Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




E agora José?

Estive amuado com o Direito durante muito tempo. Convia com ele forçado, como um preso algemado ao seu polícia. Considerava muito de tudo aquilo retórica, noutra parte exegética interesseira. A doutrina parecia-me abstracta demais quando erudita e por isso inservível para os problemas concretos do meu quotidiano profissional, a jurisprudência demasiado casuística e reiterativa e como tal servível para todos os problemas, os meus e os contrários dos meus, aqueles doutos autores para o circuito da montanha, estes preclaros acórdãos para todo o terreno. Além disso, eu tinha dado aulas durante dezassete anos e saíra inacabado e com saudades do irrealizado. Nem moral tinha para vociferar.
Um destes dias senti vontade de tirar de novo o curso de Direito, não para o aprender, mas para o surpreender. Veio daí o enamoramento. Descobri que tenho livros por escrever. Só um deles, de processo penal, são mil quinhentas páginas perdidas num computador, que já resistiu por milagre a alguns «crash» dessas maquinetas miraculosas.
Mas antes dos livros, que serão o fruto da união, haverá o dia a dia do cortejamento. Voltei a este blog. Fui ver alguns dos que seguia, jurídicos, quando "flirtava" com pouca fidelidade com esse Direito com o qual quero reconciliar-me. Muitos desses espaços estão parados, como eu estive. Desanimados, como eu estava.
Mais logo, pela noite, começo a estudar: o geral e o abstracto, com olho crítico e memória reconstruída. O Direito é a luta pelo Direito. Para onde não chegar a pá, leva a picareta!

O amor e a morte: os sentimentos e o Direito

Rui Januário e André Figueira escreveram um livro chamado "Eutanásia: direito a morrer ou dever de viver". Livro de juristas acabou por ostentar como ante-título "O Crime de Homicídio a Pedido". É um livro que tem como seu pressuposto uma tragédia íntima. O primeiro autor exprime um pensamento que formou primeiro como exerecício intelectual depois como experiência vivida quando seu pai entrou numa doença terminal contra a qual lutou até à desistência. Escrevi o texto de apresentação. Permito-me arquivá-lo aqui. Encontrei-me com um Direito, enfim, humano, e não com uma técnica burocratizada.

