Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Distinguir e não extinguir

O juiz Dr. António Martins perdeu a cabeça e com isso perdeu a razão. Confundiu a insignificante parte com o imenso todo e sugeriu que a Ordem dos Advogados pudesse ser extinta. Foi uma emocional retorsão contra quem clamava que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses deve ser extinta.
Ora um juiz não deve ter emoções. Cabe-lhe agora ter o gesto razoável de se explicar e dar à classe dos advogados a palavra de respeito a que esta tem direito. Nem os juízes querem que acabe a Ordem dos Advogados nem os Advogados querem que acabe a Associação Sindical dos Juizes Portugueses. Há quem diga coisas sobre isso em momentos de ira. É diferente. E na percepção da diferença está a única forma que ainda temos de não arrastarmos a Justiça para o caos, agora que o País vai a pique.

P. S. Sou também Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados. Não foi o titular desse cargo quem escreveu isto, pois nem teria legitimidade para tal. Sou eu, porque Portugal ainda é um País livre.

Férias e equiparadas

O legislador quando escreve normas devia pensar na totalidade dos que terão de as aplicar e não apenas naqueles outros em que está a pensar no momento ou na lei que faz parte do seu quadro mental de referência.
Carregado de má consciência, o autor do Decreto-Lei n.º 35/2010, de 1 de Abril - até pela numeração do diploma se vê como o Governo está imobilizado num país em que governar é legislar - resolveu proceder à «harmonização das férias funcionais dos diversos intervenientes processuais». Isto porque desde que amputou os supostos dois meses de férias forenses tem encontrado pela frente primeiro a revolta e depois a resistência passiva.
Só que o normativo em causa dá que pensar. Logo por uma lógica que mantém. Imagino mal, vestindo a pele de magistrado, que não se pratiquem actos processuais «nos dias em que os tribunais estiverem encerrados», fórmula infeliz que se tem mantido e que a prática aos fins-de-semana e feriados de muitos actos processuais, da autoria de magistrados que os firmam como forma de terem o serviço em dia, desmente.  
Penso que subjacente a esta fórmula, que não foi alterada e vem do transacto, está a noção da funcionalização do magistrado sujeito, qual amanuense, à regra dos dias úteis de abertura e fecho da repartição como calendário único de função.
Além disso, sempre fica a dúvida quanto à valia jurídica de actos praticados em dia em que não é permitida a sua prática. É que uma coisa é o dia da prática do acto outra a da exteriorização do acto. A notificação ordenada num processo a um domingo seá inválida ou inválida será apenas se efectivada a um domingo? Ou supõe o legislador que o autor do acto adultere, falsificando-a, a data de prática efectiva do acto?
O sentido essencial da reforma é, no entanto conceder um período de defeso de um mês e meio para que se não pratiquem actos processuais, pois eles não ocorrem «durante as férias judiciais» e «durante o período compreendido ente 15 e 31 de Julho», período relativamente ao qual o legislador disse que se lhe atribuía «os mesmos efeitos previstos legalmente para as férias judiciais». Dicotomia esta que traduz no seu bojo a ideia de que para além das férias de um mês há mais quinze dias equiparados a férias, velho modo de entrar pela janela o que não cabe pela porta.
Prevalecendo-se do ensejo o Bastonário da Ordem dos Advogados veio dizer em comunicado à classe: «a segunda quinzena de Julho era um período em que os Advogados eram obrigados a cumprir prazos judiciais, embora os tribunais estivessem de facto em férias judiciais por decisão contra legem dos magistrados».
Pena finalmente que o legislador não se tenha lembrado que não há só o processo civil, sobre o qual legislou, mas muitos outros processos, do penal ao administrativo e tantos mais, relativamente aos quais o CPC é aplicável como norma subsidiária, havendo sempre interpretações jurisprudenciais divergentes quanto a saber quais os limites dessa subsidiariedade.
Teria sido assim mais fácil redigir uma norma que abrangesse as várias modalidade de processos ou pelo menos dissesse de modo claro que a todos se aplicava.
Um pormenor de técnica legislativa. A alínea b) do n.º 5 do artigo 144º do CPC saíu assim na folha oficial: b) Quando se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes, salvo se por despacho fundamentado, ouvidas as partes, o juiz a determine.». Assim mesmo como uma aspa, como se o legislador citasse algo. Fim de citação!

Pôr em ordem os prazos ordenadores

Há contradições interessantes. Um Acórdão de 7 de Abril da Relação de Lisboa [relator Sérgio Corvacho] entende e bem que o prazo para a dedução de acusação em processo abreviado é peremptório. Pode ler-se o sumário aqui.
Consta da sumariada fundamentação:
«III. Afigura-se inequívoco que a mais recente Reforma do CPP veio reforçar drasticamente as características de simplicidade e celeridade da forma de processo abreviado. Face a uma reforma legislativa orientada nesse sentido, tornar-se-ia incompreensível que se tivesse passado a atribuir ao prazo a que se reporta o nº2 do artº 391º-B, do CPP, um carácter meramente ordenador. Se assim fosse, o único limite temporal verdadeiramente inultrapassável para deduzir acusação em processo abreviado residiria no prazo de prescrição do procedimento criminal.
IV. Impõe-se concluir que, mesmo depois da Reforma introduzida pela Lei nº 48/07, de 25/8, o prazo de dedução da acusação em processo abreviado continua a revestir natureza peremptória e a sua preterição faz precludir a tramitação do processo sob essa forma especial».
Ora sendo o processo penal, na sua generalidade, a materialização adjectiva de um regra de celeridade que é tida como uma garantia fundamental do processo criminal [vejam-se os pontos 1 e 2 do artigo 2º - norma sobre o sentido e extensão da Lei n.º 43/86, de 26.09, que autorizou o Governo a redigir um CPP, o de 1987], prevista no artigo 6º da CEDH, e estabelecendo o artigo 276º do CPP que há prazos «máximos» de inquérito - o que consta aliás duas vezes da epígrafe do artigo e do seu n.º 1- pergunto: que lógica há para se considerarem como meramente ordenadores os prazos para a dedução de acusação em processo comum e peremptórios os previstos para o processo abreviado?
É que há que esclarecer o porquê da dualidade, salvo tratando-se de uma diferenciação arbitrária e salvífica para a investigação morosa, baseada numa lógica jurídica que em ironia teria teor: não é só o impossível legislativo se tem de ter por não escrito, o judiciariamente difícil passa a não obrigatório.
É que em 26 de Janeiro de 2006 a Relação de Lisboa entendia [relator Cid Geraldo] que «IV- Os prazos referidos no artº 276º CPP (de encerramento do inquérito) são meramente ordenadores e não peremptórios - o que bem se compreende, dado não ser possível demarcar o tempo de uma investigação criminal».


