Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




A teoria do conflito irreal

Eu sei, por ter tentado aprender e ter tentado ensinar que o problema do concurso de crimes e de normas é dos mais intrincados do Direito Penal. É verdade. Mas a tentativa de mostrar que o concurso aparente não traduz um conflito real pode dar azo a um momento irreal. Se o Direito e seus problemas fossem assim tão simples e tudo fosse apenas um modo de dizer por outras palavras!
É bom estar em férias e poder sorrir...

O menor denominador comum

Vistas com mais minúcia, decomposto o raciocínio que lhes está subjacente, muitas decisões jurisprudenciais e quanta literatura jurídica - aquilo a que [de novo a recorrência teológica] se chama "doutrina" - são manifestações puras de voluntarismo infundamentado e autoridade não convincente. As excepções notam-se.
Voluntarismo, porque afirmam e decidem, dizendo que ante o problema é esta a solução, sem que, primeiro, problematizando a questão, verifiquem da sua correcta configuração, e depois se ocupem da adequação do modo de enunciar os problemas que cabe resolver. São diktats emanados de quem sente poder sem ter interiorizado que há, em anterioridade a esse poder, o dever. E no caso o dever é o de convencer. E na Justiça o convencimento do outro só pode resultar da força do eu. De outro modo um qualquer maquinismo faria as vezes, fazendo de conta. Ora não há convencimento sem fundamentação. E não há fundamentação sem argumentação em que o ser de quem decide se jogue todo, na plenitude do seu intelecto e do seu afecto pela vida, no acto de ter decidido. De outro modo entre um copista e um amanuense a coisa resolver-se-ia.
E aqui entra a questão da autoridade: o fundamento do decidido passou a ser, em cada vez mais vezes, o previamente pensado por outrem. É a lógica da citação, com o seu caudal de fórmulas tão ocas quanto seguidistas do estilo do «na esteira de», ou o «conforme já doutamente» e quejandas, quantas vezes mais não sendo do que a abdicação do pensar o pensado. A ideia inqualificável da «jurisprudência maioritária» ou da «doutrina dominante» passou a entrar nas formas de fundamentação jurídica, como se na interpretação da norma a questão fosse a votos, triunfando quem mais espingardas tivesse do seu lado, ainda que irrazoáveis, o triunfo da força sobre a razão! E, no entanto, se mais vezes se voltasse sobre os mesmos passos, menos vezes se percorreriam caminhos erróneos.
Claro que há em tudo isto equívocos, aporias,  incertezas.
Logo uma que decorre de se dar como igual o que nem sempre é sequer idêntico. Os que se viciaram na erudição jurídica comparatista nem se perguntam, quantas vezes na exibição de leituras que traduzem nos seus escritos, se o que imputam a certo e quantas vezes ignoto autor [germânico de preferência] tem sustentação em igual norma, igual sistema, igual contexto, em suma, igual ordenamento. Vale o mesmo para quantos em "copy paste" que a informática hoje permite, transcrevem como adequado, por ser o mesmo exemplo, o que, pensado em função do caso, se mostraria exemplarmente impertinente.
Mas não só. Logo outra fragilidade existe ao supor-se que a segurança jurídica impõe que o já decidido decidido esteja e que essa lógica do caso julgado passe dos factos para o Direito, abrindo a porta - por comodidade claro e celeridade - às decisões sumárias por semelhança, injustas até, mas despachadas.
Há em tudo isto uma falha grave, imposta por uma deficiência séria.
A falha grave é que à individualização humana do caso e à interiorização mental do problema - a primeira por respeito à dignidade de quem é julgado a segunda por respeito à dignidade de quem julga - segue-se hoje em dia uma lógica de massificação, nivelamento e padronização que torna toda a riqueza da vida sub iudice em categorias redutíveis ao menor denominador comum. A justiça do caso passou a ser uma espécie de atendimento personalizado para uns poucos, tudo o mais enfileirado na mesma lógica com que se resolvem as filas de espera no Serviço Nacional de Saúde. A pergunta se é possível fazer-se melhor.
A deficiência séria é que, se não fosse assim, o sistema funcional incumbido de julgar soçobraria ante a massa crítica de casos no qual se move. E não é só a quantidade de vida que se reduz à quantidade de processos e a quantidade de decisões a que se reduz a tarefa do sistema e avaliação de quem o serve. À tirania da estatística irmana-se a tirania da forma. A processualite passou a ser uma patologia grave dos fígados do sistema jurídico. Um destes dias se falará aqui disso mesmo.


O labirinto da perplexidade

Talvez tenha sido uma manifestação do kantismo filosófico que expulsou do Código Civil de Seabra o homem - e só ele poderia ser sujeito de direitos e obrigações - e esse acto de homízio que abriu as portas para a entrada em cena daquela inumana personagem que dá por nome de "sujeito", a qual, ao lado do "facto", do "objecto" e da "garantia", e com eles igualado como se coisa idêntica e de igual peso, integra, já sem corpo nem cheiro, os elementos essenciais da chamada "relação jurídica".
Seja qual for o pensamento que ditou tal mudança, certo é que, nesse genocídio construtivista radicou a génese de um Direito tecnicamente estruturado na dispensabilidade do humano. Faltava o resto: a ilusão de que o jurídico é ciência e não Arte e com ela a construção de sistemáticas lógico-dedutivos auto-apelidados, em recorrência vocabular teológica, de dogmática. A caucionar como se teoria fosse o que não escapa a ser uma retórica legitimada.
Parecem e talvez o sejam, migalhas insignificantes estas matutinas reflexões minhas. Mas marcam um caminho mental feito de labirintos em que a vida se perdeu, entre caminhadas pelo real da experiência sofrida e excursões pelo ideal da literatura estudada.
De uma coisa estou certo. Entre a massificação da litigação em que o Direito se torna regulamento diário para ainda poder ser norma e as exemplaridades mediáticas em que se torna casuística para tentar ser moral, a Justiça, ante o cilindro compressor do seu quotidiano funcional, deixou de ter tempo para tragédias existenciais. E são essas que povoam, como sombras de remorsos, os seus corredores, corroem de aflição as folhas áridas dos seus processos e gritam nas entrelinhas da linguagem formulária do processado.
Feito função, tornado técnica, imaginada engenharia para a erradicação de patologias da sociedade, o Direito perdeu no seu horizonte diário o concreto humano e a pessoa que o habita e passou a desembaraçar-se da multidão de indivíduos e sua cidadania. É luxo, excepção e favor o aprimoramento e o adensamento, pois não há tempo. 
E, no entanto, quantos tratados de douta e ramificada reflexão se não escrevem sobre um maiúsculo Direito fantasiado pelas cátedras como problematicidade cósmica, quando a vida, no formigueiro da sua nevrose, o tem de admitir como pura questão a resolver no acto do dia, passando-se adiante para o dia seguinte.
Lembrei-me disto ao ter visto romperem lágrimas num acto processual. E ante a sua irrelevância, surgiu, inexorável e por todos consentida, a continuação do que haveria para fazer, como num doloroso acto de dentista ou no pesaroso ritual funerário. Mas já sem dor, diga-se, porque nos tornámos profissionais da forma para que seja ela o resultado que substitua o conteúdo. E eis aqui uma outra porta para o labirinto da perplexidade. Voltarei. A desumanização surge quando não há lugar já para o homem por não haver tempo para o humano. A existência passou a ser uma estatística, a plenitude uma probabilidade.

Impunidade absoluta

Antes de ser norma o Direito é programa e antes de ser programa deveria ser ideia. Supondo-se segurança o Direito terá de provir de ideias seguras. Claro que sendo fruto da política, o Direito acaba por estar sujeito a ideias que os eleitores aceitem, gostando delas. Projectada no espaço mediático a política vive de frases citáveis, tanto melhores quanto mais façam manchete. Em suma, há o risco de o Direito tornar-se a continuação de um editorial por outros meios, as leis parangona jornalística por outra forma.
Lendo o programa do Governo para a área da Justiça - ante o qual manifestei simpatia - vê-se que na área criminal ainda não há ideias totalmente assentes, pois o tom é vago, contrastante sobretudo com o que se passa no domínio das propostas medidas em outras áreas. 
Agora o que é importante é que a titular da pasta da Justiça, cujo pensamento ainda está por descortinar, não se deixe aprisionar por frases redondas que, ao limite, prometem o que não se pode cumprir e acabam por dizer algo para não ter dito nada. 
Li aqui, - e inútil dizerem que o blog é contestável, porque isso os meus também o são e eu leio tudo mesmo aquilo com que não concordo - a capa do jornal onde veio a frase «terminou a impunidade absoluta da corrupção», imputada a Paula Teixeira da Cruz.
Admito que a frase esteja fora do contexto. Que foi um facilitismo jornalístico destinado a puxar pela venda do jornal. Só assim não desanimo. É que se estamos numa de rigor que não se digam ambiguidades.
A corrupção pode ser minimizada, talvez não eliminada. Mesmo que supressão da sua vergonhosa generalização seja possível não é por causa da frase «terminou a impunidade absoluta» que ela acaba ou que acaba a «impunidade absoluta». Só Deus cria pelo Verbo. Ou então o que se quer dizer é que terminou a «impunidade absoluta» vamos entrar no domínio da «impunidade relativa».
Haja pois tento na língua!

Dualidade de jurisdições: fiscal e penal

«( ...) a jurisprudência consolidada no Tribunal Constitucional tem vindo a considerar que não existe sequer uma reserva constitucional absoluta da jurisdição administrativa e tributária, pelo que o legislador não se encontra impedido de cometer a outros tribunais — que não os administrativos e tributários — o conhecimento de questões decorrentes de relações jurídico-administrativas e tributárias, desde que tal não descaracterize o modelo de dualidade de jurisdições». Eis o que foi considerado pelo Tribunal Constitucional em acórdão de 05.05.11 [publicado aqui] segundo o qual «não julga inconstitucional a interpretação conjugada das normas extraídas dos artigos 50.º do Código Penal e 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, segundo a qual cabe a um juiz criminal aferir da falta de pagamento de dívidas de natureza fiscal, para efeitos de aplicação da suspensão da execução de pena de prisão por abuso [de confiança] fiscal».