Este livro suscita um problema inesperado: o valor dos sentimentos no Direito. A questão surge a dois níveis diferenciados: como caso pessoal de um dos autores, como faceta imponente do tema que aqui se trata.
A obra inaugura-se como uma introdução intimista. O Dr. Rui Januário traz ao leitor a intrínseca humanidade de uma confissão sobre como o tópico lhe surgiu, primeiro como problema intelectual, como exercício da razão, depois como tragédia pessoal, como imposição da sensibilidade.
Raras vezes a epistemologia se vê confrontada com tal processo, o ser pensante a ter de testar na experiência vivida a consistência do seu pensamento.
Mas mais. Este livro é o produto da reformulação do pensado face ao experimentado. É um exercício de reconstrução.
É, por isso, uma obra de humildade, de relativização das ideias adquiridas, de recusa da absolutização dos valores, de negação do radicalismo das opiniões.
Para além do seu valor intrínseco, este livro coloca a grave problemática dos limites do racionalismo, é um solene aviso quanto aos perigos do intelectualismo.
Nele está presente uma reflexão existencial, pois que vivida sobre a existência.
Para as gerações que se formaram no Direito construído pelo positivismo, para o qual a ordem material das coisas é a aparência da sua ordenação lógica e a congruência, afinal, o sumo critério do sistema recto e por isso do código justo, isto é heresia.
Desvio, heterodoxia, será também para todos os outros para os quais o teste final da estrutura legal será o da sua eficácia como instrumento e meio da regulação social ou de dominação de classe, mas sempre, num igual registo, o pensável como única forma do cognoscível, o sustentável como único meio de legitimação, a prática o estupendo critério último do útil.
Eis, pois, neste contexto incerto, o real valor desta obra, a sinceridade.
O interessante do livro é ser uma excursão a um território jurídico de limites indefinidos.
Primeiro, pela confluência da eutanásia e do homicídio a pedido. A diferença é maior do que a semelhança entre estes dois conceitos: no segundo, bem pode supor-se a vontade de morte maior naquele que fenecerá do que no outro que lha trará, no fundo, um suicídio a pedido, no primeiro, bem pode suceder que o desejo de morrer não seja já compartilhado pelo que vai deixar de viver.
Além do mais, por serem múltiplas as possibilidades de materialização da eutanásia, sendo mais problemática a conduta omissiva, o live and let die, porque situada numa zona de fácil encobrimento, por bastar a não mobilização de meios de prolongamento artificial da vida ou de reanimação da mesma.
Por isso, tudo é relativo nestas paragens em que o direito a morrer se pode confundir com o direito a matar. E, sobretudo, tudo é evanescente.
O tema é o reverso da obstinação terapêutica em que a vida é mantida pertinazmente para além do tempo natural da própria vida; e, ironia trágica, o tema surge-nos de novo, em surpreendente aparição, neste mundo de espelhos enganadores, quando a suavização clínica da dor, gesto humanitário que toda a moralidade aplaude e o Direito cauciona, se alcança à custa de fármacos que, ao limite, trazem a inexorabilidade da morte.
Percorrendo assim as sombrias galerias ao longo das quais o Direito Penal expõe todos os casos em que a morte está presente, este livro leva-nos a surpreender a diversidade, a compreender as distinções, a aceitar a necessidade da diferenciação, a aprender, enfim, que julgar como indistinto o que é plural é a forma dos ignorantes serem injustos, o meio de a injustiça poder exercitar-se, recusando-se a compreender a diferença.
Como não apartar quem tira a vida alheia daquele que suprime a vida própria, aquele criminoso por haver vítima, este impune porque o crime foi, afinal, a própria punição, criminoso e carrasco num acto só?
Como não aceitar que a incapacidade de viver possa coexistir com a incapacidade de morrer, o não saber já como viver-se ser irmã siamesa do não saber ainda como morrer?
A tudo isto o Direito tem de dar reposta. Só que é uma resposta impossível em abstracção, inviável em generalidade. É que há zonas da vida em que o sombreado das situações é tal que o jurista legislador tem de ter o pudor de confessar-se incapaz de compreender as diferenças.
É nessa abstenção de regulamentação esgotante, nesse abdicar da tentação totalitária do tudo prever, regulamentando, nesse não intervencionismo normativo, que o Direito tem de encontrar-se com a sua finitude, fragmentário, limitado, provisório, parcial.
E, no entanto, razões pragmáticas exigem que haja normas, ao menos para aquele perfil de situações para as quais, ainda que a traço grosso, se exige uma definição essencial. É a vida quem o impõe ao trazer para a realidade o inescapável. Mas não existirão já essas normas ainda que gerais? Não haverá grave risco em escrevê-las agora em lógica de especialidade?
Note-se sobre o que se legislaria.
Por ler este livro pressente-se a medida em que o determinismo da vida pode estar condicionado pela vontade de viver, a ausência desta ser a agonia daquela, o homem senhor do seu destino, o triunfo da vontade a única garantia da subsistência do ser vivente. A fragilidade do humano é o ser tão ténue o fio vital que o anima. Um sopro de hesitação e é o abismo.
