Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




A sentença debaixo do braço

De repente uma alteração na cultura judiciária. Os tribunais julgam-se e condenam-se. Ou melhor condenam os contribuintes a pagar pelo que consideram erros na justiça.
Da condenação pecuniária passa-se à condenação moral: «é passível da maior censura o facto de o acórdão ter sido lido e disponibilizado, logo após as alegações orais; este facto permite tolerar a alegação do recorrente, segundo a qual, afinal, “a sentença ia debaixo do braço”». Lê-se no sumário do Acórdão da Relação de Lisboa de 11.09.08 [proferido no processo n.º 6888/08 9ª Secção, relator Almeida Cabral].
Veremos se quando se passar da responsabilização subrogada do Estado para a responsabilização pessoal dos autores das decisões a mesma lógica se mantém.
No caso tratava-se de uma reabertura de audiência, ao abrigo do artigo 371º-A do CPP na qual o tribunal indeferiu a produção de prova. A Relação declarou inexistente a audiência em causa. Exactamente: não irregular, não nula, inexistente! Houve tempos em que, sendo todas as ilegalidades, mesmo as mais gritantes, meras irregularidades já sanadas, a inexistência era um vício processual inexistente. Algo está a mudar. Resta saber porquê.

Um novo poder para o Tribunal de Contas

O CPC, que até aqui era o Código de Processo Civil, passou a ser a sigla para o Conselho de Prevenção da Corrupção.
Entre as suas atribuições está «recolher e organizar informações relativas à prevenção da ocorrência de factos de corrupção activa ou passiva, de criminalidade económica e financeira, de branqueamento de capitais, de tráfico de influência, de apropriação ilegítima de bens públicos, de administração danosa, de peculato, de participação económica em negócio, de abuso de poder ou violação de dever de segredo, bem como de aquisições de imóveis ou valores mobiliários em conse-quência da obtenção ou utilização ilícitas de informação privilegiada no exercício de funções na Administração Pública ou no sector público empresarial».
Ante tanta entidade a recolher «informações» e umas tantas outras a fazer «investigação criminal», urge perguntar: quais informações?
«Sem prejuízo do segredo de justiça, devem ser remetidas ao CPC cópias de todas as participações ou denúncias, decisões de arquivamento, de acusação, de pronúncia ou de não pronúncia, sentenças absolutórias ou condenatórias respeitantes a factos que tenham a ver com os crimes acima enunciados», reza a Lei n.º 54/2008, de 4 de Setembro, que aprova a nóvel entidade.
Além disso, segundo a mesma Lei, «as entidades públicas, organismos, serviços e agentes da administração central, regional e local, bem como as entidades do sector público empresarial, devem prestar colaboração ao CPC, facultando-lhe, oralmente ou por escrito, as informações que lhes forem por este solicitadas, no domínio das suas atribuições e competências», pois que «o incumprimento injustificado deste dever de colaboração deverá ser comunicado aos órgãos da respectiva tutela para efeitos sancionatórios, disciplinares ou gestionários».
Mais: «devem igualmente ser remetidas ao CPC cópias dos relatórios de auditoria ou inquérito do Tribunal de Contas e dos órgãos de controlo interno ou inspecção da Admi-nistração Pública central, regional ou local, ou relativos às empresas do sector público empresarial, que reportem factos enunciados na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º ou deficiên-cias de organização dos serviços auditados susceptíveis de comportar risco da sua ocorrência».
E mais: «após a apresentação à Assembleia da República, deve ser remetida ao CPC, pela Procuradoria-Geral da República, uma cópia da parte específica do relatório so-bre execução das leis sobre política criminal relativa aos crimes associados à corrupção, bem como os resultados da análise anual, efectuada pelo Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, das declarações apresentadas após o termo dos mandatos ou a cessação de funções dos titulares de cargos políticos».
No plano da arquitectura do poder, mais uma poderosíssima base de dados está em marcha. Sobre este assunto a PJ tem a sua, a Brigada Fiscal idem, o SIS idem idem. Faltava agora um instrumento mais potente, mais centralizado, para os que estão agora no Tribunal de Contas. O que é curioso é que o CPC comunica directamente com as demais entidades. Trata-se de um organismo que funciona «junto do» Tribunal de Contas, mas que tem autonomia face ao Tribunal de Contas. Inteligente, de facto e muito sintomático.
Encontrando crime, o CPC comunica é certo o facto e as informações ao MP, suspende a sua recolha e aparentemente garante o contraditório face ao comunicado, embora tratando-se de participação criminal sujeita a segredo de justiça seja de presumir que o aberto ao contraditório seja menos do que o recolhido.
Juntando informações de casos em que houve absolvição e arquivamento àqueles em que houve condenação, mais aquelas em que nem processo houve ainda, mesclando o que tem origem policial, judicial e de outra diversa natureza, o CPC só pode ser uma coisa: um poder a exigir controlo. E isso não se vê em parte nenhuma da Lei.