Sentença sem presos por causa do gasóleo

Não acredito no que leio, que razões economicistas há presos não são transportados para ouvir a leitura das sentenças!
Como se a sentença fosse uma burocracia dispensável!
Um sistema que pressupõe a ressocialização de um arguido e funciona na base da sua ausência ao acto mais solene em que a Justiça lhe faz ouvir a suma das suas responsabilidades, fundamentando o porquê, terminando inclusivamente por uma exortação que o convide à vida conforme o Direito, dispensa, como se de um boneco tratasse, o arguido?
Um sistema que obriga o juiz a um trabalho insano de escrita para a sentença, com a minuciosa fundamentação, em que deve consignar o exame crítico da prova a seguir aos factos, o Direito aplicável e o critério da escolha da medida da pena - a haver pena -  funciona bem com um acto que deveria ser destinado a vencer o arguido pertinaz convencendo-o da sua culpa, e abrindo a primeira brecha para a recuperação da sua personalidade desviante, quando é o caso de uma condenação, é lido na sua ausência podendo ele estar presente, pode sentir-se confortável com a sua forçada revelia, o juiz travestido em burocrata escrevente para o vazio?
Um sistema que pressupõe que o arguido compareça todas as vezes que notificado, verga ante a falta de gasóleo dos serviços prisionais, o Poder Judicial ao serviço dos interesses da intendência do Ministério da Justiça?
Mas acaso o arguido é uma figura de segunda, uma mercadoria incómoda, de que a Justiça se vê livre logo que possível, dispensando-o, porque assim é mais barato?
Haja vergonha e sejamos dignos de um Estado de Direito!
Ou então assumamos aquela miséria moral que eu senti na pele quando há muitos anos fui à Relação de Évora para um interrogatório para extradição e fui informado que o senhor Desembargador ouvia os presos na cadeia. «Na cadeia?» perguntei eu, ingenuamente atónito. «Sim, senhor dr. assim já lá ficam», respondeu-me o solícito funcionário.

Programa do Governo para a Justiça

Lê-se e fica uma ideia simpática ante o que se lê. É o programa do Governo para a área da Justiça. Claro que alguns enunciados são abertos e vagos. A simpatia pode surgir daí. Além disso, importa saber quem vai ser incumbido de propôr e se há ou não um controlo político efectivo do que for proposto para que as necessárias mudanças não fiquem ao serviço de interesses particulares ou de grupo. E se haverá um controlo efectivo da aplicação das medidas, sabendo-se que a prática jurisprudencial pode descaracterizar qualquer reforma tornando-a no que não se queria. Veja-se o que se passou em matéria de documentação da prova, de exame da matéria de facto, de declaração da excepcional complexidade, das medidas coactivas.
Enfim, é preciso mudar quando uma das queixas quanto ao sistema é a sua constante mutabilidade, donde a respectiva insegurança. Não é fácil encontrar equilíbrio.
Mas repito com a mesma esperança de quem sabe que este Governo não pode falhar porque se tal suceder falha algo superior e ele próprio, é o País quem falha.

«O sistema de Justiça é um pilar do Estado de Direito e uma das funções de soberania fundamentais do Estado que tem como desígnio primeiro o cidadão, na defesa de direitos, liberdades e garantias e um factor de eficiência da economia, sendo transversal a sua importância na vida política e social.
Importa melhorar a qualidade do Estado de Direito, reforçar a cidadania, dignificar a Justiça e os seus agentes e combater a corrupção, bem como agilizar os sistemas processuais. As reformas a empreender só podem ser levadas à prática com o envolvimento dos órgãos de soberania, dos operadores judiciários e respectivas instituições e da sociedade.
Objectivos estratégicos
- Estabilizar a produção legislativa;
- Sujeitar todas as leis à avaliação das respectivas eficácia e eficiência, princípio que se estende à avaliação dos projectos e das  propostas de lei, impondo-se a prévia  aferição da situação existente e dos custos, resultados previsíveis e interesses afectados pelas reformas a introduzir. A avaliação será levada a cabo no âmbito dos respectivos órgãos de soberania;
- Assegurar  o acesso universal  à Justiça e ao Direito e  garantir  a tutela judicial efectiva dos interesses legítimos dos cidadãos e  dos  agentes económicos, em particular dos grupos mais frágeis da sociedade;

- Os recursos humanos na Justiça abrangem, actualmente, mais de 27  mil pessoas. Em nome da responsabilidade perante estas pessoas e perante toda a comunidade, o Governo estabilizará as suas regras de funcionamento e deixará claro a todos os seus agentes que  uma sociedade democrática e
economicamente dinâmica deve assentar na confiança no sistema judicial;
- Assegurar a independência judicial e a autonomia do Ministério Público, pois a construção do Estado de Direito exige instituições fortes e prestigiadas, com identidade própria, forjada na sua história e na acção. Dar  confiança aos cidadãos no desempenho das magistraturas, profissionalizando e racionalizando, de acordo com as boas práticas internacionais, os critérios e os procedimentos
de gestão judiciária;
- É intenção do Governo restaurar o modelo das “profissões jurídicas”, em que as diferentes profissões  – juízes, de magistrados de Ministério Público, de advogados, de notários, de conservadores, de solicitadores, de funcionários judiciais, de agentes de execução e de outros auxiliares da Justiça – se possam rever, com regras claras, e os cidadãos nelas;
- Assim, as reformas a introduzir serão objecto de participação,  de ampla divulgação e de debate público e transparente. Todos os elementos fundamentais da governação serão publicados:  os  contratos do Ministério, nomeadamente  os  imobiliários,  as  estatísticas da Justiça,  os  orçamentos e  as contas,  os  projectos de reforma legislativa e  os  seus debates, permitindo um
maior escrutínio público;
- O combate à corrupção e aos conflitos de interesses são determinantes para realizar uma sociedade mais justa;
- Aumentar a eficiência, reduzir custos, evitar os desperdícios e centralizar a gestão de equipamentos.
Medidas
- Instituir como prioridade a criação de mecanismos institucionais e processuais de protecção dos direitos de personalidade em casos de urgência. A ausência de mecanismos  - especialmente judiciais  - para tutela urgente dos direitos das pessoas constitui uma lacuna do sistema processual português, para a qual têm chamado a atenção os tribunais e instituições internacionais de protecção dos
direitos do homem;
- Adopção de um Estatuto da Criança que estabeleça a necessária sistematização e coerência entre as disposições do Código Civil, da legislação de menores e da legislação penal e contra-ordenacional. A Justiça dos menores – tal como a dos idosos  – não  supõe apenas instituições administrativas e serviços judiciais adequados;  requer igualmente a existência de  legislação própria, em particular
no que toca ao apoio às associações que prossigam fins de interesse social;
- Actualmente, os cidadãos idosos estão sujeitos a práticas que atentam contra os seus direitos mais elementares.  A revisão do regime das incapacidades previsto no Código Civil (interdição e inabilitação), em especial dos idosos,  terá em consideração  um tratamento específico dos problemas relacionados com o seu modo de vida a que a evolução demográfica obriga, particularmente no que
respeita à preservação da sua autonomia;
- Alteração da Lei Tutelar Educativa;
- A legislação orgânica dos tribunais e a legislação processual devem ser congruentes na definição clara do papel dos Supremos Tribunais de Justiça e Administrativo como tribunais de uniformização da jurisprudência e não, em regra, como instâncias;
- Gerir o  sistema  judicial em função  de objectivos preferencialmente quantificados, círculo a círculo, comarca a comarca e sector a sector, avaliando com regularidade o seu grau de concretização. Esta é uma mudança absolutamente essencial para combater a morosidade judicial;
- Dotar os Tribunais de uma gestão profissional e do necessário apoio técnico;
- A melhoria dos sistemas de informação e de controlo de gestão é um elemento fundamental para aumentar a eficiência, reduzir custos e evitar desperdícios;
- Melhorar o sistema de recrutamento e formação dos magistrados, revitalizando o Centro de Estudos Judiciários como entidade vocacionada para a formação dos diferentes operadores de justiça. O programa de formação deve ter um tronco comum e deve incluir noções básicas sobre o funcionamento da economia, das empresas e de gestão;
- Assegurar a especialização dos operadores judiciários;
- Introduzir a contingentação processual;
- Avaliar as alterações que o regime das custas judiciais tem sofrido nos últimos anos e uniformizar os respectivos regimes;
- Fazer corresponder as novas tecnologias a um princípio de unificação.
- Criação de uma bolsa de juízes de reacção rápida para atrasos crónicos, dos Conselhos respectivos, associada a um mecanismo de alerta informático que permita uma intervenção rápida e eficaz;
- Consagração de normas visando uma limitação acentuada da participação dos magistrados em comissões de serviço fora da judicatura;
- Estabelecer uma verdadeira avaliação do desempenho dos magistrados, a ser levada a cabo pelos Conselhos Superiores;
- Simplificação processual, designadamente com sentenças simplificadas, fazendo com que, em determinado tipo de processos e sem diminuição de garantias, a sentença possa ser elaborada a partir de minuta própria e adequada, previamente elaborada;
- Redução das formas de processo, simplificando o regime e assegurando eficácia e celeridade, apostando, ao mesmo tempo, na desformalização de procedimentos, na oralidade processual e na limitação das questões processuais relevantes, tornando o processo mais eficaz e compreensível pelas partes;
- É crucial alterar o paradigma do processo decisório dos juízes, presentemente chamados a presidir a todos os actos do processo, a proferir todos os despachos, ainda que de mero expediente, a presidir a todas as audiências, o que, na verdade, constitui um ponto de bloqueamento administrativo do sistema
judicial;
- Criação de gabinetes de apoio em cada Juízo ou agrupamento de Juízos, para que os juízes se possam dedicar quase exclusivamente à sua tarefa essencial. Tais gabinetes de apoio serão constituídos maioritariamente por juízes em formação, fazendo parte integrante do seu estágio. O mesmo modelo de funcionamento será aplicado à estrutura do Ministério Público;
- Criar um novo paradigma para a acção declarativa e para a acção executiva. As pendências cíveis têm de ser drasticamente reduzidas e é preciso criar condições para que os processos se concluam em tempo útil e razoável, dando adequada resposta  às expectativas sociais  e económicas  e atacando directamente os pontos de bloqueio do sistema;
- Consagrar novas regras de gestão e tramitação processual;
- Tornar obrigatória a audiência preliminar tendo em vista a fixação, após debate, dos “temas controvertidos segundo as várias soluções plausíveis de direito” e as “questões essenciais de facto carecidas de prova” e programar as diligências de prova em audiência final;
- Conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto;
- Reformar a acção executiva  no sentido da sua extinção sempre que o título seja uma sentença, devendo a decisão judicial ser executada em liquidação de sentença ou tramitar como incidente da acção;
- No caso de existir um título executivo diferente de sentença, deve ser criado um processo abreviado que permita a resolução célere dos processos, sem prejuízo da reponderação das condições de exequibilidade dos documentos particulares  como títulos executivos (mantendo-se o actual regime de
exequibilidade dos títulos de créditos),  que só poderão ter a virtualidade de adquirir força executiva quando for inequívoca a obrigação exequenda e estiverem asseguradas as garantias das pessoas contra execuções injustas;
- O Governo empenhar-se-á na criação das soluções institucionais que facilitem a cobrança de créditos das empresas, indispensáveis à sua sobrevivência;
- Agilizar a execução de sentença no processo administrativo e fiscal e facilitar a citação, permitindo que possa ser feita para a morada constante da base de dados das Finanças;
- Agilizar a actual lei dos processos de insolvência, redefinindo as prioridades dos credores no sentido de decisões rápidas que permitam, sem anular a defesa dos interesses do Estado e dos trabalhadores, contribuir para a aceleração da recuperação económica dos activos;
- Desenvolver a  justiça  arbitral. Nos campos da  justiça civil, comercial, laboral, administrativa e fiscal, o Estado, os cidadãos e as  empresas darão um passo importante se tiverem meios alternativos aos Tribunais, podendo entregar a resolução dos seus litígios aos Tribunais Arbitrais;
- Melhorar a imagem da justiça criminal e garantir os direitos dos cidadãos;
- Revisão do Código Penal e o Código de Processo Penal no sentido de ampliar e efectivar a aplicação do processo sumário quando se trate de detidos em flagrante delito, e ampliar a aplicação de prisão preventiva nos crimes com penas superiores a três anos;
- Para além da tipificação excessiva de crimes, de leis avulsas e do excessivo número de alterações ao Código Penal de 1982, assinala-se ainda o excesso de contra-ordenações e a falta de proporcionalidade interna. Falta um critério geral e simples de justiça material, facilmente entendido pelo cidadão  - designadamente o critério de que a pena pelo ilícito sempre deve ser proporcional à gravidade do acto praticado e ao benefício indevidamente recebido;
- Para além da ausência de critérios de justiça e de proporcionalidade na fixação das penas e das coimas, o excesso de leis penais e contra-ordenacionais tem um resultado perverso na boa organização da vida social;
- Reforço da autonomia e da responsabilização do Ministério Público no exercício da acção penal, cabendo-lhe dirigir toda a investigação num modelo em que o magistrado responsável pela investigação deve assegurar o processo na fase de julgamento;
- Reforma da  instrução como momento processual próprio, anterior ao do julgamento, para verificação do cumprimento dos princípios fundamentais do Estado de Direito;
- Fixação de prazos peremptórios para os inquéritos criminais quando correm contra suspeitos ou arguidos, de modo a impedir o prolongamento por tempo indefinido das investigações, com excepções muito restritivas como os casos de alta criminalidade organizada;
- Reforço do estatuto penal das vítimas, consagrando novos direitos de informação, apoio e intervenção no processo, admitindo a constituição como assistente do Estado, com o consentimento da vítima ou da família;
- Reforço da fiscalização das denominadas saídas precárias e tornar mais rigoroso o regime de concessão de liberdade condicional;
- Assegurar uma justiça de proximidade e a desjudicialização de conflitos.
- O mapa judiciário tem de ser pensado também do ponto de vista dos utentes do sistema de justiça. A qualidade do sistema de justiça  deve ser aferida pelos utentes da justiça e não apenas pelos seus profissionais. Neste contexto, há que recorrer a mecanismos mais flexíveis como a figura dos juízes agregados;
- Apostar num sistema de carreiras planas, permitindo que a evolução na carreira de um magistrado não esteja dependente de um modelo hierárquico nos Tribunais, reforçando a capacidade de resposta do sistema de justiça e permitindo o aproveitamento das melhores  capacidades dos magistrados
experientes nos Tribunais que maiores dificuldades de resposta apresentam;
- Importa ainda tomar em consideração boas práticas e recomendações internacionais, evoluindo para as propostas constantes do Relatório da Comissão Europeia para a Eficácia da Justiça (CEPEJ), onde se inclui a obrigação de informar as partes no início do processo quanto ao tempo previsível de duração daquele caso concreto, após uma avaliação do mesmo no quadro da gestão processual.
- Os julgados de paz, criados em 2001, são tribunais dotados de características de funcionamento e organização próprias e um bom exemplo do que pode ser uma justiça de proximidade. Em todo o caso, decorrida quase uma década desde a sua criação, parece adequado fazer uma avaliação detalhada da sua eficácia prática, e introduzir os ajustamentos que se mostrarem necessários à célere resolução da pequena conflitualidade;
- O Governo deverá reapreciar o regulamento emolumentar dos registos e notariado e do respectivo estatuto, de forma a assegurar a existência e sobrevivência do notariado, salvaguardando as legítimas expectativas entretanto criadas;
- Reforçar o combate à corrupção que está progressivamente a minar a confiança nas instituições e na economia;

