Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Prova pericial



Eis, sem emendas, o texto lido esta tarde no colóquio organizado pela Associação Jurídica do Porto e pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Para efeitos de publicação, que surgirá em Setembro o texto será melhorado e reforçado com referências.



«Entre outras, são estas as questões essenciais que se colocam ante o sistema legal português em matéria de prova pericial: oficiosidade e ausência de contraditório na designação, oficialidade na selecção, singularidade na composição, preponderância probatória e sujeição pessoal a tal meio de prova.
Vejamos cada uma dessas facetas, as disfunções a que conduzem.
E tenhamos em vista que este encontro visa discutir se a reforma cirúrgica que foi extirpou ou não alguns dos abcessos que vinham gerando a patologia do sistema processual penal.
Tenha-se presente o contexto histórico em que a dita reforma surgiu, em que à Justiça era assacada, pela alegada lentidão, onerosidade e ineficiência, responsabilidade acrescida pela crise de produtividade económica, que era proclamada, em alta voz da propaganda oficial, causa da disrupção financeira do Estado, como se as razões não fossem outras.
Lamento, como cidadão, ter de constatar que aqui nada se fez de relevante. Tratou-se de microcirurgia irrisória.
Ora as perícias são, num processo penal contemporâneo, meio para reconstituir factos e avaliar provas, sob a convicção que a ciência garanta. Paga-se o preço da certeza pelo custo da técnica. Radica tudo na confiança do saber. Contrapõe a demonstração à argumentação.
Mas não são, nem podem ser, o fruto de uma verdade oficial, única, ditada unilateralmente, despotismo iluminado pelo presuntivo saber, defendido da crítica que o contraditório permite, não aberta à opinião de saberes de outros, provindos que venham do território da sociedade civil, porque nemo Estado tem o monopólio da ciência, nem o exclusivo da probidade.
Valeria a pena ter investido para o benefício. Oportunidade perdida, porém, esta que passou.
Vejamos cada um dos tópicos.

