Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




CSPJ em Espanha


Vejam-se e comparem-se as atribuições e a composição do Consejo General del Poder Judicial de Espanha com o que se discute em relação ao nosso País quanto ao seu homólogo. Dirão que há diferenças de estrutura porque existem diferenças de sistema. Por isso mesmo. Ler aqui.

A sobre-prova pericial


Num processo penal moderno a prova pericial é uma prova mestra. Ela assenta em conhecimentos especializados sobre matérias que, em princípio, os tribunais não dominam. «Especiais conhecimentos» refere o artigo 151º do CPP  «técnicos, científicos ou artísticos».
Sucede, porém, que a lei em vigor reserva a competência para a efectivação de perícias àquelas entidades que sejam designadas pelas autoridades judiciárias. Quanto aos sujeitos privados, se quiserem designar alguém que tenha um especial domínio da situação controvertida - ainda que com maior e mais fundamentado saber relativamente aos peritos oficialmente designados - esbarram com esta situação: tal pessoa, por maior que seja a sua competência, saber e credibilidade, não tem estatuto próprio.
Poderá, sim, ser designados como «consultor técnico», mas nessa qualidade a sua intervenção é diminuta, pois só pode «propor a efectivação de determinadas diligências e formular objecções», isto quando tiver conhecimento de que a perícia está a ter lugar o que não sucede nos casos - que são os mais relevantes - em que o processo corre sob o regime de segredo de justiça. 
Além de que - como se para desconsiderar esta intervenção dos consultores - a lei consagra que «a designação de consultor técnico e o desempenho da sua função não pode atrasar a realização da perícia e o andamento normal do processo».
Com a vigésima revisão do Código de Processo Penal ficou-se na mesma. Peritos são só aqueles que a autoridade judiciária designa, mesmo que sejam, no caso da PJ, entidades sob a sua dependência funcional. Enfim, o juízo pericial sobrepõe-se ao judicial, que não poderá avaliar segundo critérios de livre apreciação da prova, sucedendo que quando o juiz divergir do perito está amarrado a ter «fundamentar a divergência». Reza o artigo 163º do CPP.

A ignorância explosiva



Hoje foi publicada uma lei que altera o regime jurídico do processo de inventário. [texto aqui]
Do seu preâmbulo comprova-se bem o que é absurdo o ficcionado do sistema jurídico segundo o qual todo o cidadão é obrigado a conhecer a lei, sendo que a sua ignorância o não exime de ser responsabilizado pelo respectivo incumprimento. É uma verdadeira explosão legislativa...
Leia-se:

«A presente lei aprova o regime jurídico do processo de inventário, altera o Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966, e alterado pelos Decretos -Leis n.os 67/75, de 19 de fevereiro, 201/75, de 15 de abril, 261/75, de 27 de maio, 561/76, de 17 de julho, 605/76, de 24 de julho, 293/77, de 20 de julho, 496/77, de 25 de novembro, 200 -C/80, de 24 de junho, 236/80, de 18 de julho, 328/81, de 4 de dezembro, 262/83, de 16 de junho, 225/84, de 6 de julho, e 190/85, de 24 de junho, pela Lei n.º 46/85, de 20 de setembro, pelos Decretos -Leis n.os 381 -B/85, de 28 de setembro, e 379/86, de 11 de novembro, pela Lei n.º 24/89, de 1 de agosto, pelos Decretos -Leis n.os 321 -B/90, de 15 de outubro, 257/91, de 18 de julho, 423/91, de 30 de outubro, 185/93, de 22 de maio, 227/94, de 8 de setembro, 267/94, de 25 de outubro, e 163/95, de 13 de julho, pela Lei n.º 84/95, de 31 de agosto, pelos Decretos -Leis n.os 329 -A/95, de 12 de dezembro, 14/96, de 6 de março, 68/96, de 31 de maio, 35/97, de 31 de janeiro, e 120/98, de 8 de maio, pelas Leis n.os 21/98, de 12 de maio, e 47/98, de 10 de agosto, pelo Decreto -Lei n.º 343/98, de 6 de novembro, pelas Leis n.os 59/99, de 30 de junho, e 16/2001, de 22 de junho, pelos Decretos--Leis n.os 272/2001, de 13 de outubro, 273/2001, de 13 de outubro, 323/2001, de 17 de dezembro, e 38/2003, de 8 de março, pela Lei n.º 31/2003, de 22 de agosto, pelos Decretos -Leis n.os 199/2003, de 10 de setembro, e 59/2004, de 19 de março, pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, pelo Decreto -Lei n.º 263 -A/2007, de 23 de julho, pela Lei n.º 40/2007, de 24 de agosto, pelos Decretos -Leis n.os 324/2007, de 28 de setembro, e 116/2008, de 4 de julho, pelas Leis n.os 61/2008, de 31 de outubro, e 14/2009, de 1 de abril, pelo Decreto -Lei n.º 100/2009, de 11 de maio, e pelas Leis n.os 29/2009, de 29 de junho, 103/2009, de 11 de setembro, 9/2010, de 31 de maio, 23/2010, de 30 de agosto, 24/2012, de 9 de julho, 31/2012 e 32/2012, de 14 de agosto, o Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 224/84, de 6 de julho, e alterado pelos Decretos -Leis n.os 355/85, de 2 de setembro, 60/90, de 14 de fevereiro, 80/92, de 7 de maio, 30/93, de 12 de fevereiro, 255/93, de 15 de julho, 227/94, de 8 de setembro, 267/94, de 25 de outubro, 67/96, de 31 de maio, 375 -A/99, de 20 de setembro, 533/99, de 11 de dezembro, 273/2001, de 13 de outubro, 323/2001, de 17 de dezembro, 38/2003, de 8 de março, e 194/2003, de 23 de agosto, pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, pelos Decretos -Leis n.os 263 -A/2007, de 23 de julho, 34/2008, de 26 de fevereiro, 116/2008, de 4 de julho, e 122/2009, de 21 de maio, pela Lei n.º 29/2009, de 29 de junho, e pelos Decretos -Leis n.os 185/2009, de 12 de agosto, e 209/2012, de 19 de setembro, o Código do Registo Civil, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 131/95, de 6 de junho, com as alterações introduzidas pelos Decretos--Leis n.os 36/97, de 31 de janeiro, 120/98, de 8 de maio, 375 -A/99, de 20 de setembro, 228/2001, de 20 de agosto, 273/2001, de 13 de outubro, 323/2001, de 17 de dezembro, 113/2002, de 20 de abril, 194/2003, de 23 de agosto, e 53/2004, de 18 de março, pela Lei n.