Publicidade do inquérito: primeira brecha na nova lei

A primeira brecha na abertura do conhecimento do inquérito aos arguidos acaba de ser dada pelo TC. O Acordão do Tribunal Constitucional n.º 428/08 decidiu «julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, segundo a qual é permitida e não pode ser recusada ao arguido, antes do encerra­mento do inqué­rito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida pri­vada de outras pessoas, abran­gendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional, sem que tenha sido con­cluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devo­lução, nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do Código de Processo Penal».
O aresto, de que é relator Mário Araújo Torres, apoiado em exaustivo levantamento das posições da doutrina e da jurisprudência sobre tal temática, parte do que foi, com a última revisão do CPP, a «tão drástica subversão da regra “natural” [na Exposição de motivos da Pro­posta de Lei n.º 157/ VII, que esteve na base da revisão do CPP de 1998, proclamou‑se: “o inquérito, em cujo âmbito se desenvolve a investigação é, por natureza, inquisitório e secreto”] do carácter secreto do inquérito, adoptada, sem explicitação das respectivas motiva­ções, na última reunião da Comissão que procedeu à votação na especialidade dos projectos legislativos relativos à revisão do Código de Processo Penal, face a uma proposta de alteração apresentada, pela primeira vez, nessa ocasião» a qual «não pode ter deixado de causar as maiores per­plexidades aos intérpretes e aplicadores do direito».
Seguindo o critério de Frederico da Costa Pinto quanto ao que será a interpretação congruente com a Constituição da nova fórmula legal atinente ao segredo de justiça, considera o TC nesta sua decisão que «no presente caso, não está em causa o acesso do arguido a elemen­tos constantes do processo que sejam necessários para a adequada defesa dos seus direitos, designadamente para contrariar ou impugnar a aplicação de medidas de coacção, hipótese em que a jurisprudência deste Tribunal tem considerado não ser oponível o segredo de justiça, mesmo durante o decurso normal do prazo do inquérito (o que obteve consagração nos n.ºs 1 e 2 do artigo 89.º e no n.º 4, alínea d), do artigo 141.º do CPP). Aliás, como se documenta na alegação do Ministério Público, os arguidos têm proficuamente exercitado o seu direito de impugnação de decisões que consideraram ter afectado os seus direitos, como a decisão que indeferiu arguição de nulidade do mandado de detenção, das decisões que decre­taram e mantiveram a prisão preventiva e da decisão que indeferiu arguição de nulidade de determinadas apreensões. O que agora está em causa é a possibilidade de conhecimento do que consta da globalidade do inquérito, pelo que o mero diferimento desse acesso para momento subsequente ao encerramento do inquérito se reveste de menor gravidade do que eventual recusa de acesso especificamente direccionado e justificado pela necessidade de defesa eficiente contra actos concretos que afectem a posição processual do arguido».
Ora porque «a decisão recorrida adoptou um critério que não protege adequadamente os interesses de terceiros, consentindo a lesão da sua privacidade decorrente da irrestrita conces­são de acesso a todos os elementos do inquérito aos arguidos que o requere­ram, justamente por ter partido de uma interpretação segundo a qual, verificada a situação prevista no n.º 6 do artigo 89.º do CPP, o acesso franco do arguido ao inquérito é irrecusável, sejam quais forem os riscos de lesão de outros valores que daí resultem. Ora, importa não esquecer que, sendo certo que a inclusão no inquérito de elementos cobertos por esses tipos de segredo já pressu­pôs um juízo de admissibilidade da sua quebra em homenagem aos interes­ses da investigação, não menos certo é que estão em jogo outros valores constitucionalmente protegidos, ligados à reserva das pessoas em causa a que esses segredos respeitam (sobre a relevância do segredo bancário para a defesa da intimidade da vida privada, cf., por último, o Acórdão n.º 442/2007), que nada justificará sejam sujeitos a devassa por parte dos restantes intervenientes processuais sem que previamente seja emitido o juízo de relevância para a prova previsto no n.º 7 do artigo 86.º do CPP», o TC definiu que tal acesso irrestrito era desconforme com a Constituição.

A Lei Orgânica e a orgânica na lei

Ainda por falar em PJ. Num país de confusão legislativa, os legisladores teimam em aumentar a confusão.
A Polícia Judiciária tem uma Lei Orgânica que foi aprovada em 9 de Novembro de 2000, através de um Decreto-Lei n.º 275-A. É m diploma extenso, com 179 artigos.
Ora veio agora a Assembleia da República aprovar uma Lei, a n.º 37/2008, de 6 de Agosto, que se chama «orgânica da Polícia Judiciária» e que contém preceitos que se sobrepõem aos da dita Lei Orgânica da Polícia Judiciária, apenas alterando a redacção de um artigo.
Podia a AR ter aprovado uma nova lei que substituísse aquela, modificando-a e republicando-a, para melhor clareza? Podia.
Porque usou esta técnica legislativa péssima? Não sei. Talvez um exercício de estudo atento venha a revelar o mistério.
Para o incauto jurista aí está: há uma Lei que aprova a orgânica da PJ que não se confunde com a Lei Orgânica da PJ. Percebem? Não? Ómessa! Porquê?

Aprensiva apreensão

É sabido por quem vive a Justiça Penal no terreno que o critério de apreensão de bens é muito discutível. A lei [n.º 1 do artigo 178º do CPP] permite-a de modo lato: «os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um crime, os que constituirem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova».
Ante uma norma com um âmbito de previsão tão genérico toda a apreensão encontra sempre uma justificação aparente. Ate mais ver o apreendido é útil para a prova e logo se vê.
Findo o processo os bens apreendidos podem ser declarados perdidos a favor do Estado [artigo 374º, n.º 3, c) do CPP]. Mas mais: por insólito que pareça, arquivado o inquérito, podem os bens apreendidos ser declarados à mesma perdidos a favor do Estado [artigo 268º, n.º 1, e) do CPP].
Ora ante tal perigo para a propriedade privada, à mercê de enunciados legais permissivos e de previsão tão genérica, espanta que o artigo 19º da Lei Orgânica da PJ, agora aprovada, preveja que «os objectos apreendidos pela PJ que venham a ser declarados perdido a favor do Estado são-lhe afectos nos termos do Decreto-Lei n.º 11/2007, de 19 de Janeiro».
É a instigação directa da apreensão para benefício próprio.
Doravante o Estado não tem que se preocupar em equipar a PJ. Querem automóveis senhores inspectores? Barcos? Rádios? Material informático? Apreendam-nos!
Uma moralidade legislativa interessante num Estado de Direito, não acham?