- Aperfeiçoar o regime do crime urbanístico;
- Determinar a suspensão do exercício de funções de autarcas, nos termos previstos na Constituição para os Deputados e membros do Governo e consagrar uma nova inelegibilidade para eleições futuras;
- Gerir as estruturas e equipamentos de forma centralizada;
- Limitação de contratação de estudos e pareceres a entidades externas e publicação de todos os gastos em consultadoria;
- Eliminação de sobreposições de serviços;
- A abstenção de alterações processuais profundas subsequentes a reformas e a estabilização do quadro legislativo;
- Monitorização das pendências e afectação  dos meios necessários à resolução das mesmas no âmbito do sistema judicial».

E ainda o coeficiente Z...

Filosofemos com os olhos no real. Um cidadão que não pode prevalecer-se da ignorância da lei e um jurista que é suposto sabê-la abrem a folha oficial - ou já nem abrem porque se alcança pelo ciber-espaço - e são atingidos com isto:

«Cria o tribunal de competência especializada para propriedade intelectual e o tribunal de competência especializada para a concorrência, regulação e supervisão e procede à 15.ª alteração à Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, que aprova a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, à 4.ª alteração à Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, que aprova o Regime Jurídico da Concorrência, à 5.ª alteração à Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, que aprova a Lei das Comunicações Electrónicas, à 2.ª alteração à Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho, que estabelece medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e ao financiamento do terrorismo, à 7.ª alteração à Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, que aprova a Lei de Organização e Financiamento dos Tribunais Judiciais, à 1.ª alteração à Lei n.º 99/2009, de 4 de Setembro, que aprova o regime quadro das ordenações do sector das comunicações, à 23.ª alteração ao Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, que aprova o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, à 15.ª alteração ao Decreto-Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril, que regula as condições de acesso e de exercício da actividade seguradora e resseguradora no território da Comunidade Europeia, ao Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, ao Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 36/2003, de 5 de Março, à 2.ª alteração ao Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de Maio, que estabelece o regime jurídico aplicável aos contratos à distância relativos a serviços financeiros celebrados com consumidores, e à 2.ª alteração ao Decreto-Lei n.º 144/2006, de 31 de Julho, que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2002/92/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de Dezembro Notas Pessoais Portaria n.º 250/2011. D.R. n.º 120, Série I de 2011-06-24 Ministério da Economia, da Inovação e do Desenvolvimento Primeira alteração à Portaria n.º 1057/2010, de 15 de Outubro, que estabelece o valor do coeficiente Z aplicável a centrais fotovoltaicas de concentração de forma a permitir remunerar a electricidade produzida e entregue à rede Notas Pessoais Portaria n.º 251/2011. D.R. n.º 120, Série I de 2011-06-24 Ministério da Saúde Aprova o Regulamento do Internato Médico e revoga a Portaria n.º 1223-B/82, de 28 de Dezembro».

É para rir seguramente, mas é só o sumário da Lei n.º 46/2011 da defunta legislatura! Depois ambos têm de ir a cada uma destes diplomas e qual trabalho de tesoura e cola, riscar aqui e aditar acolá.
Tudo isto, claro, é conversa mais do que conhecida, a verborreia legislativa, o caos da legisferação, a incompreensibilidade do que se legisla. E, claro, os monstros frutos destas uniões: os erros em que incorrem os técnicos, os processos que são anulados por causa disto, o tempo que se gasta só para se saber qual a lei que está em vigor e como se aplica no tempo. É tudo tão ridículo como se ante uma máquina o seu operador perdesse mais tempo a saber como é que funciona do que a trabalhar com ela.
Naturalmente que isto ao fim de um tempo causa tédio, um aborrecimento a gerar sono como forma de uma pessoa escapar à rudeza do real.
Dirão que dado que o Direito é um sistema cada vez que se mexe numa peça têm que se alterar todas. Eu acredito tanto quanto sei que quando o legislador não o faz, ei-la, a surgir a controvérsia sobre a lei abrogante e a lei derrogativa. Assim, aqui mexeu-se em tudo, até no coeficiente Z, de Zorro...
Saber qual o Direito em vigor obriga a tirar um curso de Direito e outro de documentalista; para ter a ilusão que se sabe como aplicá-lo entra-se, enfim, na Faculdade de Direito.

