Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




De novo as leituras...

A ideia britânica de que o julgamento se pauta pela oralidade - ou seja só vale para a sentença a prova produzida e examinada em audiência - sempre se articulou no nosso País com a prática, oriunda do processo inquisitorial, de que «os autos» oriundos da investigação não deixam de ter entrada em juízo e fazerem parte do acervo que ali se terá em conta.
Falo não dos documentos ou das perícias que o investigador reuniu e que entendeu ser relevante conhecer-se em julgamento ou peças da mesma natureza que a defesa carreou, mas sim dos autos onde se contêm os depoimentos testemunhais que foram recolhidos na fase de inquérito pelo Ministério Público ou pelas polícias ao seu serviço e bem assim declarações de arguidos ou assistentes.
Tempos houve em que o legislador os tentou escorraçar do julgamento decretando que tais «autos» eram arquivados «à parte», a modos de fazer passar a ideia de que não incorporavam os nobres volumes principais que, esses sim, seriam matéria cognoscível em julgamento e não seriam "poluídos" por tais figuras do passado processual.
Mas a força dos maus hábitos impera e não raras vezes todos se apercebiam de que os participantes processuais se conduziam em audiência com um olho na prova que ali se produzia e outra nos ditos fólios apensados «à parte» com um barbante...
Revogada essa legislação ingénua, voltou-se ao sistema da hipocrisia organizada.
A lei determina que só em certos casos, mediante requerimentos e após todos os sujeitos processuais se pronunciarem, é que, excepcionalmente, pode ter lugar a "leitura" em audiência dos autos que contenham testemunhos ou declarações e, em alguns casos essa leitura não pode mesmo ter lugar; mas no entanto, eles ali estão, incorporados nos volumes principais, a convidar todos que queiram a lê-los, fingindo que os não lêem, ficando ao escrúpulo de quem julga ignorá-los, cumprindo a lei. Escrúpulo silencioso, em que é só a consciência moral a dita a regra.
Que fez a recente reforma do CPP? Manteve exactamente o mesmo sistema em relação à prova testemunhal, aumentando os casos em que a "leitura" é permitida para as «declarações prestadas perante a autoridade judiciária se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apurar o seu paradeiro, não tiver sido possível a sua notificação para comparecimento.» (novo n.º 4 do artigo 356º do CPP); quanto ao arguido permite-se a leitura integral do que disse desde que, quando interrogado em inquérito, tenha sido sido prevenido de que tal poderia suceder, leitura que, porém - compreensivelmente - não vale como confissão (nova redacção conferida ao artigo 357º, nºs 1, b) e números 2 e 3 do mesmo diploma)
Ou seja, a ficção legal, a insídia feita lei mantém-se: só se pode ler o que afinal pode ser lido. Continuarão, pois, os requerimento a requer "leituras", mais os requerimentos a oporem-se às leituras e os despachos a fundamentar o porque sim e o porque não. E horas perdidas nisto.
Confesso que no estado em que estou, esgotado ante um sistema em que a irrealidade fingida do formalismo se sobrepõe ao conteúdo material dos actos, estou por tudo: fique tudo no processo, leia-se tudo, decida-se com base em tudo, valorando o que for para valorar, desconfiando do que não parecer credível. Antes a cruel verdade imperfeita que a perfeição velhaca da mentira.
Houve tempos em que o legislador pensou só valorar a prova desde testemunhal a por declarações produzida no inquérito desde que gravada. Agora, que houve que dar forma de lei a essas ideias generosas de protecção da verdade da prova penal, triunfou o Ministério das Finanças sobre o Ministério da Justiça. Basta ler a nova redacção do n.º 7 do artigo 141º e o artigo 144º, n.º 2, ambos do CPP, referentes ao interrogatório do arguido onde se lê que «o interrogatório do arguido é efetuado, em regra, através de registo áudio ou audiovisual (...)». O em regra diz tudo: é tal domínio da regra que legitima a imensa excepção.
Dinheiro para gravadores nas esquadras de polícia ou nos serviços do MP, não há. Tempos houve em que se equiparam as salas de audiências com mesas misturadoras que nem algumas boîtes conhecem, com mil botões de que os funcionários usam dois ou três para gravações que em muitos casos nem se ouvem em condições. Gastou-se o que havia e o que não havia. Hoje nem para papel já há, excepto para permitir as leituras.