º 29/2007, de 2 de agosto, pelo Decreto -Lei n.º 324/2007, de 28 de setembro, pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, pelos Decretos -Leis n.os 247 -B/2008, de 30 de dezembro, e 100/2009, de 11 de maio, pelas Leis n.os 29/2009, de 29 de junho, 103/2009, de 11 de setembro, e 7/2011, de 15 de março, e pelo Decreto -Lei n.º 209/2012, de 19 de setembro, e o Código de Processo Civil, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 44 129, de 28 de dezembro de 1961, e alterado pelo Decreto -Lei n.º 47 690, de 11 de maio de 1967, pela Lei n.º 2140, de 14 de março de 1969, pelo Decreto -Lei n.º 323/70, de 11 de julho, pelas Portarias n.os 642/73, de 27 de setembro, e 439/74, de 10 de julho, pelos Decretos -Leis n.os 261/75, de 27 de maio, 165/76, de 1 de março, 201/76, de 19 de março, 366/76, de 15 de maio, 605/76, de 24 de julho, 738/76, de 16 de outubro, 368/77, de 3 de setembro, e 533/77, de 30 de dezembro, pela Lei n.º 21/78, de 3 de maio, pelos Decretos -Leis n.os 513 -X/79, de 27 de dezembro, 207/80, de 1 de julho, 457/80, de 10 de outubro, 224/82, de 8 de junho, e 400/82, de 23 de setembro, pela Lei n.º 3/83, de 26 de fevereiro, pelos Decretos -Leis n.os 128/83, de 12 de março, 242/85, de 9 de julho, 381 -A/85, de 28 de setembro, e 177/86, de 2 de julho, pela Lei n.º 31/86, de 29 de agosto, pelos Decretos -Leis n.os 92/88, de 17 de março, 321 -B/90, de 15 de outubro, 211/91, de 14 de junho, 132/93, de 23 de abril, 227/94, de 8 de setembro, 39/95, de 15 de fevereiro, e 329 -A/95, de 12 de dezembro, pela Lei n.º 6/96, de 29 de fevereiro, pelos Decretos -Leis n.os 180/96, de 25 de setembro, 125/98, de 12 de maio, 269/98, de 1 de setembro, e 315/98, de 20 de outubro, pela Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro, pelos Decretos -Leis n.os 375 -A/99, de 20 de setembro, e 183/2000, de 10 de agosto, pela Lei n.º 30 -D/2000, de 20 de dezembro, pelos Decretos -Leis n.os 272/2001, de 13 de outubro, e 323/2001, de 17 de dezembro, pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, pelos Decretos -Leis n.os 38/2003, de 8 de março, 199/2003, de 10 de setembro, 324/2003, de 27 de dezembro, e 53/2004, de 18 de março, pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, pelo Decreto -Lei n.º 76 -A/2006, de 29 de março, pelas Leis n.os 14/2006, de 26 de abril, e 53 -A/2006, de 29 de dezembro, pelos Decretos -Leis n.os 8/2007, de 17 de janeiro, 303/2007, de 24 de agosto, 34/2008, de 26 de fevereiro, e 116/2008, de 4 de julho, pelas Leis n.os 52/2008, de 28 de agosto, e 61/2008, de 31 de outubro, pelo Decreto -Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, pela Lei n.º 29/2009, de 29 de junho, pelos Decretos -Leis n.os 35/2010, de 15 de abril, e 52/2011, de 13 de abril, e pelas Leis n.os 63/2011, de 14 de dezembro, 31/2012, de 14 de agosto, e 60/2012, de 9 de novembro.»

