Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




A função alegórica


E não haverá lei que, mandando que a Força condene por causa do crime, não permita agraciá-lo e com Vigor, em nome da suprema graça da Beleza? Não há, inventar-se-à pela retórica forense, forma de levar o juiz a ser advogado da sua própria causa. A função alegórica sugestiva da poética, o sumo convencimente triunfam sob a geometria legalista, com riso diluviano e pompa togada! Não há melhor figuração forense do que a cinematográfica, melhor palco do que o pretório.

O ter e o dever

De que serve a hermenêutica para decifrar leis vindas de um legislador as escreve quantas vezes não sabendo escrever, entre conceitos vagos e imprestáveis e palavras que sendo as mesmas se contradizem, legislador de um enredado labirinto de previsões que se anulam e sobrepõem, revogam e abrogam e no tempo se aplicam em conflito permanente e são a porta aberta à taberna da discussão, à navalhada infame e aleivosa da interpretação em contrário, que surpreende de emboscada, do entendimento que numa penada modifica o sentir do que era tido por dominante opinião, trazendo insegurança ao pouco seguro, incerteza ao já incerto?
De que serve a dogmática como exercício mental para edificações abstractas e compendiais, monumentais torres davídicas de vaidade doutoral tão bacoca de barroca, a que falham fundações, edificadas sobre a lama da vida e suas palhotas, palácios exibicionistas sob palafitas em risco de desmoronar permanente?
De que serve a jurisprudência sem jurisprudentes, a legística de leis sem normas, o ordenamento jurídico num mundo sem ordem?
De que serve, na repartição pública da praxística, no salão forense onde se acumulam amanuenses copistas do já decidido mesmo que não decida, seguidores com idêntico como se fosse igual, eu estar para aqui a ruminar estas imprecações, sem moral que tenha nem exemplo que dê?
De que servem as poucas excepções, os desiludidos, a meia dúzia de optimistas, desejosos de um qualquer milagre que lhes devolva humanidade e lhes retire este mundo feio, sem lei nem rei?
De que serve o Homem ter inventado o primeiro dever para proteger o seu primeiro ter?

O charco palustre

Pois, eu tento reconciliar-me com ele, depois de o vilipendiar, achando-o charco palustre de retórica, onde coaxam rãs argumentativas, duendes legitimadores de apriori's decisórios, zombies alucinados pela fabulação teorética, obnubiladora do horror da injustiça porque alucinogénica, levando-os, pobres mecânicos da hermenêutica, a viagens pelo firmamento da dogmática, do construtivismo, afinal da alienação...e no fundo sofistas alguns, amanuenses de cartórios outros, serventuários do ensino formador profissional uns poucos, e raros, mais raros dos que se julgam os verdadeiramente felizes, os socialmente úteis, os que estejam em harmonia com a música do universo. Escrevi isto a propósito do Direito, num comentário. Depois descobri que era exagerado e, no entanto, profundamente verdadeiro...


Distinguir e não extinguir

O juiz Dr. António Martins perdeu a cabeça e com isso perdeu a razão. Confundiu a insignificante parte com o imenso todo e sugeriu que a Ordem dos Advogados pudesse ser extinta. Foi uma emocional retorsão contra quem clamava que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses deve ser extinta.
Ora um juiz não deve ter emoções. Cabe-lhe agora ter o gesto razoável de se explicar e dar à classe dos advogados a palavra de respeito a que esta tem direito. Nem os juízes querem que acabe a Ordem dos Advogados nem os Advogados querem que acabe a Associação Sindical dos Juizes Portugueses. Há quem diga coisas sobre isso em momentos de ira. É diferente. E na percepção da diferença está a única forma que ainda temos de não arrastarmos a Justiça para o caos, agora que o País vai a pique.

P. S. Sou também Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados. Não foi o titular desse cargo quem escreveu isto, pois nem teria legitimidade para tal. Sou eu, porque Portugal ainda é um País livre.