O retorno do filho pródigo

Depois de algum tempo e pousio regressa este blog, como local de comentário jurídico. Surge ligado a um site profissional que se pode ver aqui.

O direito de punir

O que se aprende quando se olha para o mundo como se pela primeira vez. A escritora Clarice Lispector que cursou Direito em 1940, estando no segundo ano na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, escreveu este texto magnificamente diferente de todos os textos possíveis sobre um tema em que parecia não poder ser-se diferente: «Não há direito de punir. Há apenas o poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele, a guerra, grande crime, não é punida porque se acima dum homem há os homens acima dos homens nada mais há». Vem num livro de dispersos de juventude chamado Outros Escritos. Editou-os a Rocco em 2005.

O Direito em género

[intervenção efectuada num colóquio organizado pela Associação das Mulheres Juristas em Junho de 2008. Alguma timidez gerou hesitação em publicar o texto. Este e bastantes outros].
Houve tempo em que havia nas profissões jurídicas mais homens do que mulheres e em que o problema era garantir a estas acesso a uma zona da actividade social de que estavam afastadas. Esse tempo foi. Hoje são mulheres que ocupam maioritariamente funções em algumas das profissões jurídicas. Na advocacia o número de mulheres, se bem que não maioritário, já é expressivo, cerca de 50% do total. [continua aqui]

O Governo e o nojo

É pela migalha da esmola que se mede a pobreza. De acordo com uma informação oficial do Conselho de Ministros «o Governo aprovou ontem um decreto que consagra o direito dos advogados ao adiamento de actos processuais em que se preparem para intervir se estiverem em situação de maternidade, paternidade ou luto».
Claro que no mais a falta do advogado não é motivo de adiamento. Mesmo que esteja doente e impossibilitado de comparecer, nada se adia e o tribunal pode nomear um defensor oficioso, se estiver em causa um advogado de defesa.
A razão de isto ser assim já me foi explicada: é que se a lei admitisse adiar actos processuais por estarem doentes os advogados nenhum processo andava porque os advogados estariam sempre doentes. Ou seja, é pela pressuposição da falta de honorabilidade da classe que os advogados são assim tratados.
Generoso como sempre, o Governo, abre agora, sintomaticamente neste momento, a excepção a favor da procriação e do nojo. Quanto à maternidade não posso aproveitar, no que se refere à paternidade não tenho certezas, o mais certo são os lutos. Porque quanto à morte já estou avisado, ante este acórdão da Relação de Coimbra: «A notificação efectivamente expedida para o patrono da parte, ainda que comprovadamente após o falecimento desse patrono, é, todavia operante, face ao art.º 254, nº 4, ª parte do CPC. É que aí se estipula que "A notificação não deixa de produzir efeito pelo facto do expediente ser devolvido, desde que a remessa tenha sido feita para o escritório do mandatário ou domicílio por ele escolhido"». Ver toda a história aqui.

Habeas corpus: uma providência de via reduzida

Já não havia dúvidas, mas o presente Acórdão do STJ de 31.07.08 [Proc. n.º 2536/08 -3.ª Secção Armindo Monteiro, relator] veio clarificá-lo: «I -O processo de habeas corpus assume-se como de natureza residual, excepcional e de via reduzida: o seu âmbito restringe-se à apreciação da ilegalidade da prisão, por constatação, e só, dos fundamentos taxativamente enunciados no art. 222.º, n.º 2, do CPP. II -Reserva-se-lhe a teleologia de reacção contra a prisão ilegal, ordenada ou mantida de forma grosseira, abusiva, por chocante erro de declaração enunciativa dos seus pressupostos, estando fora do seu propósito assumir-se como um recurso dos recursos ou contra os recursos. III -É pacífico o entendimento por parte do STJ de que este Tribunal não pode substituir-se ao juiz que ordenou a prisão em termos de sindicar os seus motivos, com o que estaria a criar um novo grau de jurisdição (cf. Ac. do STJ de 10-10-1990, Proc. n.º 29/90 -3.ª)».

Acidente em trabalho?

