Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Mostrar mensagens com a etiqueta Arrependidos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Arrependidos. Mostrar todas as mensagens

CDS-PP: projectos de lei


É todo um vasto pacote de medidas apresentadas pelo Grupo Parlamenta do CDS-PP na Assembleia da República sobre temas da actualidade jurídico-penal. Fica aberta a discussão.

Projeto de Lei 870/XIV/2 [CDS-PP]
Procede à segunda alteração da Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, que Aprova o Estatuto do Ministério Público, criando o crime de sonegação de rendimentos e enriquecimento ilícito e alterando as condições de exercício de funções não estatutárias

Projeto de Lei 869/XIV/2 [CDS-PP]
Procede à vigésima alteração à Lei n.º 21/85, de 30 de julho, que Aprova o Estatuto dos Magistrados Judiciais, criando o crime de sonegação de rendimentos e enriquecimento ilícito e alterando as condições de exercício de funções não estatutárias

Projeto de Lei 868/XIV/2 [CDS-PP]
Criação do Estatuto do Arrependido

Projeto de Lei 867/XIV/2 [CDS-PP]
Cria o crime de sonegação de proventos e revê as penas aplicáveis em sede de crimes de responsabilidade praticados por titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos

Projeto de Lei 866/XIV/2 [CDS-PP]
Criação do Regime de Proteção do Denunciante

Colaboracionismo penal: onde está o Wally?


A partir de uma entrevista de um juiz [vê-la aqui], a simpatia pelo colaboracionismo voltou para a ribalta como tema, pois uma pergunta vaga e uma resposta ambígua abriram campo ao mesmo. Na verdade, ante o que vi e ouvi e depois li, não estou certo quanto ao objecto da simpatia. A questão é complexa, divide-se em vários segmentos e se os leigos podem confundir, cabe aos juristas distinguir. Permito-me pois o exercício seguinte. Há várias modalidades em causa no que ao colaboracionismo respeita. E aqui fica como exercício de reflexão para os que queiram encontrar o Wally das respostas o que lanço como puzzle de perguntas.

Denúncia facultativa e obrigatória: se há crimes que só certas pessoas podem denunciar através do que se denomina queixa, outros podem ser denunciados por qualquer pessoa [os denominados públicos], e há, finalmente, os crimes cuja denúncia é obrigatória para certas pessoas: os funcionários públicos quando tiverem conhecimento da prática dos mesmos através do exercício das suas funções. Sucede que, dado o conceito amplíssimo de funcionário público, há uma questão que consiste em saber se todos eles estarão adstritos a esse dever de dar notícia da infracção ou só os funcionários no sentido jurídico-administrativo do termo.

Denúncia anónima: o nosso Direito Processual Penal admite-a e com base nela o procedimento criminal pode ser instaurado. Apesar de não ter autor conhecido [ou tendo autor com identificação suposta] esta denúncia tem eficácia, embora possa não fazer prova em si, já que o nela relatado terá de ser provado através da investigação criminal. E se o crime descoberto for outro que não o denunciado, sendo a localização, porém, por ela propiciada?

Denúncia transaccionada com contrapartida: o nosso Direito parece impedi-la, ao considerar provas proibidas as obtidas com promessa de vantagem legalmente inadmissível, mas como a denúncia em si não fará prova, a regra em causa não tem aplicação directa pelo que urge encontrar preceito jurídico que impeça tal tipo de acordo, considerando ser a contrapartida a dita vantagem legalmente inadmissível. Para além disso, a aceitar-se a tese da admissibilidade parcial, importa determinar qual o tipo de contrapartida que pode ser consentida, ou seja, se valem promessas de benefícios processuais (nomeadamente ao nível das medidas coactivas), se quanto à pena aplicável, se quanto ao modo como a mesma será executada ainda que em regime prisional, ou no que refere à delimitação do objecto do processo (omitindo a acusação menção a certos temas que envolvam o denunciante "facilitador", ainda que com reserva de uma acusação em tempo futuro ou sob condição).

Delação de "arrependido": a prova incriminatória do "arrependido" pode valer no nosso Direito mesmo que se não prove a sua condição de penitente em acto de contrição, mas a de rancoroso vingativo ante outros, "entregando à morte" comparsas de quem apenas se desligou? 

