Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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O Homem Sem Qualidades

Quantas vezes não é nos tratados, nos compêndios, nos ensaios que pelo Direito se espraiam como tentativas de lhe formularem a técnica e assim o ajustarem à Justiça, que se alcança quanto há para se saber. É na Arte, da pictórica à narrativa, na poética, na representação cénica, que ele é surpreendido na sua mais intrínseca faceta, a do humano, a medida de todas coisas «das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são», como disse Protágoras.
Ontem, tentando aproveitar um intervalo entre o cansaço e o conseguir adormecer,voltei, ao ciclópico esforço de continuar a leitura do que em português se chamou, mesmo na tradução de João Barrento "O Homem sem Qualidades", a monumental e magnífica obra de robert Musil, inacabada, inacabável.
E foi aí, no capítulo 18, que me surgiu a paradoxal, sinistra, invulgar figura de Moosbrugger, o carpinteiro, assassino perverso de mulheres, brutal na selvajaria preparatória do acto e das mutilações e profanações consumado este.
Retrato notável pela soma de contrários que ante a Justiça se figuram: a comovente bondade do rosto e a repugnante crueldade dos actos, a reprovação popular ante o horrendo transformada em excitação febril ante as suas «aberrações doentias», feita notícias ávidas pelos jornais; a psiquiatria a deslocá-lo pera o mundo da doença e da normalidade porque «várias vezes o tinham declarado normal, outras tantas inimputável»; a sua capacidade de simular, a simulação que se aprende nas prisões, a habilidade para demonstrar a sua superioridade com relação aos psiquiatras «desmascarando-os como idiotas e charlatães emproados, ignorantes que tinham de o mandar para o manicómio quando ele fazia uma simulação, em vez de o meterem na prisão, onde era ao seu lugar», afinal «os pareceres dos médicos sobre a sua saúde mental oscilavam sob a pressão da doutrina jurídica, hierarquicamente superior»; quanto os juízes o classificavam de inteligência notável com «uma atenção respeitosa às suas palavras e penas mais pesadas»; como «aos olhos do juiz os seus actos tinham origem nele próprio, aos de Moosbrugger tinham-lhe caído em cima como pássaros vindos de algum lugar».
Retrato extraordinário pela reversão da lógica a conduzir afinal à íntima verdade como no seu contentamento final já condenado, clamando «uma vez que fui eu que forcei a condenação, declaro-me satisfeito com o modo como o processo foi conduzido», a rebelião final no instante em que a imagem distorcida dos elementos do seu próprio ser triunfaram, danando-lhe a alma, e a paz, atingido o clímax da agonia e da ruptura «quando "aquele miserável palhaço do advogado de defesa", como o ingrato Mossbrugger lhe tinha chamado durante o julgamento, anunciou que, em virtude de um qualquer vício de forma, ia pedir a anulação da sentença, enquanto o seu colossal cliente era levado pelos guardas».
Colossal, eis a expressão.
Menos jurisprudência, mais Literatura, mais humanidade.