E depois, condições há em que a grandeza da sobrevivência é a miséria da sua precariedade, em que mais do que saber resistir estoicamente já só há, num sobejo de latência, o remanescer aquém da dignidade, inexpressivamente. O maior risco do homem é pensar se a vida vale a pena. O nascer da dúvida é um passo para a precipitação.
Além disso há os outros, aqueles para quem, mais do que não sermos indiferentes, somos parte da sua própria existência, quantas vezes seu fundamento, sua razão de ser. O maior perigo do humano é haver quem caia com a nossa queda. No dia seguinte a nós o mundo pode não ser o mesmo.
E no fundo, como nada disso faz sentido quando se atingiu por esgotamento o ponto terminal da existência, as funções vitais minimizadas, o ser vegetativo e a dor, essa experiência agónica que martiriza a carne a atormenta os nervos, a perseguir-nos, castigo sem redenção, maldade desnecessária a escarnecer de um fim que se eterniza.
É neste confluir de extremos que nasce, grave, o problema da vida, a questão da morte, a problemática do existir, a lógica deste livro.
Através dele descobre-se que o Direito Penal comum pode afinal oferecer, com mero recurso às categorias conceituais consignadas na parte geral do Código Penal, a saída para a impunidade da eutanásia activa. Profundamente desvalorizados pela lei penal, tais actos, encontrariam uma razão de exclusão da punibilidade, sobretudo quando médicos, mormente quando orientados a garantir uma morte digna, misericordiosa, a casos terminais, irreversíveis, nomeadamente quando em situações insuportavelmente dolorosas.
Usando uma imagem, trata-se de uma situação semelhante àquele que tendo veneno no armário se abstém de o usar.
A mão dessa abstenção, num país que não tenha para o caso outra lei que não seja a lei geral, terá de ser a mão judicial.
Neste plano, ao perigo da lei especial, cuja própria existência se pode configurar em perversão de efeitos como instigação pública ao acto, generalizando-o, através do acto sedutor da sua condicionada legitimação, sucede uma casuística de agraciamento do excepcional corpo de situações em que a justiça exija piedade para com a misericórdia de ter feito cessar uma vida que já só era um simulacro residual de vida.
Dir-se-á que é esta lógica conservadora, de dissuasão do acto pela não previsão do acto, que durante décadas levou à não admissão de excepções aos casos de aborto: é a ideia segundo a qual a primeira brecha que se abrir ao mandamento do não matarás fenderá a muralha protectora da vida de modo imperscrutável e sobretudo imprevisível. Talvez assim seja, e neste dubitativo esconde-se a insegurança quanto à perfeita homologia das situações.
Mas uma coisa é certa: há por vezes mais risco em entregar a questão a leis do que os problemas a juízes.
Estamos na recta final do que gostaríamos de trazer como apresentação a este livro.
Estivesse em causa uma jurisprudência sobre a eutanásia e já seria difícil, por se tratar então de encontrar o critério escapatório que legitimasse o perdão do acto em nome da nobreza do acto.
O problema surge quando estiver em causa uma legislação sobre a eutanásia. É que então, todo o mundo desumanizado da morte nas nossas sociedades irromperá, com todo o seu cortejo necrológico de horrores, agredindo o limiar doloroso das nossas consciências morais.
Ei-los então, os doentes terminais que saturam os já saturados hospitais e cuja manutenção em vida é um empecilho na engrenagem que conduz da enfermaria à morgue, esse corredor da morte em que cada um é um número, uma estatística, uma fita colorida atada ao pulso, aqueles cuja morte liberta a cama, economiza gastos clínicos, poupa energias de gestão, todos eles, à mercê.
Ei-los, os sem o abrigo de uma família, entregues ao desinteresse de um lar sem condições, à solidão de uma qualquer pensão mercenária, à miséria de um qualquer ermo de vagabundos, aqueles para quem o abafador de uma almofada, uma discreta sufocação bastam para, sem história, quase sem dor, lhes retirar o ténue sopro vital sem o qual ninguém dará conta de que já não existem, todos também, sujeitos.
Ai dos fracos, dos indefesos, caídos em estertor no campo de batalha dos saudáveis.
É por haver neste nosso desventurado mundo não pessoas, mas indivíduos, não comunidades, mas sociedade, que a eutanásia legal se torna num perigo público, as normas criminais possivelmente criminosas.
Falássemos nós daquela agonia horrível em que a morte é infligida, o coração destroçado, como uma forma última de amor, o autor do acto a chamar a si a dor, a mesma que quer poupar àquele a quem tira a vida, e estaríamos aí, nesse instante trágico, ante o humano na sua mais pungente condição, o tiro de misericórdia nesta guerra impiedosa pela qual toda a vida que se vai é uma outra vida que assim poderá nascer.
Só que, infelizmente, haver quem se sorria desta poética é sinal de que a preguiça, o egoísmo, a conveniência e o desinteresse bem podem ser as mãos que desligariam a máquina, selariam as narinas, injectariam o discreto soro além do qual todos ficam tranquilos e muitos aliviados. A eutanásia passaria então, a ser uma forma mercantilizada, disponível, possível em suma, de nos vermos livres dos que já estão a mais.
Terminei. Obrigado aos autores por terem escrito o livro. Sem ter pensado no que nele se diz, a minha alma teria ficado mais pobre, estiolada por normas, desfigurada por abstracções, iludida pela hipnose da generalização.


