Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




O ilícito dito de "mera" ordenação social


A princípio, visto do ponto de vista ingénuo das meras categorizações jurídicas abstractas, parecia lógico e isento de problemas de maior, tinha a sedução do que ainda não se vira pelo ângulo dos efeitos práticos e preenchia a necessidade de racionalização dos que supõem o Direito como um teorema da geometria.
Nessa altura o teoria do Direito Criminal fazia-o recuar para as zonas subsidiárias que o tornavam algo de fragmentário no campo do Direito punitivo, subsidiário, enfim - para usar uma expressão latina clássica a ultima ratio - no campo da repressão, algo que só entraria em acção quando e na medida em que estivessem em causa valores e interesses - bens jurídicos se lhes chamou a partir de então - com consagração constitucional.
Eram tempos em que a categoria das contravenções, pertencendo como coisas menores ao domínio do Direito Penal, pareciam no campo substantivo um excesso para este, e no campo das competências judiciárias e do processo, uma sobrecarga, incongruentes, em suma, com a valia e a solenidade que presidiriam por essências ao que do Direito Penal se reclamasse. E daí que tivessem de ser dele expurgadas e substituídas por algo de diverso.
Veio assim, sugestivo, o universo das contra-ordenações, ilícitos de cunho estritamente administrativo e as coimas, sanções pecuniárias que no seu âmbito se poderiam aplicar. Era assim na Alemanha e isso valia como critério de legitimação a quantos no Direito se reviam em tudo o que de germânico houvesse, ainda que discrepante com a nossa cultura ou com o nosso tipo de sociedade, ou com a globalidade do nosso sistema jurídico.
O ilícito de mera ordenação social fez assim a sua entrada como forma de punir, uma outra forma acrescida de punir, que rapidamente se espraiou pelos sectores das actividades de cunho patrimonial, financeiro, mas não só, afinal em todos os campos em que a regulação administrativa se tornava necessária, como o da concorrência, o dos mercados, o financeiro, o bancário, o ambiente, o fiscal, e tantos e tantos outros.
Foi atribulada a sua aparição no nosso sistema jurídico: aprovado pelo Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho [ver aqui], foi esvaziado e colocado no limbo da suspensão pelo Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro [ver aqui], pois que se tornava inviável torná-lo mera conversão automáticas das antigas contravenções e transgressões e sem encontrar as entidades públicas, a quem se destinava, providas de estruturas para a sua aplicação. Só entraria em vigor com o Decreto-Lei n.º 432/82, de 27 de Outubro [ver aqui a redacção em vigor]
Vista a realidade com os olhos desses tempos, início da década de oitenta, pareceria que doravante as realidades de menor censurabilidade social passariam a ser reprimidas por esse Direito Administrativo punitivo, através de um procedimento administrativo também adequado a este ramo jurídico, pautado pela ductibilidade formal, simplificação e celeridade; tudo garantido com controlo judicial das decisões. E que tudo se pautaria numa lógica de proporcionalidade de não intromissão excessiva nos direitos de defesa nem na liberdade patrimonial dos cidadãos.
Olhando hoje que panorama encontramos?
Primeiro, o valor elevadíssimo a que podem chegar as coimas, tornando-as, no ângulo prático, bem mais agressivas para o património dos cidadãos do que era suposto suceder naquele tipo de processo.
Segundo, o facto de o Direito Penal ter estado em expansão, abrangendo progressivamente territórios onde dificilmente se concebe a sua natureza supostamente subsidiária, cumulativamente com a repressão contra-ordenacional, ambas concorrendo para uma sobrecarga punitiva sobre a mesma realidade.
Terceiro, a circunstância de o procedimento contra-ordenacional, privado que está de garantias formais, servir amiúde de forma expedita de captação de prova para uso subsequente no processo penal; assim um processo em que o investigador é também acusador e julgador, torna-se, como se forma de processo justo, meio de obtenção de prova que acaba por ser incorporada no processo penal com as gravosas consequências daí decorrentes.
Dito de "mera" ordenação social este tipo de ilícito tornou-se, pois, num instrumento complementar e por isso acessório da repressão penal, com ela miscigenada na prática dos seus efeitos.