Os tribunais estão de férias. É tempo de relaxar, podendo. Mão amiga fez-me chegar este acórdão. Sei que é antigo. Mas é favor ler até ao fim. Antes um breve intróito de explicação.
A velha Câmara Corporativa, que deveria ser o vértice do sistema político do regime anterior - assim ele fosse tecnicamente fascista - mas era, afinal, um areópago consultivo parlamentar do Estado Novo, foi chamada nos seus trabalhos legislativos para se decidir um problemático processo sobre acidente em trabalho.
Em causa estava a Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, por tratar-se de um recurso decidido em 2005 de um acidente ocorrido em 1999. Ora devido à controversa matéria, colocava-se um delicado problema de hermenêutica jurídica sobre o conceito de acidente em trabalho. Qual a conduta subsumível a tal previsão legal?
Como considerou o STJ no acórdão que estamos a acompanhar «para tomar posição sobre a questão em apreço, o tribunal da 1ª instância (e depois também o acórdão recorrido) apelou ao elemento histórico para captar o sentido da noção de acidente de trabalho, dada na Base V, nº 1, da citada Lei nº 2127, atendendo, concretamente, ao projecto de proposta de Lei nº 506/VIII; ao parecer da Câmara Corporativa nº 21/VIII; e à proposta governamental definitiva (Base V, nº 1)». Naturalmente.
Ora, continua o aresto «através destes textos, verifica-se que a noção de "acidente de trabalho" sofreu esta evolução: naquele projecto, considera-se acidente de trabalho todo o evento que se verifique no local e tempo de trabalho e que produza directa ou indirectamente lesão corporal .... (foca-se apenas o segmento que interessa); no parecer, é todo o evento que se verifique no local de trabalho, no tempo e em consequência do trabalho ....; na proposta governamental, é o evento que se verifique no local e tempo de trabalho, salvo quando a este inteiramente estranho...». Entende-se.
Daí que «a redacção definitiva da norma - base V, nº 1 (2) - consagrou a proposta governamental, retirando-lhe a expressão "salvo quando a este inteiramente estranho". A razão desta eliminação radicou no entendimento de que tratando-se dum elemento descaracterizador (do acidente) tinha assento noutro local». Seguramente
Em suma: «deste modo - escreve-se no acórdão recorrido -, atenta a letra da Base V, nº 1, da Lei nº 2127 e a mens legis actualista, é acidente de trabalho todo o infortúnio sofrido pelo trabalhador que se encontre no local de trabalho e durante o tempo de trabalho, ou seja sob a autoridade da entidade patronal, e que produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho».
Aqui chegados alcança-se a conclusão que o aresto eleva à categoria de sumário: «É de qualificar como de trabalho o acidente ocorrido durante o período normal de laboração, no local de trabalho, quando o autor procedia à limpeza de máquinas e foi provocado por um colega de trabalho, que no momento procedia também a serviços de limpeza, utilizando para o efeito uma mangueira de ar comprimido que, por brincadeira, encostou ao ânus do autor quando este se encontrava dobrado sobre si a apanhar uma peça do chão para arrumar, injectando quantidade indeterminada de ar». Tudo aqui.

Transporte de gado

Uma reportagem de uma estação de TV mostrou que os militares da GNR que fazem patrulha usando para tal um carro celular - porque a miséria de meios nega-lhes outra possibilidade quando o veículo de serviço avaria - são transportados às escuras, sem cinto de segurança e num interior em que a temperatura se pode tornar insuportável. O que ninguém reparou é que é precisamente nestas condições que os presos são transportados em Portugal. Como gado. Escrevo isto e sinto que aqui há algum tempo muitos achariam isso reprovável. Agora com a ambiência de aumento da insegurança, haverá bastantes que até acham bem.

Experientes e superiores

Estou de acordo com a ideia de que haja um mínimo de anos para se advogar nos tribunais superiores. Era assim quando comecei a minha vida profissional. Como todas as ideias válidas ela pode esconder, porém, outra menos própria. A ideia de restringir o acesso à advocacia nos tribunais superiores a quem tenha já uma certa experiência assenta no pressuposto segundo o qual os recursos exigem uma técnica que não está ao alcance de todos. Quer isto dizer a prevalência do tecnicismo jurídico sobre a substância jurídica? Se assim for, algo está mal, porque a justiça é mais o conteúdo menos a forma.
Na lógica inversa quererá isto dizer que para advogar na primeira instância, onde quantas vezes o destino do caso se compromete, qualquer inexperiência serve, já para não impacientar as outras instâncias nem as saturar de casos inviáveis urge restringir aos mais experientes? A ser assim, algo está profundamente mal porque a justiça exige meios onde pode surgir a injutsiça.
Claro que não podem nascer todos a saber logo tudo. Mas desde que a ideia não seja o «tirem-me daqui estes que são tão fracos, a primeira instância que os ature» aceita-se o princípio. É que se for assim, aí está a formação que os advogados recebem totalmente em causa. E essa é talvez a grande questão.

Reabertura de audiência e mesmo juiz

Qual a finalidade e o âmbito da audiência reaberta nos termos do artigo 371º-A do CPP, eis uma questão que tem vindo a suscitar ainda algumas dúvidas, se bem que as mais ásperas hesitações, quanto à constitucionalidade da previsão, tenham passado para a discrição dos debates puramente jurisprudenciais.
Interessante por isso este Acórdão da Relação de Lisboa, tirado em 12 de Março [Proc. 11995/04.5TDLSB-B.L1 9ª Secção, relator João Carrola]: «I - Nos termos conjuntos do artºs 40º e 371º-A do CPP, não existe qualquer impedimento legal a que o juiz que presidiu ao julgamento anterior participe e integre o julgamento requerido pelo arguido, após a condenação respectiva transitada e para os efeitos do último normativo. II – Com efeito, a audiência realizada nos termos e para os efeitos do artº 3171º- A do CPP – que nem se destina a todos os condenados - tem finalidade muito específica; assegurando o contraditório, visa somente determinar uma nova pena que se mostre, em concreto, mais favorável face a nova lei. III – Acresce que a audiência realizada nos termos do citado artigo do compêndio do processo penal já não consente nova discussão sobre a culpabilidade; por isso deve entender-se que ela consubstancia uma “questão exclusivamente normativa”».
O problema que fica por resolver quanto ao primeiro ponto não é o saber se nada impede que seja o juiz que julgou a participar na continuação do julgamento, sim o de determinar se não terá de ser obrigatoriamente o mesmo. É que se a ideia de reabrir uma audiência para continuar com outro juiz já belisca a sensibilidade jurídica, imaginar que o juiz que decreta, por exemplo, a suspensão da pena em reabertura de audiência possa ser outro que não o que julgou e sentenciou primitivamente - sendo certo que a suspensão faz apelo a critérios que não terão de ser puramente normativos mas sim de constatação e valoração de factos e de características de personalidade só captáveis por quem sentiu o julgamento - isso sim pode causar alguma estranheza. A mesma audiência o mesmo juiz, isso sim, parece fazer sentido. Claro que, primeiro estranha-se...