A Transfiguração

Encontrei um jurista que estuda Arte e escreve sobre Iconologia Jurídica. E publicou um livro sobre uma obra de Rafael. E que a propósito vai deixando lembranças do mundo sobre o qual tem reflectido. Claro que tendo um filho estudante de pintura dar-lhe-ei a ler a parte deste pequeno livro de Paulo Ferreira da Cunha aberto sobre o tema ogni dipintori dipinge sè, em que anuncia a pequena biografia do Mestre de Urbino,  o ducado magnífico onde já estive tantas vezes por causa do Direito Criminal e suas penas e cuja Universidade é uma preciosidade escondida entre montanhas.
Mas mesmo que não tenha aprofundado quanto estendi a minha leitura pela alegoria sobre a Stanza della Segnatura naquilo em que nela estão presentes os elementos adjuvantes saídos, por exemplo, da interpretação de São Tomás de Aquino, mas «uma certa ideia» do que é a Arte que ali se expõe, ficam os apontamentos e muitas vezes as notas que são banquete para o espírito parecendo migalhas caídas da mesa de uma abastada ceia do pensamento.
Logo a abrir este estudo reflecte a sua contemporaneidade, como se espelhando o dia de hoje, esta semana, o corrente mês, aludindo aos «dias desencantados», fruto do «nihilismo hodierno», a «barbarização e a nesciência», em suma o «aligeiramento a tender para o nada», que são o contexto e, afinal, o cosmovisão de quem pensa a audiência de quem diz o que pensou.
Pensador de uma História que, sendo a da Justiça, tem de ser também a da injustiça, em perpétua vontade de se encontrar no pecado com a virtude, este professor atípico pelo "interessante" do ângulo de visão com que contempla o mundo humano, vendo-o pela cultura mesmo quando da sua negação se trata, surpreende-nos pela narrativa do que caminhou.
Rafael morreu aos 37 anos. Ferreira da Cunha surpreende-o no quadro sobre a Transfiguração como se a percorrer outros caminhos, o Céu como Círculo de eterna Circunferência, que a curta vida não lhe permitiria palmilhar.
É um livro a não perder. Porque o que obras como esta ensinam é que quem quiser estudar Direito estude a Poética e não a Geometria, e não invente na Justiça uma Medicina das Almas porque edificará sobre a fantasia o que serão os escombros da sua desilusão.

Cum Grano Salis

O panorama na blogoesfera jurídica é desolador. Na sua maior parte os blogs estão parados. Eu próprio contribui para isso. Este Patologia Social andou ao sabor dos meus humores, nunca tendo estado a reboque das minhas necessidades. Poderia ter sido uma espécie de arquivo meu. Tentou ser uma forma de intervenção cívica, limitado a não falas dos casos forenses em que tenho intervenção e a proibido a não comentar os casos dos outros. Teve grandes hiatos, períodos de dormência. Agora que regressei vejo que o mesmo mal - distintas porventura as razões - acometeu outros. Uns dormem, tantos morreram.
Vejo que o Cum Grano Salis, onde ainda há a gentileza de manterem o meu nome, revivesceu. Bom sinal, oxalá sintoma. Longa vida, amigos!

O Divino Marquês


Há livros que são eternamente actuais. A esses se chamam "clássicos". No Direito Criminal o livro do Marquês de Beccaria "Dos Delitos e das Penas" é um desses.
Trata-se de um falso pequeno livro. Sobretudo as páginas iniciais. Quem quiser perceber o que lê e não apenas lêr para ir lendo, tem dificuldade em prosseguir. Não porque a escrita seja densa sim porque as ideias nos transportam para o inesperado. Na aparência do "more geometrico" é um livro de poética.
Reconciliado com o Direito, resolvi ir aos livros iniciais. É porque há um ilogismo na nossa formação escolar. Aprendemos os princípios de um Direito que não conhecemos. Depois de o conhecer já esquecemos que ele tem princípios ou devia tê-los para não serem apenas leis ou arbítrios decisórios de aparência  jurídica. E que pode ser-se feliz ao estudar o que por vezes se ensina como uma sensaborona maçadoria.
Nesta obra a ideia da origem das penas é peculiar: nasce nos sentimentos e visa agir sobre os sentimentos. A existência sensitiva do homem, sendo o que o torna mais humano, tornada a razão mãe de monstros, ganha aqui toda a sua evidência e sobretudo a melhor expressão.
Porque os homens têm medo de que a sua liberdade conquistada seja precária - «tornada inútil pela incerteza de ser conservada»  - então «se uniram em sociedade» e nela cada um abdica um pouco da sua liberdade «para gozar o restante com segurança e tranquilidade». As leis são assim matematicamente - e o autor era matemático e economista - a soma das parcelas de liberdade individual sacrificada em nome da qual se enfrentam os déspotas individuais, os que querem do «depósito comum» das liberdades retirar mais do que a sua parte. Ora para que estas «usurpações privadas» não sucedam, é preciso que tais prevaricadores sejam confrontados com «argumentos sensíveis».
Ora eis as penas: «argumentos sensíveis» que «firam os sentidos» e impeçam o triunfo do «princípio universal de dissolução». Parecem ser a tirania quando afinal visam esconjurar tiranetes.
Nascidas do medo, as penas são editadas e aplicadas pelo medo. «Apavorados» de medo de que se condene um inocente os legisladores «carregam a jurisprudência de excessivas formalidades», «apavorados» por «delitos graves e difíceis de provar julgar-se-iam na necessidade de transpor as mesmas formalidades (...)».
Há nesta fórmula refinamento e ironia. Educado pelos jesuítas o autor diz o que quer dizer através do que não parece dito.
Editado em português pela Fundação Calouste Gulbenkian, o livro, traduzido e apresentado por Faria Costa tem um único senão: falta-lhe uma biografia deste que deveria ser "o Divino Marquês". Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, nasceu em Milão. Deu a obra em causa à estampa por altura de 1764, anonimamente. Fora iluminado por Montesquieu e por Voltaire. Temperara a ânsia de lógica com a de justiça. Ainda viveria o suficiente para assistir ao surgimento da Revolução Francesa. Morreu quando nesta se instalou o Terror e com ele milhares de pessoas foram sumariamente guilhotinadas.

Rejeição da acusação particular

 
Há temas que causa espanto exijam definição por via de recurso. Um deles é o que constitui objecto do Acórdão proferido pela 9ª Secção da Relação de Lisboa de 02.06.11 [Proc. 440/08.7PHAMD.L1 9ª Secção, sendo Desembargadores: João Carrola e Carlos Benido], quando entendeu que «I – Não está ferida de nulidade a acusação particular deduzida pelo assistente que ao indicar a prova a produzir em julgamento, remete para os autos, utilizando a fórmula “Prova testemunhal: as indicadas pela assistente em sede de inquérito e aí melhor identificadas.”».
Sublinhando que «tal remissão não é proibida por lei, pois que não subsistem dúvidas sobre as provas a produzir, que não constituem sequer surpresa para o arguido», o aresto adita que «de resto, convirá notar que só a total falta de indicação das provas que fundamentam a acusação poderiam relevar para os efeitos da alínea c) do n.º 3 do art. 311.º do CPP».
Fazendo notar que «outro entendimento de maior rigor e de exigência formal sempre constituiria um, obstáculo desproporcionado no acesso ao direito, garantido pelo artº 20º da Constituição da República», o Acórdão termina decidindo que «o  Juiz, ao proferir analisar os autos, para os efeitos do artº 311º, do CPP, não deveria proferir despacho de rejeição da acusação do assistente».
De facto, a perceptibilidade que se alcança pelo simples voltar da folha de um processo para se reconstituir qual é a prova que o acusador particular quer indicar em sustentação da sua acusação, é de tal modo patente que é na realidade difícil de aceitar que em nome de uma concepção tão formulária do processo penal se possa configurar como critério judicial de decisão. Rejeitar uma acusação nestes termos em nome da formalidade equivale a impossibilitada que triunfe a substância da análise da viabilidade da mesma, garantir à sociedade a condenação de um arguido, se culpado, ou garantir ao arguido a paz social, se inocente. No mais, já não são os princípios a revoltarem-se contra tal critério, a lei qu o não permite. Como o lembrou a Relação.

Começar de novo

Este blog tem andado ao sabor de várias condicionantes. Tomara eu ter a persistência necessária para as ter vencido todas. Mas há o tempo que resolve. E o mudar de vida. Enfim, penso que estou em condições de voltar. Voltar ao Direito, não apenas como ferramenta profissional, mas como objecto de reflexão. Há muito que lhe havia virado as costas. A verdade é que o panorama não ajuda muito, mas houve quem tivesse porfiado.
Juntando as peças soltas de uma vida estou na advocacia desde que iniciei o meu estágio em 1972, estive durante dezassete anos ligado ao ensino universitário. Escrevi livros, fiz parte de Comissões legislativas, uma a de que saíu o Código de Processo Penal de 1987. Talvez seja a altura de tornar tudo isso uma vida com sentido e sobretudo propósito. Além disso não me esgotei neste mundo jurídico.
Ao escrever isto penso que poderei ser lido como num assomo de vaidade. Se fosse o caso não estaria aqui a confessar um extenso mau momento. O que este blog testemunha. O que assim quero fazer cessar, reatando.
O Direito não é um sistema formal abstracto aplicável como os teoremas da Geometria. É sim, a luta pelo Direito, no dia a dia, nos tribunais e fora deles. A luta pelo Direito é, porém, uma luta com o Direito. Fora disto está a actividade cívica, social, política. Através delas muda-se o Direito, seguramente. Mas não é disso que aqui se trata.
Claro que não estamos com aqueles que no Direito teriam puras as mãos se acaso tivessem mãos, forma de hipocrisia mental que os leva a refugiarem-se no que supõem ser uma teorização pura do Direito como se de um espírito incorpóreo se tratasse, tudo quase sempre para caucionar, através de formulações meramente mecanicistas da lei, soluções de incivilidade e de compressão de liberdades pessoais. Por alguma razão o autoritarismo se esconde tanta vez por detrás de uma concepção abstracta do Estado e tecnicista do Direito.
O Direito porque humano, e o Direito Criminal, sobretudo, são o Direito na tragédia da existência. É um território de gritos e de silêncios, terra de dor. Não há gente feliz aqui. A incompreensão para esta visão da vida, que nos leva ao âmago do ser, é apenas uma forma de se ser legalista mas não jurista, saber de leis que não do Direito.
Aqui estamos por isso, assim. Aos que já viram afirmada no passado esta promessa de reiterar e na prática incumprida, peço paciência e compreensão. O meu mundo é hoje um outro mundo. Voltei, pois.

