados porque assim tudo andaria mais depressa e eles teriam menos serviço. A ideia, até mais ver, ficou no limbo das fantasias mortas, tal como a alma dos recém-nascidos.
Agora é uma nova frente ao poder judicial. Desta vez em papel timbrado do Ministério da Justiça.
Comecei a ler as sugeridas alterações ao Código de Processo Penal. E dei logo com esta [e outras que a seu tempo virão aqui em comentário critico] relativa ao artigo 340º, o preceito que permite, oficiosamente ou a requerimento, a produção de meios de prova indispensáveis para a descoberta da verdade de que houvesse entretanto notícia ou que se revelassem, entretanto, relevantes.
Envergando o paramentação branca da inocência, a nova fórmula para o preceito [alínea a) do n.º 4]  surge assim desenhada na proposta do Governo: «os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que a) As provas requeridas já deviam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação».
Perdoem a crueza mas tudo isto é um erro.
Primeiro, porque não há coisa menos notória em Direito do que o ser notório. Como se o processo penal, processo de garantia e segurança que deve ser, pudesse compaginar-se com conceitos abertos indeterminados, vagos como este, ei-lo a abrir a porta ao discricionário, ao livre alvedrio de quem decidir e depois, claro, a arguições de nulidades e a recursos [ficando, como é costume, as vítimas destes pesadelos interpretativos causados pelo político legislador à mercê de estarem a abusar de excesso de garantismo e a entorpecer a acção da Justiça...].
Segundo, porque não pode falar-se em ternos de prova em um «dever» nem sequer, para sermos rigorosos, num «ónus», ou então as categoriais jurídicas essenciais já não valem nada e as nomeclaturas, tal como as expressões da Literatura, passam a ter valor meramente sugestivo. Não há portanto para o Ministério Público, assistentes ou arguidos provas que devam ser apresentadas neste ou naquele outro momento processual, sim que podem ser oferecidas em certos tempos processuais, com a especificidade para o titular da acusação pública que de seguida se referirá.
É que, terceiro, porque a haver uma lógica de preclusão, ela não pode equiparar o Ministério Público ao arguido, pois aquele esgota-se no acto acusatório, delimitando o objecto processual e apoiando a sua valia indiciária em provas suficientes, que podem ser sindicadas pelo juiz em instrução, quando requerida, ou pelo juiz de julgamento, inexistindo prévia instrução, no despacho em que receber a acusação. O arguido oferece na contestação a prova que entender sem que tal peça processual lhe possa ser rejeitada por não conter prova suficiente. Donde a equiparação é incorrecta, porque não se trata de irmãos nem gémeos nem siameses. Não se trate igual o que é diferente.
Quarto, porque a lógica do artigo 340º, tal como estava delineado, era dar acolhimento à superveniência subjectiva em matéria probatória, isto é permitir a produção daquela prova de que houvesse entretanto conhecimento ou que, conhecida já que fosse, assumisse agora relevo para o esclarecimento da verdade, a válvula de escape, em suma, para que, em nome da Justiça, se esgotasse toda e qualquer prova que permitisse a descoberta da verdade. E, num aparte, acabe-se de vez com a noção [outra] vaga e perturbadora da verdade «material» [por contraponto à verdade «formal» do processo civil] porque o conceito de verdade para a Justiça deve ser sério demais para que admita variantes ou gradações.
Fruto do que se pretende ser um dever probatório, que impenderia por igual sobre o Ministério Público e o arguido [e assistente], ficarão todos ficam impedidos de apresentar provas que notoriamente poderiam ter indicado antes. Eis o que se sugere.
Que restará ao juiz? O poder de oficiosamente determinar o que não pode ocorrer a requerimento? Mas não se pensou que esta exposição do juiz à isolada oficiosidade o compromete no núcleo essencial da sua independência, por estar a comandar a produção de provas que podem fazer pressentir já um juízo formado sobre o objecto das mesmas? Não era mais equilibrado um sistema em que a oficiosidade era subsidiária ou paralela ao poder de requerimento por parte dos demais «sujeitos processuais»?
Que se imporá ao juiz, assim a proposta dê em lei? Que seja o juiz do que é «notório». Não se pensou que esta exposição do mesmo à integração de um conceito tão vago, o compromete no núcleo essencial da sua imparcialidade, porque chamado a decidir algo tão relevante como a prova final em julgamento, em nome de uma ideia cujos contornos escapam entre os dedos, o ser notório, substituindo-se ele à estratégia probatória da acusação e da defesa, para decidir que a prova devia ter sido indicada antes?
O admirável mundo novo privatístico vai entrando no processo penal. É a ideologia do capital, a técnica da celeridade na linha de montagem do processo penal, tal como na fábrica do senhor Henry Ford, produtor americano de automóveis. A taylorização. A funcionalização.