Notificação da revogação da suspensão da pena

A Justiça Penal tem vivido um dilema entre as tentações do máximo de simplificação e aceleração e a obrigação de garantir um mínimo de segurança e respeitar um mínimo de direitos.
Vistas as coisas sob um outro ângulo a tentação poderia ser entre garantir o máximo de segurança e direitos e o mínimo de celeridade e simplismo. Mas creio que é como disse.
A questão das presunções de notificação e de notificações via postal nasce aqui. Munidos do chamado «novo TIR» os serviços de justiça julgam-se habilitados a poupar aos cofres do Estado a despesa do aviso de recepção e a confiarem na simples carta a comunicação dos seus actos, mesmo os de maior responsabilidade. A regra de desconsideração de cidadania é «não está, estivesse».
Surgem, pois, como oásis de respeito acórdãos como este da Relação de Lisboa de 19.02.09 [proferido no processo n.º 8016/04.1TDLSB-A.L1, da 9ª Secção, relator Trigo Mesquita], quando estatuem que «(...) a decisão que revoga a suspensão da execução da pena aplicada tem de ser notificada pessoalmente ao arguido, não sendo válida nem admissível a notificação que lhe for feita, por via postal simples e para a morada que ele indicara no TIR, pois que esta já não é meio legal que assegure a cognoscibilidade do acto, designadamente quando ele encerra uma alteração de relevo – in pejus – da sentença condenatória e tem como efeito a privação da liberdade do notificando».

Ai se eu pudesse!

Ora vejam a diferença. Lê-se na imprensa brasileira sob o título «Sexo no Carnaval só com camisinha»: «Funcionários da Caixa dos Advogados da Ordem dos Advogados do Brasil em Mato Grosso começam a distribuir, a partir de hoje, 19, nas salas da OAB no Fórum de Cuiabá e no Tribunal Regional do Trabalho, camisinhas para advogados e estagiários».
A distribuição, reza a notícia, «faz parte da campanha de prevenção à saúde dos advogados e estagiários que vão participar dos festejos carnavalescos».
Comentários? Ai se eu pudesse!

A Relação como tribunal de iniciativa

A ideia de que o Tribunal da Relação pode ser um tribunal de iniciativa está subjacente a este entendimento: «I – Num recurso de um despacho que, na sequência do 1.º interrogatório judicial de arguido detido, aplicou a prisão preventiva, em que o recorrente pede a substituição desta medida pela obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, o Tribunal da Relação pode, para a apreciação do mesmo, solicitar aos serviços de reinserção social a realização das diligências e a elaboração da informação prevista no n.º 5 do artigo 3.º da Lei n.º 122/99, de 20 de Agosto» [Acórdão da Relação de Lisboa de 11.02.09, proferido no processo n.º 11271/08 3ª Secção, relator Carlos Almeida]

O CITIUS sitiado

Uns dias depois de ter garantido a inexpugnabilidade da plataforma CITIUS o Ministério da Justiça mantém a paltaforma bloqueada durante um dia, surpreendendo os seus utilizadores. A dúvida quanto à segurança do sistema está instalada. Todos os que, nomeadamente nos tribunais, sabem como é possível a piratas informáticos imiscuirem-se nas mais sofisticadas redes e acederem a dados, modificando-os, como podem estar sossegados?
Não serão seguros os computadores do Pentágono, do sistema bancário? E, no entanto, quantos casos não soaram de intrusão ilegítima?
O CITIUS está sitiado de dúvidas quanto à sua segurança. Quando os juízes são os primeiros a estar inseguros...

A posse

Talvez o Direito e o que é se pressinta melhor dito pela voz dos que não são juristas, como o «executor fiscal, com dobradiças entre as palavras», no romance Finisterra. Mais do que qualquer livro de Direitos Reais está nele a percepção de como «foi preciso tempo (e sangue já se vê) para esclarecer a posse definitiva da terra», como «a propriedade (o seu ordenamento) obedece agora a regras imutáveis. No começo não. Há um século ou dois, oscilaram bastante. Direi mesmo: imitaram a natureza (dunas feitas, desfeitas, pelo vento)».
Eis aqui o Direito Natural: «as normas sedimentaram».