Matar e abandonar

Matar, conduzindo, é crime, abandonar atropelados, conduzindo, é crime, abandonar quem se matou, atropelando não é crime. O Direito percebe-se? Não. Saiba tudo aqui

O processo

O processo. Assim se chama a obra mais conhecida de Kafka. Não é desse que falo mas também é desse que falo. Não deste ou daquele outro, mas do conceito que ele traduz, o meio de que ele se tornou instrumento e ideia por antonomásia.
É o processo que permite criar a verdade possível, a realidade hipotética em que uma acusação se consubstancia. É através do processo que se faz a experimentação da compatibilidade da demonstração com o demonstrável, o transformar o postulado em axioma.
É essa acusação um recorte do real, uma amputação do real, uma deformação do real, uma simplificação do real? Que importa? O processo dá-lhe dignidade jurídica e legitimidade moral transmutando tudo isso no que chama «o objecto do processo», que o sistema assume como sendo o limite do cognoscível e do decidendo.
Julgam-me por aquilo pelo qual tantos outros não são sequer acusados e grito por injustiça relativa? Que vale isso se para quem me julga interessa apenas, e nisso trabalha como missão, aquele meu caso e não os possíveis casos outros que, pois que não acusados, é como se não existissem e nenhum deles fará mais do que história não judiciária, mundo de irrelevâncias que sendo escândalos por isso se tornam em nada.
É o processo que permite a selecção, o jogo da oportunidade acusatória pelo qual todo o crime tem de ser acusado mas só é julgado aquele em que houve acusação? Para quê gritar se tão tantos os chamados e tão poucos os escollhidos e nisso assenta certa Justiça maior que a humana, a própria Justiça Divina, que anatemiza a eleição incondicional?
Vem a História mostrar mais tarde que a realidade não coincide com a verdade que o processo substanciou como sendo o transitável, cognomimando-a de «material»? Que importa se faz parte da dogmática do sistema ele impôr-se como autoridade por esgotamento, o plausível como convicção, a experiência comum do comum vulgo como critério final onde devia haver o escrúpulo do mais sábio e do mais prudente?
É o processo isto mesmo, a coisa em si, o meio pelo qual o processado no final do longo corredor está pronto para o que for que lhe ponha termo, clamando apenas pelo termo da sujeição, porque pior que condenado é ter sido processado.
Por lenitiva que seja a condenação, por agraciante que seja a absolvição, todo o sofrimento, o rebaixamento, a diminuição estatutária, a diminuição cívica, a redução patrimonial, a perda mesmo, provisória que seja, da liberdade, cumprem os fins o gosto da vitória do processado confunde-se-lhe com o da derrota, insípidos e indiferentes. 
O fim de que o processo deveria ser instrumento atinge-se pelo próprio processo. Ei-lo, pois, como a criatura do máximo poder pela mínima substância, o labirinto das formas pejado dos alçapões das formalidades, a liturgia cerimonial do acto, de que não há ressurreição, iniciada pela defunção do ser. Sujeito à arguição ele é a antítese da sua pesumida inocência. «Para encontrar a paz, o acusado quer encontrar uma justificação para a sua pena: o castigo procura o crime». Milan Kundera disse-o. A metamorfose transforma o ser em insecto.

E agora José?

Estive amuado com o Direito durante muito tempo. Convia com ele forçado, como um preso algemado ao seu polícia. Considerava muito de tudo aquilo retórica, noutra parte exegética interesseira. A doutrina parecia-me abstracta demais quando erudita e por isso inservível para os problemas concretos do meu quotidiano profissional, a jurisprudência demasiado casuística e reiterativa e como tal servível para todos os problemas, os meus e os contrários dos meus, aqueles doutos autores para o circuito da montanha, estes preclaros acórdãos para todo o terreno. Além disso, eu tinha dado aulas durante dezassete anos e saíra inacabado e com saudades do irrealizado. Nem moral tinha para vociferar.
Um destes dias senti vontade de tirar de novo o curso de Direito, não para o aprender, mas para o surpreender. Veio daí o enamoramento. Descobri que tenho livros por escrever. Só um deles, de processo penal, são mil quinhentas páginas perdidas num computador, que já resistiu por milagre a alguns «crash» dessas maquinetas miraculosas.
Mas antes dos livros, que serão o fruto da união, haverá o dia a dia do cortejamento. Voltei a este blog. Fui ver alguns dos que seguia, jurídicos, quando "flirtava" com pouca fidelidade com esse Direito com o qual quero reconciliar-me. Muitos desses espaços estão parados, como eu estive. Desanimados, como eu estava.
Mais logo, pela noite, começo a estudar: o geral e o abstracto, com olho crítico e memória reconstruída. O Direito é a luta pelo Direito. Para onde não chegar a pá, leva a picareta!

O amor e a morte: os sentimentos e o Direito

Rui Januário e André Figueira escreveram um livro chamado "Eutanásia: direito a morrer ou dever de viver". Livro de juristas acabou por ostentar como ante-título "O Crime de Homicídio a Pedido". É um livro que tem como seu pressuposto uma tragédia íntima. O primeiro autor exprime um pensamento que formou primeiro como exerecício intelectual depois como experiência vivida quando seu pai entrou numa doença terminal contra a qual lutou até à desistência. Escrevi o texto de apresentação. Permito-me arquivá-lo aqui. Encontrei-me com um Direito, enfim, humano, e não com uma técnica burocratizada.

