Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Pôr em ordem os prazos ordenadores

Há contradições interessantes. Um Acórdão de 7 de Abril da Relação de Lisboa [relator Sérgio Corvacho] entende e bem que o prazo para a dedução de acusação em processo abreviado é peremptório. Pode ler-se o sumário aqui.
Consta da sumariada fundamentação:
«III. Afigura-se inequívoco que a mais recente Reforma do CPP veio reforçar drasticamente as características de simplicidade e celeridade da forma de processo abreviado. Face a uma reforma legislativa orientada nesse sentido, tornar-se-ia incompreensível que se tivesse passado a atribuir ao prazo a que se reporta o nº2 do artº 391º-B, do CPP, um carácter meramente ordenador. Se assim fosse, o único limite temporal verdadeiramente inultrapassável para deduzir acusação em processo abreviado residiria no prazo de prescrição do procedimento criminal.
IV. Impõe-se concluir que, mesmo depois da Reforma introduzida pela Lei nº 48/07, de 25/8, o prazo de dedução da acusação em processo abreviado continua a revestir natureza peremptória e a sua preterição faz precludir a tramitação do processo sob essa forma especial».
Ora sendo o processo penal, na sua generalidade, a materialização adjectiva de um regra de celeridade que é tida como uma garantia fundamental do processo criminal [vejam-se os pontos 1 e 2 do artigo 2º - norma sobre o sentido e extensão da Lei n.º 43/86, de 26.09, que autorizou o Governo a redigir um CPP, o de 1987], prevista no artigo 6º da CEDH, e estabelecendo o artigo 276º do CPP que há prazos «máximos» de inquérito - o que consta aliás duas vezes da epígrafe do artigo e do seu n.º 1- pergunto: que lógica há para se considerarem como meramente ordenadores os prazos para a dedução de acusação em processo comum e peremptórios os previstos para o processo abreviado?
É que há que esclarecer o porquê da dualidade, salvo tratando-se de uma diferenciação arbitrária e salvífica para a investigação morosa, baseada numa lógica jurídica que em ironia teria teor: não é só o impossível legislativo se tem de ter por não escrito, o judiciariamente difícil passa a não obrigatório.
É que em 26 de Janeiro de 2006 a Relação de Lisboa entendia [relator Cid Geraldo] que «IV- Os prazos referidos no artº 276º CPP (de encerramento do inquérito) são meramente ordenadores e não peremptórios - o que bem se compreende, dado não ser possível demarcar o tempo de uma investigação criminal».


O retorno do filho pródigo

Depois de algum tempo e pousio regressa este blog, como local de comentário jurídico. Surge ligado a um site profissional que se pode ver aqui.

O direito de punir

O que se aprende quando se olha para o mundo como se pela primeira vez. A escritora Clarice Lispector que cursou Direito em 1940, estando no segundo ano na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, escreveu este texto magnificamente diferente de todos os textos possíveis sobre um tema em que parecia não poder ser-se diferente: «Não há direito de punir. Há apenas o poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele, a guerra, grande crime, não é punida porque se acima dum homem há os homens acima dos homens nada mais há». Vem num livro de dispersos de juventude chamado Outros Escritos. Editou-os a Rocco em 2005.

O Direito em género

[intervenção efectuada num colóquio organizado pela Associação das Mulheres Juristas em Junho de 2008. Alguma timidez gerou hesitação em publicar o texto. Este e bastantes outros].
Houve tempo em que havia nas profissões jurídicas mais homens do que mulheres e em que o problema era garantir a estas acesso a uma zona da actividade social de que estavam afastadas. Esse tempo foi. Hoje são mulheres que ocupam maioritariamente funções em algumas das profissões jurídicas. Na advocacia o número de mulheres, se bem que não maioritário, já é expressivo, cerca de 50% do total. [continua aqui]