De novo as leituras...

A ideia britânica de que o julgamento se pauta pela oralidade - ou seja só vale para a sentença a prova produzida e examinada em audiência - sempre se articulou no nosso País com a prática, oriunda do processo inquisitorial, de que «os autos» oriundos da investigação não deixam de ter entrada em juízo e fazerem parte do acervo que ali se terá em conta.
Falo não dos documentos ou das perícias que o investigador reuniu e que entendeu ser relevante conhecer-se em julgamento ou peças da mesma natureza que a defesa carreou, mas sim dos autos onde se contêm os depoimentos testemunhais que foram recolhidos na fase de inquérito pelo Ministério Público ou pelas polícias ao seu serviço e bem assim declarações de arguidos ou assistentes.
Tempos houve em que o legislador os tentou escorraçar do julgamento decretando que tais «autos» eram arquivados «à parte», a modos de fazer passar a ideia de que não incorporavam os nobres volumes principais que, esses sim, seriam matéria cognoscível em julgamento e não seriam "poluídos" por tais figuras do passado processual.
Mas a força dos maus hábitos impera e não raras vezes todos se apercebiam de que os participantes processuais se conduziam em audiência com um olho na prova que ali se produzia e outra nos ditos fólios apensados «à parte» com um barbante...
Revogada essa legislação ingénua, voltou-se ao sistema da hipocrisia organizada.
A lei determina que só em certos casos, mediante requerimentos e após todos os sujeitos processuais se pronunciarem, é que, excepcionalmente, pode ter lugar a "leitura" em audiência dos autos que contenham testemunhos ou declarações e, em alguns casos essa leitura não pode mesmo ter lugar; mas no entanto, eles ali estão, incorporados nos volumes principais, a convidar todos que queiram a lê-los, fingindo que os não lêem, ficando ao escrúpulo de quem julga ignorá-los, cumprindo a lei. Escrúpulo silencioso, em que é só a consciência moral a dita a regra.
Que fez a recente reforma do CPP? Manteve exactamente o mesmo sistema em relação à prova testemunhal, aumentando os casos em que a "leitura" é permitida para as «declarações prestadas perante a autoridade judiciária se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apurar o seu paradeiro, não tiver sido possível a sua notificação para comparecimento.» (novo n.º 4 do artigo 356º do CPP); quanto ao arguido permite-se a leitura integral do que disse desde que, quando interrogado em inquérito, tenha sido sido prevenido de que tal poderia suceder, leitura que, porém - compreensivelmente - não vale como confissão (nova redacção conferida ao artigo 357º, nºs 1, b) e números 2 e 3 do mesmo diploma)
Ou seja, a ficção legal, a insídia feita lei mantém-se: só se pode ler o que afinal pode ser lido. Continuarão, pois, os requerimento a requer "leituras", mais os requerimentos a oporem-se às leituras e os despachos a fundamentar o porque sim e o porque não. E horas perdidas nisto.
Confesso que no estado em que estou, esgotado ante um sistema em que a irrealidade fingida do formalismo se sobrepõe ao conteúdo material dos actos, estou por tudo: fique tudo no processo, leia-se tudo, decida-se com base em tudo, valorando o que for para valorar, desconfiando do que não parecer credível. Antes a cruel verdade imperfeita que a perfeição velhaca da mentira.
Houve tempos em que o legislador pensou só valorar a prova desde testemunhal a por declarações produzida no inquérito desde que gravada. Agora, que houve que dar forma de lei a essas ideias generosas de protecção da verdade da prova penal, triunfou o Ministério das Finanças sobre o Ministério da Justiça. Basta ler a nova redacção do n.º 7 do artigo 141º e o artigo 144º, n.º 2, ambos do CPP, referentes ao interrogatório do arguido onde se lê que «o interrogatório do arguido é efetuado, em regra, através de registo áudio ou audiovisual (...)». O em regra diz tudo: é tal domínio da regra que legitima a imensa excepção.
Dinheiro para gravadores nas esquadras de polícia ou nos serviços do MP, não há. Tempos houve em que se equiparam as salas de audiências com mesas misturadoras que nem algumas boîtes conhecem, com mil botões de que os funcionários usam dois ou três para gravações que em muitos casos nem se ouvem em condições. Gastou-se o que havia e o que não havia. Hoje nem para papel já há, excepto para permitir as leituras.