Recursos penais: a ilusão do reexame

Estranham que em poucos casos os tribunais de recurso conheçam de facto a matéria de facto? Que haja reenvios em nome de razões cuja essencialidade faz a boca abrir de espanto? Que a renovação da prova um nado morto? As gravações um luxo inútil? Mas a História não ensina a transformar em pensamento o que é sentimento? É tudo, afinal, o triunfo da forma sobre o conteúdo, forma de exoneração da responsabilidade de decidir, meio de expeditamente despachar muito em pouco tempo, o fantástico reino da quantidade... Só a palavra «despachar» causa urticária...

O Direito é o combate pelo Direito.
E se há momentos em que esse combate assume uma faceta agónica é o momento dos recursos. Porque é então que há vencidos e vencedores. Podem ser questões incidentais, aparentemente de natureza meramente instrumental, mas não quer isso dizer que não sejam questões nucleares, a comprometer a sorte do caso. Momentos em que para os protagonistas do combate resta a última esperança, nos quais é maior a tensão dos intervenientes.
Ora o combate que aqui se assume, no que as recursos respeita, é desde logo um combate contra os ditames de um legislador que, desde há décadas, quis subtrair à filosofia estruturante do sistema de recursos a lógica do reexame da substância julgada para que restasse como objecto primacial de impugnação o modo formal pelo qual o tribunal recorrido conheceu a substância das coisas.
É um sistema em que se recorre mais do “como” e menos do “que”…
A História, como sempre, ensina, e ensina tanto mais quanto à amnésia colectiva se junta a arrogância intelectual dos que julgam que a vida começa com eles e sem eles termina, consumindo-se em irrequietude voluntarista permanente. Entre estes as gerações de legisladores estreantes na área do poder.
Aprende-se por exemplo, vendo as lições do passado, que no jogo das formas processuais o passo decisivo foi dado com o desaparecimento da apelação penal; não só como realidade jurídica, também como palavra – e no universo jurídico as palavras são conceitos, condensam uma semântica - , ela sumiu da dogmática legalista. E, no entanto, cito a inteligência do Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira, no seu Curso de Processo Penal, impresso em 1986, «a apelação é o recurso que verdadeiramente constitui um segundo julgamento; substitui, ao juízo da 1ª instância, um novo juízo, em matéria de facto e de direito, de 2ª instância». Eis o que desapareceu do universo da Justiça, a ideia de que o recurso é um novo exame, uma revisão do visto.
Admitiam-na, à apelação penal, as Ordenações. Mas em 1892, uma Lei de 15 de Setembro, determinava já, lançando a total confusão pulverizante no vulcânico território das categorizações jurídicas, que as apelações e as revistas eram julgadas como agravos. Era o ponto sintomático da desvalorização das nomenclaturas, miscigenando-as todas, desvalorizando cada uma. Citando Alves de Sá, coevo do que se passava: «Assisto aterrorizado desde 1892 a esta confusão tumultuosa em que caiu o foro nesta matéria». Palavras que se podiam tornar actuais.
Ao chegar-se do Código de Processo Penal de 1929 já o conceito de apelação penal tinha sido, entretanto, varrido da terminologia da lei adjectiva criminal e encontrávamos apenas um princípio, que nos acompanhou a todos quantos, eis o meu caso, tivemos esse código como companhia em dias de preocupação e noites de insónia - já retalhado, acrescentado, parcialmente revogado e derrogado - segundo o qual - e eis o artigo 649º - «os recursos em processo penal serão interpostos, processados e julgados como os agravos de petição em matéria cível, salvas as disposições em contrário deste código».
Não era esta, a que citamos, uma simples norma jurídica sobre tramitação, era um normativo sobre a natureza das coisas em matéria de recursos, a dar-lhes uma semântica e sobretudo uma direcção interpretativa em via reduzida. Dizia-se «agravo» para que ficasse entendido que não se queria dizer «apelação». E dizia-se «agravo de petição» categoria jurídica que havia já caído em desuso.
É que natureza do agravo era determinada sobre a incidência do seu objecto, a circunstância de recair sobre tema processual, que não sobre o mérito da causa.
No enunciado da lei subsidiária, e como tal aplicável em regime de intergração, rezava o Código de Processo Civil de então [o de 1876] que «das decisões de que não pode apelar-se e que excedam a alçada do juiz compete agravo». E quanto ao critério pelo qual se encontravam os casos de que cabia apelação, resumia o Professor Alberto dos Reis, no seu livro Breve Estudo sobre a Reforma do Processo Civil e Comercial: o legislador, havia reservado a apelação «para as sentenças que conhecem do mérito ou do fundo da causa, compreendo-se na palavra causa certos e determinados incidentes».
Ou seja, o desaparecimento a partir de 1929 da categoria das apelações penais significou como única ilação possível, uma indicação legislativa no sentido da incognoscibilidade tendencial do mérito das causas penais. Era a restrição dos recursos no que se refere à sindicabilidade das causas penais.
É que esse Código de Processo Penal de 1929 havia determinado, no seu artigo 665º, que «as Relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem em primeira instância e nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1ª instância, e conhecerão só de direito, nos recursos interpostos das decisões finais nos tribunais colectivos e das proferidas em processos em que intervenha o júri (…)» [salvo o caso de anulação da decisão do júri em caso específico].
Quer dizer: o mérito da causa, a partir da reforma processual penal de 1929, e em função daquele citado preceito, passou a ser matéria cognoscível pela Relação apenas quando a decisão recorrida fosse oriunda de juiz singular, desde que não se prescindisse de recurso, caso em que [artigo 532º] «escrever-se-ão resumidamente na acta da audiência as respostas do réu, os depoimentos das testemunhas e as declarações dos ofendidos e outras pessoas que devam prestá-las».
Eis, com força de lei, a intangibilidade das decisões do colectivo sobre o mérito da causa, o fim da apelação penal nas causas importantes, as que eram julgadas em processo de querela, puníveis com penas mais graves.
