Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Reforma do CPP (2): artigo 194º

Estou totalmente de acordo com a alteração ao Código de Processo Penal segundo a qual o juiz pode aplicar medida de coacção diversa, ainda que mais grave, quanto à sua natureza, «medida ou modalidade de execução» do que aquela outra proposta pelo Ministério Público quando se tratar de avaliar perigos superiores aos da pura perturbação do inquérito.
Primeiro, em nome do princípio, para mim basilar, do primado do judicial em matérias jurisdicional. A medida de coação é, pela sua natureza, um acto intrínseca e materialmente jurisdicional, porque pressupõe o ditar o Direito sobre uma controvérsia entre a liberdade e a segurança, entre os direitos do arguido e os poderes do Ministério Público. Só um juiz a pode decidir na totalidade do espectro do que há para decidir, sem limitações.
Segundo, e em relação directa com o que acabo de dizer, em nome da regra, para mim fundamental, da independência do poder judicial, que não pode ser o mero chancelar da legalidade de substâncias definidas pelo Ministério Público. Quando ouvi em tempos da boca de um juiz, referindo-se ao Ministério Público e precisamente em matéria de prisão preventiva, o «eles é que sabem se querem investigar com eles presos ou livres, a mim só me cabe controlar a legalidade e já me chega», confesso que a repugnância intelectual daquele «só» me feriu a sensibilidade, como se de auto-mutilação se tratasse, ademais vinda da boca de quem deveria assumir a postura de titular de um órgão de soberania e não de um simples oficial de chancelaria, de serviço à apostilha da legalidade formal.
E não se diga que em nome do princípio da vinculação temática o Ministério Público, porque delimita o objecto do processo com a sua acusação impede o juiz de condenar fora daquele quadro factual e jurídico que o titular da acusação pública desenhou e é do mesmo que se trata aqui, em minoria de razão. É que a dita vinculação temática - pelo qual a partir daquela acusação os poderes de conhecimento e de decisão e os limites do caso julgado judicial são os atinentes àquele objecto proposto ao tribunal - não limita o poder jurisdicional final, porque, se ao limite, o tribunal entender que a realidade é outra que conduza a crime diverso - ou seja, a haver alteração substancial - fica livre de ordenar a remessa do caso para inquérito para que esse mais seja conhecido pela Justiça. É a liberdade constitucional de não se sujeitar ao menos que não aceita que dá ao tribunal o poder constitucional de forçar o conhecimento do mais que lhe foi submetido para julgar. Ante isso, fará o Ministério Público o que entender, inclusivamente arquivar esse plus ultra, mas assumirá a responsabilidade pelos seus actos e pelas suas omissões [a seu tempo me referirei ao que esteja a acontecer em matéria de interpretação e consequente aplicação do n.º 2 do artigo 359º do CPP].
Terceiro, porque, ante a tendência que vejo desenhar-se em certas hostes do Ministério Público de entrarem no jogo da Justiça negociada, que haja juízes em Berlim que possam pôr ordem onde se exige Lei e não conveniência, autoridade e não combina. Ora só o sistema proposto evita que a medida coactiva corra o risco de recair sob a suspeita de que é uma forma de transaccionar interesses ao invés de cumprir a Lei.
Pode dizer-se que não se atribuiu a juiz a totalidade do poder pois este fica limitado à medida coactiva proposta pelo Ministério Público quando o argumento para a sua aplicação for a perturbação do inquérito e não o perigo de fuga ou fuga efectiva ou o receio de continuação ou de alteração da tranquilidade pública. Mas penso que esse pecúlio de reserva tem uma razão racional compatível com o núcleo essencial das atribuições do Ministério Público: aí e só aí está ele em condições únicas para propor a justa e adequada medida para proteger a prova do inquérito que conduz.
Enfim, prevê-se [para o n.º 8 desse preceito] que «o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição do recurso».
É de aplaudir também, pois que assim se garante um controlo eficaz do decidido, uma possibilidade efectiva de recurso e uma decisão em segunda instância com conhecimento de causa. 
Mas para se tratar de medida totalmente eficaz seria necessário ocorrerem duas circunstâncias, que não vejo previstas na proposta. Primeiro, que o requerimento de medida de coacção - nomeadamente quanto ablativa da liberdade - fosse articulado e fundamentado com elementos de prova dos autos que indiciassem os pressupostos gerais e específicos da medida proposta para que pudesse haver real controlo do pedido. Segundo, que tudo isso fosse feito constar de um apenso próprio, que seria o que subiria em recurso, permitindo salvaguardar os demais elementos dos autos que o Ministério pretendesse manter sob segredo de justiça, a vigorar. Em suma: a medida coactiva teria sido proposta, contraditada e decidida com base naquilo e seria sobre aquilo que o tribunal de recurso decidiria, acabando com o deprimente «como consta abundantemente dos autos», cabendo ao arguido adivinhar onde estaria essa cornucópia de abundância.
Propus isso mesmo num modestíssimo estudo com o qual contribui para o livro de homenagem ao Doutor Figueiredo Dias. Digo-o não por falsa modéstia mas porque tenho consciência de que poderia ter feito melhor, assim a minha vida intelectual não fosse devorada pela hidra voraz dos deveres da profissão de que faço ganha-pão.

P. S. Em pormenor, olhando para a nova redacção que o Ministério da Justiça propõe para o artigo 194º há redundância pois o previsto para o n.º 3 já resultava a contrario do n.º 2.