Procurações irrevogáveis

Fica-se com a ideia de que o espectro do terrorismo, da criminalidade organizada, da criminalidade financeira, do branqueamento de capitais, servem como chapéu de chuva legitimador de medidas estaduais que podem ter, logo na origem, outra finalidade ou que, numa certa medida, possam ser usadas para mais objectivos. Eis o que senti ao ler que o Decreto Regulamentar n.º 3/2009. D.R. n.º 23, Série I de 2009-02-03, ao regulamentar o artigo 1.º da Lei n.º 19/2008, de 21 de Abril, estrutura, no âmbito do Ministério da Justiça de uma base de dados de procurações irrevogáveis.
«A base de dados de procurações irrevogáveis visa dotar o Estado de mecanismos que permitam combater mais eficazmente fenómenos de corrupção associados à utilização de procurações irrevogáveis para transacções imobiliárias», diz o preâmbulo do diploma. Pois bem. Teria sido interessante o legislador explicar como. E sobretudo livrar-se da ideia de que há outro porquê.

Dissimulando o passado

De quando em vez faço um esforço para arrumar livros. Os que estão fora do lugar. Os que deviam estar mais à mão. Os de Direito Antigo, que se supõe fora de uso. Hoje veio-me à mão um encadernado, miscelânea de papéis vários. Um deles um opúsculo de José Homem Correa Telles, a Theoria da interpretação das leis. Escrito em parágrafos, como era do estilo, define-se ali [XXV]: «quando huma Lei perdoando o passado, inhibe de tormar conhecimento do abuso pretérito, intende-se prohibillo dahi em diante».
Ora aí está na História do pensar jurídico a conveniência privada elevada a razão de Estado: dissimula-se o passado mas continua a proibir-se para o futuro. Moral agraciante, moral punitiva. É a intemporalidade do favor.

Leitura de sentença

Uma das particularidades notáveis do Direito é a sua incapacidade de prever aquilo que a irrequieta imaginação humana concebe. É o chamado Direito do aquém. Foi com este sentimento que li este sumário de um Acórdão da Relação de Lisboa de 22 de Janeiro do corrente [Processo n.º 8925/08 9ª Secção, relator Eduardo Martins]: «I - A falta de leitura da sentença, na medida em que é com ela que se concretiza a sua publicitação obrigatória, constitui nulidade. II - Não pode, por isso, o juiz dispensar a leitura pública da sentença, em audiência, substituindo o acto pelo depósito na secretaria. III - Com efeito, a exigência da publicidade, pretendida com a leitura da sentença traduz a ideia do legislador de sujeição ao escrutínio público a aplicação da justiça. IV - O respeito pelo princípio da publicidade não se cumpre por mero simbolismo, solenidade ou tradição, mas tem antes finalidades específicas na realização da justiça e um contributo incontornável no estabelecimento da paz social. V - Decorre, com efeito, dos arts.365º., nº.1, 372º. e 373º. do C.P.P. que a sentença deve ser lida publicamente, sendo obrigatória, sob pena de nulidade insanável, a leitura de uma súmula da fundamentação e do dispositivo».
E note-se. A lei, em matéria de leitura de leitura de sentença, pelos vistos, segundo este entendimento, já se contenta com uma «súmula da fundamentação e do dispositivo. Pois, pelos vistos, às vezes, sucede que nem isso se lê.

Autonomia do MP:um risco grave

O Ministério Público tem um problema de autonomia interna e um problema de autonomia externa: o primeiro é o de liberdade [limitada] de actuação de cada magistrado face à sua hierarquia; o segundo o da liberdade [total] de acção face ao exterior, nomeadamente ao poder político.
Ambos os problemas estão resolvidos por garantias legais, consagradas em lei, com protecção constitucional.
A propósito da alteração do novo Estatuto percebeu-se que está em causa a primeira questão. Diz o editorial do Sindicato do MP: «O que está realmente em causa são as enormes possibilidades abertas com este «novo estatuto» de se poder escamotear a origem e a responsabilidade da orientação processual concreta do Ministério Público. Isto, sem que os outros sujeitos processuais ou os órgãos e instituições que o devem sindicar se apercebam de onde vêm as directivas, as ordens e as instruções dirigidas aos processos e quem realmente comanda uma investigação, em que sentido o faz e com que intenções».
Não há quem não se sensibilize ante o argumento.
O problema é quando se passa de um registo a outros. E nisso o comunicado que o mesmo Sindicato difundiu abre a porta ao equívoco.
Primeiro, quando nele se afirma que esse sistema de opacidade na condução dos processos pode acobertar a condução dos mesmos segundo critérios que já não são os da objectividade e legalidade, mas sim de acordo com «sugestões vindas de cima».
Uma afirmação destas pode ser lida como contendo o gérmen da desconfiança sobre quem são, afinal, os responsáveis pelo MP? Não pode, sob pena de estar instalada uma grave crise de confiança sobre quem se pressupõe ser um guardião do Estado de Direito. Magistrados capazes disto, de darem ordens e se conformarem a ordens desta natureza não podem ser magistrados.
Segundo, quando se conclui que, a ser assim, falece «o fundamento constitucional que permitiu atribuir ao Ministério Público a direcção do inquérito; não poderá mais ser o Ministério Público a dirigir a investigação e a decidir quem vai ou não ser acusado ou julgado, sob pena de afectar uma das garantias da independência dos tribunais».
Uma afirmação destas pode ser lida como abdicando desde já o MP pela luta em prol da subsistência da condução do inquérito, que tem sido um dos pilares da sua arquitectura constitucional? Não pode, sob pena de o poder político, que tem grandes hipóteses de transformar em lei este novo Estatuto, pegar nas palavras de abdicação do Sindicato e virá-las contra o Ministério Público, confiando o inquérito criminal a juízes ou.. a polícias.
Palavras perigosas, ideias vagas, riscos graves.