Fica tudo, ficam todos

Reabrem os tribunais. Voltam os prazos. No meu caso e no de tantos nunca deixaram de vir. O Diário da República esse não parou. O Ministério da Justiça chega a ter de esclarecer que as leis penais não mudarão, tal é a expectativa de que mudasse tudo. Na verdade nada muda, nem a retórica de que urge tudo mudar. Ficou o CPP como estava, incluindo os alçapões que garrotam a defesa e as inaninades que minam a investigação, o Código Penal afeiçoado tal como era, incluído o artigo 30º. Ficaram as férias reduzidas. Ficou a alteração ao regime de estágio. Ficou já nem sei o quê. Ficará em breve todo o mapa judiciário.
Ficou tudo na mesma, mau grado o vociferar dos críticos. Levados a sério, parecia que a Justiça ia fechar para nova gerência. Mas Alberto Bernardes Costa está de parabéns. Nem ele muda, apesar de Rui Pereira.
Fazendo o balanço entre a fraqueza dos que gritaram e a força dos que mandaram, ficou sem mudar também o princípio que se atribui a António de Oliveira Salazar: manda quem pode, obedece quem deve. O que a ditadura ensina a democracia aprende: a sobreviver.
Fantástico. Lamentável. Verdadeiro. Veremos o que nos espera. Por mim, estou acordado desde as três e meia de manhá. Voltam os prazos, os que nunca deixaram de estar. Na próxima vinda à terra quero ser padeiro.

A credibilidade rifada

«É que a Ordem dos Advogados do Brasil comemora os seus 75 anos em Mato Grosso à sombra de contradições que demandam superação, honestidade intelectual e uma dose substancial de consenso e não de conflito. Essa septuagenária senhora, presente nos momentos marcantes da redemocratização brasileira, vive apenas de um passado glorioso, escravizando-se para polir os troféus com a ferrugem do tempo». «Isso porque a OAB perdeu o ímpeto da vanguarda, transformou-se em reduto político e politizante e fez dela mesma um trampolim para pretensões pessoais. Além disso, rompe com o compromisso ético, ao pugnar por uma postura que não corresponde de forma alguma com as próprias práticas internas e, nesse ponto, amiúda-se a fundação de um dos maiores edifícios democráticos nacionais, sucumbindo à máxima "por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento". De fato, as bactérias do poder estão fermentando a Ordem, tornando-a maior, mas esvaziando-a de vigor, tornando-a pior».
«E esse "vírus político" inoculado na OAB talvez tenha afetado profundamente a percepção de que a coerência é a maior viga de sustentação institucional da própria Ordem. Assim, fornecendo um discurso vazio à classe e à sociedade, os dirigentes da Ordem dos Advogados não só vulgarizam sua importância estratégica constitucional, como fazem de uma pauta ética mais um discurso pendular entre a necessidade e a conveniência. A credibilidade institucional do advogado foi rifada e esquartejada entre grupos». O resto vem aqui e segue, em Cuiabá, Mato Grosso.

A maçã do amor

Uma pessoa chega do tribunal esgotado de calor, de cansaço. Espera-o uma noitada por causa de um prazo e a angústia de que se não dormisse uma semana inteira continuava sempre com serviço atrasado, com livros jurídicos que nunca terminará, com jurisprudência que se vai sucedendo e de que nunca alcançamos o fundo. A esta hora outros colegas sofrem a mesma pena, condenados à mesma danação dos prazos fulminadores.
Mas deve haver um dos deuses que é amigo dos advogados e lhes dá um momento de boa disposição.
Foi o que sucedeu. Tinha à minha espera a notícia fulminante: «Está tudo pronto para o início do “Arraiá do seu Dotô».
Segundo acabo de saber, «com início programado para acontecer às 18 horas do dia 27 (sexta-feira), a festa junina “Arraiá do seu Dotô” terá duas atrações artísticas: Victor & Vinícius e Marcos e & Ronaldo, além de apresentação de quadrilha, pipoca, quentão, milho verde, espetinho, pastel, bolos e tortas, sopa paraguaia, pamonha, curau, refrigerante, água mineral e cerveja em lata a R$ 0,50».
Mas mais: «Os organizadores da festa junina “Arraiá do seu Dotô”, no caso a Caixa de Assistência dos Advogados, a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional de Mato Grosso do Sul, e a Comissão do Novo Advogado, acreditam que o evento será um dos mais concorridos já realizados no pátio da CAAMS (Avenida Mato Grosso, 4.700, Carandá Bosque)»,
Lido isto, vou-me já para Carandá Bosque!
Quem quiser mais pormenores, é só ler no periódico de Mato Grosso do Sul.
Sobretudo porque na edição do dia 25, o jornal matogrossesense informava: «As barraquinhas instaladas no pátio da Caixa de Assistência dos Advogados atenderão o público com arroz carreteiro, espetinho com mandioca, pastel, milho verde, quentão, cervejas, refrigerantes e água mineral, maçã do amor, pipoca, bolos e tortas, etc.».
Com a maçã do amor a esta hora, não há prazo cominatório que resista!

A lei infame

O que faz com que uma pessoa abra um livro ou vá buscá-lo a uma estante? Sei lá! Pois esta noite, quase que como sonâmbulo, fui à estante e eis-me com o o primeiro volume da Conta-Corrente do Vergílio Ferreira. Não interessa jugar a obra: é situada, traduz os seus amores e rancores, torna-o menor do que ele é e ele sabia-o quando ia escrevendo esse seu diário. Fiquei-me só pela página 22, que se abriu casualmente: «Dizemos que uma lei é justa ou infame. Mas ninguém se lembra de ir buscar o legislador a casa o levar em triunfo ou lhe dar umas nalgadas em público». Leio e pergunto-me: e já agora porquoi pas?