Reforma do CPP (1): o artigo 340º

Primeiro foi a lógica do consenso como bandeira da celeridade a querer impor-se ao poder judicial, fazendo os acordos entre o Ministério Público e os Advogados a determinaram a pena, assim negociada, quisesse o juiz ou não, tudo com o aplauso de certos magistrados porque assim tudo andaria mais depressa e eles teriam menos serviço. A ideia, até mais ver, ficou no limbo das fantasias mortas, tal como a alma dos recém-nascidos.
Agora é uma nova frente ao poder judicial. Desta vez em papel timbrado do Ministério da Justiça.
Comecei a ler as sugeridas alterações ao Código de Processo Penal. E dei logo com esta [e outras que a seu tempo virão aqui em comentário critico] relativa ao artigo 340º, o preceito que permite, oficiosamente ou a requerimento, a produção de meios de prova indispensáveis para a descoberta da verdade de que houvesse entretanto notícia ou que se revelassem, entretanto, relevantes.
Envergando o paramentação branca da inocência, a nova fórmula para o preceito [alínea a) do n.º 4]  surge assim desenhada na proposta do Governo: «os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que a) As provas requeridas já deviam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação».
Perdoem a crueza mas tudo isto é um erro.
Primeiro, porque não há coisa menos notória em Direito do que o ser notório. Como se o processo penal, processo de garantia e segurança que deve ser, pudesse compaginar-se com conceitos abertos indeterminados, vagos como este, ei-lo a abrir a porta ao discricionário, ao livre alvedrio de quem decidir e depois, claro, a arguições de nulidades e a recursos [ficando, como é costume, as vítimas destes pesadelos interpretativos causados pelo político legislador à mercê de estarem a abusar de excesso de garantismo e a entorpecer a acção da Justiça...].
Segundo, porque não pode falar-se em ternos de prova em um «dever» nem sequer, para sermos rigorosos, num «ónus», ou então as categoriais jurídicas essenciais já não valem nada e as nomeclaturas, tal como as expressões da Literatura, passam a ter valor meramente sugestivo. Não há portanto para o Ministério Público, assistentes ou arguidos provas que devam ser apresentadas neste ou naquele outro momento processual, sim que podem ser oferecidas em certos tempos processuais, com a especificidade para o titular da acusação pública que de seguida se referirá.
É que, terceiro, porque a haver uma lógica de preclusão, ela não pode equiparar o Ministério Público ao arguido, pois aquele esgota-se no acto acusatório, delimitando o objecto processual e apoiando a sua valia indiciária em provas suficientes, que podem ser sindicadas pelo juiz em instrução, quando requerida, ou pelo juiz de julgamento, inexistindo prévia instrução, no despacho em que receber a acusação. O arguido oferece na contestação a prova que entender sem que tal peça processual lhe possa ser rejeitada por não conter prova suficiente. Donde a equiparação é incorrecta, porque não se trata de irmãos nem gémeos nem siameses. Não se trate igual o que é diferente.
Quarto, porque a lógica do artigo 340º, tal como estava delineado, era dar acolhimento à superveniência subjectiva em matéria probatória, isto é permitir a produção daquela prova de que houvesse entretanto conhecimento ou que, conhecida já que fosse, assumisse agora relevo para o esclarecimento da verdade, a válvula de escape, em suma, para que, em nome da Justiça, se esgotasse toda e qualquer prova que permitisse a descoberta da verdade. E, num aparte, acabe-se de vez com a noção [outra] vaga e perturbadora da verdade «material» [por contraponto à verdade «formal» do processo civil] porque o conceito de verdade para a Justiça deve ser sério demais para que admita variantes ou gradações.
Fruto do que se pretende ser um dever probatório, que impenderia por igual sobre o Ministério Público e o arguido [e assistente], ficarão todos ficam impedidos de apresentar provas que notoriamente poderiam ter indicado antes. Eis o que se sugere.
Que restará ao juiz? O poder de oficiosamente determinar o que não pode ocorrer a requerimento? Mas não se pensou que esta exposição do juiz à isolada oficiosidade o compromete no núcleo essencial da sua independência, por estar a comandar a produção de provas que podem fazer pressentir já um juízo formado sobre o objecto das mesmas? Não era mais equilibrado um sistema em que a oficiosidade era subsidiária ou paralela ao poder de requerimento por parte dos demais «sujeitos processuais»?
Que se imporá ao juiz, assim a proposta dê em lei? Que seja o juiz do que é «notório». Não se pensou que esta exposição do mesmo à integração de um conceito tão vago, o compromete no núcleo essencial da sua imparcialidade, porque chamado a decidir algo tão relevante como a prova final em julgamento, em nome de uma ideia cujos contornos escapam entre os dedos, o ser notório, substituindo-se ele à estratégia probatória da acusação e da defesa, para decidir que a prova devia ter sido indicada antes?
O admirável mundo novo privatístico vai entrando no processo penal. É a ideologia do capital, a técnica da celeridade na linha de montagem do processo penal, tal como na fábrica do senhor Henry Ford, produtor americano de automóveis. A taylorização. A funcionalização.

À 24ª hora, dois séculos depois

Os crimes chamados particulares vêem o procedimento criminal depender de queixa. Esta vê o seu direito caducar se não for exercido em seis meses. Quando acabam estes seis meses? Na hora exacta em que fecha o serviço que pode recebê-la, ou às vinte e quatro horas desse dia?
O sistema da caducidade do direito de queixa por decurso de um prazo já constava pelo menos do Código Penal de 1886, embora nele os prazos fossem mais extensos. Veja-se aqui. Pois agora, só agora, o Supremo Tribunal de Justiça [acórdão de 18 de Abril, relator Pires da Graça, texto integral aqui] decidiu quando é que acabava esse prazo. Optou pelas vinte e quatro horas, dois séculos depois.

P. S. Resolveu-se também o problema de os seis meses acabarem em Fevereiro por causa de ser mês mais curto.Naturalmente.

Ao terceiro dia...27 anos depois!

O problema dos prazos em processo penal continua sujeito à regra da aflição. Primeiro, porque há alguns que, por serem longos, permitem uma longa pendência da incerteza em torno de decisões que, pela sua natureza e significado, deveriam merecer o respeito da estabilidade. Faz sentido que em relação a uma sentença penal final, que condene ou absolva, se tenha de esperar por trinta dias para se saber se vai ou não haver recurso, que é o prazo máximo em que pode ser discutida a matéria de facto? Não faria sentido que a decisão de recorrer - ainda que sujeita à condição resolutiva de não manutenção da mesma pelo não oferecimento de alegações - devesse ser manifestada no processo - como era outrora - em cinco dias, digamos oito ou mesmo dez?
Actualmente fica o beneficiário da absolvição ou o que foi castigado com a punição, fica o Ministério Público, fica o tribunal que decidiu, ficam as vitimas, fica a comunidade em geral sem saber se a decisão vai ser discutida em recurso ou não, com a concomitante insegurança, durante trinta dias. É a regra do para já é assim depois logo se vê.
Outra questão resulta do facto de ocorrendo a notificação para um prazo a uma sexta-feira, o primeiro dia do prazo notificado ser logo o sábado e o segundo o domingo, dias que hipocritamente são tidos por dias de descanso! Se o prazo for de dois dias termina no domingo e por isso está esgotado logo na segunda-feira, sem que o notificado tenha disso dado conta! Gera isto a inquietação psicológica dos que nos processos trabalham sujeitos a prazos cominatórios - e não são todos - e é isto um verdadeiro alçapão pelo qual quantas vezes se perde um prazo, como se a Justiça tivesse como propósito fintar os seus utentes, rasteirando-os. Mas é como é.
Enfim, há os chamados «três dias da multa», isto é, a possibilidade de pagando, se praticar um acto processual [em processo civil ou penal] até ao terceiro dia útil após o esgotamento do prazo legal.
Uma certa jurisprudência veio entender que, em nome da igualdade de armas no processo penal, o Ministério Público, teria de pagar a mesma multa que pagam os particulares; outra sentenciou que, não tendo de pagar - pois o Estado está isento daquelas imposições com que onera os contribuintes que assim se mostra que são seus súbditos - teria o encargo de avisar nos autos que ia praticar o acto beneficiando da multa que para si não era multa.
Nunca percebi onde é que estava a razão moral para isentar o Estado aquilo a que se obrigava a sociedade civil, nem onde é que estava na lei algo que obrigasse o Estado a comunicar aquilo que a sociedade civil não tinha de comunicar, o pré-aviso quanto ao carácter tardio da prática do acto.
Por isso esta manhã ao ter lido o que de seguida transcrevo, e que é um Acórdão de uniformização de jurisprudência [do STJ] n.º 5/2012, de 18 de Abril [relator Oliveira Mendes, texto integral, agora publicado na folha oficial, aqui, com voto de vecido], fiquei expectante de saber o porquê de se ter decidido que «o Ministério Público, em processo penal, pode praticar acto processual nos três dias úteis seguintes ao termo do respectivo prazo, ao abrigo do disposto no artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, sem pagar multa ou emitir declaração a manifestar a intenção de praticar o acto naquele prazo.».

P. S. O sistema dos três dias de multa para prática tardia de actos processuais sujeitos a prazo foi introduzido no nosso Direito em 1985. Vinte e sete anos depois ainda não se tinha chegado a uma conclusão definitiva nos nossos tribunais quanto a esta questão! Foi agora! Falava eu em viver-se na insegurança...

P. S. 2: Como sou uma nulidade em contas tinha escrito quer no corpo do texto quer no título 17 anos depois. Um leitor chamou à atenção: são 27! As minhas desculpas.

Alterações às leis penais

Estão aqui os pareceres do Conselho Superior do Ministério Público sobre as alterações ao Código Penal e ao Código de Processo Penal, os pareceres do Gabinete do Procurador-Geral da República sobre este último projecto, as notas do PGD de Coimbra sobre o Parecer do Conselho Superior, e os contributos dos Magistrados do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça. Está aqui o parecer do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público sobre a alteração ao Código de Processo Penal, aqui o parecer sobre a alteração ao Código Penal e aqui sobre o regime jurídico da execução de penas e medidas privativas da liberdade.
Tudo a mostrar que só no âmbito do Ministério Público reina tudo menos menos convergência de critérios.
Os pareceres da Ordem dos Advogados estão aqui.
Os pareceres da Associação Sindical dos Juízes Portugueses estão aqui.
Trouxe comigo estes documentos para os estudar e tentar pensar sobre eles. Logo que possível, entendendo-me primeiro com as propostas e depois com os comentários.