Regresso

Este blog esteve inactivo por várias razões. Talvez não venham ao caso.
Aos que tiveram a gentileza de o visitarem, na esperança defraudada de nele encontrarem actualizações, os meus agradecimentos.
Aos que com generosidade o mantiveram linkado nos seus blogs, obrigado também.
Regresso hoje à comunidade jurídica que se exprime no ciber-espaço, com a sensação de retornar vindo das entranhas da terra.

Às armas!

O inserirem-se onde normas sobre prisão preventiva relativamente a crimes envolvendo armas ou com armas praticados foi questão que ontem suscitou grande atenção parlamentar. Ganharam os avulsistas, ou seja os que acham que o melhor lugar para se tratar de mandar prender os armados é na lei que lhes diz respeito.
Ante isso, para uns passará a haver dois Códigos de Processos Penal, um à mão armada outro o da geral.
O que nem todos se terão lembrado é que esta consagração de uma norma comum - sobre a prisão preventiva - num diploma atinente a uma situação especial - regulador de armas - consagrando uma regulamentação excepcional - a liberdade passa de regra a excepção - não é uma questão de sistemática, sim uma questão de política.
Pois algum dos senhores legisladores se tem incomodado com o facto de haver diplomas legais onde, a propósito ou a despropósito, se alteram, em disposições finais, leis e decretos-leis e Códigos e tudo quantas vezes em relação a diplomas legais que tinham sido alterado há pouco tempo, aumentando a confusão, gerando o caos, potenciando a insegurança, desdentando e desfeando o chamado ironicamente sistema jurídico, tornando-o tudo menos um sistema?
Do que se trata não é de tratar da ordem, sim de manter o caos. Mas do que verdadeiramente se trata é de começar, decreto a decreto, hoje por causa das armas, amanhã por causa de outra situação mediática eleitoralmente apetecível, a desfazer o que se fez no Código de Processo Penal quando se consagrou um sistema que parecia ser um farol de liberalismo penal.
Trata-se de trocar um princípio por uma conveniência. É por isso que tudo isto é feito pelo Ministro da Administração Interna, retirando-se o da Justiça para trás de cortina, como se fingisse não ser com ele. E se calhar não é!
Em Portugal há uma regra antiga, espécie de Lei da Boa Razão na arte de legislar: as proclamações amáveis e liberais vão para as Constituições e para os grandes Códigos, os tratos de polé, caceteiros e carcerários, esses dão-se nos curros da legislação extravagante. Há sempre uma portaria por cada vergastada, um Código a dizer que é uma vez sem exemplo.

A sentença debaixo do braço

De repente uma alteração na cultura judiciária. Os tribunais julgam-se e condenam-se. Ou melhor condenam os contribuintes a pagar pelo que consideram erros na justiça.
Da condenação pecuniária passa-se à condenação moral: «é passível da maior censura o facto de o acórdão ter sido lido e disponibilizado, logo após as alegações orais; este facto permite tolerar a alegação do recorrente, segundo a qual, afinal, “a sentença ia debaixo do braço”». Lê-se no sumário do Acórdão da Relação de Lisboa de 11.09.08 [proferido no processo n.º 6888/08 9ª Secção, relator Almeida Cabral].
Veremos se quando se passar da responsabilização subrogada do Estado para a responsabilização pessoal dos autores das decisões a mesma lógica se mantém.
No caso tratava-se de uma reabertura de audiência, ao abrigo do artigo 371º-A do CPP na qual o tribunal indeferiu a produção de prova. A Relação declarou inexistente a audiência em causa. Exactamente: não irregular, não nula, inexistente! Houve tempos em que, sendo todas as ilegalidades, mesmo as mais gritantes, meras irregularidades já sanadas, a inexistência era um vício processual inexistente. Algo está a mudar. Resta saber porquê.

Um novo poder para o Tribunal de Contas

O CPC, que até aqui era o Código de Processo Civil, passou a ser a sigla para o Conselho de Prevenção da Corrupção.
Entre as suas atribuições está «recolher e organizar informações relativas à prevenção da ocorrência de factos de corrupção activa ou passiva, de criminalidade económica e financeira, de branqueamento de capitais, de tráfico de influência, de apropriação ilegítima de bens públicos, de administração danosa, de peculato, de participação económica em negócio, de abuso de poder ou violação de dever de segredo, bem como de aquisições de imóveis ou valores mobiliários em conse-quência da obtenção ou utilização ilícitas de informação privilegiada no exercício de funções na Administração Pública ou no sector público empresarial».
Ante tanta entidade a recolher «informações» e umas tantas outras a fazer «investigação criminal», urge perguntar: quais informações?
«Sem prejuízo do segredo de justiça, devem ser remetidas ao CPC cópias de todas as participações ou denúncias, decisões de arquivamento, de acusação, de pronúncia ou de não pronúncia, sentenças absolutórias ou condenatórias respeitantes a factos que tenham a ver com os crimes acima enunciados», reza a Lei n.º 54/2008, de 4 de Setembro, que aprova a nóvel entidade.
Além disso, segundo a mesma Lei, «as entidades públicas, organismos, serviços e agentes da administração central, regional e local, bem como as entidades do sector público empresarial, devem prestar colaboração ao CPC, facultando-lhe, oralmente ou por escrito, as informações que lhes forem por este solicitadas, no domínio das suas atribuições e competências», pois que «o incumprimento injustificado deste dever de colaboração deverá ser comunicado aos órgãos da respectiva tutela para efeitos sancionatórios, disciplinares ou gestionários».
Mais: «devem igualmente ser remetidas ao CPC cópias dos relatórios de auditoria ou inquérito do Tribunal de Contas e dos órgãos de controlo interno ou inspecção da Admi-nistração Pública central, regional ou local, ou relativos às empresas do sector público empresarial, que reportem factos enunciados na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º ou deficiên-cias de organização dos serviços auditados susceptíveis de comportar risco da sua ocorrência».
E mais: «após a apresentação à Assembleia da República, deve ser remetida ao CPC, pela Procuradoria-Geral da República, uma cópia da parte específica do relatório so-bre execução das leis sobre política criminal relativa aos crimes associados à corrupção, bem como os resultados da análise anual, efectuada pelo Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, das declarações apresentadas após o termo dos mandatos ou a cessação de funções dos titulares de cargos políticos».
No plano da arquitectura do poder, mais uma poderosíssima base de dados está em marcha. Sobre este assunto a PJ tem a sua, a Brigada Fiscal idem, o SIS idem idem. Faltava agora um instrumento mais potente, mais centralizado, para os que estão agora no Tribunal de Contas. O que é curioso é que o CPC comunica directamente com as demais entidades. Trata-se de um organismo que funciona «junto do» Tribunal de Contas, mas que tem autonomia face ao Tribunal de Contas. Inteligente, de facto e muito sintomático.
Encontrando crime, o CPC comunica é certo o facto e as informações ao MP, suspende a sua recolha e aparentemente garante o contraditório face ao comunicado, embora tratando-se de participação criminal sujeita a segredo de justiça seja de presumir que o aberto ao contraditório seja menos do que o recolhido.
Juntando informações de casos em que houve absolvição e arquivamento àqueles em que houve condenação, mais aquelas em que nem processo houve ainda, mesclando o que tem origem policial, judicial e de outra diversa natureza, o CPC só pode ser uma coisa: um poder a exigir controlo. E isso não se vê em parte nenhuma da Lei.