Vai uma caipirinha?

Durante os anos da brasa em Portugal houve os paladinos da «Justiça Popular». Ainda hoje, há muitos que acreditam que o júri é «o povo» a julgar, o que é curioso porque o tribunal só de juízes também administra justiça «em nome do povo», pelo que não se percebe, estando o povo aqui e e ali, togado e paisano, «se isto não é o povo, onde é que está o povo»!
Mas no Brasil a coisa assume uma faceta curiosa. Segundo se lê aqui na imprensa de domingo: «O crime organizado criou um tribunal paralelo e está julgando brigas entre integrantes, ordenando mortes e até promovendo a solução pacífica de problemas entre vizinhos. Líderes do PCC (Primeiro Comando da Capital), facção que domina os presídios paulistas, fazem o papel de juiz, promotor e advogado durante os julgamentos».
Eis, pois, os tribunais paralelos, com uma gama vasta de saídas para os problemas que afligem a comunidade, desde o ordenar mortes até à «solução pacífica», que dá ar de ser a promessa da «paz dos cemitérios».
«O fato das pessoas procurarem o crime organizado para resolver os seus problemas, mostra o desprestígio do Judiciário no país”, afirma o advogado Daniel Rondi, da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil)».
Chama-se a isto o «tribunal caipira». O crime com o crime se resolve, a dentada do cão com o pêlo do próprio cão.

Ghostbuster

Um dos temas clássicos na literatura espírita tem a ver com a existência de fantasmas. Há quem veja projecções ectloplásmicas do espírito em manchas de parede. Na Justiça conhecem-se algumas fantasmagorias. Agora segundo a Folha de São Paulo, na sua edição de hoje: «o senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) decidiu exonerar do cargo de assistente parlamentar o filho do ministro Hélio Costa (Comunicações). A Folha revelou ontem que Eugenio Alexandre Tollendal Costa é funcionário-fantasma do Senado. Desde 2003, ele está lotado no gabinete do senador, mas ninguém o conhece no local, nem mesmo o tucano».
Eis uma nova actividade venatória criminal: o caça fantasmas!

Violadores de Advogados

Os advogados de defesa passaram ao ataque. Segundo leio, a Secção de Mato Grosso do Sul da Ordem dos Advogados Brasileiros «está pedindo o apoio dos três senadores do Estado para que aprovem a pena de detenção de seis meses a dois anos aos que violarem direito ou prerrogativa de advogado».
Entre os direitos previstos no estatuto estão: «comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis; - reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, da inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento; e - examinar, em qualquer repartição policial, mesmo sem procuraçãoo, autos de flagrante e de inquérito, finalizados ou em andamento, podendo copiar peças e tomar apontamentos».
Ante esta iniciativa de Mato Grosso, afigura-se na Amazónia em que a Justiça se transformou aqui, um Belo Horizonte. Atenção, pois, meu povo judiciário: quem violar privilégio de advogado... cana!

A luz dos holofotes

Ora bem! Aqui do Brasil diz-se assim na imprensa: «O nome completo do promotor que denunciou os Nardoni é Francisco José Taddei Sembranelli. Quer polarizar a causa, como o mocinho contra o bandido. É bem típico da acusação: conduzir a opinião pública para esmagar qualquer defesa. Suspeito o promotor Sembranelli. Isso porque participou ativamente da coleta de provas, manifestou seu entendimento antes mesmo da oferta da denúncia e continua sustentando convicções pessoais, tomando um belo bronzeado com as luzes dos holofotes, concedendo entrevistas até mesmo em sua própria residência».
É assim, como se dizia, à antiga-portuguesa, ou em melhor expressão, à vara-larga. De tudo isto ficou-me uma noção vincada: mocinho contra bandido, um promotor com um belo bronzeado! Há e uma outra: a «oferta da denúncia». Pelos vistos há quem as dê e de borla. Ninguém segura este Brasil...

Jornal da Emigração

O Leal da Câmara cujos desenhos anti-monárquicos eram apreendidos pela Polícia, e cujo jornal ostentava o ante-título provocador «o jornal com maior circulação no Governo Civil», foi uma bela altura impedido de desenhar El 'Rei, pois fazia-o sempre dando a D. Carlos um ar grotesco e banhudo, qual Caçador Simão do Guerra Junqueiro. Limitado na sua capacidade de risco, optou então! E de lápis afiado nas unhas ei-lo a desenhar uma melancia e uma cabaça ou o que fosse que, de rendondo em redondo, sempre hortícola, com ar de inocência malandra, no final era... El ' Rei.
Ora bem.
Eu não estou impedido de escrever sobre nada, mas a verdade é que não tenho escrito sobre a Justiça daqui, porque sou um preso de consciência! Acho que podem ler-me e pensarem que quem escreve não sou eu mas o titular de um cargo que desempenho.
Por outro lado, não quero escrever sobre, como se não escrevesse a propósito de, numa escrita indirecta e insinuatória.
Esta manhã achei a fórmula: emigro! Pronto. A partir de hoje este blog vai passar a albergar cartas vindas lá de longe, sobre coisas do outro mundo.
Adeus, pois, e até ao meu regresso! Vai já a seguir, pelo vapor, a primeira cartinha.