Dolus in re ipsa: inferir e assim provar indiciariamente

Como se prova o dolo, a intenção, a representação mental do crime e a adesão da vontade ao mesmo? O dolo que é ao lado da ilicitude um dos elementos essenciais dos tipos de crime em que não é só punida a negligência.Lendo este excerto demonstra-se que não é de prova que se trata mas de inferência. Cito da Relação de Évora, no seu Acórdão de 08.05.12 [relator João Latas, texto integral publicado aqui]: «Em regra, os factos de natureza psíquica, como os que respeitam ao conhecimento e vontade próprios do dolo, não são objeto de prova direta, ou seja, tal prova não é feita com base em meios de prova que versem diretamente sobre esses mesmos factos – exceção feita à confissão ou a casos excecionais de prova por ouvir dizer, legalmente admissível -, antes tem por base inferências lógicas assente em factos objetivos, maxime os relativos aos elementos objetivos do tipo, e em regras da experiência comum, não constituindo a prova indireta dos factos qualquer novidade e, menos ainda, ilegalidade.»
E depois, como se a prova indiciária não findasse o seu relevo antes do julgamento, suficiente para o Ministério Público acusar ou ainda para o Juiz de Instrução pronunciar, mas ainda tivesse lugar de expressão, relevo e valia condenatória em julgamento - onde se não exigisse prova plena apta a gerar a convicção para além de qualquer dúvida razoável mas bastasse ainda e apenas aquela prova por indícios - acrescenta, citando Cavaleiro Ferreira: «A prova indiciária tem uma suma importância no processo penal; são mais frequentes os casos em que a prova é essencialmente indirecta do que aqueles em que se mostra possível uma prova directa.»

A geografia de uma vida

Não é este um blog referente à minha actividade profissional. Mas é um blog pessoal, um espaço de liberdade. Tento que seja informativo e por vezes falha-me tempo para informar-me e poder divulgar. Quero que seja crítico mas nem sempre tenho possibilidade de meditar para me precaver do comentário superficial. Venho hoje falar de um assunto meu.
Este mês a Ordem dos Advogados concedeu-me a reforma como Advogado. Por causa dos encargos a que estou a amarrado, terei de continuar, porém, a trabalhar nos tribunais. Estou naquela idade a quem já ninguém daria outro emprego. E depois viciei-me neste.
Num momento destes pensa-se no que foi ter sido Advogado, no que poderia ter sido, no que acabou por ser. No meu caso a data não se tornou numa efeméride, apenas um momento de encontro de contas com a Caixa de Previdência da minha Ordem, uma das que restam livres neste País em que o Estado engoliu o sociedade civil.
Comecei a advogar em Sintra, feito o estágio em Lisboa no escritório do Dr. Francisco Salgado Zenha. Naquela vila o Tribunal eram dois juízos, instalados no edifício da Câmara Municipal. Lembro-me do nome dos escrivães, o Senhor Alvarez e o Senhor Aleluia. Quando comecei eram a minha referência directa, o primeiro lado visível da Justiça. Não me atrevia a confessar-lhes a minha ignorância, estudava dia e noite por pudor.
Eu era então o benjamim da comarca. Comecei a fazer de tudo, desde registos prediais, a escrituras de habilitação. Propus acções cíveis, execuções de letra, divórcios, processos-crime. Nos dias de mercado esperava que me chegassem "clientes". Vinham da Sintra rural, da Várzea, da Ulgueira, de Pero Pinheiro, de Dona Maria.
Tinha aberto escritório com cinquenta contos que a minha Mãe poupara. Comprados os tarecos e uma máquina de escrever, assinalei-me o propósito de continuar se aquele dinheiro não acabasse sem eu ter ganho algum para ir repondo. Não tinha fotocopiadora. Não havia faxes. Escrevia-se em papel selado.
Tem sido assim, no bom e nos maus momentos, um mundo que pode terminar a cada instante. Os que tomam os outros pelo que deles fantasiam, imaginarão coisas, muitos a medida da frustração, outros do que ambicionam. 
O real, mesmo quando invisível, existe.
Ao longo da vida conheci de tudo. Ninguém tem o monopólio da virtude. Um dia mudei-me para Lisboa, para um pequeno gabinete, na Rua Marquês de Fronteira. 
Talvez por ter estado sete anos ligado à docência na Faculdade de Direito da Universidade Clássica, na área do Direito Criminal e do Processo Penal, e depois mais dez nas Universidades Lusíada e Internacional, fui-me centrando nestes ramos do Direito. De vez em quando aventuro-me por outros territórios. Com gosto e frequentemente com resultado. Mas acabei por ficar um Advogado criminalista em prática isolada. O modo de ser profissional é o modo de ser da pessoa que exerce a profissão.
Não há Advogados que ganhem sempre; quem o diz ou não advoga ou cruza os dedos atrás das costas. Aliás a Advocacia não é o mundo onde tenha se se alcançar o orgulho de ganhar uma causa para não sofrer a humilhação de perdê-la. 
Tenho perdido processos que merecia ter ganho e ganho outros que merecia ter perdido. Em ambos os casos a Justiça perdeu sempre. Houve coisas que gostaria de não ter sabido, outras que gostaria de não ter feito ou visto fazer.
Se eu tivesse a arrogância de escrever um livro sobre como é advogar não saberia escrevê-lo. É uma Arte, não uma Ciência. Quando se tem o holofote em cima, o público ilude-se com o ruído das luzes, porque não se notam os bastidores nem as horas a fio de ensaio.
Com o 25 de Abril o meu patrono foi o primeiro ministro da Justiça da democracia. Chamou-me para seu secretário. Julguei que a Pátria precisava de mim e eu podia oferecer-me ao Governo. Fui para secretário do ministro. Desde então ficou-me o gosto pela causa pública. Deixou-me no final de tantos tombos gosto amargo. Regressei sempre à minha banca de Advogado.É o útero onde me fiz.
Hoje acabei um prazo, amanhã tenho um julgamento. E serviço acumulado por cansaço. Tenho vergonha de o dizer porque há centenas de colegas sem trabalho. Sou nisso um privilegiado. Fiz o que quis fazer de mim. Tudo começou há muitos anos. Em Fevereiro de 1972 comecei o estágio. A fotografia deste postal mostra como era o meu eu exterior nesse tempo. 
A geografia de uma vida é o mapa que a vida nos desenha no rosto.

A integralidade da confissão

Para ser válida e por isso eficaz em processo penal a confissão tem de ser integral e sem reservas. A integralidade abrange o tipo objectivo e o subjectivo. Assim a 18 de Abril a Relação de Coimbra [relator Jorge Dias, texto integral aqui] decidiu que «quando o arguido nas suas declarações, embora reconhecendo os factos objetivos, invoca para a sua prática uma causa de exclusão da ilicitude e da culpa e, por conseguinte não confessa o facto subjetivo imputado, não podem ter-se por confessados integralmente os factos da acusação que integram a prática do crime.». Já havia decidido de modo semelhante em 15.12.10.

