Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Transporte de gado

Uma reportagem de uma estação de TV mostrou que os militares da GNR que fazem patrulha usando para tal um carro celular - porque a miséria de meios nega-lhes outra possibilidade quando o veículo de serviço avaria - são transportados às escuras, sem cinto de segurança e num interior em que a temperatura se pode tornar insuportável. O que ninguém reparou é que é precisamente nestas condições que os presos são transportados em Portugal. Como gado. Escrevo isto e sinto que aqui há algum tempo muitos achariam isso reprovável. Agora com a ambiência de aumento da insegurança, haverá bastantes que até acham bem.

Experientes e superiores

Estou de acordo com a ideia de que haja um mínimo de anos para se advogar nos tribunais superiores. Era assim quando comecei a minha vida profissional. Como todas as ideias válidas ela pode esconder, porém, outra menos própria. A ideia de restringir o acesso à advocacia nos tribunais superiores a quem tenha já uma certa experiência assenta no pressuposto segundo o qual os recursos exigem uma técnica que não está ao alcance de todos. Quer isto dizer a prevalência do tecnicismo jurídico sobre a substância jurídica? Se assim for, algo está mal, porque a justiça é mais o conteúdo menos a forma.
Na lógica inversa quererá isto dizer que para advogar na primeira instância, onde quantas vezes o destino do caso se compromete, qualquer inexperiência serve, já para não impacientar as outras instâncias nem as saturar de casos inviáveis urge restringir aos mais experientes? A ser assim, algo está profundamente mal porque a justiça exige meios onde pode surgir a injutsiça.
Claro que não podem nascer todos a saber logo tudo. Mas desde que a ideia não seja o «tirem-me daqui estes que são tão fracos, a primeira instância que os ature» aceita-se o princípio. É que se for assim, aí está a formação que os advogados recebem totalmente em causa. E essa é talvez a grande questão.

Reabertura de audiência e mesmo juiz

Qual a finalidade e o âmbito da audiência reaberta nos termos do artigo 371º-A do CPP, eis uma questão que tem vindo a suscitar ainda algumas dúvidas, se bem que as mais ásperas hesitações, quanto à constitucionalidade da previsão, tenham passado para a discrição dos debates puramente jurisprudenciais.
Interessante por isso este Acórdão da Relação de Lisboa, tirado em 12 de Março [Proc. 11995/04.5TDLSB-B.L1 9ª Secção, relator João Carrola]: «I - Nos termos conjuntos do artºs 40º e 371º-A do CPP, não existe qualquer impedimento legal a que o juiz que presidiu ao julgamento anterior participe e integre o julgamento requerido pelo arguido, após a condenação respectiva transitada e para os efeitos do último normativo. II – Com efeito, a audiência realizada nos termos e para os efeitos do artº 3171º- A do CPP – que nem se destina a todos os condenados - tem finalidade muito específica; assegurando o contraditório, visa somente determinar uma nova pena que se mostre, em concreto, mais favorável face a nova lei. III – Acresce que a audiência realizada nos termos do citado artigo do compêndio do processo penal já não consente nova discussão sobre a culpabilidade; por isso deve entender-se que ela consubstancia uma “questão exclusivamente normativa”».
O problema que fica por resolver quanto ao primeiro ponto não é o saber se nada impede que seja o juiz que julgou a participar na continuação do julgamento, sim o de determinar se não terá de ser obrigatoriamente o mesmo. É que se a ideia de reabrir uma audiência para continuar com outro juiz já belisca a sensibilidade jurídica, imaginar que o juiz que decreta, por exemplo, a suspensão da pena em reabertura de audiência possa ser outro que não o que julgou e sentenciou primitivamente - sendo certo que a suspensão faz apelo a critérios que não terão de ser puramente normativos mas sim de constatação e valoração de factos e de características de personalidade só captáveis por quem sentiu o julgamento - isso sim pode causar alguma estranheza. A mesma audiência o mesmo juiz, isso sim, parece fazer sentido. Claro que, primeiro estranha-se...

Notificação da revogação da suspensão da pena

A Justiça Penal tem vivido um dilema entre as tentações do máximo de simplificação e aceleração e a obrigação de garantir um mínimo de segurança e respeitar um mínimo de direitos.
Vistas as coisas sob um outro ângulo a tentação poderia ser entre garantir o máximo de segurança e direitos e o mínimo de celeridade e simplismo. Mas creio que é como disse.
A questão das presunções de notificação e de notificações via postal nasce aqui. Munidos do chamado «novo TIR» os serviços de justiça julgam-se habilitados a poupar aos cofres do Estado a despesa do aviso de recepção e a confiarem na simples carta a comunicação dos seus actos, mesmo os de maior responsabilidade. A regra de desconsideração de cidadania é «não está, estivesse».
Surgem, pois, como oásis de respeito acórdãos como este da Relação de Lisboa de 19.02.09 [proferido no processo n.º 8016/04.1TDLSB-A.L1, da 9ª Secção, relator Trigo Mesquita], quando estatuem que «(...) a decisão que revoga a suspensão da execução da pena aplicada tem de ser notificada pessoalmente ao arguido, não sendo válida nem admissível a notificação que lhe for feita, por via postal simples e para a morada que ele indicara no TIR, pois que esta já não é meio legal que assegure a cognoscibilidade do acto, designadamente quando ele encerra uma alteração de relevo – in pejus – da sentença condenatória e tem como efeito a privação da liberdade do notificando».