Instrução: o quê para quê


É uma visão ampla do que seja, afinal, a instrução criminal, ao arrepio das perspectivas reducionistas que campeiam em alguma jurisprudência que o legislador animou ao ter clausulado a total irrecorribilidade do que essencial se passa nesta fase. 
«1. No exercício do controlo da decisão do Ministério Público, o juiz de instrução investiga autonomamente o caso submetido a instrução, resultando do nº 4 do art. 288º do Código de Processo Penal, a imposição de um dever de investigação que transcende a matéria apurada em inquérito.
2. O grau de deficiência da actuação do Ministério Público enquanto dominus do inquérito, a dimensão das suas eventuais omissões no cumprimento do poder-dever de investigar, podem condicionar a opção do assistente no modus de reacção ao arquivamento, no sentido de suscitar a intervenção hierárquica.
3. No entanto, a lei não lhe impõe a via exclusiva da intervenção hierárquica, impedindo-o de suscitar a abertura de instrução nos casos em que haja diligências de investigação a realizar, podendo o assistente pretender que o juiz da instrução leve a cabo a prática de acto ou de recolha de provas não considerados no inquérito (art. 287º, nº 2 do Código de Processo Penal).
4. Na fase da instrução requerida pelo assistente, devem praticar-se os “actos de instrução que o juiz entenda levar a cabo” (art. 289º, nº1 do Código de Processo Penal), de acordo com um princípio do acusatório mitigado por um princípio da investigação, mas também com a garantia da tutela efectiva dos direitos do ofendido.
5. E se o juiz da instrução não pode deixar de actuar dentro dos princípios constitucionais estruturantes do processo penal – da acusação e do processo equitativo –, na instrução requerida pelo assistente deve praticar os actos que, não pretendendo substituir o inquérito do Ministério Público, assegurem ainda a tutela efectiva do direito da vítima, à luz do art. 20º da Constituição da República Portuguesa.
6. Direitos esses a cujo exercício a lei não associa nenhum ónus preclusivo, caso o assistente, na sindicância do arquivamento do inquérito, tenha optado pela via, não da intervenção hierárquica (art. 278º do Código de Processo Penal), mas da instrução (art. 287º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal).
7. Em hipóteses complexas de pluralidade de agentes, a decisão instrutória tem de tratar esgotantemente, no sentido da pronúncia ou da não pronúncia, todas as formas de autoria e de comparticipação criminosa.
8. Determinando em que medida cada uma das actuações individuais se entrecruza com as restantes, num projecto eventualmente comum, conhecido, querido ou sabido por todos (co-autoria); em que medida algum deles terá determinado, mesmo que de forma mediata, os executores à prática de factos ilícitos típicos (instigação e instigação em cadeia); em que medida a intervenção de algum deles possa ter ajudado ou favorecido a prática do facto, auxiliando os restantes (cumplicidade).
9. Ao não ter abordado e tratado esgotantemente a relevância dos concretos contributos individuais de cada arguido na realização do ilícito típico, a decisão instrutória é nula por omissão de pronúncia (art. 308º, nº2 do Código de Processo Penal).»
Trata-se do Acórdão da Relação de Évora de 26.02.13 [proferido no processo n.º 453/07.3GELSV.E1, relatora Ana Brito, texto integral aqui]

O novo artigo 340º do CPP

Quando a reforma foi anunciada a crítica surgiu. Mas o Governo insistiu e a ideia passou na Assembleia da República, a alteração do artigo 340º do CPP.
Na sua versão originária este preceito era uma válvula de escape em prol da verdade, através da atribuição ao juiz de poderes oficiosos de investigação. Agora ficou reduzida a um alçapão.
De acordo com a nova redacção, saída da 20ª alteração ao Código de Processo Penal [Lei n.º 20/2013, de 21.02],os requerimentos de prova são indeferidos se for notório que «as provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, exceto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa».
Na aparência trata-se de um preceito moralizador, visando pôr termo ao abuso das provas requeridas fora do tempo próprio, trazendo para o processo a surpresa e, desta forma, a desigualdade de armas. Nessa dimensão nada a dizer.
Só que há uma outra.
A novidade parte do pressuposto de que em todos os processos existe uma adequada defesa técnica. Ora isso nem sempre sucede, muitas vezes a defesa nomeadamente é assegurada por quem não tem preparação suficiente para a função. Assim, a correcta contestação, a congruente elaboração dos requerimentos de prova deixam por vezes muito a desejar e é no momento da audiência que surge, inevitável, a impor-se como absolutamente indispensável, a necessidade de produzir prova que não foi até então considerada. E aí o poder corrector do juiz impõe-se para que a causa seja bem decidida e a verdade se alcance.
Em casos como este o artigo 340º era uma norma garantística, que beneficiava sobretudo o pior assistido, quantas vezes o de mais fracos recursos económicos para poder beneficiar de defesa não oficiosa.
Pode dizer-se que a parte final do preceito agora alterado é garantia suficiente de que os poderes judiciais oficiosos subsistem para a prossecução daqueles valores da descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Em parte assim pareceria ser se esse segmento da norma não estivesse redigido como excepção. Desta forma, na sua formulação, a regra passa a ser o convite ao indeferimento à prova que teve já o seu tempo processual para ser indicada, na acusação e ma contestação. E imagina-se certas mentalidades avessas a delongas judicativas a encontrarem aqui arrimo fácil para a rejeição da prova porque intempestiva. 
Além disso, o legislador, ao ter reportado àqueles dois momentos processuais os tempos inexoráveis de indicação das provas - com preclusão da sua menção em momento posterior - parece ter esquecido que se manteve a possibilidade de alteração do rol de testemunhas, por força do artigo 316º do Código nesta parte não modificado.
E assim, o que o artigo 340º agora diz é uma incongruência: as provas não são admitidas se poderiam ter sido indicadas na acusação e na contestação com a possibilidade de serem indicadas, porém, em momento posterior àqueles dois momentos, o que o artigo 316º clausula e aquele artigo não ressalva.
É o que sucede quando se emitem leis avulsas sobre Códigos que têm a sua lógica. Altera-se um preceito esquecendo-se os outros que são o que conferem a plenitude e a suposta harmonia do ordenamento jurídico.