A "encomenda"

Leio neste acórdão aqui da Relação de Lisboa, que acabo de citar noutro postal, este excerto e confesso que fico chocado: «porém, pese embora a matéria de facto que foi dada como comprovada pelo tribunal “a quo”, ainda assim, nunca, à luz da mesma, o arguido poderia ter sido absolvido. E, nesta parte, a tarefa mostra-se-nos particularmente facilitada com o “Parecer” do Exm.º Prof. Costa Andrade, com o qual o recorrente instruiu o recurso, e que aqui se sufraga na sua plenitude. Dir-se-á que este estudo é fruto de uma “encomenda”, porventura até bem paga! [...].
É que, vamos à questão, a ir-se até ao fim do argumento suscitado, todos os pareceres, de juristas ou de quem seja, passam a estar em dúvida porque são pagos, todos os que actuam remuneradamente na Justiça passam por suspeitos porque são pagos, o ser pago passa a ser razão para se pôr em crise a probidade e a honradez e assim, num aparte, se lança a lama da dúvida.
No caso, como se verá, até foi com base neste parecer que até poderia ser, segundo os juízes que assinaram o decidido, de «encomenda» e «porventura até bem paga», que o tribunal condenou o interessado. O que nem adianta nem atrasa quanto ao que está em causa. Em causa sim a frase, a ideia subjacente, o juízo moral implícito, o rebaixamento.
Confesso que há dias em que dá vontade de desistir. Quando nos vemos, os que vivemos do nosso trabalho nos tribunais, e tentamos que o mesmo seja sério e feito com probidade, não defendendo qualquer coisa de qualquer modo mesmo quando o contrário nos daria o benefício da "encomenda" ser "bem paga", assim passíveis de sermos olhados, obliquamente.
Perdoem o desabafo pessoal, fazendo minhas as dores alheias. Deve ser de estar a chover, seguramente. É um sentimento de desolação.

Gravar para se defender?

O problema das gravações sem consentimento para prova de crime ou para defesa do próprio é sério por poder estar em causa um equilíbrio de valores constitucionais. Do ponto de vista penal, ante o carácter criminalmente ilícito da conduta e a consequente proibição da prova assim obtida coloca-se como alternativa legitimadora da conduta a eventual existência de uma situação de direito de necessidade. 
Foi sobre essa matéria que incidiu o Acórdão da Relação de Lisboa de 26.04.12 [relator Almeida Cabral, texto integral aqui], segundo o qual «recebendo o arguido convite para um encontro, logo tendo intuído que o interlocutor visava uma acção de corrupção, aceitando comparecer e indo munido de gravador, com o qual gravou a conversa sem o consentimento daquele, não se verifica o “direito de necessidade”, excludente da ilicitude, pois o perigo foi intencionalmente criado pelo agente».

 

Quando o afinal surpreende...

A notícia conheceu honras de caixa alta. A imprensa fez-se eco dela. O caso foi interpretado como um sério aviso aos bancos. Pessoas com responsabilidades difundiram-na e opinaram. E citaram a situação como um acto de coragem do (a) magistrado (a) que teria proferido a sentença. E adiantaram que o seu nome deveria ser divulgado como exemplo. 
Agora veio o desmentido: afinal não se tratava de entregar a casa ao banco credor hipotecário e ficar extinta a dívida. Vi isso este começo de manhã no In Verbis, aqui.
É por isso que me guardo de comentar neste blog o que chega pelos jornais: não que a imprensa não mereça respeito, mas porque o respeito pela segurança do que se diz no Direito merece mais.

Suspensão provisória na instrução




Segundo o Acórdão da Relação de Coimbra de 28.04.12 [relator Luís Ramos, texto integra aqui] «O requerimento para abertura de instrução em que o único pedido seja a suspensão provisória do processo não pode ser rejeitado, visto que não viola a regra sobre a finalidade da instrução, porque a comprovação judicial a que se reporta o n.º 1 do artº 286º CPP, não se restringe ao domínio do facto naturalístico, antes compreende também a dimensão normativa do mesmo e por conseguinte, a sua susceptibilidade de levar (ou não) a causa a julgamento.»
É que, segundo o mesmo aresto, louvando-se no já decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça: «o arguido e o assistente podem pedir hoje ao Ministério Público ou ao juiz de instrução a suspensão provisória do processo», pelo que «enquanto no decurso do inquérito, aqueles sujeitos processuais se podem dirigir ao Ministério Público, dominus dessa fase processual, por mero requerimento, já ao seu direito a pedir, ao juiz de instrução, a suspensão provisória do processo, tem de corresponder uma adequada “acção”, destinada a efectivar esse direito e que ocorre já depois de findo o inquérito e tomada posição final pelo Ministério Público», ou seja «a acção dirigida ao juiz de instrução, findo o inquérito, como é o caso, só pode, pois, ser constituída pelo requerimento de abertura de instrução em que se pede que se analisem os autos para verificar se se verificam os pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo e que em caso afirmativo se diligencie, além do mais, pela obtenção da concordância do Ministério Público, tal como o impõe o n.º 2 do artº 307.º do Código de Processo Penal», porque «só esse requerimento abre a possibilidade ao juiz de instrução de proferir a decisão a que se refere o art. 307.º e que inclui, como se viu, a possibilidade de suspender provisoriamente obtida a concordância do Ministério Público.»

O decidido pela primeira instância e que foi agora rejeitado pela Relação havia sido no seguinte sentido:
«Pelo requerimento de abertura de instrução, verifica-se que o arguido apenas pretende que seja aplicado aos presentes autos o instituto da Suspensão Provisória do Processo (forma de processo especial), porém para que tal aconteça é necessário que o Ministério Público dê a sua anuência, nos termos do art. 281º do CPP. Ora, conforme se verifica do despacho de fls. 62 do Ministério Público, o mesmo de forma fundamentada, explicou as razões porque não aplicava aos presentes autos tal instituto, nomeadamente por não se verificarem os requisitos do mesmo, nomeadamente no que toca à culpa diminuta, ou melhor dizendo à falta dela. 
Acrescenta-se que a suspensão provisória do processo (finalidade da presente instrução), é uma forma de processo especial, sendo que a opção pela mesma está no poder discricionário do Ministério Público, não cabendo ao Juiz de instrução ordenar a mesma ou apreciar o mérito de tal decisão, quando mais o Ministério Público já fundamentou o porquê da não aplicação de tal instituto. Apenas lhe cabe (ao Juiz), como decorre da lei, verificar, e no caso do Ministério Público optar por esta solução processual, se se encontram preenchidos os pressupostos da sua aplicação. 
Aliás, face à posição já expressamente manifestada nos autos pelo Ministério Público sobre as razões da não aplicação do instituto da Suspensão Provisória do Processo, admitir a presente instrução não mais passava do que admitir que se praticassem nos presentes autos actos inúteis. 
Face ao exposto rejeita-se liminarmente a presente instrução, uma vez que a mesma não respeita as finalidades previstas na lei para abertura da mesma.»

O caso julgado provisório

O caso julgado é uma garantia para a segurança jurídica, para os direitos e expectativas de todos os participantes processuais. O caso julgado delimita os limites objectivos do decidido e do que não pode ser repetido, marca o momento em que uma decisão judicial pode ser executada porque definitiva. Evita abusos, impede favores.
Imagina-se o que pode resultar de um Código de Processo Penal que não tem normas sobre o caso julgado, como é aquele que nos rege.
Aprende-se toda a vida. Aprendi agora que existe o caso julgado provisório, o caso julgado sujeito a condição resolutiva. O processo provinha da comarca de Oeiras.
Lê-se aqui no Acórdão da Relação de Lisboa de 24.04.12 [relator Vieira Lamim, texto integral aqui]:
«Iº Tendo a decisão condenatória transitado em julgado quando estava por decidir a questão da prescrição, suscitada antes desse trânsito e que o Supremo Tribunal de Justiça ordenou fosse apreciada em 1ª instância, aquele trânsito em julgado tem natureza provisória e resolúvel, assim garantido efeito útil à decisão que vier a ser proferida sobre a prescrição;IIº Tendo o arguido sido condenado por quatro crimes na pena única de dois anos de prisão, por acórdão transitado em julgado nos referidos termos e encontrando-se pendente a apreciação da prescrição invocada em relação a dois desses crimes, deve aquele acórdão condenatório considerar-se inexequível, em relação à pena de prisão, até que transite a decisão relativa à prescrição.»
É que, segundo o decidido: «os princípios da segurança jurídica inerente ao Estado de Direito (art.2, da Constituição da República Portuguesa), da mínima restrição dos direitos, liberdades e garantias (art.18, nº2, C.R.P.) e da dignidade humana do condenado (arts.1 e 30, nº5, da C.R.P.), impõem que não seja reconhecida, no caso concreto, exequibilidade à decisão condenatória já transitada, em relação à pena de prisão, enquanto se puder verificar a condição resolutiva do trânsito em julgado, pela eventual procedência da prescrição invocada.»