Este livro suscita um problema inesperado: o valor dos sentimentos no Direito. A questão surge a dois níveis diferenciados: como caso pessoal de um dos autores, como faceta imponente do tema que aqui se trata.
A obra inaugura-se como uma introdução intimista. O Dr. Rui Januário traz ao leitor a intrínseca humanidade de uma confissão sobre como o tópico lhe surgiu, primeiro como problema intelectual, como exercício da razão, depois como tragédia pessoal, como imposição da sensibilidade.
Raras vezes a epistemologia se vê confrontada com tal processo, o ser pensante a ter de testar na experiência vivida a consistência do seu pensamento.
Mas mais. Este livro é o produto da reformulação do pensado face ao experimentado. É um exercício de reconstrução.
É, por isso, uma obra de humildade, de relativização das ideias adquiridas, de recusa da absolutização dos valores, de negação do radicalismo das opiniões.
Para além do seu valor intrínseco, este livro coloca a grave problemática dos limites do racionalismo, é um solene aviso quanto aos perigos do intelectualismo.
Nele está presente uma reflexão existencial, pois que vivida sobre a existência.
Para as gerações que se formaram no Direito construído pelo positivismo, para o qual a ordem material das coisas é a aparência da sua ordenação lógica e a congruência, afinal, o sumo critério do sistema recto e por isso do código justo, isto é heresia.
Desvio, heterodoxia, será também para todos os outros para os quais o teste final da estrutura legal será o da sua eficácia como instrumento e meio da regulação social ou de dominação de classe, mas sempre, num igual registo, o pensável como única forma do cognoscível, o sustentável como único meio de legitimação, a prática o estupendo critério último do útil.
Eis, pois, neste contexto incerto, o real valor desta obra, a sinceridade.
O interessante do livro é ser uma excursão a um território jurídico de limites indefinidos.
Primeiro, pela confluência da eutanásia e do homicídio a pedido. A diferença é maior do que a semelhança entre estes dois conceitos: no segundo, bem pode supor-se a vontade de morte maior naquele que fenecerá do que no outro que lha trará, no fundo, um suicídio a pedido, no primeiro, bem pode suceder que o desejo de morrer não seja já compartilhado pelo que vai deixar de viver.
Além do mais, por serem múltiplas as possibilidades de materialização da eutanásia, sendo mais problemática a conduta omissiva, o live and let die, porque situada numa zona de fácil encobrimento, por bastar a não mobilização de meios de prolongamento artificial da vida ou de reanimação da mesma.
Por isso, tudo é relativo nestas paragens em que o direito a morrer se pode confundir com o direito a matar. E, sobretudo, tudo é evanescente.
O tema é o reverso da obstinação terapêutica em que a vida é mantida pertinazmente para além do tempo natural da própria vida; e, ironia trágica, o tema surge-nos de novo, em surpreendente aparição, neste mundo de espelhos enganadores, quando a suavização clínica da dor, gesto humanitário que toda a moralidade aplaude e o Direito cauciona, se alcança à custa de fármacos que, ao limite, trazem a inexorabilidade da morte.
Percorrendo assim as sombrias galerias ao longo das quais o Direito Penal expõe todos os casos em que a morte está presente, este livro leva-nos a surpreender a diversidade, a compreender as distinções, a aceitar a necessidade da diferenciação, a aprender, enfim, que julgar como indistinto o que é plural é a forma dos ignorantes serem injustos, o meio de a injustiça poder exercitar-se, recusando-se a compreender a diferença.
Como não apartar quem tira a vida alheia daquele que suprime a vida própria, aquele criminoso por haver vítima, este impune porque o crime foi, afinal, a própria punição, criminoso e carrasco num acto só?
Como não aceitar que a incapacidade de viver possa coexistir com a incapacidade de morrer, o não saber já como viver-se ser irmã siamesa do não saber ainda como morrer?
A tudo isto o Direito tem de dar reposta. Só que é uma resposta impossível em abstracção, inviável em generalidade. É que há zonas da vida em que o sombreado das situações é tal que o jurista legislador tem de ter o pudor de confessar-se incapaz de compreender as diferenças.
É nessa abstenção de regulamentação esgotante, nesse abdicar da tentação totalitária do tudo prever, regulamentando, nesse não intervencionismo normativo, que o Direito tem de encontrar-se com a sua finitude, fragmentário, limitado, provisório, parcial.
E, no entanto, razões pragmáticas exigem que haja normas, ao menos para aquele perfil de situações para as quais, ainda que a traço grosso, se exige uma definição essencial. É a vida quem o impõe ao trazer para a realidade o inescapável. Mas não existirão já essas normas ainda que gerais? Não haverá grave risco em escrevê-las agora em lógica de especialidade?
Note-se sobre o que se legislaria.
Por ler este livro pressente-se a medida em que o determinismo da vida pode estar condicionado pela vontade de viver, a ausência desta ser a agonia daquela, o homem senhor do seu destino, o triunfo da vontade a única garantia da subsistência do ser vivente. A fragilidade do humano é o ser tão ténue o fio vital que o anima. Um sopro de hesitação e é o abismo.
E depois, condições há em que a grandeza da sobrevivência é a miséria da sua precariedade, em que mais do que saber resistir estoicamente já só há, num sobejo de latência, o remanescer aquém da dignidade, inexpressivamente. O maior risco do homem é pensar se a vida vale a pena. O nascer da dúvida é um passo para a precipitação.
Além disso há os outros, aqueles para quem, mais do que não sermos indiferentes, somos parte da sua própria existência, quantas vezes seu fundamento, sua razão de ser. O maior perigo do humano é haver quem caia com a nossa queda. No dia seguinte a nós o mundo pode não ser o mesmo.
E no fundo, como nada disso faz sentido quando se atingiu por esgotamento o ponto terminal da existência, as funções vitais minimizadas, o ser vegetativo e a dor, essa experiência agónica que martiriza a carne a atormenta os nervos, a perseguir-nos, castigo sem redenção, maldade desnecessária a escarnecer de um fim que se eterniza.
É neste confluir de extremos que nasce, grave, o problema da vida, a questão da morte, a problemática do existir, a lógica deste livro.
Através dele descobre-se que o Direito Penal comum pode afinal oferecer, com mero recurso às categorias conceituais consignadas na parte geral do Código Penal, a saída para a impunidade da eutanásia activa. Profundamente desvalorizados pela lei penal, tais actos, encontrariam uma razão de exclusão da punibilidade, sobretudo quando médicos, mormente quando orientados a garantir uma morte digna, misericordiosa, a casos terminais, irreversíveis, nomeadamente quando em situações insuportavelmente dolorosas.
Usando uma imagem, trata-se de uma situação semelhante àquele que tendo veneno no armário se abstém de o usar.
A mão dessa abstenção, num país que não tenha para o caso outra lei que não seja a lei geral, terá de ser a mão judicial.
Neste plano, ao perigo da lei especial, cuja própria existência se pode configurar em perversão de efeitos como instigação pública ao acto, generalizando-o, através do acto sedutor da sua condicionada legitimação, sucede uma casuística de agraciamento do excepcional corpo de situações em que a justiça exija piedade para com a misericórdia de ter feito cessar uma vida que já só era um simulacro residual de vida.
Dir-se-á que é esta lógica conservadora, de dissuasão do acto pela não previsão do acto, que durante décadas levou à não admissão de excepções aos casos de aborto: é a ideia segundo a qual a primeira brecha que se abrir ao mandamento do não matarás fenderá a muralha protectora da vida de modo imperscrutável e sobretudo imprevisível. Talvez assim seja, e neste dubitativo esconde-se a insegurança quanto à perfeita homologia das situações.
Mas uma coisa é certa: há por vezes mais risco em entregar a questão a leis do que os problemas a juízes.
Estamos na recta final do que gostaríamos de trazer como apresentação a este livro.
Estivesse em causa uma jurisprudência sobre a eutanásia e já seria difícil, por se tratar então de encontrar o critério escapatório que legitimasse o perdão do acto em nome da nobreza do acto.
O problema surge quando estiver em causa uma legislação sobre a eutanásia. É que então, todo o mundo desumanizado da morte nas nossas sociedades irromperá, com todo o seu cortejo necrológico de horrores, agredindo o limiar doloroso das nossas consciências morais.
Ei-los então, os doentes terminais que saturam os já saturados hospitais e cuja manutenção em vida é um empecilho na engrenagem que conduz da enfermaria à morgue, esse corredor da morte em que cada um é um número, uma estatística, uma fita colorida atada ao pulso, aqueles cuja morte liberta a cama, economiza gastos clínicos, poupa energias de gestão, todos eles, à mercê.
Ei-los, os sem o abrigo de uma família, entregues ao desinteresse de um lar sem condições, à solidão de uma qualquer pensão mercenária, à miséria de um qualquer ermo de vagabundos, aqueles para quem o abafador de uma almofada, uma discreta sufocação bastam para, sem história, quase sem dor, lhes retirar o ténue sopro vital sem o qual ninguém dará conta de que já não existem, todos também, sujeitos.
Ai dos fracos, dos indefesos, caídos em estertor no campo de batalha dos saudáveis.
É por haver neste nosso desventurado mundo não pessoas, mas indivíduos, não comunidades, mas sociedade, que a eutanásia legal se torna num perigo público, as normas criminais possivelmente criminosas.
Falássemos nós daquela agonia horrível em que a morte é infligida, o coração destroçado, como uma forma última de amor, o autor do acto a chamar a si a dor, a mesma que quer poupar àquele a quem tira a vida, e estaríamos aí, nesse instante trágico, ante o humano na sua mais pungente condição, o tiro de misericórdia nesta guerra impiedosa pela qual toda a vida que se vai é uma outra vida que assim poderá nascer.
Só que, infelizmente, haver quem se sorria desta poética é sinal de que a preguiça, o egoísmo, a conveniência e o desinteresse bem podem ser as mãos que desligariam a máquina, selariam as narinas, injectariam o discreto soro além do qual todos ficam tranquilos e muitos aliviados. A eutanásia passaria então, a ser uma forma mercantilizada, disponível, possível em suma, de nos vermos livres dos que já estão a mais.
Terminei. Obrigado aos autores por terem escrito o livro. Sem ter pensado no que nele se diz, a minha alma teria ficado mais pobre, estiolada por normas, desfigurada por abstracções, iludida pela hipnose da generalização.


Recursos penais: a ilusão do reexame

Estranham que em poucos casos os tribunais de recurso conheçam de facto a matéria de facto? Que haja reenvios em nome de razões cuja essencialidade faz a boca abrir de espanto? Que a renovação da prova um nado morto? As gravações um luxo inútil? Mas a História não ensina a transformar em pensamento o que é sentimento? É tudo, afinal, o triunfo da forma sobre o conteúdo, forma de exoneração da responsabilidade de decidir, meio de expeditamente despachar muito em pouco tempo, o fantástico reino da quantidade... Só a palavra «despachar» causa urticária...