Publicidade do inquérito: primeira brecha na nova lei

A primeira brecha na abertura do conhecimento do inquérito aos arguidos acaba de ser dada pelo TC. O Acordão do Tribunal Constitucional n.º 428/08 decidiu «julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, segundo a qual é permitida e não pode ser recusada ao arguido, antes do encerra­mento do inqué­rito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida pri­vada de outras pessoas, abran­gendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional, sem que tenha sido con­cluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devo­lução, nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do Código de Processo Penal».
O aresto, de que é relator Mário Araújo Torres, apoiado em exaustivo levantamento das posições da doutrina e da jurisprudência sobre tal temática, parte do que foi, com a última revisão do CPP, a «tão drástica subversão da regra “natural” [na Exposição de motivos da Pro­posta de Lei n.º 157/ VII, que esteve na base da revisão do CPP de 1998, proclamou‑se: “o inquérito, em cujo âmbito se desenvolve a investigação é, por natureza, inquisitório e secreto”] do carácter secreto do inquérito, adoptada, sem explicitação das respectivas motiva­ções, na última reunião da Comissão que procedeu à votação na especialidade dos projectos legislativos relativos à revisão do Código de Processo Penal, face a uma proposta de alteração apresentada, pela primeira vez, nessa ocasião» a qual «não pode ter deixado de causar as maiores per­plexidades aos intérpretes e aplicadores do direito».
Seguindo o critério de Frederico da Costa Pinto quanto ao que será a interpretação congruente com a Constituição da nova fórmula legal atinente ao segredo de justiça, considera o TC nesta sua decisão que «no presente caso, não está em causa o acesso do arguido a elemen­tos constantes do processo que sejam necessários para a adequada defesa dos seus direitos, designadamente para contrariar ou impugnar a aplicação de medidas de coacção, hipótese em que a jurisprudência deste Tribunal tem considerado não ser oponível o segredo de justiça, mesmo durante o decurso normal do prazo do inquérito (o que obteve consagração nos n.ºs 1 e 2 do artigo 89.º e no n.º 4, alínea d), do artigo 141.º do CPP). Aliás, como se documenta na alegação do Ministério Público, os arguidos têm proficuamente exercitado o seu direito de impugnação de decisões que consideraram ter afectado os seus direitos, como a decisão que indeferiu arguição de nulidade do mandado de detenção, das decisões que decre­taram e mantiveram a prisão preventiva e da decisão que indeferiu arguição de nulidade de determinadas apreensões. O que agora está em causa é a possibilidade de conhecimento do que consta da globalidade do inquérito, pelo que o mero diferimento desse acesso para momento subsequente ao encerramento do inquérito se reveste de menor gravidade do que eventual recusa de acesso especificamente direccionado e justificado pela necessidade de defesa eficiente contra actos concretos que afectem a posição processual do arguido».
Ora porque «a decisão recorrida adoptou um critério que não protege adequadamente os interesses de terceiros, consentindo a lesão da sua privacidade decorrente da irrestrita conces­são de acesso a todos os elementos do inquérito aos arguidos que o requere­ram, justamente por ter partido de uma interpretação segundo a qual, verificada a situação prevista no n.º 6 do artigo 89.º do CPP, o acesso franco do arguido ao inquérito é irrecusável, sejam quais forem os riscos de lesão de outros valores que daí resultem. Ora, importa não esquecer que, sendo certo que a inclusão no inquérito de elementos cobertos por esses tipos de segredo já pressu­pôs um juízo de admissibilidade da sua quebra em homenagem aos interes­ses da investigação, não menos certo é que estão em jogo outros valores constitucionalmente protegidos, ligados à reserva das pessoas em causa a que esses segredos respeitam (sobre a relevância do segredo bancário para a defesa da intimidade da vida privada, cf., por último, o Acórdão n.º 442/2007), que nada justificará sejam sujeitos a devassa por parte dos restantes intervenientes processuais sem que previamente seja emitido o juízo de relevância para a prova previsto no n.º 7 do artigo 86.º do CPP», o TC definiu que tal acesso irrestrito era desconforme com a Constituição.