O sistema, na sua natureza imanente, já era suficientemente explícito, mas uma vertente prática do mesmo demonstraria a sua verdadeira essência e sobretudo os propósitos que animavam os seus autores. Como o clarificou um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1932, mesmo depois da alteração do CPP em 1931 «os depoimentos das testemunhas perante o tribunal colectivo não são escritos». Ou seja era impossível a Relação sindicar a prova produzida em audiência devido à ausência de registo da mesma. A substância, os factos, uma vez adquiridos, fixados estavam.
Mas o refinamento do sistema ainda estaria para vir. Em 1934 um Assento de 29 de Junho enunciaria uma jurisprudência que, de acordo com o sistema de então, valia como lei, e como tal obrigatória, segundo a qual a alteração pelas Relações das decisões dos colectivos só poderiam ocorrer «em face dos elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada em julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos».
Como explicaria o Conselheiro Maia Gonçalves, usando linguagem mais clara para traduzir esta formulação esfíngica, em nota ao artigo 665º do CPP de 1929 «em face do assento de 29 de Junho de 1934, a competência das Relações em matéria de facto, nos processos julgados pelo tribunal colectivo, é muito restrita, só lhes sendo lícito alterar as decisões da primeira instância quando do processo constem todos os elementos de prova que lhes serviram de base ou quando se trate de factos plenamente provados por meio de documentos autênticos. Qualquer elemento de prova produzido perante o colectivo impede que as Relações altere, as respostas aos quesitos».
Era o que se popularizou como a «ditadura dos colectivos» em matéria de facto, sistema do qual decorria que o julgamento ante juiz singular era mais garantístico do que o corrido diante tribunal colectivo, por admitir o seu reexame em sede recurso quanto às questão de facto, a conhecer pelas Relações.
Como o resumiam Borges de Araújo e Gomes da Costa - compilando as lições proferidas pelo professor Manuel Cavaleiro de Ferreira de 1940, «as Relações só tomam conhecimento da matéria de direito, pelo menos nos processos de querela [a julgar pelo colectivo], pois quando o tribunal colectivo é chamado a julgar a prova não é escrita».
Eram tempos difíceis esses os da intangibilidade do veredicto de facto nos casos penais graves, tempos de chumbo em que vingava lei que permitia que se entendesse que «em recurso penal, embora só interposto pelo réu, pode o tribunal agravar a pena» (Assento do STJ de 4 de Maio de 1950); ou esquecem os mais novos que a proibição da reformatio in peius - no que significa de impedimento de agravação da pena em caso de recurso interposto pelo arguido - só foi lei a partir de 1969 (com a alteração do artigo 667º do CPP de 1929 pela Lei nº 2139, de 14 de Março, sendo primeiro-ministro o professor Marcelo Caetano)?
A inapelabilidade do julgamento da matéria de facto surgiu em Portugal com a introdução do júri, figura que fomos importar ao modelo estrangeiro, sem tradições entre nós e que faleceria de morte natural pela década de quarenta, para ser ressuscitado em 1975, tendo vindo a viver em hiatos de sobrevivência sem grande esperança de prestígio e sobretudo com duvidosos resultados.
É com o júri que mingua a apelação penal. Mas - e cito de novo o professor Cavaleiro de Ferreira no seu texto pedagógico de 1986, talvez o mais filosoficamente conseguido, porque terminal - «posteriormente, e já neste século, com a criação dos tribunais colectivos que substituíram o júri, insinuou-se sub-repticiamente a ideia de que o tribunal colectivo devia herdar não só a competência em matéria de facto do júri, mas de igual modo a presunção de infalibilidade. Foi um erro que as circunstâncias em que se processaram as sucessivas reformas processuais tornaram possível».
Eis, em suma, o que pretendia provar: morta a apelação criminal, implantado o sistema do agravo penal, estava aberta a porta para a infabilidade dos tribunais colectivos em matéria de facto. Vencer um tal sistema e as idiossincrasias que ele potencia não se afigura tarefa fácil, pode tornar-se, aliás, uma missão impossível.
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Dê-se um salto no tempo para verificar em que medida é que a cultura do agravo penal como sucessor da extinta apelação penal deu azo a uma nova categoria a da chamada “revista alargada”, o qual, em termos práticos, não resistiria à doutrina dominante nem, sobretudo, às resistências jurisprudenciais que tinham ganho império e expressão de poder.
Tudo sucedeu com o Código de Processo Penal de 1987.
Dele decorreram várias ideias discursivamente novas e candidatas esperançadas a futuro. O problema foi a pragmática do sistema e a cultura que o caracteriza que rapidamente lhes neutralizaram a ambição de perdurabilidade.
Enunciemo-las para que o pessimismo realista de que faço cultura possa demonstrar.
Em primeiro lugar verteu o legislador em lei a ideia de que todas as espécies de recurso, mesmo os atinentes à temática meramente jurídica - e inclusivamente aqueles outros em que os poderes cognitivos do tribunal sejam circunscritos à matéria de Direito - admitem [artigo 410º, n.º 2 do CPP] a hipótese de serem conhecidas certas questões - tarifadas em três casos paradigmáticos - (i) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (ii) contradição insanável na fundamentação (iii) erro notório na apreciação da prova - que já não meras questões jurídicas podendo ser, pelo menos a últiam, de cunho fáctico.
A consagração deste conceito não se alcançaria, porém, sem dificuldades, porquanto certa jurisprudência cedo de encarregou de determinar a medida em que tal possibilidade de alargamento dos poderes cognitivos - digamos, do STJ - não poderia ser suscitada como tema de recurso mas sim operada apenas oficiosamente pelo tribunal de recurso ao conhecer o tema jurídico em causa e desde que os vícios em causa resultassem do próprio texto da decisão recorrida [«por si só ou conjugada com regras da experiência comum»].
Esta dupla limitação - que a lei no seu enunciado expresso não previa como tal - o da ostensividade literal do vício e o da cognoscibilidade apenas ex officio viria, claro, a reduzir o alcance daquilo que era o primitivo escopo do legislador. O tema alargado passou a ser um tema passível de ser relevado discricionariamente a talante do tribunal de recurso.