Delação premiada: um acordo formal entre as autoridades judiciárias e um arguido através do qual este se comprometa a sustentar em juízo teses que levem à condenação de outros [modelo brasileiro] ou, no mínimo, a orientar a investigação criminal no caminho certo, é admissível, implicando concessão de benefícios ao outorgante, mesmo a nível da pena, para além do regime especial de protecção da sua pessoa? 

Remuneração da denúncia: o pagamento de denúncia em matéria de crimes com recorte financeiro [modelo americano], a fazer-se numa lógica mercantilista que leve em conta o ganho pecuniário obtido com as penas e a perda de bens face ao custo da gratificação dada ao delator, é viável ou desejável l?

Tudo visto e perante estas questões e tantas outras em que elas se desdobram onde está o Wally que tudo isto suscita num mundo que, pelos vistos, está a tornar-se um outro mundo, antecâmara de coisas do outro mundo? Eu sei que haverá quem diga: seja como for, o crime é sempre mais repelente do que modo como ele se descobre. Como se os fins justificassem os meios. A questão de sempre.

+

Fonte da imagem: aqui

Robin Hood & o Cavaleiro Branco


Poderia citar normas jurídicas, ensaios doutrinais, decisões jurisprudenciais, mas creio que o enunciado do tema é já um princípio de resposta. Não tomo posição quanto ao assunto, apenas o traga para a praça da reflexão.
Surgiu inopinadamente uma nova categoria jurídica: tínhamos o denunciante anónimo, o suposto "arrependido",  o delator, o infiltrado, o informador.
Surgiu agora o "lançador de alerta". Usa documentos obtidos de modo ilícito, difunde-os através dos meios de comunicação e redes sociais. Obtém aplauso público e abre a porta a investigações processuais. E é tomado como desempenhando uma meritória função pública em prol da comunidade.
O conceito de notícia de infracção a partir de fontes ilícitas está assim adquirido. O conceito segundo a qual a prova obtida por intrusão ilegítima em sistema informático, por furto ou por desvio de documentos, não é proibida como índice de crime está ganho.
Um admirável mundo novo surge no Direito Processual Penal.
No caso vertente, o Estado fiscal, carente de receitas, todos os Estados com orçamentos em baixa, encontram modo de recuperar receitas perdidas.
Inicia-se hoje no Luxemburgo o julgamento do Luxleaks. Como titula um jornal económico [ver aqui] trata-se de um julgar algo situado entre o Robin dos Bosques e o Cavaleiro Branco.

Delação premiada


A entrevista é apenas o ponto de partida para uma reflexão, a que segue.
+
Mais do que uma prática está a ocorrer uma mudança de cultura jurídico-penal no Brasil. A novidade decorre do instituto da delação premiada, uma variante do nosso sistema dos ditos "arrependidos". Se não erro a sugestão do sistema vai propagar-se além-fronteiras. Ver o seu traço geral aqui.
+
Tal cultura é subsidiária da influência que o pensamento jurídico norte-americano exerce sobre uma nova geração de procuradores e juízes brasileiros. A sua génese tem também assentimento no Direito Italiano, nomeadamente na legislação anti-mafia.

Trata-se, no fundo, de uma transação processual penal, pela qual o arguido adquire vantagens em torno de declarações úteis.

Tal decorre de lei: Lei n.º 9807/99, Lei do Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) em seu art. 8º, parágrafo único; Lei do Crime Organizado (Lei 9.304/95) em seu art. 6º; o próprio Código Penal brasileiro quando trata do crime de Extorsão mediante seqüestro (art. 159, § 4º); Lei de Lavagem de Capitais (Lei 9.613/98) em seu art. 1º e 5º; Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei 9.807/99) nos arts. 13 e 14 e na Nova Lei Antitóxicos (Lei 10.409/2002) no art. 32,§ 2º estando consagrada na Lei n.º 12850, de 2 de Agosto de 2013 [ver aqui].
+
O tema abre a porta a inúmeras questões. Sem pretende esgotar e apenas como convite à reflexão, eis algumas, sem sistemática:

Do ponto de vista da eficácia do sistema:

-» Qual a certeza quanto à veracidade do denunciado pelos delatores premiados? Qual a segurança jurídica de que não estarão a adquirir benefícios em troco de afirmações úteis para a tese dos investigadores?
-» Qual a garantia de que a linha de investigação criminal não fica comprometida pelas denúncias remuneradas com os benefícios processuais concedidos?
-» Qual a evidência de que o aumento exponencial de denunciados não vai gerar, em lógica inversa, o aumento igualmente exponencial de absolvidos, assim o delatado se não confirme em audiência?
-» Em que medida é que as penas aplicadas aos delatores, na aparência severas, para executadas em regime de permissiva tolerância, não expõe o sistema à aparência que é a porta aberta para a sua descredibilização?