Férias e equiparadas

O legislador quando escreve normas devia pensar na totalidade dos que terão de as aplicar e não apenas naqueles outros em que está a pensar no momento ou na lei que faz parte do seu quadro mental de referência.
Carregado de má consciência, o autor do Decreto-Lei n.º 35/2010, de 1 de Abril - até pela numeração do diploma se vê como o Governo está imobilizado num país em que governar é legislar - resolveu proceder à «harmonização das férias funcionais dos diversos intervenientes processuais». Isto porque desde que amputou os supostos dois meses de férias forenses tem encontrado pela frente primeiro a revolta e depois a resistência passiva.
Só que o normativo em causa dá que pensar. Logo por uma lógica que mantém. Imagino mal, vestindo a pele de magistrado, que não se pratiquem actos processuais «nos dias em que os tribunais estiverem encerrados», fórmula infeliz que se tem mantido e que a prática aos fins-de-semana e feriados de muitos actos processuais, da autoria de magistrados que os firmam como forma de terem o serviço em dia, desmente.  
Penso que subjacente a esta fórmula, que não foi alterada e vem do transacto, está a noção da funcionalização do magistrado sujeito, qual amanuense, à regra dos dias úteis de abertura e fecho da repartição como calendário único de função.
Além disso, sempre fica a dúvida quanto à valia jurídica de actos praticados em dia em que não é permitida a sua prática. É que uma coisa é o dia da prática do acto outra a da exteriorização do acto. A notificação ordenada num processo a um domingo seá inválida ou inválida será apenas se efectivada a um domingo? Ou supõe o legislador que o autor do acto adultere, falsificando-a, a data de prática efectiva do acto?
O sentido essencial da reforma é, no entanto conceder um período de defeso de um mês e meio para que se não pratiquem actos processuais, pois eles não ocorrem «durante as férias judiciais» e «durante o período compreendido ente 15 e 31 de Julho», período relativamente ao qual o legislador disse que se lhe atribuía «os mesmos efeitos previstos legalmente para as férias judiciais». Dicotomia esta que traduz no seu bojo a ideia de que para além das férias de um mês há mais quinze dias equiparados a férias, velho modo de entrar pela janela o que não cabe pela porta.
Prevalecendo-se do ensejo o Bastonário da Ordem dos Advogados veio dizer em comunicado à classe: «a segunda quinzena de Julho era um período em que os Advogados eram obrigados a cumprir prazos judiciais, embora os tribunais estivessem de facto em férias judiciais por decisão contra legem dos magistrados».
Pena finalmente que o legislador não se tenha lembrado que não há só o processo civil, sobre o qual legislou, mas muitos outros processos, do penal ao administrativo e tantos mais, relativamente aos quais o CPC é aplicável como norma subsidiária, havendo sempre interpretações jurisprudenciais divergentes quanto a saber quais os limites dessa subsidiariedade.
Teria sido assim mais fácil redigir uma norma que abrangesse as várias modalidade de processos ou pelo menos dissesse de modo claro que a todos se aplicava.
Um pormenor de técnica legislativa. A alínea b) do n.º 5 do artigo 144º do CPC saíu assim na folha oficial: b) Quando se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes, salvo se por despacho fundamentado, ouvidas as partes, o juiz a determine.». Assim mesmo como uma aspa, como se o legislador citasse algo. Fim de citação!