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Quadro: Pieter Brueghel, o jovem


Adiamentos e prova: o Acórdão n.º 1/2016


O tema da semana foi, na área penal, a publicação no Diáirio da República do Acórdão n.º 1/2016, do STJ, de 12 de Novembro [vê-lo aqui e já antes aqui] fixando jurisprudência quanto à perda de eficácia da prova por adiamento de audiência para além do prazo de trinta dias previsto na lei, tal como o prevê o artigo 328º do Código de Processo Penal. 

Tratou-se, diga-se, de uma forma jurisprudencial de remediar uma falta de previsão da lei numa matéria que carecia de norma, de uma jurisprudência criativa ante uma necessidade que o legislador não supriu.

Estive na Comissão, presidida pelo Professor Figueiredo Dias, de que saiu o Código de Processo Penal em vigor. E recordo a preocupação que houve em dar execução ao comando do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Homem no sentido de que os processos na área criminal tivessem a duração de um prazo razoável e não se arrastassem indefinidamente e., no que às audiências respeita, elas fossem orientadas por um princípio de continuidade [e concentração], segundo o qual, e numa fórmula para leigos, começassem para acabar sem hiatos, suspensões ou interrupções salvo o necessário e inevitável. [sou do tempo em que ainda havia julgamentos à noite na Boa-Hora para terminar audiências que de outro modo passariam para outro dia].

Um dos factores que foi tido em conta no estabelecimento das normas respectivas foi a circunstância de não haver memória humana que resista a intervalos entre audiências demasiadamente extensos, considerando-se que trinta dias era adequado pois, para além disso, já os sujeitos processuais poderiam começar a fazer confusões entre a prova produzida na sessão antecedente da audiência que estivesse em causa.

Foi com base nesta lógica que se redigiu o artigo 328º do Código de Processo Penal, o que está aqui em causa.

De modo a dotar o sistema de garantia de cumprimento - lamentável que as normas sem sanção, porque tidas por meramente ordenadoras, sejam incumpridas, como as do prazo máximo de inquérito - estabeleceu-se que, no caso de o intervalo entre as sessões de audiência ultrapassarem os trinta dias, perdia eficácia a prova produzida até aí. 

E nasceu aí o problema que tem vindo a incidir sobre o preceito: por um lado, aqueles que entendiam que ele era incompatível com o normal funcionamento dos tribunais, que não tinham agenda que resistisse a adiamentos aquém de trinta dias; por outro, os que lembravam que havia casos em que, aguardando-se, em fase de audiência, pelo cumprimento de diligências demoradas - uma informação, um exame, uma precatória ou rogatória - ou interpondo-se férias, para evitar o risco de se perder a prova, as audiências teriam de abrir em regime de mero "pro forma".

Convivemos todos com o caricato sistema de reabaerturas de audiência em que, no dizer irónico de alguém, «o juiz perguntava que horas eram ao arguido», de tal modo tudo se passava a fingir, expediente desprestigiante para a justiça; e todos vivemos com aqueles momentos, de agonia ou alegria - conforme os interesses - em que se temia que o arguido faltasse e não houvesse material humano para esse jogo de "faz de conta" orientado a que não prova não fenecesse

Era esta a redacção primitiva do texto do artigo que a tudo deu causa: « O adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada.»

Sistema demasiado drástico, comentaram alguns, quando o novo regime foi conhecido; sistema inviável, alegaram outros; sistema que teria de ter excepções pensaram quase todos.