Para além disso, a densificação do conceito de «erro notório» na apreciação da prova - aquele dos casos típicos em que a questão de facto justificava o qualificativo de «alargada» ao recurso de revista - foi de tal modo tornada exigente que ela se tornou de quase impossível aparição, acantonada aos casos em que a ostensividade do erro fosse gritante que quase se apodaria de grosseiro.
Em segundo lugar, retornou para a lei processual penal a categoria conceptual da «apelação» - quando a Lei da autorização legislativa da qual emergiu o CPP novo consagrou [Lei nº 43/86, de 26 de Setembro, artigo 2º, n.º 2, ponto 72] que ocorreria no novo Código a «atribuição ao tribunal da relação de competência para conhecer, em apelação, dos recursos interpostos de decisões interlocutórias e finais do juiz singular e de decisões interlocutórias emitidas pelo tribunal colectiva, e para, em certos casos, renovar a prova, caso não reenvie o processo para o tribunal colectivo» [itálico nosso].
Tratava-se de pôr em marcha uma ideia que o preâmbulo do Código, ingénuo porque confiante, assim exprimia: «Com o mesmo propósito de emprestar ao recurso maior consistência, procura contrariar-se a tendência para fazer dele um labor meramente rotineiro executado sobre papéis, convertendo-o num conhecimento autêntico de problemas e conflitos reais, mediatizado pela intervenção real de pessoas. Por isso se submetem os recursos ao princípio geral - aliás juridico-constitucionalmente imposto! - da estrutura acusatória, com a consequente exigência de uma audiência onde seja respeitada a máxima da oralidade».
Ora feito o balanço ao escopo e âmbito das audiências nos tribunais superiores e ao modo como funcionaram, nomeadamente no que respeita a essa «máxima oralidade» e essa proclamada «apelação», elas acabaram por entrar numa tal caducidade por não uso que o legislador teve, misericordioso, que torná-las opcionais, donde de aparição raríssima para possível desaparecimento, também aqui pelo não uso.
Em terceiro lugar, como acabamos de ver, tentou-se, com este novo Código de Processo Penal, a consagração de um sistema de renovação da prova, pelo qual a segunda instância, mais do que um tribunal de rescisão, funcionaria como um tribunal de um verdadeiro segundo julgamento, pois ocorreria também a «consagração, para todas as espécies de recurso ordinária, interposto da decisão final, da garantia do contraditório, sem possibilidade porém, de réplica nos recursos que sejam exclusivamente de direito» [ponto 71, do preceito citado].
Considerando o número de vezes em que ocorreu a renovação da prova - a meu conhecer nunca - viu-se em que medida a consciência da inutilidade da novidade a tornou candidata à morte anunciada logo no acto de nascer.
Enfim, determinou o legislador do novo Código de 1987, a implementação de um sistema de reenvio do processo «para o tribunal colectivo» [ponto 72 da Lei de autorização]. Eis o que vingou [e também para o tribunal singular], afinal um sistema de pura cassação com consequente anulação do antes decidido.
Neste panorama de realismo desolador, tentou a última reforma do CPP [por alteração ao seu artigo 431º] uma abertura controlada à modificabilidade pelo tribunal da Relação do veredicto de facto constante da decisão recorrida. Isso em três casos.
Em primeiro lugar, reiterando-se que isso ocorre no caso de ter havido impugnação da prova, com o cumprimento nas conclusões da motivação do recurso de tais ónus de indicação do lugar onde a prova se encontra e a menção a qual o facto probando que pretende fazer triunfar em substituição do provado que se abriu a porta a um exercício de escrita tão formulária que se corre o risco de nunca se acertar no modo de colocar a questão e ver por esta forma perigar a questão em si. Recorrer em matéria de facto passou a ser uma arte de escrita em que triunfam formalidades sobre substâncias.
Em segundo lugar, e em aparente inovação, «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base», fórmula aparentemente liberal mas que redunda, afinal, numa revivescência do espírito do Assento de 1934, acima visto, com a cultura restritiva que lhe detectámos e que a jurisprudência logo aplicou.
Enfim, eis a insistência na ilusão funesta, «se tiver havido renovação da prova».
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A lógica rescisória inerente ao recurso penal é, não tanto uma lógica meramente revogatória mas diversamente um sistema resolutivo, pois que fundamenta-se numa sanção anulatória pela falta de fundamento da decisão recorrida. Mas esta lógica concatena-se com uma outra, a denominada lógica de substituição, em que o tribunal de recurso, substituindo-se ao primeiro, profere uma decisão que ocupa o espaço jurídico antes preenchido pela primeira.
Ora na mecânica prática das coisas a primeira é mais tentadora e talvez por isso mais frequente. Assim sucedeu.
Fechemos voltando à História.
Primeiro, para lembrar em que medida o despacho de pronúncia – verdadeiro exame de mérito sobre a suficiência indiciária da acusação – que começou historicamente por beneficiar, ainda nos tempos da Ditadura, de um duplo grau de jurisdição, se tornou hoje, sob a bandeira da Democracia, absolutamente irrecorrível, tornando insindicável a fase preparatória, mesmo quanto a questões de legalidade, o que é um escândalo legal.
Esquecem os que em nome da eficácia e da celeridade – como se amanuenses fossem de um serviço administrativo – que só há independência judicial havendo sindicabilidade dos actos judiciais, nomeadamente dos actos incertos, típicos das fases embrionárias do processo em que o magistrado autor tem o benefício de consciência de proferir a penúltima palavra.
Em 1939 o único sistema de recurso de mera revogação era o recurso extraordinário de revisão, todos os demais eram de substituição: o tribunal ad quem substituía-se ao tribunal a quo e proferia a decisão que tinha como justa. Só o contencioso administrativo era de mera anulação.
Em 2011, os casos em que o tribunal recorrido vai para além da mera rescisão e arrisca consagrar uma decisão de substituição são, na lógica do sistema, fora dos casos de dosimetria punitiva ou escolha da espécie da pena, excepções.
O recorrente penal avisado já não se ilude quanto ao reexame do caso, tem esperança, isso sim, numa segunda oportunidade que lhe advenha da cassação do decidido. A lógica antiga do contencioso administrativo triunfou sobre as exigências substanciais que deviam ser as da Justiça penal.