O Governo e o nojo

É pela migalha da esmola que se mede a pobreza. De acordo com uma informação oficial do Conselho de Ministros «o Governo aprovou ontem um decreto que consagra o direito dos advogados ao adiamento de actos processuais em que se preparem para intervir se estiverem em situação de maternidade, paternidade ou luto».
Claro que no mais a falta do advogado não é motivo de adiamento. Mesmo que esteja doente e impossibilitado de comparecer, nada se adia e o tribunal pode nomear um defensor oficioso, se estiver em causa um advogado de defesa.
A razão de isto ser assim já me foi explicada: é que se a lei admitisse adiar actos processuais por estarem doentes os advogados nenhum processo andava porque os advogados estariam sempre doentes. Ou seja, é pela pressuposição da falta de honorabilidade da classe que os advogados são assim tratados.
Generoso como sempre, o Governo, abre agora, sintomaticamente neste momento, a excepção a favor da procriação e do nojo. Quanto à maternidade não posso aproveitar, no que se refere à paternidade não tenho certezas, o mais certo são os lutos. Porque quanto à morte já estou avisado, ante este acórdão da Relação de Coimbra: «A notificação efectivamente expedida para o patrono da parte, ainda que comprovadamente após o falecimento desse patrono, é, todavia operante, face ao art.º 254, nº 4, ª parte do CPC. É que aí se estipula que "A notificação não deixa de produzir efeito pelo facto do expediente ser devolvido, desde que a remessa tenha sido feita para o escritório do mandatário ou domicílio por ele escolhido"». Ver toda a história aqui.

Habeas corpus: uma providência de via reduzida

Já não havia dúvidas, mas o presente Acórdão do STJ de 31.07.08 [Proc. n.º 2536/08 -3.ª Secção Armindo Monteiro, relator] veio clarificá-lo: «I -O processo de habeas corpus assume-se como de natureza residual, excepcional e de via reduzida: o seu âmbito restringe-se à apreciação da ilegalidade da prisão, por constatação, e só, dos fundamentos taxativamente enunciados no art. 222.º, n.º 2, do CPP. II -Reserva-se-lhe a teleologia de reacção contra a prisão ilegal, ordenada ou mantida de forma grosseira, abusiva, por chocante erro de declaração enunciativa dos seus pressupostos, estando fora do seu propósito assumir-se como um recurso dos recursos ou contra os recursos. III -É pacífico o entendimento por parte do STJ de que este Tribunal não pode substituir-se ao juiz que ordenou a prisão em termos de sindicar os seus motivos, com o que estaria a criar um novo grau de jurisdição (cf. Ac. do STJ de 10-10-1990, Proc. n.º 29/90 -3.ª)».

Acidente em trabalho?

Os tribunais estão de férias. É tempo de relaxar, podendo. Mão amiga fez-me chegar este acórdão. Sei que é antigo. Mas é favor ler até ao fim. Antes um breve intróito de explicação.
A velha Câmara Corporativa, que deveria ser o vértice do sistema político do regime anterior - assim ele fosse tecnicamente fascista - mas era, afinal, um areópago consultivo parlamentar do Estado Novo, foi chamada nos seus trabalhos legislativos para se decidir um problemático processo sobre acidente em trabalho.
Em causa estava a Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, por tratar-se de um recurso decidido em 2005 de um acidente ocorrido em 1999. Ora devido à controversa matéria, colocava-se um delicado problema de hermenêutica jurídica sobre o conceito de acidente em trabalho. Qual a conduta subsumível a tal previsão legal?
Como considerou o STJ no acórdão que estamos a acompanhar «para tomar posição sobre a questão em apreço, o tribunal da 1ª instância (e depois também o acórdão recorrido) apelou ao elemento histórico para captar o sentido da noção de acidente de trabalho, dada na Base V, nº 1, da citada Lei nº 2127, atendendo, concretamente, ao projecto de proposta de Lei nº 506/VIII; ao parecer da Câmara Corporativa nº 21/VIII; e à proposta governamental definitiva (Base V, nº 1)». Naturalmente.
Ora, continua o aresto «através destes textos, verifica-se que a noção de "acidente de trabalho" sofreu esta evolução: naquele projecto, considera-se acidente de trabalho todo o evento que se verifique no local e tempo de trabalho e que produza directa ou indirectamente lesão corporal .... (foca-se apenas o segmento que interessa); no parecer, é todo o evento que se verifique no local de trabalho, no tempo e em consequência do trabalho ....; na proposta governamental, é o evento que se verifique no local e tempo de trabalho, salvo quando a este inteiramente estranho...». Entende-se.
Daí que «a redacção definitiva da norma - base V, nº 1 (2) - consagrou a proposta governamental, retirando-lhe a expressão "salvo quando a este inteiramente estranho". A razão desta eliminação radicou no entendimento de que tratando-se dum elemento descaracterizador (do acidente) tinha assento noutro local». Seguramente
Em suma: «deste modo - escreve-se no acórdão recorrido -, atenta a letra da Base V, nº 1, da Lei nº 2127 e a mens legis actualista, é acidente de trabalho todo o infortúnio sofrido pelo trabalhador que se encontre no local de trabalho e durante o tempo de trabalho, ou seja sob a autoridade da entidade patronal, e que produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho».
Aqui chegados alcança-se a conclusão que o aresto eleva à categoria de sumário: «É de qualificar como de trabalho o acidente ocorrido durante o período normal de laboração, no local de trabalho, quando o autor procedia à limpeza de máquinas e foi provocado por um colega de trabalho, que no momento procedia também a serviços de limpeza, utilizando para o efeito uma mangueira de ar comprimido que, por brincadeira, encostou ao ânus do autor quando este se encontrava dobrado sobre si a apanhar uma peça do chão para arrumar, injectando quantidade indeterminada de ar». Tudo aqui.