Ai se eu pudesse!

Ora vejam a diferença. Lê-se na imprensa brasileira sob o título «Sexo no Carnaval só com camisinha»: «Funcionários da Caixa dos Advogados da Ordem dos Advogados do Brasil em Mato Grosso começam a distribuir, a partir de hoje, 19, nas salas da OAB no Fórum de Cuiabá e no Tribunal Regional do Trabalho, camisinhas para advogados e estagiários».
A distribuição, reza a notícia, «faz parte da campanha de prevenção à saúde dos advogados e estagiários que vão participar dos festejos carnavalescos».
Comentários? Ai se eu pudesse!

A Relação como tribunal de iniciativa

A ideia de que o Tribunal da Relação pode ser um tribunal de iniciativa está subjacente a este entendimento: «I – Num recurso de um despacho que, na sequência do 1.º interrogatório judicial de arguido detido, aplicou a prisão preventiva, em que o recorrente pede a substituição desta medida pela obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, o Tribunal da Relação pode, para a apreciação do mesmo, solicitar aos serviços de reinserção social a realização das diligências e a elaboração da informação prevista no n.º 5 do artigo 3.º da Lei n.º 122/99, de 20 de Agosto» [Acórdão da Relação de Lisboa de 11.02.09, proferido no processo n.º 11271/08 3ª Secção, relator Carlos Almeida]

O CITIUS sitiado

Uns dias depois de ter garantido a inexpugnabilidade da plataforma CITIUS o Ministério da Justiça mantém a paltaforma bloqueada durante um dia, surpreendendo os seus utilizadores. A dúvida quanto à segurança do sistema está instalada. Todos os que, nomeadamente nos tribunais, sabem como é possível a piratas informáticos imiscuirem-se nas mais sofisticadas redes e acederem a dados, modificando-os, como podem estar sossegados?
Não serão seguros os computadores do Pentágono, do sistema bancário? E, no entanto, quantos casos não soaram de intrusão ilegítima?
O CITIUS está sitiado de dúvidas quanto à sua segurança. Quando os juízes são os primeiros a estar inseguros...

A posse

Talvez o Direito e o que é se pressinta melhor dito pela voz dos que não são juristas, como o «executor fiscal, com dobradiças entre as palavras», no romance Finisterra. Mais do que qualquer livro de Direitos Reais está nele a percepção de como «foi preciso tempo (e sangue já se vê) para esclarecer a posse definitiva da terra», como «a propriedade (o seu ordenamento) obedece agora a regras imutáveis. No começo não. Há um século ou dois, oscilaram bastante. Direi mesmo: imitaram a natureza (dunas feitas, desfeitas, pelo vento)».
Eis aqui o Direito Natural: «as normas sedimentaram».

Procurações irrevogáveis

Fica-se com a ideia de que o espectro do terrorismo, da criminalidade organizada, da criminalidade financeira, do branqueamento de capitais, servem como chapéu de chuva legitimador de medidas estaduais que podem ter, logo na origem, outra finalidade ou que, numa certa medida, possam ser usadas para mais objectivos. Eis o que senti ao ler que o Decreto Regulamentar n.º 3/2009. D.R. n.º 23, Série I de 2009-02-03, ao regulamentar o artigo 1.º da Lei n.º 19/2008, de 21 de Abril, estrutura, no âmbito do Ministério da Justiça de uma base de dados de procurações irrevogáveis.
«A base de dados de procurações irrevogáveis visa dotar o Estado de mecanismos que permitam combater mais eficazmente fenómenos de corrupção associados à utilização de procurações irrevogáveis para transacções imobiliárias», diz o preâmbulo do diploma. Pois bem. Teria sido interessante o legislador explicar como. E sobretudo livrar-se da ideia de que há outro porquê.

Dissimulando o passado

De quando em vez faço um esforço para arrumar livros. Os que estão fora do lugar. Os que deviam estar mais à mão. Os de Direito Antigo, que se supõe fora de uso. Hoje veio-me à mão um encadernado, miscelânea de papéis vários. Um deles um opúsculo de José Homem Correa Telles, a Theoria da interpretação das leis. Escrito em parágrafos, como era do estilo, define-se ali [XXV]: «quando huma Lei perdoando o passado, inhibe de tormar conhecimento do abuso pretérito, intende-se prohibillo dahi em diante».
Ora aí está na História do pensar jurídico a conveniência privada elevada a razão de Estado: dissimula-se o passado mas continua a proibir-se para o futuro. Moral agraciante, moral punitiva. É a intemporalidade do favor.