Monsaraz

O quadro é simbólico. Está em Monsaraz esse magnífico e mítico lugar. Chama-se O Juiz das Duas Caras. É um fresco do século dezasseis. Representa o bom e o mau juiz, a boa e a má Justiça. É um elogio ao juiz recto e honesto. Só sabendo do mal se valoriza o bem.
A luta pelo processo de revisão, a luta contra a intangibilidade do caso julgado, a luta pela consciência de que a Justiça erra e que o erro é reparável, é um processo interminável. Veja-se, elucidativo, este acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.03.12 [relator Santos Carvalho, texto integral aqui]:

«I - A alínea g) do n.º 1 do art.º 449.º do CPP dispõe que há fundamento para a revisão quando “uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça”.
«II - A sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), sobre o caso ora em apreço, é vinculativa para o Estado português e esse Tribunal considerou violado o art.º 6º, n.º 1, da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, ao não ter sido ouvida a ora recorrente na audiência pública no Tribunal da Relação, sobre se “a sua responsabilidade penal deveria ter sido considerada como diminuída, o que poderia ter tido influência importante na determinação da pena”, “tanto mais que a sentença do Tribunal de Matosinhos divergia da perícia psiquiátrica, sem contudo enunciar os motivos dessa divergência tal como exige o direito interno”.
«III - Decidiu o TEDH, portanto, em sentido contrário aos tribunais portugueses, mas apenas sobre uma questão procedimental, a de ouvir ou não a requerente, obrigatoriamente, em audiência pública, na fase de recurso, sobre determinada questão controvertida, considerada determinante para a determinação da pena.
«IV - Todavia, o TEDH recusou-se a retirar daí uma consequência substantiva, respeitante à própria medida da pena aplicada, pois “não se vislumbra o nexo de casualidade entre a violação constatada e o alegado dano material [designadamente “o reembolso dos montantes que teve de pagar em consequência da sua condenação] e, por isso, se rejeita o pedido. Com efeito, ao Tribunal não compete especular sobre o resultado a que o Tribunal da Relação teria chegado se tivesse ouvido a requerente em audiência pública (…)”.
«V - A reabertura do processo - que no caso do ordenamento interno português se satisfaria, em abstracto, pela autorização de revisão da sentença condenatória, nos termos dos art.ºs 449.º e seguintes do CPP – já constituiria, segundo o TEDH, uma reparação integral para a ora recorrente. No entanto, esse expediente só se imporia, em concreto, se a lei interna o permitisse e as circunstâncias do caso («à luz do acórdão proferido para o caso em apreço») o justificassem. Ora, o recurso de revisão é restrito, na nossa lei interna, às «sentenças (nomeadamente condenatórias») e não a quaisquer despachos de orientação do processado, sendo que se «diz (…) sentença o acto pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa» (art.º 156.º, n.º 2 do CPC).
«VI - Ora, a revisão da sentença não pode ser autorizada, face à lei nacional, com o fundamento invocado pela recorrente, pois não há inconciliabilidade entre a sua condenação e a sentença do TEDH, para o efeito da referida al. g) do n.º 1 do art.º 449.º do CPP. O que há é uma inconciliabilidade entre o procedimento que a relação adotou na realização da audiência que antecedeu a decisão do recurso e aquele que o TEDH considerou indispensável para assegurar os direitos de defesa.
«VII - Face ao direito nacional, a ausência do arguido, nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência, é uma nulidade insanável (art.º 119.º, al. c, do CPP). Contudo, as nulidades, mesmo as insanáveis, não são fundamento do recurso extraordinário de revisão de sentença, já que “devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento” (cf. art.º 119.º), isto é, até ao trânsito em julgado da decisão final, pois é nessa altura que se esgota “o procedimento”.
«VIII - Por outro lado, como o próprio TEDH refere, não é permitido fazer qualquer especulação sobre qual teria sido a decisão da relação se a condenada tivesse sido ouvida na audiência que antecedeu a decisão de recurso, designadamente, se a pena teria sido a que foi cominada ou uma outra diferente. Assim, o TEDH excluiu, desde logo, que a sua decisão pudesse suscitar graves dúvidas sobre a condenação, ainda que esta se considerasse apenas na vertente da pena efetivamente aplicada.
«IX - Em suma, a decisão vinculativa do TEDH não é nem inconciliável com a condenação nem suscita graves dúvidas sobre a sua justiça, pelo que não se verifica o fundamento indicado pela ora recorrente para se poder autorizar a revisão da sentença condenatória.»

Trabalho prisional

Tinha um dia destes referido a questão do trabalho prisional e citado um site italiano respeitante à produção e comercialização de produtos fabricados por reclusos. Mão amiga fez-me chegar esta ligação aqui que é, afinal, a um de lugar idêntico criado no nosso País. Oxalá floresça e para bem. Trata-se do catálogo do produzido nos Estabelecimentos Prisionais. Desde Arte, Mobiliários, Vinho, Serviços.

Dano corporal

Decidiu o Tribunal da Relação de Évora no seu Acórdão de 10.04.12 [relatora Ana Brito, texto integral aqui] que «os valores constantes da Portaria nº 377/2008, que cuida da apresentação de propostas de indemnização pelas seguradoras, não são de aplicação judicial obrigatória. Não devem, no entanto, os tribunais menosprezar as virtualidades de um diploma que se pretende uniformizador, o que apenas se prossegue se judicialmente se lhe atender como quadro de critérios ou valores de referência».

Relativamente à interpretação da citada Portaria, que está publicada aqui, e desenvolvendo o seu raciocínio justificou, assim fundamentando o entendimento: «a verdade, este diploma, publicado em 26 de Maio e alterado pela portaria nº 679/2008 de 25 de Junho, prevê uma tabela (legal) de ressarcimento do dano corporal.
Com ela visou o legislador, não a fixação final e última dos quantum indemnizatórios, mas “o estabelecimento de um conjunto de regras e princípios tendentes a agilizar a apresentação pelas seguradoras de propostas razoáveis, possibilitando a avaliação pela autoridade da supervisão, em quadro de objectividade, da respectiva razoabilidade” (Salvador da Costa, Caracterização, Avaliação e Indemnização do Dano Biológico, Cadernos do Cej. – Acidentes de Viação I, 2011).
Pelo que tais valores nunca serão definitivos e a tabela não é de aplicação judicial obrigatória. Ela cuida da apresentação de propostas de indemnização pelas seguradoras. Não estão, por isso, os tribunais vinculados a efectuar as operações de cálculo indemnizatório de acordo com a portaria, sem prejuízo de poderem ter presente os valores constantes deste diploma, uma vez que com ele se visou também uniformizar critérios.
Tem vindo a ser esta a posição da jurisprudência, que cremos aqui uniforme.
Assim, “no que diz respeito à indemnização pelo dano da morte, a Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, tem um âmbito institucional específico de aplicação extra-judicial” (Ac. STJ 07.08.2009); “A portaria 377/2008 não visa mais do que fornecer valores mínimos que sirvam de base de negociação para a determinação das indemnizações. Os valores por ela indicados não são vinculativos, não têm em conta as circunstâncias do caso, que são essenciais para a formulação do juízo de equidade que o nº 3 do art. 496º do C.C., impõe” (Ac. STJ 25.03.2010, Maia Costa).
Apesar de não vinculativo para os tribunais, repete-se, consideramos no entanto que as virtualidades de um diploma que se pretende também uniformizador não devem ser menosprezadas, o que se prossegue apenas se judicialmente se lhe atender como quadro de critérios ou valores de referência. Na verdade, a portaria contribuiu para “introduzir no sistema regras, critérios e valores que permitirão balizar a aplicação do prudente arbítrio do julgador” e implementar um “sistema indemnizatório socialmente mais justo” e “alinhado com as tendências do mercado comunitário” (Paulo Baião Figueiredo, Contributo para a Compreensão dos Critérios e Valores Orientadores da Proposta Razoável de Indemnização do Dano Corporal resultante de Acidente de Viação, Cadernos do Cej. – Acidentes de Viacção I, 2011).
O lesado não está nunca impedido de recorrer à via judicial quando entenda que os valores oferecidos pela seguradora e considerados como proposta razoável de acordo com a portaria não são, na sua perspectiva, suficientes para o ressarcir do dano.»