A Lei Orgânica e a orgânica na lei

Ainda por falar em PJ. Num país de confusão legislativa, os legisladores teimam em aumentar a confusão.
A Polícia Judiciária tem uma Lei Orgânica que foi aprovada em 9 de Novembro de 2000, através de um Decreto-Lei n.º 275-A. É m diploma extenso, com 179 artigos.
Ora veio agora a Assembleia da República aprovar uma Lei, a n.º 37/2008, de 6 de Agosto, que se chama «orgânica da Polícia Judiciária» e que contém preceitos que se sobrepõem aos da dita Lei Orgânica da Polícia Judiciária, apenas alterando a redacção de um artigo.
Podia a AR ter aprovado uma nova lei que substituísse aquela, modificando-a e republicando-a, para melhor clareza? Podia.
Porque usou esta técnica legislativa péssima? Não sei. Talvez um exercício de estudo atento venha a revelar o mistério.
Para o incauto jurista aí está: há uma Lei que aprova a orgânica da PJ que não se confunde com a Lei Orgânica da PJ. Percebem? Não? Ómessa! Porquê?

Aprensiva apreensão

É sabido por quem vive a Justiça Penal no terreno que o critério de apreensão de bens é muito discutível. A lei [n.º 1 do artigo 178º do CPP] permite-a de modo lato: «os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um crime, os que constituirem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova».
Ante uma norma com um âmbito de previsão tão genérico toda a apreensão encontra sempre uma justificação aparente. Ate mais ver o apreendido é útil para a prova e logo se vê.
Findo o processo os bens apreendidos podem ser declarados perdidos a favor do Estado [artigo 374º, n.º 3, c) do CPP]. Mas mais: por insólito que pareça, arquivado o inquérito, podem os bens apreendidos ser declarados à mesma perdidos a favor do Estado [artigo 268º, n.º 1, e) do CPP].
Ora ante tal perigo para a propriedade privada, à mercê de enunciados legais permissivos e de previsão tão genérica, espanta que o artigo 19º da Lei Orgânica da PJ, agora aprovada, preveja que «os objectos apreendidos pela PJ que venham a ser declarados perdido a favor do Estado são-lhe afectos nos termos do Decreto-Lei n.º 11/2007, de 19 de Janeiro».
É a instigação directa da apreensão para benefício próprio.
Doravante o Estado não tem que se preocupar em equipar a PJ. Querem automóveis senhores inspectores? Barcos? Rádios? Material informático? Apreendam-nos!
Uma moralidade legislativa interessante num Estado de Direito, não acham?

Fica tudo, ficam todos

Reabrem os tribunais. Voltam os prazos. No meu caso e no de tantos nunca deixaram de vir. O Diário da República esse não parou. O Ministério da Justiça chega a ter de esclarecer que as leis penais não mudarão, tal é a expectativa de que mudasse tudo. Na verdade nada muda, nem a retórica de que urge tudo mudar. Ficou o CPP como estava, incluindo os alçapões que garrotam a defesa e as inaninades que minam a investigação, o Código Penal afeiçoado tal como era, incluído o artigo 30º. Ficaram as férias reduzidas. Ficou a alteração ao regime de estágio. Ficou já nem sei o quê. Ficará em breve todo o mapa judiciário.
Ficou tudo na mesma, mau grado o vociferar dos críticos. Levados a sério, parecia que a Justiça ia fechar para nova gerência. Mas Alberto Bernardes Costa está de parabéns. Nem ele muda, apesar de Rui Pereira.
Fazendo o balanço entre a fraqueza dos que gritaram e a força dos que mandaram, ficou sem mudar também o princípio que se atribui a António de Oliveira Salazar: manda quem pode, obedece quem deve. O que a ditadura ensina a democracia aprende: a sobreviver.
Fantástico. Lamentável. Verdadeiro. Veremos o que nos espera. Por mim, estou acordado desde as três e meia de manhá. Voltam os prazos, os que nunca deixaram de estar. Na próxima vinda à terra quero ser padeiro.

A credibilidade rifada

«É que a Ordem dos Advogados do Brasil comemora os seus 75 anos em Mato Grosso à sombra de contradições que demandam superação, honestidade intelectual e uma dose substancial de consenso e não de conflito. Essa septuagenária senhora, presente nos momentos marcantes da redemocratização brasileira, vive apenas de um passado glorioso, escravizando-se para polir os troféus com a ferrugem do tempo». «Isso porque a OAB perdeu o ímpeto da vanguarda, transformou-se em reduto político e politizante e fez dela mesma um trampolim para pretensões pessoais. Além disso, rompe com o compromisso ético, ao pugnar por uma postura que não corresponde de forma alguma com as próprias práticas internas e, nesse ponto, amiúda-se a fundação de um dos maiores edifícios democráticos nacionais, sucumbindo à máxima "por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento". De fato, as bactérias do poder estão fermentando a Ordem, tornando-a maior, mas esvaziando-a de vigor, tornando-a pior».
«E esse "vírus político" inoculado na OAB talvez tenha afetado profundamente a percepção de que a coerência é a maior viga de sustentação institucional da própria Ordem. Assim, fornecendo um discurso vazio à classe e à sociedade, os dirigentes da Ordem dos Advogados não só vulgarizam sua importância estratégica constitucional, como fazem de uma pauta ética mais um discurso pendular entre a necessidade e a conveniência. A credibilidade institucional do advogado foi rifada e esquartejada entre grupos». O resto vem aqui e segue, em Cuiabá, Mato Grosso.