Claro que já na altura, se teve em linha de conta que. doaravante, prevalecendo-se dos modernos meios tecnológicos, a prova em audiência seria gravada - prevendo-se até que o pudesse ser em vídeo - e por isso andou pela mente dos legisladores - e depois de alguma jurisprudência - que, uma vez que os intervenientes se poderiam socorrer das gravações, para refrescarem a memória, sempre se poderia abrir excepção à caducidade ao trigésimo dia; e dúvida surgiu quanto a saber se o sistema se aplicava também quando o intervalo surgisse entre o último dia de produção da prova e o dia em que a sentença fosse lida, após ter sido escrita e algumas eram imensamente extensas, sendo que sobre isso, aquilo que na Comissão se esperava e aquele que se viveu na prática dos tribunais houve um mundo de diferença: é que se há momento em que importa que a memória tudo recorde é esse, aquele em que se toma a decisão sobre toda a prova.

Mas há sobretudo algo que não poderia ser esquecido: a continuidade da audiência estava indissociavelmente ligada à sua concentração, pois que um julgamento que, semeado de intervalos extensos, sendo demasiado longo gera o indesejável mas expectável efeito de no último dia já haver só reminiscência de como começou. A sermos honestos com a realidade e excepcionando as "memória de elefante", que as há.

Mau grado a Justiça ter de enfrentar estas vicissitudes, a norma ficou sem modificações, mau grado as três alterações legislativas que incidiram sobre o preceito. E para além daquelas questões outras foram surgindo, mormente quanto à repetição das audiências por outros motivos. Tudo a exigir revisão global do sistema e ela a tardar.

A tentativa de adequação, essa, só surgiu com a Lei n.º 27/2015, de 14 de Abril, após a qual ficou assim: 

«6 -  O adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, por impedimento do tribunal ou por impedimento dos defensores constituídos em consequência de outro serviço judicial já marcado de natureza urgente e com prioridade sobre a audiência em curso, deve o respetivo motivo ficar consignado em ata, identificando-se expressamente a diligência e o processo a que respeita. 
«7 - Para efeitos da contagem do prazo referido no número anterior, não é considerado o período das férias judiciais, nem o período em que, por motivo estranho ao tribunal, os autos aguardem a realização de diligências de prova, a prolação de sentença ou que, em via de recurso, o julgamento seja anulado parcialmente, nomeadamente para repetição da prova ou produção de prova suplementar.»

Como todas as reformas, mesmo as efectivadas com participação dos que têm, pela natureza das suas funções, de conviver com a vida prática, fica sempre algo por prever. 

E eis onde incidiu precisamente o Acórdão que cito, o qual vem resolver um problema que subsistia irresoluto, fazendo-o pela seguinte forma: «O prazo de 30 dias previsto no art 328.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 27/2015, de 14 de Abril, é inaplicável nas fases processuais em que, após a deliberação do tribunal sobre as questões da culpabilidade e da determinação da sanção, seguida ao encerramento da fase de discussão, seja verificada a necessidade de repetição de prova registada no decurso dessa anterior fase de discussão por haver deficiência no registo efectuado mantendo-se, portanto, a eficácia da prova.»

Era o que acontecia não poucas vezes, nomeadamente quando o tribunal de recurso, apercebendo-se da deficiência da gravação, ordenava a repetição de uma dada sessão de julgamento para que a prova fosse "repetida" - na verdade, afinal, de uma nova prova se tratava, tantas vezes diversa da anteriormente obtida.

Enfim, temos lei, através da interpretação jurisprudencial. Lei prática, dentro da lógica do sistema. Que nesse altura, em que se repete a prova, os participantes na audiência ainda se lembrem do que ocorreu antes, fica por demonstrar. Que se socorram de apontamentos fidedignos ou ouçam as gravações para colmatar lapsos de memória, eis o que só a consciência profissional de cada um ditará. Uma coisa ficou: a prova agora não se perderá quando a gravação se perdeu, ainda que surja uma outra prova a fazer de conta que é a mesma. A eficácia triunfou. E essa, ao menos, haveria que não fazer perder. 

Haveria alternativa para desatar este nó górdio? Eis o tema para reflexão. Como diz a sabedoria chinesa nem tudo o que é desejável é possível.