L'avenir de l'homme

Uma semana sem escrever porque nem sempre é possível. Diria que mesmo este mundo jurídico é um mundo humano e o humano é imperfeito. Diria mas por arrastamento de um pensamento preguiçoso, como quem acorda vindo de uma dormência. Corrijo! Sobretudo este mundo do Direito tem de ser um mundo humano. Lembro-me do Código Civil de Seabra, que terminou a sua vida quando eu comecei o meu curso. Abria com a palavra «homem». Só o homem é susceptível de direitos e obrigações. [ver aqui]. Depois veio o tecnicismo germanístico do Código que vigora. E o homem passou a chamar-se sujeito e colocado na estante da sistemática ao lado do facto, do objecto e da garantia. 
Estava consumada a desumanização. O Direito assumiu-se como falsa Ciência, quando é Arte.
Os japoneses não aceitam a simetria porque só o assimétrico imperfeito abre a porta para o mundo do mais que perfeito. 
Voltei. Só o futuro é mais do que perfeito, porque a ânsia do construir une.

Mediação para a violência doméstica?

Tomei conhecimento hoje, ao ler o blog Direitos Outros, da existência deste sítio Justitia Omnibus, da Universidade de Santiago de Compostela. Escrito em galego, o que em mim coloca um sentido de íntima pertença, porque sou dos que sentem o lema «Portugal/Galiza, uma só Nação». Está aqui.
O blog cita dali uma entrevista do professor Lamas Leite, da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e magistrado do Ministério Público, segundo o qual alguns crimes públicos, um dos quais o da violência doméstica, devem ser incluídos no âmbito da competência da mediação penal. Lê-se aqui. Tenho uma primeira reacção instintiva em discordar, pressupondo a ideia que a mediação é adequada às menoridades penais; pergunto-me depois se o modo como funciona a Justiça Penal, levando à punição conduz à solução. E de novo me interrogo se a mediação, pela informalidade, lógica dialogal, sentido de impunidade, levará a qualquer resultado que não seja efémero. E no fim, relativizando o que penso, num ápice do pensamento e antes de qualquer reflexão, pergunto-me se o futuro da mediação penal não será o revelado por estes números que o entrevistado cita: «s estatísticas disponibilizadas pelo Ministério da Justiça não são animadoras. É verdade que o número de pedidos de mediação aumentou desde 2008 (quando, na prática, a Lei n.º 21/2007 foi aplicada) até 2010, ano em que se cifrou em pouco mais de 250 pedidos. Todavia, em 2011, houve uma forte diminuição para menos de 100 e os dados do presente ano de 2012 andam em cerca de 20 pedidos, o que é manifestamente irrisório, mesmo num projeto experimental. Por outro lado, se em 2008 e 2009 os processos que terminavam com acordo eram mais do que aqueles em que não havia acordo, a tendência inverteu-se a partir de 2010. A taxa de resolução processual, neste momento, ronda os 40%. Os processos que chegam à fase de pré-mediação e, depois, à de mediação, têm caído a pique a partir de 2010».
Criada na lógica da desjudicialização a mediação, supondo um mundo que não é o nosso, está a caminho do outro mundo. Não é arranjdo-lhe mais temas que ela ganha mais interesse. E a violência doméstica ainda está desprotegida que chegue para que se lhe ofereça a ilusão da mediação.

O Homem Sem Qualidades

Quantas vezes não é nos tratados, nos compêndios, nos ensaios que pelo Direito se espraiam como tentativas de lhe formularem a técnica e assim o ajustarem à Justiça, que se alcança quanto há para se saber. É na Arte, da pictórica à narrativa, na poética, na representação cénica, que ele é surpreendido na sua mais intrínseca faceta, a do humano, a medida de todas coisas «das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são», como disse Protágoras.
Ontem, tentando aproveitar um intervalo entre o cansaço e o conseguir adormecer,voltei, ao ciclópico esforço de continuar a leitura do que em português se chamou, mesmo na tradução de João Barrento "O Homem sem Qualidades", a monumental e magnífica obra de robert Musil, inacabada, inacabável.
E foi aí, no capítulo 18, que me surgiu a paradoxal, sinistra, invulgar figura de Moosbrugger, o carpinteiro, assassino perverso de mulheres, brutal na selvajaria preparatória do acto e das mutilações e profanações consumado este.
Retrato notável pela soma de contrários que ante a Justiça se figuram: a comovente bondade do rosto e a repugnante crueldade dos actos, a reprovação popular ante o horrendo transformada em excitação febril ante as suas «aberrações doentias», feita notícias ávidas pelos jornais; a psiquiatria a deslocá-lo pera o mundo da doença e da normalidade porque «várias vezes o tinham declarado normal, outras tantas inimputável»; a sua capacidade de simular, a simulação que se aprende nas prisões, a habilidade para demonstrar a sua superioridade com relação aos psiquiatras «desmascarando-os como idiotas e charlatães emproados, ignorantes que tinham de o mandar para o manicómio quando ele fazia uma simulação, em vez de o meterem na prisão, onde era ao seu lugar», afinal «os pareceres dos médicos sobre a sua saúde mental oscilavam sob a pressão da doutrina jurídica, hierarquicamente superior»; quanto os juízes o classificavam de inteligência notável com «uma atenção respeitosa às suas palavras e penas mais pesadas»; como «aos olhos do juiz os seus actos tinham origem nele próprio, aos de Moosbrugger tinham-lhe caído em cima como pássaros vindos de algum lugar».
Retrato extraordinário pela reversão da lógica a conduzir afinal à íntima verdade como no seu contentamento final já condenado, clamando «uma vez que fui eu que forcei a condenação, declaro-me satisfeito com o modo como o processo foi conduzido», a rebelião final no instante em que a imagem distorcida dos elementos do seu próprio ser triunfaram, danando-lhe a alma, e a paz, atingido o clímax da agonia e da ruptura «quando "aquele miserável palhaço do advogado de defesa", como o ingrato Mossbrugger lhe tinha chamado durante o julgamento, anunciou que, em virtude de um qualquer vício de forma, ia pedir a anulação da sentença, enquanto o seu colossal cliente era levado pelos guardas».
Colossal, eis a expressão.
Menos jurisprudência, mais Literatura, mais humanidade.


Disfunções notariais

«Na sessão de abertura da Conferência «Simplicidade com credibilidade, o direito à segurança jurídica», em representação da Ministra da Justiça, o seu Chefe de Gabinete, Dr. João Miguel Barros, referiu hoje que o Ministério encara com alguma preocupação o incremento de falsificações, seja ao nível dos reconhecimentos de assinaturas, seja, inclusivamente, ao nível dos próprios documentos. «Tratam-se de comportamentos passíveis de actuação criminal, que estão muito para além da desformalização e que urge combater em prol da segurança jurídica e da confiança dos operadores económicos.». Ver aqui isso e mais.
Quando se aboliu o sistema de notariado público, não se adivinhava que se franqueava a porta à insegurança e ao limite, a desvios comportamentais como este?
Um notariado em que os notários não recebem documentos para arquivo em cartório porque a qualquer momento podem fechar a porta não é um sistema que fala por si em matéria de solidez?
E agora que as disfunções do sistema começam a emergir, mais o que resultou com os efeitos daquilo em que os notários foram trapaçeados pelo Governo ao terem investido em cartórios e verem agora sua rentabilidade em crise pelo esvaziamento de competências em favor de outros?
E como reagirão os notários que honradamente tentam fazer o mehor ante isto que hoje é labéu mas começa a ser facto?