Peculato do acessível


Determinou a Relação de Coimbra no seu recente acórdão de 23.01.13 [proferido no processo n.º 214/11.8PCCBR, texto integral aqui] que «O segmento “acessível em razão das suas funções” referido no n.º 1, do art.º 375º, do C. Penal, que se reporta ao tipo legal de crime de “Peculato”, exige uma especial relação de poder ou de domínio ou de controlo/supervisão sobre a coisa que o agente detém em razão das suas específicas funções e que vem a postergar com abuso ou infidelidade das específicas funções, ao apropriar-se, para si ou para terceiro, dessa mesma coisa - não sendo suficiente apenas a simples acessibilidade física em relação à coisa de que se apropria.»

Li-o com atenção, a este controverso acórdão, porque estou a rever, para o fazer publicar no próximo mês, um estudo jurídico sobre este tipo de crime, o de peculato, o primeiro de uma série regular de monografias sobre os crimes com relevo patrimonial. 

A rota farpela do Estado


Sob a ameaça de os meter na cadeia, o Estado torna cada cidadão um recebedor de impostos, no caso do IVA e do IRS: retêm-nos com a obrigação de os entregar ao Fisco. Quem presta um trabalho cobra IVA a quem o prestou e paga IRS por tê-lo prestado. Idem quem vende o que seja.
Agora, sob a ameaça de multa, o Estado torna cada cidadão fiscal das obrigações tributárias dos comerciantes, punindo-os se não lhes exigirem facturas.
Em vez de pagar aos funcionários, o Estado corta-lhes o vencimento e despede-os. Em contrapartida, usando o Direito Penal como forma de pressão, o Estado privatiza o serviço fiscal pela pior forma, a mais desproporcionada, a mais atentatória dos princípios constitucionais.
Até aqui os tribunais, que terão de ser o braço armado do sistema, têm estado calados e sobretudo quietos. Até ao dia em que o primeiro tribunal levantar a mão para a acabar com este expediente que degrada o cidadão no cobrador de fraque, a rota farpela do Estado.

* texto reproduzido do que hoje publiquei no blog de intervenção cívica A Revolta das Palavras.

O caminho pedregoso


Talvez ao sair da Faculdade eu já não tivesse do Direito a noção de que ele se exprimia more geometrico, como uma racionalidade de postulados demonstráveis, como uma escolástica de silogismos dedutíveis. Apenas o meu contacto com zonas crescentes do pensamento filosófico que então me povoavam o espírito e que me levaram a visitar a genialidade de Leibnitz e todos os outros que o antecederam, terminando então em Norbert Wiener, e a traduzir mesmo um capítulo do livro Giuscibernetica, macchine e modelli cibernetici nel Diritto do professor Mario G. Losano para uma antologia de textos sobre as novas epistemologias - a qual a PIDE entretanto apreendeu em ainda em fase de provas para revisão por suspeitar que poderia trazer o vírus da subversão, imagino porque alguns autores do livro viriam da "Cortina de Ferro" - apenas tudo isso me faziam supor que houvesse alguma homologia entre os modelos que a ciência do mundo físico estudava e aquilo de que o Direito tratava, uma possibilidade de extrapolar da lógica alética para a lógica deôntica, como imaginou o finlandês von Wright e eu aprendi, conhecendo-os, com o espanhol Miguel Sánchez-Mazas e o polaco Georges Kalinowsi.
Esse tempo passou. O que poderia ter sido um caminho, que me traria uma falsa pista intelectual, salvando o Direito do desprezo, mas talvez por troca com uma vida universitária, foi. Pelas minhas mãos, a incúria, a sorte da vida, sei lá.
Regressei à estrada por onde estão os marcos miliários romanos que mostram que o caminho do Direito se faz pelo solo pedregoso e pela heurística da tentativa e erro. Advogado, aprendi pela forma mais dura de se aprender, rasgando as mãos a abrir caminho onde caminho teria de haver.
Estou hoje convencido de que o apriori pesa muito em muitas mentes, o jurídico torna-se em pura legitimação para todas as possíveis soluções. Que a razão é apenas um modo.
Lembrei-me disso este começo de manhã, não por saudade desse tempo de vida acumulado mas por me perguntar se não haverá da decência da Justiça um modo pelo qual tudo se não resuma à retórica e à sofística da argumentação.