Santo Ivo nos valha

Dia de advogado. É a minha profissão e a de tantos outros. Só que não há um advogado, há tantos e de tanta espécie.
Ao fim destes anos dei comigo advogado de barra, nos tribunais criminais.
Olhei ontem para a minha toga: está rota por estar velha, o pano já não aguenta acrescentos, nem as costuras resistem quando passajadas, já não consigo vesti-la com o casaco, porque os anos deformaram-me o corpo. É a minha toga, como o tribunal é a minha vida. Já que chegou até aqui, vai até ao fim. Tem sido a companhia da alegria e do desespero, dias de raiva, noites de angústia.
Há quem se gabe de não saber já por onde pára a sua toga, quem fale com desdém dos que andam pelos tribunais.
Quanto à minha toga, está na mala do carro, porque me tornei um caixeiro-viajante do Direito, dentro de um saco de lona, que um cliente me mandou, amigo e grato, cheio de ananazes, depois de nos termos conhecido nos Açores. Já não me lembro que caso era, ficou sim o sabor da amizade e dos ananazes.
A vida de um advogado é uma vida de esquecimento. Hoje comemorou-se o dia de nos tornarmos lembrados.

Ou à escuta ou à trolha

As escutas telefónicas é um daqueles temas chamados «fracturantes». A propósito delas tudo se discute, mas já ninguém se atreve a colocar em dúvida a sua necessidade, pelo menos entre nós. Até os próprios escutados já se conformaram com a ideia de que a escuta das suas conversas é uma inevitabilidade, uma espécie de imposto de segurança que se paga por retenção na fonte.
Eis por isso sem surpresa ver a questão aberta, e com vigor, no Brasil a propósito da mudança do regime legal que governa este meio chamado de obtenção da prova que, entre nós, por uma pirueta jurisprudencial, se convertou em prova em si mesma.
«Eu não vejo como investigar a criminalidade de hoje sem as interceptações telefônicas, bancárias e fiscais», disse, a propósito, Leonir Batisti, coordenador no Paraná dos Grupos de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco), enquanto o ministro aposentado do STF, Sepúlveda Pertence acrescentou, lamentoso: «a interceptação deve ser o último recurso da investigação, mas tem sido instalada para iniciá-la».
Enfim, separados pelo Oceano Atlântico, discute-se lá o que se discute cá, o Brasil 409 mil interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça, por todo o país, em 2007, materializadas pelas cinco operadoras de telefonia.
Agora caricata é esta proclamação, posta na boca de João Kopytowski, do Tribunal de Justiça do Paraná: «Esse meio de investigação tem a vantagem de substituir o confronto físico. Graças às escutas, fazem-se operações sem mortes, sem feridos».
Ora cá estão os dois métodos eficazes de fazer investigação criminal, como dizem os meus amigos betinhos, à séria: com mortos e feridos ou através da escuta telefónica.
É caso para dizer «allô, allô, é do 112, perdão da central de escutas? Importa-se se mandar uma ambulância, perdão, um carro patrulha? É que estamos cercados pela polícia de investigação criminal».

Portugal Diário

O Patologia Social foi objecto de uma menção amável por parte do jornal on line «Portugal Diário», como um dos «blogs que nós lemos».
Ficámos embaraçados, pela consciência do que somos.
Primeiro, porque há tantos blogs jurídicos de constante actualização, verdadeiro serviço público à comunidade jurídica, e que muito devemos os que procuramos informação tempestiva e que mereciam eles que não nós essa referência.
Segundo, porque há do ponto de vista opinativo, blogs atentos, que não perdem a oportunidade para comentarem temas de actualidade, alguns certeiros.
Claro que a escrita jurídica na blogoesfera coloca três problemas.
Primeiro, o poder basear-se em informações não confirmadas e à vezes logo desmentidas e ficar assim sujeita à lei da precariedade que é a causa directa da perda de autoridade.
Segundo, o ser muitas vezes cópia de material já difundido em outros locais, num efeito de espelho que em sempre traz reais vantagens, e se pode tornar cansativo.
Por fim, o faltar ainda a escrita serena, profunda, reflectida, pois o devir incessante dos acontecimentos, faz com que tudo pareça exigir notícia já e comentário na hora.
Ao Portugal Diário, muito obrigado. Após este intervalo, sempre é um sopro ânimo para continuarmos.

On Human Bondage

Na introdução que escreveu em 1987 para o livro de Ian Fleming, «Casino Royale», que estou a estudar por causa de um livro que devo concluir em breve, Anthony Burgess compara James Bond a Sherlock Holmes, para concluir pela imortalidade do primeiro. Talvez para justificar esta asserção refere que «Holmes é uma espécie de decadente dado a uma lógica rigorosa ao serviço da lei, o que é contradição bastante». Penso que nesta curta frase está tudo dito sobre o que eu ando a fazer, na companhia dos outros, o resto da semana. Só que hoje é sábado e, como numa espécie de «bondage», estou amarrado às desventuras do 007, de que o cinema fez um imbecil

Lado a lado

A propósito de uma nova tradução de «O Homem Sem Qualidades» de Robert Musil, lembrei-me que, no livro, julgado pelos seus crimes, Moosbruger observa que «perante a Justiça, todos os acontecimentos que se haviam sucedido uns aos outros tão naturalmente, encontravam-se absurdamente colocados lado a lado e ele fazia os maiores esforços para dar a esta justaposição um sentido que não cedesse em nada à dignidade dos seus ilustres adversários». Os juízes condenaram-no à morte por ter morto. O julgamento foi «o combate da sombra contra a parede».