Polícia e direitos

Tema oportuno. A editora informa que: «A obra está estruturalmente dividida em duas partes. Na primeira parte constrói-se o conceito de polícia no seu sentido material e funcional, propondo o alargamento das atuações positivas de proteção de direitos fundamentais impostas jurídico-constitucionalmente a todos os poderes estaduais. E na segunda, demonstra-se a existência de um dever de protecção policial e identificam-se os três principais limites que condicionam e traçam o âmbito deste dever, nomeadamente o princípio da legalidade, o princípio da proibição do excesso e o princípio da proibição da insuficiência; e aborda-se ainda o conceito de direito subjetivo público e a discussão sobre a possibilidade de os particulares, perante a violação do dever de proteção policial de algum dos seus direitos, poderem invocar judicialmente tais pretensões».

O Mundo de Ontem


Deve um paroquiano abandonar um cortejo religioso para se deixar entrevistar sobre a sua profissão? Não deve, porque a comunhão com a Fé é incompatível com a profanação do verbo laico.
Deve um entrevistado, ainda que conheça o entrevistador, deixar-se tratar por «tu» e por «Carlos»? Não deve, porque há intimidades que supõem facilidades.
Deve um juiz, conhecido nacionalmente, incorporado num cortejo religioso, abandoná-lo e deixar-se entrevistar por alguém que o trata por «tu» e lhe chama «Carlos». Não pode porque há deveres de cargo que exigem o respeito do trato.
Deve um juiz referir-se ambiguamente, em tais preparos, ao que lhe terá sido dito em acto processual, por mais torpe que tenha sido o dito, mais insidioso, mais a tresandar a aliciamento ou a ameaça, seja a frase «onde o dinheiro fala,a verdade cala?». Não sabia que era possível.
Deve um tal juiz aproveitar o ensejo da entrevista, que se alonga, para dar público conhecimento de que não pertence a qualquer "congregação" ou "obediência"? Não convém porque há quem repare que omitiu "obra".
Devo eu, telespectador acidental, assistir a isto ontem e ainda hoje e não me sentir estranho, velho, ultrapassado, resquício de um mundo que já foi? Completamente impossível.
Uma ideia ficou, comentada no come-em-pé onde almoçava e o ouvia pela enésima vez: eis um homem de coragem, que diz as verdades, que está ameaçado pelo poder do dinheiro!
Dever um juiz dizer isto, assim, neste lugar, por esta forma e com estas referências, já está na base do «queremos lá saber».
Saí, esclarecido com o mundo que temos, isolado quanto ao mundo que supunha devermos ter, para vir aqui dizer isto.
Como dizia a minha Mãe quando eu era miúdo "pisco" e implicativo às refeições: «cala-te José António e come!». E acrescentava para que eu aprendesse uma moral que vejo hoje ser uma lição contemporânea de vida: «o que tu pesquinhas há muito quem queira!».

Enriquecimento ilícito: já leu mesmo o que o TC decidiu?

Foto DN 

Evito comentar questões jurídicas tal como são apresentadas na imprensa, não por desrespeito para com esta, mas porque, compreendo o seu estilo, sinto que se corre o risco de imprecisão. E faz-me impressão que espaços de reflexão jurídica vão atrás do modo como as questões são suscitadas nos media, sem mais. É que há meandros que passam despercebidos na hipnose do mainstream. O Acórdão do Tribunal Constitucional sobre o enriquecimento ilícito está publicado aqui. Vale a pena lê-lo na fonte. Porque é exemplar disto mesmo.
Primeiro para alcançar, enfim, os fundamentos do pedido de fiscalização preventiva do diploma, formulado pelo Presidente da República, o qual não se dignou tornar tempestivamente pública a razão pela qual, em matéria de tal sensibilidade, havia solicitado a intervenção do TC.
Segundo, para poder acompanhar a exposição de Direito Internacional e de Direito Comparado que no aresto se efectua, a qual, se leva a concluir que se é verdade que no espaço europeu tal tipo incriminador é minoritário, não deixa de consignar que artigo 321-6 do Código Penal Francês, introduzido pela Lei n.º 2006-64, de 23 de Janeiro de 2006 prevê a «não justificação de rendimentos» pela seguinte forma: “Le fait de ne pouvoir justifier de ressources correspondant à son train de vie ou de ne pas pouvoir justifier de l’origine d’un bien détenu, tout étant en relations habituelles avec une ou plusieurs personnes quis soit se livrent à la commission de crimes ou de délits punis d’au moins cinq ans d’emprisonnement et procurant à celles-ci un profit direct ou indirect, soit sont les victimes d’une de ces infractions, est puni d’une peine de trois ans d’emprisonnement et de 75 000 d’amende.”
Terceiro, para poder levar em linha de conta que no plano fiscal são relevados contra o contribuinte os acréscimos patrimoniais não justificados.
Quarto, para ter consciência do que é que afinal foi o tema decidido pelo Palácio Ratton, primacialmente sobre a indeterminação do tipo incriminador, concorrentemente sobre a questão da violação do princípio da presunção de inocência e do modo como a segunda questão foi postergada em favor da primeira. Mais: do modo como a segunda questão - que foi a que gerou ampla polémica pública - acabou por ser desconsiderada e aberto o caminho à sua relativização. Ou seja, os que se congratulam com a vitória do princípio, não alcançaram a profunda derrota sofrida. Expressa nas entrelinhas, como é do estilo.

Quanto ao primeiro tema, recordando os termos em que lhe foi colocada a questão diz o Acórdão: «No seu pedido, o requerente invoca que o regime aprovado pela Assembleia da República viola o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, considerando que “podem ser encontradas outras formas de, protegendo os mesmos bens jurídicos, salvaguardar princípios constitucionais fundamentais, ademais quando aplicável a todas as pessoas” e que “na formulação adotada pelo Decreto, tanto mais que não são claros os bens jurídicos a proteger pela norma e pela respectiva incriminação”, sendo sempre que “tal indeterminação coloca em crise não só o juízo de proporcionalidade como a própria possibilidade concreta de definição do tipo legal”». Ante isso o aresto considera que «nesta ordem de ideias e atento o pedido ‘sub judicio’, cumpre começar por perspectivar, a título prévio, se as normas sindicandas cumprem o desiderato básico de assegurar a tutela de bens jurídicos e se, em caso de resposta positiva, ultrapassam o teste específico da necessidade». E eis o que o TC acompanha quando estatui: «se a finalidade é punir, através da nova incriminação, crimes anteriormente praticados e não esclarecidos processualmente, geradores do enriquecimento ilícito, então não há um bem jurídico claramente definido, o que acarreta necessariamente a inconstitucionalidade da norma».
Quanto à segunda questão, de acordo com o decidido «o tipo legal de crime, tal como se encontra configurado, não passa indemne ao princípio da presunção de inocência», pois que «a formulação do tipo não impede o entendimento de que verificada a incongruência entre o património e o rendimento, ela é qualificada de enriquecimento ilícito sem ser feita a demonstração positiva da ausência de toda e qualquer causa lícita.Tenha-se presente, aliás, que sendo o elenco de causas lícitas aberto e potencialmente inesgotável, sempre se poderia entender que a exigência de demonstração positiva da sua ausência afectaria quase irremediavelmente a operacionalidade do tipo. Assim lidas as normas incriminadoras, está-se a presumir a origem ilícita da incompatibilidade e a imputar ao agente um crime de enriquecimento ilícito, o que redunda em manifesta violação do princípio da presunção de inocência, determinando, portanto, a inconstitucionalidade das normas em causa.»
Debalde previa, assim, o artigo 10º do decreto inconstitucionalizdo que: «Compete ao Ministério Público, nos termos do Código do Processo Penal, fazer a prova de todos os elementos do crime de enriquecimento ilícito». É que sobre essa norma, em função da qual a violação da regra da presunção poderia ser, afinal, aferida, considerou o Acórdão do TC: «Por último, resta uma sucinta referência à norma constante do “artigo 10.º”, tendo em atenção a questão suscitada pelo requerente. Ora, o tratamento autónomo de tal questão carece de qualquer razão útil, estando, por isso, manifestamente prejudicado pela solução a que se chegou.». Ou seja, a violação da presunção de inocência foi encontrada na formulação dos tipos, não na regra de processo. O que quer dizer que, assim haja tipos penais formulados com concisão, assim o TC viabilizará a inversão do ónus da prova por não estar então em causa a presunção de inocência. 
Isto porque os Conselheiros subscritores do Acórdão, considerando «não ser fácil determinar o sentido do princípio da presunção de inocência» - e em abono de tal constatação citam Vital Moreira e Gomes Canotilho - louvam-se em Fernanda Palma para afirmarem deve ter-se por certo que a sua concretização há de levar em conta o ambiente axiológico específico deste terreno dogmático e a particular estrutura de onde o mesmo desponta».
Ora é por se tratar de um princípio que não é fundamental se não ante o ambiente em que se suscite, uma regra constitucional que não é absoluta mas relativa, que a presunção da inocência foi chamada à colação, com a particularidade de não ter sido sequer definida decisão sobre a sua pertinência ao caso, bem antes pelo contrário, afastado o seu relevo pelo princípio da preclusão.
O que só pode trazer mau augúrio no bojo.