Pôr em ordem os prazos ordenadores

Há contradições interessantes. Um Acórdão de 7 de Abril da Relação de Lisboa [relator Sérgio Corvacho] entende e bem que o prazo para a dedução de acusação em processo abreviado é peremptório. Pode ler-se o sumário aqui.
Consta da sumariada fundamentação:
«III. Afigura-se inequívoco que a mais recente Reforma do CPP veio reforçar drasticamente as características de simplicidade e celeridade da forma de processo abreviado. Face a uma reforma legislativa orientada nesse sentido, tornar-se-ia incompreensível que se tivesse passado a atribuir ao prazo a que se reporta o nº2 do artº 391º-B, do CPP, um carácter meramente ordenador. Se assim fosse, o único limite temporal verdadeiramente inultrapassável para deduzir acusação em processo abreviado residiria no prazo de prescrição do procedimento criminal.
IV. Impõe-se concluir que, mesmo depois da Reforma introduzida pela Lei nº 48/07, de 25/8, o prazo de dedução da acusação em processo abreviado continua a revestir natureza peremptória e a sua preterição faz precludir a tramitação do processo sob essa forma especial».
Ora sendo o processo penal, na sua generalidade, a materialização adjectiva de um regra de celeridade que é tida como uma garantia fundamental do processo criminal [vejam-se os pontos 1 e 2 do artigo 2º - norma sobre o sentido e extensão da Lei n.º 43/86, de 26.09, que autorizou o Governo a redigir um CPP, o de 1987], prevista no artigo 6º da CEDH, e estabelecendo o artigo 276º do CPP que há prazos «máximos» de inquérito - o que consta aliás duas vezes da epígrafe do artigo e do seu n.º 1- pergunto: que lógica há para se considerarem como meramente ordenadores os prazos para a dedução de acusação em processo comum e peremptórios os previstos para o processo abreviado?
É que há que esclarecer o porquê da dualidade, salvo tratando-se de uma diferenciação arbitrária e salvífica para a investigação morosa, baseada numa lógica jurídica que em ironia teria teor: não é só o impossível legislativo se tem de ter por não escrito, o judiciariamente difícil passa a não obrigatório.
É que em 26 de Janeiro de 2006 a Relação de Lisboa entendia [relator Cid Geraldo] que «IV- Os prazos referidos no artº 276º CPP (de encerramento do inquérito) são meramente ordenadores e não peremptórios - o que bem se compreende, dado não ser possível demarcar o tempo de uma investigação criminal».


O retorno do filho pródigo

Depois de algum tempo e pousio regressa este blog, como local de comentário jurídico. Surge ligado a um site profissional que se pode ver aqui.

O direito de punir

O que se aprende quando se olha para o mundo como se pela primeira vez. A escritora Clarice Lispector que cursou Direito em 1940, estando no segundo ano na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, escreveu este texto magnificamente diferente de todos os textos possíveis sobre um tema em que parecia não poder ser-se diferente: «Não há direito de punir. Há apenas o poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele, a guerra, grande crime, não é punida porque se acima dum homem há os homens acima dos homens nada mais há». Vem num livro de dispersos de juventude chamado Outros Escritos. Editou-os a Rocco em 2005.

O Direito em género

[intervenção efectuada num colóquio organizado pela Associação das Mulheres Juristas em Junho de 2008. Alguma timidez gerou hesitação em publicar o texto. Este e bastantes outros].
Houve tempo em que havia nas profissões jurídicas mais homens do que mulheres e em que o problema era garantir a estas acesso a uma zona da actividade social de que estavam afastadas. Esse tempo foi. Hoje são mulheres que ocupam maioritariamente funções em algumas das profissões jurídicas. Na advocacia o número de mulheres, se bem que não maioritário, já é expressivo, cerca de 50% do total. [continua aqui]

O Governo e o nojo

É pela migalha da esmola que se mede a pobreza. De acordo com uma informação oficial do Conselho de Ministros «o Governo aprovou ontem um decreto que consagra o direito dos advogados ao adiamento de actos processuais em que se preparem para intervir se estiverem em situação de maternidade, paternidade ou luto».
Claro que no mais a falta do advogado não é motivo de adiamento. Mesmo que esteja doente e impossibilitado de comparecer, nada se adia e o tribunal pode nomear um defensor oficioso, se estiver em causa um advogado de defesa.
A razão de isto ser assim já me foi explicada: é que se a lei admitisse adiar actos processuais por estarem doentes os advogados nenhum processo andava porque os advogados estariam sempre doentes. Ou seja, é pela pressuposição da falta de honorabilidade da classe que os advogados são assim tratados.
Generoso como sempre, o Governo, abre agora, sintomaticamente neste momento, a excepção a favor da procriação e do nojo. Quanto à maternidade não posso aproveitar, no que se refere à paternidade não tenho certezas, o mais certo são os lutos. Porque quanto à morte já estou avisado, ante este acórdão da Relação de Coimbra: «A notificação efectivamente expedida para o patrono da parte, ainda que comprovadamente após o falecimento desse patrono, é, todavia operante, face ao art.º 254, nº 4, ª parte do CPC. É que aí se estipula que "A notificação não deixa de produzir efeito pelo facto do expediente ser devolvido, desde que a remessa tenha sido feita para o escritório do mandatário ou domicílio por ele escolhido"». Ver toda a história aqui.