Indulgentes

Para legitimar a remissão dos pecados dos mortos, mediante indulgências pagas pelos vivos, a Cúria romana inventou uma saída jurídica: o Papa era o detentor do património acumulado pelo sacrifício de Cristo e de todos os Santos mártires, de que podia dispôr, concedendo assim, num sinalagmático do ut des, perdões espirituais em troca de dinheiro tangível.
Perdoava-se, em suma, a pena, mantendo-se a culpa.
Na sua tese 40ª sobre a questão das indulgências, pregada à porta da Igreja de Wittenberg, em 31 de Outubro de 1517, Martinho Lutero proclamou: «a verdadeira contricção procura e ama as penas».
Se não existisse Direito o homem tinha de o inventar para transformar o interesse em valor, a imoralidade em virtude.

Uma tertúlia amigável

A Associação Forense das Caldas da Rainha organiza umas tertúlias culturais num café local. Fala-se de tudo um pouco, em ambiente amigável. Estão lá as várias profissões jurídicas, em sereno e amistoso convívio. Deram-me a honra e com ela o enorme prazer de ter ido falar do que tenho escrito. Haverá mais tertúlias e oxalá muitas outras florescessem. Primeiro, por tratar-se de cultura. Depois, por ser um modo de convivermos todos os que andamos pelos corredores da Justiça. Nas grandes cidades há quem nem se fale, uns por estarem zangados de antanho, outros por acharem que conversar é perder tempo necessário para despachar processos, uns poucos porque temem que, assim, dizendo um olá ao burro do seu semelhante humano, possam perder a sua independência e isenção. É um mundo de múmias.

Reserva, contenção e adaptação

Estes dias de intervalo deram para pensar num aspecto que tem estado latente nesta escrita.
Permitam-me os que lerem que partilhe a reflexão.

1. Este blog, todos os meus blogs, são assinados: dou o nome e a cara. A princípio achava que isso era algo de que me tivesse que orgulhar, hoje verifico que é apenas um modo de ser. Tudo o que disser de bem, de mal, de conseguido ou de ridículo, tem autor conhecido. Nada tenho contra os blogs anónimos ou com pseudónimo: acho apenas que se atacarem pessoas, e não ideias, deviam pôr a assinatura em baixo. É uma obrigação de cidadania!

2. Não usei e estarei atento para não usar este blog ao serviço de qualquer caso em que tenha de intervir ou em que esteja a intervir ou mesmo em que haja intervindo como advogado. O que houver para dizer sobre os meus processos, di-lo-ei «em papel selado» e se tiver de esclarecer a opinião pública, com os limites conhecidos, digo na comunicação social.

3. Desde há alguns meses desempenho o cargo de Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados. Obriguei-me por isso a um acrescido dever de reserva, para que não haja confusão entre o que diz o José António Barreiros e o que diz o titular do dito cargo. Ademais não quero que qualquer opinião minha seja comparada com a dos órgãos executivos da Ordem e surja, de um eventual contraste, especulação e polémica.

4. Claro que sei que, neste país tão vocal e tão interjectivo, esta sucessiva auto-limitação chega a parecer caricata. Os tempo que correm são para o atrevimento verbal, para a ousadia vocabular, para o arrojo opinativo. Só que eu sou este. Estou numa profissão e aceitei um cargo cujo perfil interpreto deste modo. Não calculam quanto me custa, a vontade de vir a terreiro e dizer exactamente o que penso às vezes é grande. Mas há que saber calar por causa daquilo que sou e represento.

5. O Patologia Social vai ter, por isso, que se adaptar. Há mais mundos!

A pendenga no Cubatão

«A seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi condenada pela Justiça Federal a pagar R$ 50 mil a um juiz trabalhista de Cubatão, por danos morais. Ele foi incluído na "lista de inimigos" da entidade em 2007, por iniciativa de um advogado que se sentiu ofendido em ação julgada pelo magistrado. Este foi mais um episódio da briga intermitente entre juízes e promotores e a OAB. Esta fase das escaramuças foi inaugurada quando o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Rodrigo Pinho, classificou como "fascistas" os expedientes que a OAB vem utilizando para criticar juízes e promotores que desrespeitam as prerrogativas profissionais da categoria», informa o jornal Estado de São Paulo na sua edição deste sábado, dia 8, que continua, fazendo o ponto de situação: «A pendenga entre as corporações jurídicas começou há alguns anos quando alguns dirigentes de seccionais da OAB ameaçaram negar o registro profissional a magistrados e promotores depois que deixassem seus cargos públicos, o que os impediria de advogar. E "esquentou" quando as seccionais de São Paulo e do Rio de Janeiro passaram a divulgar "listas negras" de desafetos pela internet. Na época, sites jornalísticos especializados no setor forense, como o Consultor Jurídico, classificaram a elaboração das listas como "campanha de caça" da OAB aos seus inimigos. Com 180 nomes, a primeira lista divulgada pela OAB paulista incluiu, além de integrantes do Ministério Público e do Judiciário, delegados de polícia, serventuários judiciais, parlamentares, gerentes de banco e até jornalistas. Muitos magistrados foram incluídos nas "listas negras" por se recusarem a receber advogados fora das audiências. Alguns delegados e promotores foram acusados de invadir escritórios de advocacia. Serventuários judiciais foram incluídos por não terem acolhido reivindicações feitas por advogados. E os jornalistas, por terem, no exercício da liberdade de opinião assegurada pela Constituição, criticado a OAB em reportagens. A entidade alega que ela é "uma trincheira de resistência" a condutas autoritárias e que os profissionais por ela "listados" teriam, de algum modo, "dificultado o exercício da advocacia". Em resposta, associações de juízes e promotores afirmam que o verdadeiro objetivo da corporação seria retaliar quem não cede a pressões de seus integrantes. Elas acusam os advogados de utilizar as "listas negras" com o objetivo de intimidar servidores dos poderes públicos - e até funcionários de empresas privadas - que têm regras e procedimentos para cumprir e não podem acolher reivindicações absurdas. As mais recorrentes seriam o atendimento fora de expediente e a reivindicação de salas, elevadores e estacionamentos privativos.
Ora, segundo o conceituado periódico «foi numa dessas trocas de acusações que o procurador Rodrigo Pinho acusou a OAB de recorrer a "métodos fascistas e macarthistas" e classificou a elaboração e a divulgação das "listas negras" como iniciativa "ignominiosa" e "excrescência incompatível com o regime democrático"».