Oficiosidade na designação

O perito é nomeado pela autoridade judiciária ou pela lei, em caso algum pelos sujeitos processuais privados. E a nomeação incide primacialmente sobre entidades e/ou pessoas do meio oficial. É a oficiosidade na escolha e a oficialidade na selecção.
No que se refere à escolha, o pressuposto é o tradicional, aquele que Cavaleiro de Ferreira exprimia quando afirmava que o perito é um auxiliar do juiz para que se obtenha prova, ou esta seja avaliada.
Auxiliar do juiz – ou hoje da autoridade judiciária – o perito é, nesta lógica, de sua livre escolha, com as limitações previstas no n.º 1 do artigo 152º do CPP: a primeira, a de a designação, em regra, recair sobre o elenco de «estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado»; a segunda, «quando tal não for possível ou conveniente, por perito nomeado de entre pessoas constantes de listas de peritos existentes em cada comarca»; enfim, «na sua falta ou impossibilidade de resposta em tempo útil, por pessoa de honorabilidade e de reconhecida competência na matéria em causa».
Escolha oficial e a incidir em regra de entidade ou pessoa oficial, a peritagem está, por essência, fora dos poderes de participação probatória dos sujeitos privados no processo penal, sejam eles assistentes ou arguidos.
A lógica do sistema radica em duas circunstâncias: primeiro, naquela que se referiu, a de quem tem poderes de designação nomeia os seus auxiliares; a segunda, a de que, fossem os privados a terem poderes de indicação e não faltaria trazerem ao processo o contributo parcial dos seus remunerados peritos.
É um modelo em que, qualquer que seja a faceta pela qual se encare, assenta num desvalor e numa contradição: por um lado, numa subalternização do perito, que surge no processo como fruto de uma dependência funcional ante quem o nomeia e, por isso, só por si designável, em contradição, aliás, com o regime legal em matéria de valor probatório da prova pericial em que a opinião do designado se sobrepõe à do designante; por outro, numa suspeita sobre a probidade do perito particular contratado, porque sempre estaria ao serviço daqueles que tivessem meios para lhe remunerar as conclusões, que assim seriam venalmente suspeitas, também aqui em contradição com os até aqui tidos como peritos empregados dos organismos de apoio técnico na dependência do Ministério Público e suas polícias e ao serviço dos inquéritos para os quais são convocados.
Além disso, como adjuvante argumentativo tem-se sustentado que a peritagem dita contraditória, só é permitida àqueles que tenham meios financeiros suficientes para custearem os elevados custos de uma participação de especialistas, cujos honorários não estão ao alcance de todas as bolsas.
Trata-se, permita-se, de argumentos discutíveis.
É que, entre um sistema totalmente privatizado, em que os sujeitos processuais privados apenas têm ao seu dispor, como peritos, aquilo que o mercado oferece e podem remunerar, e um outro, em que os peritos sejam oriundos de estabelecimentos oficiais ou acreditados oficialmente mas que, a serem custeados pelas regras de custas da justiça, possam ser indicados pelos sujeitos processuais e oficiosamente pelo tribunal vai uma diferença: o segundo é exequível, menos oneroso e sobretudo mais equilibrado para a participação contraditória que é a forma de maximizar as várias abordagens à verdade.
Não sou dos que considero a perícia uma prova “neutra”, neutralidade a projectar-se na competência para a designação dos peritos e para a sua própria valoração.
Não pode ser “neutra” uma perícia que pode ser designada pelo Ministério Público que, por mais proclamada seja a metáfora da objectividade, é a parte acusadora no processo penal; não pode ser neutra uma prova que se sobrepõe, pela supremacia do tecnicismo, ao poder jurisdicional.
Além disso, o mesmo sistema que tem vedado a designação aos privados de peritos oriundos do sector privado tem vindo a coexistir com uma política legislativa de outsourcing a partir dos serviços públicos, que são autorizados, por leis sucessivas predominantemente na área médico-legal, a contratar peritos particulares, ou a cometer perícias a serviços privados, ou até mesmo a celebrar protocolos para tal efeito, tudo para suprir as alegadas deficiências dos serviços públicos, estendendo aqui uma lógica de mercado que é, afinal, a que se tem vindo a implantar no serviço nacional de saúde.
Estamos, pois, ante um sistema em que a oficiosidade da decisão e a oficialidade na selecção estão hoje sujeitos a contradições insanáveis por decaimento do valor tido por absoluto dos respectivos pressupostos.
Em 1940, quando os ventos do totalitarismo sopravam a contaminar o processo penal pelo apoucamento da judicialização, escrevia Cavaleiro de Ferreira a propósito dos “exames”, que era a forma pela qual a legislação processual penal consagrava a prova pericial:

«(…) a apreciação feita pelos peritos, sendo idêntica na natureza à apreciação da prova feita pelo juiz, não tem o mesmo valor e alcance. O juiz decide, enquanto o perito dá apenas um parecer, com o qual o juiz não é obrigado a conformar-se.».

E, situando o seu pensamento no quadro do que era o ensinamento da História, acrescentava:

«Na antiga legislação discutia-se muito a obrigatoriedade para os tribunais, dos pareceres dos peritos, nos exames, em matéria penal, e a maior parte da doutrina e da jurisprudência inclinavam-se para essa obrigatoriedade. Hoje, tal doutrina é absolutamente inadmissível. Mesmo em processo civil não há a sujeição do juiz ao parecer dos peritos».

Hoje, que vivemos sob a bandeira de um Estado que se proclama de Direito democrático, é como se viu.
Felizmente foi banido, ante a nova redacção conferida ao artigo 216º do CPP, algo que se vinha tornando, em abusiva perversão, fonte de desencorajamento para o requerimento pelos privados da prova pericial: o facto de, solicitada esta, se suspende até ao máximo de três meses o prazo da prisão preventiva, desde que a perícia fosse tida por determinante para a acusação ou para a pronúncia.» [continua aqui]