Do ponto de vista da arquitectura do sistema:

-» Em que medida a delação premiada abre a porta ao colaboracionismo da defesa com a acusação, gerando, em primeira linha, defensores de actuação útil aos investigadores, ou, como efeito perverso, defensores sugeridos pela investigação, como os mais adequados ao suposto benefício a obter pela delação?
-» Até que ponto o sistema não coloca em crise a independência do sistema judicial, limitado pelos achados probatórios obtidos sob delação premiada?
-» Em que medida tal sistema, incrementando por sua natureza o protagonismo dos procuradores/advogados/negociadores não gera, como seu efeito mediático, o culto da personalidade em detrimento do espírito de corpo e de critérios de reserva e contenção, apanágios de uma justiça serena?

Do ponto de vista da moral do sistema:

-» Haverá limite ao envolvimento do Estado através da autoridade judiciária, com imputados criminosos, para que, em transação, como se de igual para igual, aquele alcance os seus fins através destes meios?
-» Ou será limite imaginar que a liberdade de negociar do delator está limitada, quer pela sugestão do benefício esperado, quer pela ameaça da sanção a que se sujeita caso não aceite a delação, ainda que dos seus anteriores comparsas?
-» Em que ponto de equilíbrio se pode valorar uma delação sem manifestação de arrependimento e interiorização dos valores do Estado de Direito, assunção, em suma, de uma conduta de reintegração social?
+
Estou em crer que é um mundo novo. Cada achado obtido por delação enche o espaço mediático e encontra aplauso popular. Quem levantar dúvidas corre o risco de passar pela suspeita de querer a impunidade do crime. Um dia, porém, a fronteira entre os bons e os maus estará esbatida, o justo e o injusto será apenas uma questão de pragmática.

O dilema do prisioneiro

O blog é notável e trata de economia. O seu autor, licenciado em Direito, é de uma inteligência fora do comum e sabe do que diz.
Hoje publicou esta narrativa sobre o dilema do prisioneiro:

«O dilema do prisioneiro é um capítulo muito conhecido da teoria dos jogos. O diretor da cadeia dirige-se ao prisioneiro Beltrano e diz-lhe: «Sei de ciência certa que assaltou o banco X com o seu sócio Sicrano. Por enquanto não tenho provas do delito do Sr. Beltrano, pelo menos provas aceitáveis em tribunal. Se colaborar voluntariamente connosco, proporei ao tribunal que não lhe aplique mais de dois anos de pena de prisão. Se não colaborar connosco, pedirei a pena máxima: vinte anos. O meretíssimo juiz costuma atender esses meus pedidos. Informo-o que o seu sócio Sicrano está preso e far-lhe a proposta que lhe fiz a si». O diretor da cadeia vai a seguir falar com o segundo prisioneiro, o Sicrano, e apresenta-lhe a mesma proposta. A teoria dos jogos explica que os dois prisioneiros, desde que mantidos incomunicáveis, denunciam-se um ao outro e colaboram com a autoridade – que assim consegue o seu objectivo: fazer prova em tribunal».

Há muitos anos fui a Paris, indicado pelo saudoso Bastonário Almeida Ribeiro participar num encontro em que se discutia o problema dos "arrependidos" no processo penal. Concordei que era o Estado rebaixar-se a negociar uma imoralidade com muitos que apenas queriam salvar a própria pele mas que a emergência do combate ao terrorismo - na altura flagelava a Europa, anos de chumbo com os Baader Meinhof e as Brigadas Vermelhas - justificariam a excepção.
Entretanto, a excepção deu em regra. O dilema do prisioneiro transformou-se no dilema do Estado, a delação um conforto.