O Direito é o combate pelo Direito.
E se há momentos em que esse combate assume uma faceta agónica é o momento dos recursos. Porque é então que há vencidos e vencedores. Podem ser questões incidentais, aparentemente de natureza meramente instrumental, mas não quer isso dizer que não sejam questões nucleares, a comprometer a sorte do caso. Momentos em que para os protagonistas do combate resta a última esperança, nos quais é maior a tensão dos intervenientes.
Ora o combate que aqui se assume, no que as recursos respeita, é desde logo um combate contra os ditames de um legislador que, desde há décadas, quis subtrair à filosofia estruturante do sistema de recursos a lógica do reexame da substância julgada para que restasse como objecto primacial de impugnação o modo formal pelo qual o tribunal recorrido conheceu a substância das coisas.
É um sistema em que se recorre mais do “como” e menos do “que”…
A História, como sempre, ensina, e ensina tanto mais quanto à amnésia colectiva se junta a arrogância intelectual dos que julgam que a vida começa com eles e sem eles termina, consumindo-se em irrequietude voluntarista permanente. Entre estes as gerações de legisladores estreantes na área do poder.
Aprende-se por exemplo, vendo as lições do passado, que no jogo das formas processuais o passo decisivo foi dado com o desaparecimento da apelação penal; não só como realidade jurídica, também como palavra – e no universo jurídico as palavras são conceitos, condensam uma semântica - , ela sumiu da dogmática legalista. E, no entanto, cito a inteligência do Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira, no seu Curso de Processo Penal, impresso em 1986, «a apelação é o recurso que verdadeiramente constitui um segundo julgamento; substitui, ao juízo da 1ª instância, um novo juízo, em matéria de facto e de direito, de 2ª instância». Eis o que desapareceu do universo da Justiça, a ideia de que o recurso é um novo exame, uma revisão do visto.
Admitiam-na, à apelação penal, as Ordenações. Mas em 1892, uma Lei de 15 de Setembro, determinava já, lançando a total confusão pulverizante no vulcânico território das categorizações jurídicas, que as apelações e as revistas eram julgadas como agravos. Era o ponto sintomático da desvalorização das nomenclaturas, miscigenando-as todas, desvalorizando cada uma. Citando Alves de Sá, coevo do que se passava: «Assisto aterrorizado desde 1892 a esta confusão tumultuosa em que caiu o foro nesta matéria». Palavras que se podiam tornar actuais.
Ao chegar-se do Código de Processo Penal de 1929 já o conceito de apelação penal tinha sido, entretanto, varrido da terminologia da lei adjectiva criminal e encontrávamos apenas um princípio, que nos acompanhou a todos quantos, eis o meu caso, tivemos esse código como companhia em dias de preocupação e noites de insónia - já retalhado, acrescentado, parcialmente revogado e derrogado - segundo o qual - e eis o artigo 649º - «os recursos em processo penal serão interpostos, processados e julgados como os agravos de petição em matéria cível, salvas as disposições em contrário deste código».
Não era esta, a que citamos, uma simples norma jurídica sobre tramitação, era um normativo sobre a natureza das coisas em matéria de recursos, a dar-lhes uma semântica e sobretudo uma direcção interpretativa em via reduzida. Dizia-se «agravo» para que ficasse entendido que não se queria dizer «apelação». E dizia-se «agravo de petição» categoria jurídica que havia já caído em desuso.
É que natureza do agravo era determinada sobre a incidência do seu objecto, a circunstância de recair sobre tema processual, que não sobre o mérito da causa.
No enunciado da lei subsidiária, e como tal aplicável em regime de intergração, rezava o Código de Processo Civil de então [o de 1876] que «das decisões de que não pode apelar-se e que excedam a alçada do juiz compete agravo». E quanto ao critério pelo qual se encontravam os casos de que cabia apelação, resumia o Professor Alberto dos Reis, no seu livro Breve Estudo sobre a Reforma do Processo Civil e Comercial: o legislador, havia reservado a apelação «para as sentenças que conhecem do mérito ou do fundo da causa, compreendo-se na palavra causa certos e determinados incidentes».
Ou seja, o desaparecimento a partir de 1929 da categoria das apelações penais significou como única ilação possível, uma indicação legislativa no sentido da incognoscibilidade tendencial do mérito das causas penais. Era a restrição dos recursos no que se refere à sindicabilidade das causas penais.
É que esse Código de Processo Penal de 1929 havia determinado, no seu artigo 665º, que «as Relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem em primeira instância e nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1ª instância, e conhecerão só de direito, nos recursos interpostos das decisões finais nos tribunais colectivos e das proferidas em processos em que intervenha o júri (…)» [salvo o caso de anulação da decisão do júri em caso específico].
Quer dizer: o mérito da causa, a partir da reforma processual penal de 1929, e em função daquele citado preceito, passou a ser matéria cognoscível pela Relação apenas quando a decisão recorrida fosse oriunda de juiz singular, desde que não se prescindisse de recurso, caso em que [artigo 532º] «escrever-se-ão resumidamente na acta da audiência as respostas do réu, os depoimentos das testemunhas e as declarações dos ofendidos e outras pessoas que devam prestá-las».
Eis, com força de lei, a intangibilidade das decisões do colectivo sobre o mérito da causa, o fim da apelação penal nas causas importantes, as que eram julgadas em processo de querela, puníveis com penas mais graves.
O sistema, na sua natureza imanente, já era suficientemente explícito, mas uma vertente prática do mesmo demonstraria a sua verdadeira essência e sobretudo os propósitos que animavam os seus autores. Como o clarificou um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1932, mesmo depois da alteração do CPP em 1931 «os depoimentos das testemunhas perante o tribunal colectivo não são escritos». Ou seja era impossível a Relação sindicar a prova produzida em audiência devido à ausência de registo da mesma. A substância, os factos, uma vez adquiridos, fixados estavam.
Mas o refinamento do sistema ainda estaria para vir. Em 1934 um Assento de 29 de Junho enunciaria uma jurisprudência que, de acordo com o sistema de então, valia como lei, e como tal obrigatória, segundo a qual a alteração pelas Relações das decisões dos colectivos só poderiam ocorrer «em face dos elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada em julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos».
Como explicaria o Conselheiro Maia Gonçalves, usando linguagem mais clara para traduzir esta formulação esfíngica, em nota ao artigo 665º do CPP de 1929 «em face do assento de 29 de Junho de 1934, a competência das Relações em matéria de facto, nos processos julgados pelo tribunal colectivo, é muito restrita, só lhes sendo lícito alterar as decisões da primeira instância quando do processo constem todos os elementos de prova que lhes serviram de base ou quando se trate de factos plenamente provados por meio de documentos autênticos. Qualquer elemento de prova produzido perante o colectivo impede que as Relações altere, as respostas aos quesitos».
Era o que se popularizou como a «ditadura dos colectivos» em matéria de facto, sistema do qual decorria que o julgamento ante juiz singular era mais garantístico do que o corrido diante tribunal colectivo, por admitir o seu reexame em sede recurso quanto às questão de facto, a conhecer pelas Relações.
Como o resumiam Borges de Araújo e Gomes da Costa - compilando as lições proferidas pelo professor Manuel Cavaleiro de Ferreira de 1940, «as Relações só tomam conhecimento da matéria de direito, pelo menos nos processos de querela [a julgar pelo colectivo], pois quando o tribunal colectivo é chamado a julgar a prova não é escrita».
Eram tempos difíceis esses os da intangibilidade do veredicto de facto nos casos penais graves, tempos de chumbo em que vingava lei que permitia que se entendesse que «em recurso penal, embora só interposto pelo réu, pode o tribunal agravar a pena» (Assento do STJ de 4 de Maio de 1950); ou esquecem os mais novos que a proibição da reformatio in peius - no que significa de impedimento de agravação da pena em caso de recurso interposto pelo arguido - só foi lei a partir de 1969 (com a alteração do artigo 667º do CPP de 1929 pela Lei nº 2139, de 14 de Março, sendo primeiro-ministro o professor Marcelo Caetano)?
A inapelabilidade do julgamento da matéria de facto surgiu em Portugal com a introdução do júri, figura que fomos importar ao modelo estrangeiro, sem tradições entre nós e que faleceria de morte natural pela década de quarenta, para ser ressuscitado em 1975, tendo vindo a viver em hiatos de sobrevivência sem grande esperança de prestígio e sobretudo com duvidosos resultados.
É com o júri que mingua a apelação penal. Mas - e cito de novo o professor Cavaleiro de Ferreira no seu texto pedagógico de 1986, talvez o mais filosoficamente conseguido, porque terminal - «posteriormente, e já neste século, com a criação dos tribunais colectivos que substituíram o júri, insinuou-se sub-repticiamente a ideia de que o tribunal colectivo devia herdar não só a competência em matéria de facto do júri, mas de igual modo a presunção de infalibilidade. Foi um erro que as circunstâncias em que se processaram as sucessivas reformas processuais tornaram possível».
Eis, em suma, o que pretendia provar: morta a apelação criminal, implantado o sistema do agravo penal, estava aberta a porta para a infabilidade dos tribunais colectivos em matéria de facto. Vencer um tal sistema e as idiossincrasias que ele potencia não se afigura tarefa fácil, pode tornar-se, aliás, uma missão impossível.
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Dê-se um salto no tempo para verificar em que medida é que a cultura do agravo penal como sucessor da extinta apelação penal deu azo a uma nova categoria a da chamada “revista alargada”, o qual, em termos práticos, não resistiria à doutrina dominante nem, sobretudo, às resistências jurisprudenciais que tinham ganho império e expressão de poder.
Tudo sucedeu com o Código de Processo Penal de 1987.
Dele decorreram várias ideias discursivamente novas e candidatas esperançadas a futuro. O problema foi a pragmática do sistema e a cultura que o caracteriza que rapidamente lhes neutralizaram a ambição de perdurabilidade.
Enunciemo-las para que o pessimismo realista de que faço cultura possa demonstrar.
Em primeiro lugar verteu o legislador em lei a ideia de que todas as espécies de recurso, mesmo os atinentes à temática meramente jurídica - e inclusivamente aqueles outros em que os poderes cognitivos do tribunal sejam circunscritos à matéria de Direito - admitem [artigo 410º, n.º 2 do CPP] a hipótese de serem conhecidas certas questões - tarifadas em três casos paradigmáticos - (i) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (ii) contradição insanável na fundamentação (iii) erro notório na apreciação da prova - que já não meras questões jurídicas podendo ser, pelo menos a últiam, de cunho fáctico.
A consagração deste conceito não se alcançaria, porém, sem dificuldades, porquanto certa jurisprudência cedo de encarregou de determinar a medida em que tal possibilidade de alargamento dos poderes cognitivos - digamos, do STJ - não poderia ser suscitada como tema de recurso mas sim operada apenas oficiosamente pelo tribunal de recurso ao conhecer o tema jurídico em causa e desde que os vícios em causa resultassem do próprio texto da decisão recorrida [«por si só ou conjugada com regras da experiência comum»].
Esta dupla limitação - que a lei no seu enunciado expresso não previa como tal - o da ostensividade literal do vício e o da cognoscibilidade apenas ex officio viria, claro, a reduzir o alcance daquilo que era o primitivo escopo do legislador. O tema alargado passou a ser um tema passível de ser relevado discricionariamente a talante do tribunal de recurso.
Para além disso, a densificação do conceito de «erro notório» na apreciação da prova - aquele dos casos típicos em que a questão de facto justificava o qualificativo de «alargada» ao recurso de revista - foi de tal modo tornada exigente que ela se tornou de quase impossível aparição, acantonada aos casos em que a ostensividade do erro fosse gritante que quase se apodaria de grosseiro.
Em segundo lugar, retornou para a lei processual penal a categoria conceptual da «apelação» - quando a Lei da autorização legislativa da qual emergiu o CPP novo consagrou [Lei nº 43/86, de 26 de Setembro, artigo 2º, n.º 2, ponto 72] que ocorreria no novo Código a «atribuição ao tribunal da relação de competência para conhecer, em apelação, dos recursos interpostos de decisões interlocutórias e finais do juiz singular e de decisões interlocutórias emitidas pelo tribunal colectiva, e para, em certos casos, renovar a prova, caso não reenvie o processo para o tribunal colectivo» [itálico nosso].
Tratava-se de pôr em marcha uma ideia que o preâmbulo do Código, ingénuo porque confiante, assim exprimia: «Com o mesmo propósito de emprestar ao recurso maior consistência, procura contrariar-se a tendência para fazer dele um labor meramente rotineiro executado sobre papéis, convertendo-o num conhecimento autêntico de problemas e conflitos reais, mediatizado pela intervenção real de pessoas. Por isso se submetem os recursos ao princípio geral - aliás juridico-constitucionalmente imposto! - da estrutura acusatória, com a consequente exigência de uma audiência onde seja respeitada a máxima da oralidade».
Ora feito o balanço ao escopo e âmbito das audiências nos tribunais superiores e ao modo como funcionaram, nomeadamente no que respeita a essa «máxima oralidade» e essa proclamada «apelação», elas acabaram por entrar numa tal caducidade por não uso que o legislador teve, misericordioso, que torná-las opcionais, donde de aparição raríssima para possível desaparecimento, também aqui pelo não uso.
Em terceiro lugar, como acabamos de ver, tentou-se, com este novo Código de Processo Penal, a consagração de um sistema de renovação da prova, pelo qual a segunda instância, mais do que um tribunal de rescisão, funcionaria como um tribunal de um verdadeiro segundo julgamento, pois ocorreria também a «consagração, para todas as espécies de recurso ordinária, interposto da decisão final, da garantia do contraditório, sem possibilidade porém, de réplica nos recursos que sejam exclusivamente de direito» [ponto 71, do preceito citado].
Considerando o número de vezes em que ocorreu a renovação da prova - a meu conhecer nunca - viu-se em que medida a consciência da inutilidade da novidade a tornou candidata à morte anunciada logo no acto de nascer.
Enfim, determinou o legislador do novo Código de 1987, a implementação de um sistema de reenvio do processo «para o tribunal colectivo» [ponto 72 da Lei de autorização]. Eis o que vingou [e também para o tribunal singular], afinal um sistema de pura cassação com consequente anulação do antes decidido.
Neste panorama de realismo desolador, tentou a última reforma do CPP [por alteração ao seu artigo 431º] uma abertura controlada à modificabilidade pelo tribunal da Relação do veredicto de facto constante da decisão recorrida. Isso em três casos.
Em primeiro lugar, reiterando-se que isso ocorre no caso de ter havido impugnação da prova, com o cumprimento nas conclusões da motivação do recurso de tais ónus de indicação do lugar onde a prova se encontra e a menção a qual o facto probando que pretende fazer triunfar em substituição do provado que se abriu a porta a um exercício de escrita tão formulária que se corre o risco de nunca se acertar no modo de colocar a questão e ver por esta forma perigar a questão em si. Recorrer em matéria de facto passou a ser uma arte de escrita em que triunfam formalidades sobre substâncias.
Em segundo lugar, e em aparente inovação, «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base», fórmula aparentemente liberal mas que redunda, afinal, numa revivescência do espírito do Assento de 1934, acima visto, com a cultura restritiva que lhe detectámos e que a jurisprudência logo aplicou.
Enfim, eis a insistência na ilusão funesta, «se tiver havido renovação da prova».
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A lógica rescisória inerente ao recurso penal é, não tanto uma lógica meramente revogatória mas diversamente um sistema resolutivo, pois que fundamenta-se numa sanção anulatória pela falta de fundamento da decisão recorrida. Mas esta lógica concatena-se com uma outra, a denominada lógica de substituição, em que o tribunal de recurso, substituindo-se ao primeiro, profere uma decisão que ocupa o espaço jurídico antes preenchido pela primeira.
Ora na mecânica prática das coisas a primeira é mais tentadora e talvez por isso mais frequente. Assim sucedeu.
Fechemos voltando à História.
Primeiro, para lembrar em que medida o despacho de pronúncia – verdadeiro exame de mérito sobre a suficiência indiciária da acusação – que começou historicamente por beneficiar, ainda nos tempos da Ditadura, de um duplo grau de jurisdição, se tornou hoje, sob a bandeira da Democracia, absolutamente irrecorrível, tornando insindicável a fase preparatória, mesmo quanto a questões de legalidade, o que é um escândalo legal.
Esquecem os que em nome da eficácia e da celeridade – como se amanuenses fossem de um serviço administrativo – que só há independência judicial havendo sindicabilidade dos actos judiciais, nomeadamente dos actos incertos, típicos das fases embrionárias do processo em que o magistrado autor tem o benefício de consciência de proferir a penúltima palavra.
Em 1939 o único sistema de recurso de mera revogação era o recurso extraordinário de revisão, todos os demais eram de substituição: o tribunal ad quem substituía-se ao tribunal a quo e proferia a decisão que tinha como justa. Só o contencioso administrativo era de mera anulação.
Em 2011, os casos em que o tribunal recorrido vai para além da mera rescisão e arrisca consagrar uma decisão de substituição são, na lógica do sistema, fora dos casos de dosimetria punitiva ou escolha da espécie da pena, excepções.
O recorrente penal avisado já não se ilude quanto ao reexame do caso, tem esperança, isso sim, numa segunda oportunidade que lhe advenha da cassação do decidido. A lógica antiga do contencioso administrativo triunfou sobre as exigências substanciais que deviam ser as da Justiça penal.