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Imagem: Jeff Wall, Untangling, 1994

O piropo e a reminiscência do "macho ibérico"


O acto de legislar, sobretudo no domínio repressivo e no âmbito deste na esfera penal, arrasta consigo questões de substância, de forma e de adesão: trata-se, em primeiro lugar, de determinar num sector da vida que exija a edição de uma norma, depois, de saber redigi-la em termos de rigor na fórmula, delimitação do âmbito e compreensão pelos destinatários, enfim, concitar em seu torno a apoio da sociedade ou pelo menos de sectores da mesma que se pautem pelos princípios basilares do Direito. 
Se o primeiro vector implica que se não convoque o Direito Penal sem necessidade, o segundo supõe que o mesmo surja sem ambiguidade, o terceiro que a lei apareça com oportunidade. Assim se torna provável que uma lei ganhe autoridade.
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Vem isto a propósito da legislação penal dita sobre o "piropo", que está sujeita à chacota pública, mesmo em meios não masculinos; a qual, provém, diga-se, frequentemente de quem a não leu e, convocado a pronunciar-se sobre o seu conteúdo, é incapaz de a reproduzir, mas dita, no entanto, opinião
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Por isso há, em primeiro lugar, que ler a letra da lei para que não se corra o risco de falar do que não se sabe, pecha típica de muitos dos nossos concidadãos, até dos que têm responsabilidades públicas ou profissionais mas que não se coíbem de se arvorarem em comentadores de serviço, não os desanimando a ignorância ante o assunto.

Tudo gira em torno do artigo 170º do Código Penal, em função da alteração [a trigésima oitava] que lhe foi dada pela Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto [ver aqui], o qual por passou a estar redigido com o acrescento do inciso «formulando propostas de teor sexual».

Citando a norma na sua integralidade, ei-la com a redacção em vigor: «Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexuall ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.» [o sublinhado contém o que se aditou e está agora em causa}.
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Posto isto, e sem qualquer consideração especial de cunho jurídico, desde logo se nota, antes de mais, que não se trata de legislação para proteger apenas as mulheres mas sim seres humanos, independentemente do sexo, se bem que se possa argumentar que a maioria dos pressupostos "suspeitos" sejam, por razões históricas ou sociológicas, homens. Quod erat demonstrandum, porém, nos tempos correntes e correndo as variantes em que o género e o trans-género se subdivide.
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Além disso, verifica-se que estão fora de questão quaisquer ditos, apartes ou verbalizações, ainda que expressas e audíveis, de valoração ou derrogação de outrem no plano que na sexualidade se reveja, pois o que a lei exige é que se trate de «propostas», algo que signifique unilateralidade, por um lado, e no campo sexual por outro, na expectativa, pois, de uma eventual de aceitação, formuladas, no entanto, de forma a «importunar», [E antecipo que ao usar o termo «propostas» o legislador, nolens volens acabou por restringir o domínio de acção da norma porquanto quem propõe espera aceitação o que deixa desguarnecidas de tutela situações em que o afirmado o é a título gratuito e sem qualquer propósito de obter eco ou efeito].
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Posta a questão nestes termos, delimitado o teor do que está em causa, ganha compreensão o que poderia ter sido a intenção legislativa quando pretenderia, por um lado, defender a dignidade do ser humano - não o colocando como mero objecto de propostas que não pretenda receber - vindas de quem possam vir ou formuladas pela forma como possam surgir - e por outro tutelar a liberdade sexual, pela qual o relacionamento com este perfil - ainda que não directamente ao nível do acto mas, muito antes, no quadro do próprio envolvimento, tem de exigir uma mútua liberdade sem a sobrecarga que o importunar afinal significa.
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Ora é aqui que a lei abriu o flanco, expondo-se ao que assistimos como manifestações de apoucamento em seu redor: é que, se num registo aceitável, os actos de sedução, o "flirt", o "galanteio", tudo quanto esteja no quadro do que se considere o "namoro" - e todas estas expressões, por não jurídicas que sejam, salvo a primeira, creio que explicitam o que pretendo - não podem porque não devem ser criminalizáveis, nem sequer actos ilegítimos, pois fazem parte de um trato social em que a liberdade dos envolvidos não é posta em causa, a consciência erógena a situação é assimilada e a dignidade pública é mantida, tudo no quadro de uma proporção de razoabilidade, aqui a fórmula legal, ao ficar-se pelo conceito proposta sexual importuna, se não quis invadir aquele território, pareceu querer fazê-lo, abrindo a porta à ideia de que o desejava sob a alçada penal, 
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É certo ao utilizar o conceito aberto - e por isso indeterminado - de «importunar», o legislador abriu a porta a interpretações que não favorecem a explicitação do que está em causa, porque a palavra se abrange o "molestar", o "agredir", também inclui o simples "maçar" e o "aborrecer", estas zonas aquém do que se se supõe expectável no domínio do criminalizável.
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E por outro lado, fica, afinal, por proteger nesta norma o que só no quadro da injúria ou da difamação pode encontrar defesa: a manifestação de juízos valorativos que atinjam a honra ou a consideração social, no primeiro caso dirigidos ao próprio, no segundo ante terceiros.
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Em suma, aquilo perante o que estamos é de uma indevida equiparação pública do "piropo" a propostas sexuais importunas e foi isto e não aquilo que o legislador pode ter querido. Entre um mundo e outro vai uma diferença, quer no campo das realidades da vida, quer naquele outro em que surge o Direito Criminal a intervir. Assim quem tiver de aplicar o novo preceito saiba usar de critérios de prudência, gerando rigor em face de uma situação que, como se viu, na opinião pública, está a ser tratada com soez displicência.
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É que, em matéria de critério de apreciação da liberdade sexual, todos temos bem presentes este excerto de um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 1989, publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 390, de Novembro de 1989 que sentenciou pela seguinte forma quanto a um crime de sequestro e outro de violação cometidos no Algarve na pessoa de uma estrangeira, valha o facto de terem decorrido 16 anos sobre a sua prolação e ser de admitir ou esperar que hoje uma nova mentalidade possa reinar nas instâncias:

