Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Depoimento indirecto: validade sem confirmação

Por lei, o depoimento indirecto é admissível desde que seja confrontado com a fonte em que se baseia, o que obriga o tribunal ao dever de apurar a fonte de ciência para que o possa valorar. A excepção reside, nos termos da mesma lei, quando a pessoa a quem se ouviu dizer não puder ser inquirida, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada.

É o que dispõe o artigo 129º, n.º 1 do CPP: 

«Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.».

Ora no sentido da interpretação deste último requisito [«impossibilidade de serem encontradas»], o Acórdão da Relação de Guimarães de 17.12.2019 [proferido no processo n.º 602/16.3GBVVD.G1, relatora Ausenda Gonçalves, texto integral aqui] estatuiu:

«Para ser ultrapassada a proibição de valoração do conteúdo do testemunho indirecto, enunciada no comando do citado art. 129º, basta que a fonte da informação seja chamada ao processo - quer ela compareça em juízo quer se mostre impossível encontrá-la -, não impondo a lei que esse conteúdo venha a ser confirmado pela fonte material originária de onde provinha o conhecimento dos factos.»

Mas o cerne do entendimento plasmado é este excerto:

«Assim, a lei limita-se a impor que o tribunal diligencie no sentido de obter o depoimento da fonte, cessando a proibição de valoração inerente ao artigo 129.º do CPP com o chamamento a depor da fonte originária, mesmo que posteriormente a mesma se recuse legitimamente a depor, pois a valoração não depende do conteúdo do depoimento da mesma. Para ser ultrapassada a proibição de valoração enunciada nesse comando, basta que a fonte da informação seja chamada ao processo, quer ela compareça em juízo quer se mostre impossível encontrá-la para depor.»

Ou seja, e sendo claro, não estarei errado ao afirmar que onde a lei estatui restritivamente como excepção a impossibilidade de a testemunha-fonte ser encontrada, este acórdão basta-se com a mera notificação e não audiência, pois assumo que, assim interpretado, não fará sentido se não como lapso de formulação pela negativa o excerto «quer ela compareça em juízo».

Em abono do decidido o acórdão cita, para além de um estudo de Costa Pinto [Depoimento indirecto, legalidade da prova e direito de defesa” in Estudos e homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra editora, 2010, págs. 1047-1048] outro da mesma Relação e secção, proferido no proceso n.º 3202/17.7T8GMR [relator por Cruz Bucho], segundo o qual:

«Como é sabido, na fase de transição que mediou entre a entrada em vigor da Constituição de 1976 e a entrada em vigor do novo Código de Processo Penal, os textos nacionais que estiveram na génese do novo regime apontavam genericamente para a proibição do testemunho de ouvir dizer [cfr. Parecer do Prof. Costa Andrade publicado na Colectânea de Jurisprudência (CJ), ano VI, 1981, tomo 1, págs 5-11, Figueiredo Dias, “Para uma reforma global do processo penal português”, in AAVV, Para uma nova justiça penal, Coimbra editora, 1983, págs. 207-209 e 219 e o parecer da Comissão Constitucional n.º 18/81 que esteve na base da resolução do Conselho da Revolução n.º 146/81, que declarou inconstitucional o artigo 439.º do CPP de 1929)]. A proscrição de testemunhos de outiva ou de ouvir dizer, na linha dos direitos de raiz anglo-saxónica que proibiam a “hearsey evidence”, não foi, porém, consagrada de forma absoluta.É hoje unânime o entendimento segundo o qual o Código português consagrou um regime de “admissibilidade condicionada” (cfr. Carlos Adérito Teixeira, “Depoimento Indirecto e Arguido”, in Revista do CEJ, n.º2, 1º semestre 2005, págs. 131-133, Paulo Dá Mesquita, A Prova do Crime e o que se disse antes do julgamento, Coimbra editora, 2011, pág. 520 e Costa Pinto, Depoimento indirecto, legalidade da prova e direito de defesa, cit., págs 1043 e ss). Na síntese de Dá Mesquita (A Prova do Crime e o que se disse antes do julgamento, cit., pág. 532):«O regime português do depoimento indirecto não compreende uma política preventiva que obste à admissão do ouvir dizer, o depoimento faz emergir os deveres procedimentais do tribunal (determinação da fonte e chamamento a depor da mesma) e as proibições não derivam do processo inferencial gerado pelo ouvir dizer, mas traduzem restrições por força do procedimento adoptado. Proibição irrestrita, no caso da fonte indeterminada e dependente do achamento a depor no caso da fonte determinada que não foi inquirida, admitindo-se excepções em que aquela não tem que ser chamada».

Convocando o tema à luz dos preceitos de salvaguarda dos direitos humanos, e louvando-se no aresto que citou em apoio ao que sufragou, acrescenta o decidido:

«A jurisprudência do TEDH admite a validade dos testemunhos de ouvir dizer desde que a ausência do testemunho directo esteja devidamente justificada (cfr. Sentenças do TEDH 19 de Dezembro de 1990, Delta c. França, § 37, de 19 de Fevereiro de 1991, Isgro c. Itália, § 35 ; de 26 de Abril de 1991, Asch c. Austria , § 28, de 28 de agosto de 1992, Artner c. Austria , §§ 22-24 e de 14 de Dezembro de 1999, A.M . c. Itália , § 25) e desde que a condenação não seja fundamentada (...) uniquement ou dans une mesure déterminante (...) sur des dépositions faites par une personne que l’accusé n’a pu interroger ou faire interroger ni au stade de l’instruction ni pendant les débats (CEDH 27 de Fevereiro de 2001, Lucà c Itália, § 40). Esta última regra dita “de la preuve unique ou déterminante » foi abandonada pelo Ac da Grande Câmara de 15-12-2011, n° 26766/05 et 22228/06, Al-Khawaja e Tahery v. Reino Unido (cfr. detalhadamente, Nicolas Hervieu, Admissibilité des preuves par ouï-dire et droit de contre-interrogatoire en matière pénale, in licithttp://combatsdroitshomme.blog.lemonde.fr), abandono reafirmado no Ac. Schatschaschwili c. Alemanha , n.º 9154/10, de 15 de Dezembro de 2015.».

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Este texto foi objecto de rectificações, incluindo o título, por ter havido lapsos na escrita que lhe desvirtuavam o sentido.