Transporte de gado

Uma reportagem de uma estação de TV mostrou que os militares da GNR que fazem patrulha usando para tal um carro celular - porque a miséria de meios nega-lhes outra possibilidade quando o veículo de serviço avaria - são transportados às escuras, sem cinto de segurança e num interior em que a temperatura se pode tornar insuportável. O que ninguém reparou é que é precisamente nestas condições que os presos são transportados em Portugal. Como gado. Escrevo isto e sinto que aqui há algum tempo muitos achariam isso reprovável. Agora com a ambiência de aumento da insegurança, haverá bastantes que até acham bem.

Experientes e superiores

Estou de acordo com a ideia de que haja um mínimo de anos para se advogar nos tribunais superiores. Era assim quando comecei a minha vida profissional. Como todas as ideias válidas ela pode esconder, porém, outra menos própria. A ideia de restringir o acesso à advocacia nos tribunais superiores a quem tenha já uma certa experiência assenta no pressuposto segundo o qual os recursos exigem uma técnica que não está ao alcance de todos. Quer isto dizer a prevalência do tecnicismo jurídico sobre a substância jurídica? Se assim for, algo está mal, porque a justiça é mais o conteúdo menos a forma.
Na lógica inversa quererá isto dizer que para advogar na primeira instância, onde quantas vezes o destino do caso se compromete, qualquer inexperiência serve, já para não impacientar as outras instâncias nem as saturar de casos inviáveis urge restringir aos mais experientes? A ser assim, algo está profundamente mal porque a justiça exige meios onde pode surgir a injutsiça.
Claro que não podem nascer todos a saber logo tudo. Mas desde que a ideia não seja o «tirem-me daqui estes que são tão fracos, a primeira instância que os ature» aceita-se o princípio. É que se for assim, aí está a formação que os advogados recebem totalmente em causa. E essa é talvez a grande questão.

Reabertura de audiência e mesmo juiz

Qual a finalidade e o âmbito da audiência reaberta nos termos do artigo 371º-A do CPP, eis uma questão que tem vindo a suscitar ainda algumas dúvidas, se bem que as mais ásperas hesitações, quanto à constitucionalidade da previsão, tenham passado para a discrição dos debates puramente jurisprudenciais.
Interessante por isso este Acórdão da Relação de Lisboa, tirado em 12 de Março [Proc. 11995/04.5TDLSB-B.L1 9ª Secção, relator João Carrola]: «I - Nos termos conjuntos do artºs 40º e 371º-A do CPP, não existe qualquer impedimento legal a que o juiz que presidiu ao julgamento anterior participe e integre o julgamento requerido pelo arguido, após a condenação respectiva transitada e para os efeitos do último normativo. II – Com efeito, a audiência realizada nos termos e para os efeitos do artº 3171º- A do CPP – que nem se destina a todos os condenados - tem finalidade muito específica; assegurando o contraditório, visa somente determinar uma nova pena que se mostre, em concreto, mais favorável face a nova lei. III – Acresce que a audiência realizada nos termos do citado artigo do compêndio do processo penal já não consente nova discussão sobre a culpabilidade; por isso deve entender-se que ela consubstancia uma “questão exclusivamente normativa”».
O problema que fica por resolver quanto ao primeiro ponto não é o saber se nada impede que seja o juiz que julgou a participar na continuação do julgamento, sim o de determinar se não terá de ser obrigatoriamente o mesmo. É que se a ideia de reabrir uma audiência para continuar com outro juiz já belisca a sensibilidade jurídica, imaginar que o juiz que decreta, por exemplo, a suspensão da pena em reabertura de audiência possa ser outro que não o que julgou e sentenciou primitivamente - sendo certo que a suspensão faz apelo a critérios que não terão de ser puramente normativos mas sim de constatação e valoração de factos e de características de personalidade só captáveis por quem sentiu o julgamento - isso sim pode causar alguma estranheza. A mesma audiência o mesmo juiz, isso sim, parece fazer sentido. Claro que, primeiro estranha-se...