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Eis as normas que foram sujeitas ao juízo de conformidade constitucional:

Artigo 1.º [27.ª alteração ao Código Penal]

1 - É aditado à secção II do capítulo I do título V do livro II do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, e alterado pela Lei n.º 6/84, de 11 de maio, pelos Decretos-Leis n.ºs 101-A/88, de 26 de março, 132/93, de 23 de abril, e 48/95, de 15 de março, pelas Leis n.ºs 90/97, de 30 de julho, 65/98, de 2 de setembro, 7/2000, de 27 de maio, 77/2001, de 13 de julho, 97/2001, 98/2001, 99/2001 e 100/2001, de 25 de agosto, e 108/2001, de 28 de novembro, pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de dezembro, e 38/2003, de 8 de março, pelas Leis n.ºs 52/2003, de 22 de agosto, e 100/2003, de 15 de novembro, pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e pelas Leis n.ºs 11/2004, de 27 de março, 31/2004, de 22 de julho, 5/2006, de 23 de fevereiro, 16/2007, de 17 de abril, 59/2007, de 4 de setembro, 61/2008, de 31 de outubro, 32/2010, de 2 de setembro, e 40/2010, de 3 de setembro, o artigo 335.º-A, com a seguinte redação:

“Artigo 335.º-A [Enriquecimento ilícito]

1 - Quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada.
4 -Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 100 salários mínimos mensais a conduta não é punível.
5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 350 salários mínimos mensais o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos.”

2 -A secção VI do capítulo IV do título V do livro II do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, e alterado pela Lei n.º 6/84, de 11 de maio, pelos Decretos-Leis n.ºs 101-A/88, de 26 de março, 132/93, de 23 de abril, e 48/95, de 15 de março, pelas Leis n.ºs 90/97, de 30 de julho, 65/98, de 2 de setembro, 7/2000, de 27 de maio, 77/2001, de 13 de julho, 97/2001, 98/2001, 99/2001 e 100/2001, de 25 de agosto, e 108/2001, de 28 de novembro, pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de dezembro, e 38/2003, de 8 de março, pelas Leis n.ºs 52/2003, de 22 de agosto, e 100/2003, de 15 de novembro, pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e pelas Leis n.ºs 11/2004, de 27 de março, 31/2004, de 22 de julho, 5/2006, de 23 de fevereiro, 16/2007, de 17 de abril, 59/2007, de 4 de setembro, 61/2008, de 31 de outubro, 32/2010, de 2 de setembro, e 40/2010, de 3 de setembro, passa a denominar-se “Enriquecimento ilícito por funcionário”, sendo composta pelo artigo 386.º, que passa a ter a seguinte redação:

“Artigo 386.º [Enriquecimento ilícito por funcionário]

1 - O funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada, designadamente os constantes em declaração de património e rendimentos.
4 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 100 salários mínimos mensais a conduta não é punível.
5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 350 salários mínimos mensais o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos.”

3 -A atual secção VI do capítulo IV do título V do livro II do Código Penal passa a ser a secção VII, sendo composta pelo atual artigo 386.º, que passa a ser o artigo 387.º.

(...)

Artigo 2.º [Quinta alteração à Lei n.º 34/87, de 16 de julho]

É aditado à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, alterada pelas Leis n.ºs 108/2001, de 28 de novembro, 30/2008, de 10 de julho, 41/2010, de 3 de setembro, e 4/2011, de 16 de fevereiro, o artigo 27.º-A, com a seguinte redação:

“Artigo 27.º-A

Enriquecimento ilícito

1 - O titular de cargo político ou de alto cargo público que durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada, designadamente os constantes em declaração de património e rendimentos.
4 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 100 salários mínimos mensais a conduta não é punível.
5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 350 salários mínimos mensais o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.”

(...)

Artigo 10.º

Prova

Compete ao Ministério Público, nos termos do Código do Processo Penal, fazer a prova de todos os elementos do crime de enriquecimento ilícito».

Gente que conta e quer contar...


Fotografia © Paulo Spranger- Global Imagens

Soube por aqui que o Presidente do STJ deu uma entrevista ao programa "Gente Que Conta". Em que fala de temas gerais da Justiça e também da sua intervenção num processo concreto em que estava envolvido o anterior primeiro-ministro. O célebre caso das "escutas".
Confesso que não tenho certezas quanto ao que pensar sobre a  compatibilização entre o dever de reserva e a necessidade de intervenção pública de um Presidente de um Tribunal Superior, nomeadamente do STJ.
Admito que o Presidente do Conselho Superior da Magistratura possa proferir declarações públicas sobre assuntos que tenham a ver com questões gerais que se coloquem em relação ao órgão a que presida. Mas o Presidente de um Tribunal? E sobre um processo concreto, ainda que envolva um antigo primeiro-ministro, mesmo que se trate do decantado tema das escutas em que o mesmo surge em embaraços?
Talvez seja conservadorismo. Mas há algo em mim a repelir a circunstância. Acho que o protagonismo é antagónico com a função judicial. Quem quer ter palco abrace outra profissão pública. Quem quer ter intervenção na mudança do mundo vá para a política. O mundo judiciário tem de ser um universo de contenção regrada, de palavras prudentemente medidas, de silêncios eloquentes e parcimónias inteligentes. 
Que o Procurador-Geral tenha voz e fale sobre o geral, o particular e o concreto, ainda se poderá dizer que resulta daquela ambiguidade congénita do estatuto que torna o Ministério Público um advogado sem paixão e um juiz sem jurisdição. Mesmo assim, confesso que por vezes atinjo a perplexidade ante o que ouço. Agora que o mais alto magistrado judicial venha a público como já veio comentar até quem deveria estar ou não preso, como já o fez, reportando-se a processos de outros, ou se ele deveria ou não ter tentado que fossem destruídas as escutas que envolviam José Sócrates, decididamente não! Nem o cargo o autoriza nem a Justiça o reclama.
Por estarem na judicatura muitos que deveriam estar na política é que os políticos, julgando-os seus iguais e concorrentes, se permitem falar na judicialização da política.