Viva o Portelinha!

Indisposto com o Direito e das leis desconfiado, exausto de processos e no mais pouco repousado, foi com júbilo que, ao acordar vi, enviada por mão amiga, esta notícia do jornal brasileiro A Tarde.
Segundo este peródico, «os pais do menino João Victor Portellinha entrarão com um pedido de liminar na Justiça de Goiás para tentar assegurar a freqüência dele, que tem 8 anos, no curso de direito na Universidade Paulista (Unip) de Goiânia. Victor, que, atualmente, cursa a 4ª série do ensino fundamental, foi aprovado no vestibular há três dias, quando também pagou a taxa de matrícula. Mas foi barrado hoje na porta da faculdade».
Uma pessoa lê uma coisa destas e conclui que já não há Justiça neste mundo nem sequer em Goiás, e compreende, com generosidade de alma, a reacção agastada do Portelinha: «Como não posso ficar chateado?», terá perguntado o menino à mãe, segundo apurou o jornal: «Eu fui barrado no primeiro dia de aula...», reagiu».
Reagiu e bem! Muito bem. É que o Portelinha, segundo uma nota oficial da Unip, foi aprovado no exame vestibular na condição de treineiro e acrescenta a mesma fonte, em nota oficial «ele revelou boa capacidade de expressão e manejo eficiente da língua».
Ora aí bate o ponto: destro de língua, não pode o nininho ser jurista encartado, porquê?
Barra-se assim um «treineiro», discriminando-o pela idade, só por causa da idade?
O sonho do Portelinha é ser Juiz Federal. Pois que seja! Já vi coisas piores com mais idade, abra-se espaço para a juventude. Eu cá, voto no Portelinha, é o começo de uma nova era ou o apressar o fim desta, tanto faz.

Fatalidades irremediáveis

Nós, os que andamos pelo Direito, far-nos-á bem, não por auto-flagelação, mas só mesmo para sabermos que há mais mundos, pensar naqueles que não vivendo propriamente fora-da-lei, passam por ele, e pelo mundo em que ele se vive e sofre, com um sentimento de aversão.
Lembrei-me disto ao folhear, já cabisbaixo de sono, mais umas folhas da Irene Lisboa: «Já um dia falei do sobressalto e da repugnância que só a palavra lei me dá. De que servem as fórmulas dos homens? A da lei, então, só de vingança. Na origem, a lei é a perfeita antecipação da vingança. É a cautela maldosa, a repressão cominada, prevista - o passo tolhido, antes mesmo de ser dado. O homem prevenido, sicário do desprevenido. Um postura de lei é perfeitamente um assalto, uma guet-apens. Uns estão emboscados para desarmar e vencer outros, para lhes arruinar os planos. São detentores de uma arma curta, violenta e pessoal, e só eles a podem manejar. Como é difícil inutilizá-la, embotá-la! À custa de quanto tempo e astúcia, sobretudo».
Vinha tudo isto, a repugnância à lei, a propósito de uma conversa que ela teve com a Maripa que no fim de tarde, já escuro, a visitou mais à sua amiga Franz. A conversa rodou em torno de fatalidades irremediáveis.

Peritos e perigos

Leio na imprensa que o IML vai uniformizar os procedimentos em matéria de perícia a abusos sexuais de menores. Pois.
Um destes dias ouvi o Doutor Germano Marques da Silva insurgir-se contra certos juízes para quem as perícias são uma Bíblia. Lembrei-me de uma separata escrita pelo falecido Dr. Alfredo Gaspar, meu colega de curso, para quem o juiz é [mas não é] o perito dos peritos.
No meio disto tudo, três coisas são certas e estão por resolver.
Primeiro, as perícias penais são realmente um meio de prova com valor especial, pois o juiz para divergir do juízo delas decorrente tem que fundamentar especificamente o porquê da discordância.
Segundo, quem quiser oferecer prova «pericial» alternativa àquela que o tribunal tiver ordenado não encontra estatuto para que ela seja relevada, pois que tais especialistas, por muito sabedores que sejam, não são «peritos» em sentido técnico [pois que essa categoria só tem aqueles que o tribunal designa], «consultores técnicos» também não são [pois estes são espectadores da perícia com capacidade de sugestão apenas] e «testemunhas» é seguramente qualidade que não lhes pode ser atribuída, pois não presenciaram quaisquer factos.
Terceiro, continua por definir se é aceitável que funcionários da PJ, sujeitos à hierarquia desta Polícia e à dependência funcional do Ministério Público investigador/acusador, podem ser peritos, tendo pressupostamente, mau grado estas limitações, a independência, a isenção, a objectividade, a distância que, até por darem azo a uma prova que se impõe ao juiz até em demonstração em contrário, pode estar em dúvida visto estarem duplamente comprometidos com um dos sujeitos do processo, honra seja feita aos que com honestidade a tal se sujeitam, por ser esta a lei.
Em suma: o arguido, ante uma perícia feita por um funcionário da polícia que serve o seu acusador, pode designar para prova técnica da sua defesa um «qualquer coisa» [não encontro melhor nomenclatura] para fazer face a um meio de prova de valor tal que até há juízes que - retomo o pensamento do Doutor Marques da Silva - fazem dela uma Bíblia. É um sistema fantástico este. E estamos a falar num meio de prova que, ante as modernas formas de criminalidade [económica, financeira, informática, médica, enfim...], assume cada vez mais crucial importância.
Cuidado pois: cada perito é um perigo. Uma palavra sua e o juiz pode acreditar, por não poder duvidar.