A função alegórica


E não haverá lei que, mandando que a Força condene por causa do crime, não permita agraciá-lo e com Vigor, em nome da suprema graça da Beleza? Não há, inventar-se-à pela retórica forense, forma de levar o juiz a ser advogado da sua própria causa. A função alegórica sugestiva da poética, o sumo convencimente triunfam sob a geometria legalista, com riso diluviano e pompa togada! Não há melhor figuração forense do que a cinematográfica, melhor palco do que o pretório.

O ter e o dever

De que serve a hermenêutica para decifrar leis vindas de um legislador as escreve quantas vezes não sabendo escrever, entre conceitos vagos e imprestáveis e palavras que sendo as mesmas se contradizem, legislador de um enredado labirinto de previsões que se anulam e sobrepõem, revogam e abrogam e no tempo se aplicam em conflito permanente e são a porta aberta à taberna da discussão, à navalhada infame e aleivosa da interpretação em contrário, que surpreende de emboscada, do entendimento que numa penada modifica o sentir do que era tido por dominante opinião, trazendo insegurança ao pouco seguro, incerteza ao já incerto?
De que serve a dogmática como exercício mental para edificações abstractas e compendiais, monumentais torres davídicas de vaidade doutoral tão bacoca de barroca, a que falham fundações, edificadas sobre a lama da vida e suas palhotas, palácios exibicionistas sob palafitas em risco de desmoronar permanente?
De que serve a jurisprudência sem jurisprudentes, a legística de leis sem normas, o ordenamento jurídico num mundo sem ordem?
De que serve, na repartição pública da praxística, no salão forense onde se acumulam amanuenses copistas do já decidido mesmo que não decida, seguidores com idêntico como se fosse igual, eu estar para aqui a ruminar estas imprecações, sem moral que tenha nem exemplo que dê?
De que servem as poucas excepções, os desiludidos, a meia dúzia de optimistas, desejosos de um qualquer milagre que lhes devolva humanidade e lhes retire este mundo feio, sem lei nem rei?
De que serve o Homem ter inventado o primeiro dever para proteger o seu primeiro ter?

O charco palustre

Pois, eu tento reconciliar-me com ele, depois de o vilipendiar, achando-o charco palustre de retórica, onde coaxam rãs argumentativas, duendes legitimadores de apriori's decisórios, zombies alucinados pela fabulação teorética, obnubiladora do horror da injustiça porque alucinogénica, levando-os, pobres mecânicos da hermenêutica, a viagens pelo firmamento da dogmática, do construtivismo, afinal da alienação...e no fundo sofistas alguns, amanuenses de cartórios outros, serventuários do ensino formador profissional uns poucos, e raros, mais raros dos que se julgam os verdadeiramente felizes, os socialmente úteis, os que estejam em harmonia com a música do universo. Escrevi isto a propósito do Direito, num comentário. Depois descobri que era exagerado e, no entanto, profundamente verdadeiro...


Distinguir e não extinguir

O juiz Dr. António Martins perdeu a cabeça e com isso perdeu a razão. Confundiu a insignificante parte com o imenso todo e sugeriu que a Ordem dos Advogados pudesse ser extinta. Foi uma emocional retorsão contra quem clamava que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses deve ser extinta.
Ora um juiz não deve ter emoções. Cabe-lhe agora ter o gesto razoável de se explicar e dar à classe dos advogados a palavra de respeito a que esta tem direito. Nem os juízes querem que acabe a Ordem dos Advogados nem os Advogados querem que acabe a Associação Sindical dos Juizes Portugueses. Há quem diga coisas sobre isso em momentos de ira. É diferente. E na percepção da diferença está a única forma que ainda temos de não arrastarmos a Justiça para o caos, agora que o País vai a pique.

P. S. Sou também Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados. Não foi o titular desse cargo quem escreveu isto, pois nem teria legitimidade para tal. Sou eu, porque Portugal ainda é um País livre.