«(...) II - Contribui para a realização de um crime de violação a ofendida, rapariga nova mas mulher feita que: a) Sendo estrangeira, não hesita em vir para a estrada pedir boleia a quem passa; b) Sendo impossível que não tenha previsto o risco em que incorre; c) Se mete num carro, com outra e com dois rapazes, ambas conscientes do perigo que corriam, por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde abundam as turistas estrangeiras com comportamento sexual muito mais liberal do que o da maioria das nativas; d) E conduzida durante alguns quilómetros pelo agente, que se desvia da estrada para um sitio ermo; e) E puxada para fora do carro e tenta fugir, mas e logo perseguida pelo agente, que a empurra e faz cair no chão; f) Sendo logo agredida por ele com pontapés, agarrada pela blusa e arrastada pelo chão cerca de 10 metros; g) Tentando ainda libertar-se, e esbofeteada, agarrada por um braço e ameaçada pelo agente com o punho fechado; h) E intimidada assim, pelo agente, que lhe tira os calções e as cuecas, não oferece mais resistência e, contra a sua vontade, é levada a manter relações sexuais completas pelo primeiro; e i) Após ter mantido, à força, relações sexuais, com medo de que o agente continuasse a maltratá-la, torna-se amável para com ele, elogia-o, dizendo-lhe que era muito bom no desempenho sexual e assim consegue que ele a leve ao local de destino, onde a deixou.»

E, como se não bastasse para explicitar o que entendeu ser a "contribuição" da vítima para a violação, ainda se escreveu:

«Se é certo que se trata de dois crimes repugnantes que não têm qualquer justificação, a verdade é que, no caso concreto, as duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização. Na verdade, não podemos esquecer que as duas ofendidas, raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado “macho ibérico”. É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atração pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la. Ora, ao meterem-se as duas num automóvel juntamente com dois rapazes, fizeram-no, a nosso ver, conscientes do perigo que corriam, até mesmo por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde abundam as turistas estrangeiras habitualmente com comportamento sexual muito mais liberal e descontraído do que a maioria das nativas».


Ilustração: quadro de Eugenio de Blaas, nascido em 1843.