A reserva, de caça

Uma pessoa vai a um julgamento. A imprensa relata o que acha que lá se passou. Se às vezes não é assim, outras vezes não é bem assim e muitas vezes não é sequer mesmo assim. Isto quando as audiências são públicas e há testemunhas que podem ler o jornal e compararem atónitas o lido com aquilo a que assistiram.
As causa dessa disfunção mediática são conhecidas: desatenção, impreparação, vontade de fazer notícia aquilo que muitas vezes é o lado menor do que foi julgado e coisas piores que são a alma e o motivo de certas «fontes».
Nasce daí a chamada «opinião pública».
A concorrência feroz nos media lança-os na caça ao escândalo, nivelando-os pelo sensacionalismo! Os partidos da governação já não se distinguem, a comunicação social já se confunde. Mesmo alguma imprensa económica, que deveria ser uma referência de rigor e distância, segue na onda.
Ora os blogs, e falo dos jurídicos, ganharam o hábito de copiar o que vem proclamado nos jormais, raramente os desanimados desmentidos, muitos menos os que saem encafuados desprezivelmente como cartas dos leitores. Os seus fiéis, que são juristas na sua esmagadora maioria, tomam como referência o «post», como se o ter afixado a notícia num tal sítio a torne mais credível.
Chega então a vez dos comentadores, quantos anónimos. A coberto dessa máscara, tomando como certezas o que leram, largam a opinar quase sempre agrestes, reprovadores, ásperos no adjectivo, impantes no julgar dos outros.
Seguem-se os que opinam sobre os que opinam. O tom sobe de ardor e a linguagem desce de nível. Chegam quase a vias de facto, num ridículo pugilato de cegos, sem nome, sem referência, luta de pseudónimos virtuais.
Passadas umas horas muda-se de asunto. Passou o jornal da manhã, veio a notícia on line da tarde, mais logo é o zapping na televisão: o matadouro prossegue, em busca de sangue fresco e de mais cadávares.
Uma pessoa vai a um julgamento e corre o risco de ver-se maltratada na praça pública pelo que fez e pelo que não fez, por uma caricatura de si.
Quando o processo ainda é secreto para os interessados e esburacado para certos meios, é o que se imagina.
Mandam as regras que, ante o que se diz nos media sobre processos pendentes se fique de bico calado. A mesma lei que impõe o dever de reserva aos profissionais forenses, abre as goelas aos que propalam, aos que especulam, aos que caluniam.
É um sistema magnífico este, apto a achincalhar impunemente.
Chama-se a liberdade de expressão e a publicidade das audiências e é isto um dos pilares da democracia. Magnífico sistema que a democracia inventou para rebentar de vez com a democracia!

Da precipitação ao precipício

Deve um director de polícia comentar um processo que está sob a alçada do MP? Deve o MP comentar processos que estão sob a alçada das polícias? Devem juízes, advogados, procuradores, polícias e paisanos comentarem os processos de uns e de outros, mesmo que sobre eles saibam nada?
Deve uma frase precipitada, a falar em precipitação, dar azo a tanta opinião precipitada? Andamos todos a reboque do individual sempre a pôr em causa o geral?
Aceita tanta gente ter minutos de tempo de antena para falar de coisas que têm anos de história e levam meses a mudar?
Não estamos a precipitarmo-nos pelo abismo da vulgaridade, com o país, divertido, a ver?
São perguntas, só perguntas, não estou em posição de afirmar.

Repetição e inovação

Num momento de um curso de formação organizado pela ASJP, permiti-me que, convocando a lição da vida, perguntar:
«Fale a experiência, na forma de uma pergunta: em quantos casos em que, tendo havido, por via da anulação, repetição do julgamento, não se obteve uma outra versão, quando não mesmo uma outra história diversa da que resultou do antecedente julgamento?

Exaspere-se a pergunta: quantas vezes cada repetição [e há casos de julgamentos repetidos três e quatro vezes] não se obteve de cada vez uma realidade, criando a séria convicção de que outras repetições dariam à Justiça a hipótese de encontrar uma nova fantasia de um real inatingível?

Do ponto de vista gnoseológico, o sistema de recursos deveria permitir, pois que reexaminando-se o julgado, uma melhor, mais rigorosa e mais exacta reconstituição do real, como se numa epistemologia genética, o conhecer se alcançasse pela reiteração da observação. Assim não é!»

À pai Adão

Estou a acabar de ler a «correspondência» trocada entre o Vergílio Ferreira e o Jorge de Sena, que a Imprensa Nacional editou em 1987 na sua «Biblioteca de Autores Portugueses».
Sena foi uma daquelas criaturas que tinha de si a mais extremosa opinião e que considerava, num registo que em si já era amável «a humanidade vil, hipócrita, porca e canalha»; o Vergílio Ferreira, que também se não tinha em má conta, embora se angustiasse com a tragédia dessa sua grandeza, lá lhe ia respondendo, dorido, em letra miudinha e escrita minuciosa.
Vem isto aqui, neste blog jurídico que deveria tratar de desumanidades, por causa de um instante de uma carta sua, escrita, a partir da sua casa na Avenida dos Estados Unidos da América, estando Sena na própria América e já naturalizado americano. Comentavam a extinção da Sociedade Portuguesa de Autores, ocorrida nesse ano de 1965: «Voltámos à justiça bíblica que condenou a Humanidade só porque Adão gostava de fruta».
Aqui fica, como tema para a meditação dominical de Vossas Excelências.