Férias e equiparadas

O legislador quando escreve normas devia pensar na totalidade dos que terão de as aplicar e não apenas naqueles outros em que está a pensar no momento ou na lei que faz parte do seu quadro mental de referência.
Carregado de má consciência, o autor do Decreto-Lei n.º 35/2010, de 1 de Abril - até pela numeração do diploma se vê como o Governo está imobilizado num país em que governar é legislar - resolveu proceder à «harmonização das férias funcionais dos diversos intervenientes processuais». Isto porque desde que amputou os supostos dois meses de férias forenses tem encontrado pela frente primeiro a revolta e depois a resistência passiva.
Só que o normativo em causa dá que pensar. Logo por uma lógica que mantém. Imagino mal, vestindo a pele de magistrado, que não se pratiquem actos processuais «nos dias em que os tribunais estiverem encerrados», fórmula infeliz que se tem mantido e que a prática aos fins-de-semana e feriados de muitos actos processuais, da autoria de magistrados que os firmam como forma de terem o serviço em dia, desmente.  
Penso que subjacente a esta fórmula, que não foi alterada e vem do transacto, está a noção da funcionalização do magistrado sujeito, qual amanuense, à regra dos dias úteis de abertura e fecho da repartição como calendário único de função.
Além disso, sempre fica a dúvida quanto à valia jurídica de actos praticados em dia em que não é permitida a sua prática. É que uma coisa é o dia da prática do acto outra a da exteriorização do acto. A notificação ordenada num processo a um domingo seá inválida ou inválida será apenas se efectivada a um domingo? Ou supõe o legislador que o autor do acto adultere, falsificando-a, a data de prática efectiva do acto?
O sentido essencial da reforma é, no entanto conceder um período de defeso de um mês e meio para que se não pratiquem actos processuais, pois eles não ocorrem «durante as férias judiciais» e «durante o período compreendido ente 15 e 31 de Julho», período relativamente ao qual o legislador disse que se lhe atribuía «os mesmos efeitos previstos legalmente para as férias judiciais». Dicotomia esta que traduz no seu bojo a ideia de que para além das férias de um mês há mais quinze dias equiparados a férias, velho modo de entrar pela janela o que não cabe pela porta.
Prevalecendo-se do ensejo o Bastonário da Ordem dos Advogados veio dizer em comunicado à classe: «a segunda quinzena de Julho era um período em que os Advogados eram obrigados a cumprir prazos judiciais, embora os tribunais estivessem de facto em férias judiciais por decisão contra legem dos magistrados».
Pena finalmente que o legislador não se tenha lembrado que não há só o processo civil, sobre o qual legislou, mas muitos outros processos, do penal ao administrativo e tantos mais, relativamente aos quais o CPC é aplicável como norma subsidiária, havendo sempre interpretações jurisprudenciais divergentes quanto a saber quais os limites dessa subsidiariedade.
Teria sido assim mais fácil redigir uma norma que abrangesse as várias modalidade de processos ou pelo menos dissesse de modo claro que a todos se aplicava.
Um pormenor de técnica legislativa. A alínea b) do n.º 5 do artigo 144º do CPC saíu assim na folha oficial: b) Quando se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes, salvo se por despacho fundamentado, ouvidas as partes, o juiz a determine.». Assim mesmo como uma aspa, como se o legislador citasse algo. Fim de citação!

Pôr em ordem os prazos ordenadores

Há contradições interessantes. Um Acórdão de 7 de Abril da Relação de Lisboa [relator Sérgio Corvacho] entende e bem que o prazo para a dedução de acusação em processo abreviado é peremptório. Pode ler-se o sumário aqui.
Consta da sumariada fundamentação:
«III. Afigura-se inequívoco que a mais recente Reforma do CPP veio reforçar drasticamente as características de simplicidade e celeridade da forma de processo abreviado. Face a uma reforma legislativa orientada nesse sentido, tornar-se-ia incompreensível que se tivesse passado a atribuir ao prazo a que se reporta o nº2 do artº 391º-B, do CPP, um carácter meramente ordenador. Se assim fosse, o único limite temporal verdadeiramente inultrapassável para deduzir acusação em processo abreviado residiria no prazo de prescrição do procedimento criminal.
IV. Impõe-se concluir que, mesmo depois da Reforma introduzida pela Lei nº 48/07, de 25/8, o prazo de dedução da acusação em processo abreviado continua a revestir natureza peremptória e a sua preterição faz precludir a tramitação do processo sob essa forma especial».
Ora sendo o processo penal, na sua generalidade, a materialização adjectiva de um regra de celeridade que é tida como uma garantia fundamental do processo criminal [vejam-se os pontos 1 e 2 do artigo 2º - norma sobre o sentido e extensão da Lei n.º 43/86, de 26.09, que autorizou o Governo a redigir um CPP, o de 1987], prevista no artigo 6º da CEDH, e estabelecendo o artigo 276º do CPP que há prazos «máximos» de inquérito - o que consta aliás duas vezes da epígrafe do artigo e do seu n.º 1- pergunto: que lógica há para se considerarem como meramente ordenadores os prazos para a dedução de acusação em processo comum e peremptórios os previstos para o processo abreviado?
É que há que esclarecer o porquê da dualidade, salvo tratando-se de uma diferenciação arbitrária e salvífica para a investigação morosa, baseada numa lógica jurídica que em ironia teria teor: não é só o impossível legislativo se tem de ter por não escrito, o judiciariamente difícil passa a não obrigatório.
É que em 26 de Janeiro de 2006 a Relação de Lisboa entendia [relator Cid Geraldo] que «IV- Os prazos referidos no artº 276º CPP (de encerramento do inquérito) são meramente ordenadores e não peremptórios - o que bem se compreende, dado não ser possível demarcar o tempo de uma investigação criminal».


O retorno do filho pródigo

Depois de algum tempo e pousio regressa este blog, como local de comentário jurídico. Surge ligado a um site profissional que se pode ver aqui.