Começar de novo


A quantos me visitam com regularidade, na esperança defraudada de aqui encontrarem algo de novo e nas últimas largas semanas se defrontam com o vazio, peço compreensão.
Há momentos em que a vida nos concentra naquele mínimo que é a sobrevivência. No meu caso as circunstâncias fizeram com que tentasse não falhar no cumprimento dos deveres da minha profissão e pouco mais. A alma sensível, essa, espelhou-se, como um reflexo, num ou outro escrito, em outro lugar, em poética de nostalgia, mesmo assim incerta. O resto foi a mecânica do que estava feito e sua irrupção à luz do dia, em aparência de novidade, ilusão de criação.
Deveria ser o jurídico, eu sei, e nele o seu intrínseca humanismo, terra justa e recta do Homem para o Homem, que me deveria ter feito vir aqui, não ter deixado de vir aqui. Não foi, porém, assim.
A docência inesperada fez de mim um aprendiz de processualista. Estudei então para tentar ensinar. Talvez por isso a técnica e a forma tenham, nesse meu ser que se tornou improvisado professor, obnubilado a substância. Dezassete anos de docência, mais de quarenta de profissão nesta área foram-me inimizando em amargura e incompreensão.
No Direito Criminal, nos subterrâneos do seu pulsar, está a tragédia humana na sua máxima expressão, a latrina social no seu mais fétido odor, o universo de moribundos sem Lei e dos que se destroem destruindo, vítimas todos, culpados quantos. E, no entanto, é ali, essencialmente ali, que pulsam os sentimentos da maior nobreza e da maior baixeza, é ali que a sociedade trava com o indivíduo, através do Estado, a cruel batalha para que aquela viva e este consiga sobreviver. Está ali o amor e o desamor, a essência do que há.
No Processo Criminal, nesse porém, alberga-se, quantas vezes, como numa fria autópsia de cinismos, o modo de tornar esses humanos em corpos, essas misérias expiações, a batalha em técnica, a vida em pura função. Por ele, assim não haja o escrúpulo de o tornar serviço de uma essência, instrumento de valores, tudo se perverte ainda que em aparência de verdade.
Talvez, por isso, no campo onde tudo isto sucede, eu devesse ter sido outro ou devesse ter aprendido a ser outro. 
Tenho, arrastado há anos, progressivamente soterrado pelo entulho de legislação que se sucede, o que poderia ter sido um livro sobre essa ramo do Direito adjectivo. A última vez que juntei as folhas eram mil e quinhentas. 
Em bom rigor há que começar por rasgá-las. 
Há um dia em que o Homem dá conta ao espelho que se esqueceu da Humanidade, soterrado ele próprio no local onde o Direito os vai sepultando e às suas vítimas.
Encontrei-me hoje ali. Hei-de conseguir novos olhos e novos braços. Medíocres que sejam, permitir-me-ão escalar ao local onde o ser encontra a existência e com ela defrontar-me. Há na contrição intimidade. O mundo não é só subsistir.