A função alegórica


E não haverá lei que, mandando que a Força condene por causa do crime, não permita agraciá-lo e com Vigor, em nome da suprema graça da Beleza? Não há, inventar-se-à pela retórica forense, forma de levar o juiz a ser advogado da sua própria causa. A função alegórica sugestiva da poética, o sumo convencimente triunfam sob a geometria legalista, com riso diluviano e pompa togada! Não há melhor figuração forense do que a cinematográfica, melhor palco do que o pretório.

O ter e o dever

De que serve a hermenêutica para decifrar leis vindas de um legislador as escreve quantas vezes não sabendo escrever, entre conceitos vagos e imprestáveis e palavras que sendo as mesmas se contradizem, legislador de um enredado labirinto de previsões que se anulam e sobrepõem, revogam e abrogam e no tempo se aplicam em conflito permanente e são a porta aberta à taberna da discussão, à navalhada infame e aleivosa da interpretação em contrário, que surpreende de emboscada, do entendimento que numa penada modifica o sentir do que era tido por dominante opinião, trazendo insegurança ao pouco seguro, incerteza ao já incerto?
De que serve a dogmática como exercício mental para edificações abstractas e compendiais, monumentais torres davídicas de vaidade doutoral tão bacoca de barroca, a que falham fundações, edificadas sobre a lama da vida e suas palhotas, palácios exibicionistas sob palafitas em risco de desmoronar permanente?
De que serve a jurisprudência sem jurisprudentes, a legística de leis sem normas, o ordenamento jurídico num mundo sem ordem?
De que serve, na repartição pública da praxística, no salão forense onde se acumulam amanuenses copistas do já decidido mesmo que não decida, seguidores com idêntico como se fosse igual, eu estar para aqui a ruminar estas imprecações, sem moral que tenha nem exemplo que dê?
De que servem as poucas excepções, os desiludidos, a meia dúzia de optimistas, desejosos de um qualquer milagre que lhes devolva humanidade e lhes retire este mundo feio, sem lei nem rei?
De que serve o Homem ter inventado o primeiro dever para proteger o seu primeiro ter?

O charco palustre

Pois, eu tento reconciliar-me com ele, depois de o vilipendiar, achando-o charco palustre de retórica, onde coaxam rãs argumentativas, duendes legitimadores de apriori's decisórios, zombies alucinados pela fabulação teorética, obnubiladora do horror da injustiça porque alucinogénica, levando-os, pobres mecânicos da hermenêutica, a viagens pelo firmamento da dogmática, do construtivismo, afinal da alienação...e no fundo sofistas alguns, amanuenses de cartórios outros, serventuários do ensino formador profissional uns poucos, e raros, mais raros dos que se julgam os verdadeiramente felizes, os socialmente úteis, os que estejam em harmonia com a música do universo. Escrevi isto a propósito do Direito, num comentário. Depois descobri que era exagerado e, no entanto, profundamente verdadeiro...


Distinguir e não extinguir

O juiz Dr. António Martins perdeu a cabeça e com isso perdeu a razão. Confundiu a insignificante parte com o imenso todo e sugeriu que a Ordem dos Advogados pudesse ser extinta. Foi uma emocional retorsão contra quem clamava que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses deve ser extinta.
Ora um juiz não deve ter emoções. Cabe-lhe agora ter o gesto razoável de se explicar e dar à classe dos advogados a palavra de respeito a que esta tem direito. Nem os juízes querem que acabe a Ordem dos Advogados nem os Advogados querem que acabe a Associação Sindical dos Juizes Portugueses. Há quem diga coisas sobre isso em momentos de ira. É diferente. E na percepção da diferença está a única forma que ainda temos de não arrastarmos a Justiça para o caos, agora que o País vai a pique.

P. S. Sou também Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados. Não foi o titular desse cargo quem escreveu isto, pois nem teria legitimidade para tal. Sou eu, porque Portugal ainda é um País livre.

Férias e equiparadas

O legislador quando escreve normas devia pensar na totalidade dos que terão de as aplicar e não apenas naqueles outros em que está a pensar no momento ou na lei que faz parte do seu quadro mental de referência.
Carregado de má consciência, o autor do Decreto-Lei n.º 35/2010, de 1 de Abril - até pela numeração do diploma se vê como o Governo está imobilizado num país em que governar é legislar - resolveu proceder à «harmonização das férias funcionais dos diversos intervenientes processuais». Isto porque desde que amputou os supostos dois meses de férias forenses tem encontrado pela frente primeiro a revolta e depois a resistência passiva.
Só que o normativo em causa dá que pensar. Logo por uma lógica que mantém. Imagino mal, vestindo a pele de magistrado, que não se pratiquem actos processuais «nos dias em que os tribunais estiverem encerrados», fórmula infeliz que se tem mantido e que a prática aos fins-de-semana e feriados de muitos actos processuais, da autoria de magistrados que os firmam como forma de terem o serviço em dia, desmente.  
Penso que subjacente a esta fórmula, que não foi alterada e vem do transacto, está a noção da funcionalização do magistrado sujeito, qual amanuense, à regra dos dias úteis de abertura e fecho da repartição como calendário único de função.
Além disso, sempre fica a dúvida quanto à valia jurídica de actos praticados em dia em que não é permitida a sua prática. É que uma coisa é o dia da prática do acto outra a da exteriorização do acto. A notificação ordenada num processo a um domingo seá inválida ou inválida será apenas se efectivada a um domingo? Ou supõe o legislador que o autor do acto adultere, falsificando-a, a data de prática efectiva do acto?
O sentido essencial da reforma é, no entanto conceder um período de defeso de um mês e meio para que se não pratiquem actos processuais, pois eles não ocorrem «durante as férias judiciais» e «durante o período compreendido ente 15 e 31 de Julho», período relativamente ao qual o legislador disse que se lhe atribuía «os mesmos efeitos previstos legalmente para as férias judiciais». Dicotomia esta que traduz no seu bojo a ideia de que para além das férias de um mês há mais quinze dias equiparados a férias, velho modo de entrar pela janela o que não cabe pela porta.
Prevalecendo-se do ensejo o Bastonário da Ordem dos Advogados veio dizer em comunicado à classe: «a segunda quinzena de Julho era um período em que os Advogados eram obrigados a cumprir prazos judiciais, embora os tribunais estivessem de facto em férias judiciais por decisão contra legem dos magistrados».
Pena finalmente que o legislador não se tenha lembrado que não há só o processo civil, sobre o qual legislou, mas muitos outros processos, do penal ao administrativo e tantos mais, relativamente aos quais o CPC é aplicável como norma subsidiária, havendo sempre interpretações jurisprudenciais divergentes quanto a saber quais os limites dessa subsidiariedade.
Teria sido assim mais fácil redigir uma norma que abrangesse as várias modalidade de processos ou pelo menos dissesse de modo claro que a todos se aplicava.
Um pormenor de técnica legislativa. A alínea b) do n.º 5 do artigo 144º do CPC saíu assim na folha oficial: b) Quando se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes, salvo se por despacho fundamentado, ouvidas as partes, o juiz a determine.». Assim mesmo como uma aspa, como se o legislador citasse algo. Fim de citação!