Instrução: o quê para quê


É uma visão ampla do que seja, afinal, a instrução criminal, ao arrepio das perspectivas reducionistas que campeiam em alguma jurisprudência que o legislador animou ao ter clausulado a total irrecorribilidade do que essencial se passa nesta fase. 
«1. No exercício do controlo da decisão do Ministério Público, o juiz de instrução investiga autonomamente o caso submetido a instrução, resultando do nº 4 do art. 288º do Código de Processo Penal, a imposição de um dever de investigação que transcende a matéria apurada em inquérito.
2. O grau de deficiência da actuação do Ministério Público enquanto dominus do inquérito, a dimensão das suas eventuais omissões no cumprimento do poder-dever de investigar, podem condicionar a opção do assistente no modus de reacção ao arquivamento, no sentido de suscitar a intervenção hierárquica.
3. No entanto, a lei não lhe impõe a via exclusiva da intervenção hierárquica, impedindo-o de suscitar a abertura de instrução nos casos em que haja diligências de investigação a realizar, podendo o assistente pretender que o juiz da instrução leve a cabo a prática de acto ou de recolha de provas não considerados no inquérito (art. 287º, nº 2 do Código de Processo Penal).
4. Na fase da instrução requerida pelo assistente, devem praticar-se os “actos de instrução que o juiz entenda levar a cabo” (art. 289º, nº1 do Código de Processo Penal), de acordo com um princípio do acusatório mitigado por um princípio da investigação, mas também com a garantia da tutela efectiva dos direitos do ofendido.
5. E se o juiz da instrução não pode deixar de actuar dentro dos princípios constitucionais estruturantes do processo penal – da acusação e do processo equitativo –, na instrução requerida pelo assistente deve praticar os actos que, não pretendendo substituir o inquérito do Ministério Público, assegurem ainda a tutela efectiva do direito da vítima, à luz do art. 20º da Constituição da República Portuguesa.
6. Direitos esses a cujo exercício a lei não associa nenhum ónus preclusivo, caso o assistente, na sindicância do arquivamento do inquérito, tenha optado pela via, não da intervenção hierárquica (art. 278º do Código de Processo Penal), mas da instrução (art. 287º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal).
7. Em hipóteses complexas de pluralidade de agentes, a decisão instrutória tem de tratar esgotantemente, no sentido da pronúncia ou da não pronúncia, todas as formas de autoria e de comparticipação criminosa.
8. Determinando em que medida cada uma das actuações individuais se entrecruza com as restantes, num projecto eventualmente comum, conhecido, querido ou sabido por todos (co-autoria); em que medida algum deles terá determinado, mesmo que de forma mediata, os executores à prática de factos ilícitos típicos (instigação e instigação em cadeia); em que medida a intervenção de algum deles possa ter ajudado ou favorecido a prática do facto, auxiliando os restantes (cumplicidade).
9. Ao não ter abordado e tratado esgotantemente a relevância dos concretos contributos individuais de cada arguido na realização do ilícito típico, a decisão instrutória é nula por omissão de pronúncia (art. 308º, nº2 do Código de Processo Penal).»
Trata-se do Acórdão da Relação de Évora de 26.02.13 [proferido no processo n.º 453/07.3GELSV.E1, relatora Ana Brito, texto integral aqui]

O novo artigo 340º do CPP

Quando a reforma foi anunciada a crítica surgiu. Mas o Governo insistiu e a ideia passou na Assembleia da República, a alteração do artigo 340º do CPP.
Na sua versão originária este preceito era uma válvula de escape em prol da verdade, através da atribuição ao juiz de poderes oficiosos de investigação. Agora ficou reduzida a um alçapão.
De acordo com a nova redacção, saída da 20ª alteração ao Código de Processo Penal [Lei n.º 20/2013, de 21.02],os requerimentos de prova são indeferidos se for notório que «as provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, exceto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa».
Na aparência trata-se de um preceito moralizador, visando pôr termo ao abuso das provas requeridas fora do tempo próprio, trazendo para o processo a surpresa e, desta forma, a desigualdade de armas. Nessa dimensão nada a dizer.
Só que há uma outra.
A novidade parte do pressuposto de que em todos os processos existe uma adequada defesa técnica. Ora isso nem sempre sucede, muitas vezes a defesa nomeadamente é assegurada por quem não tem preparação suficiente para a função. Assim, a correcta contestação, a congruente elaboração dos requerimentos de prova deixam por vezes muito a desejar e é no momento da audiência que surge, inevitável, a impor-se como absolutamente indispensável, a necessidade de produzir prova que não foi até então considerada. E aí o poder corrector do juiz impõe-se para que a causa seja bem decidida e a verdade se alcance.
Em casos como este o artigo 340º era uma norma garantística, que beneficiava sobretudo o pior assistido, quantas vezes o de mais fracos recursos económicos para poder beneficiar de defesa não oficiosa.
Pode dizer-se que a parte final do preceito agora alterado é garantia suficiente de que os poderes judiciais oficiosos subsistem para a prossecução daqueles valores da descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Em parte assim pareceria ser se esse segmento da norma não estivesse redigido como excepção. Desta forma, na sua formulação, a regra passa a ser o convite ao indeferimento à prova que teve já o seu tempo processual para ser indicada, na acusação e ma contestação. E imagina-se certas mentalidades avessas a delongas judicativas a encontrarem aqui arrimo fácil para a rejeição da prova porque intempestiva. 
Além disso, o legislador, ao ter reportado àqueles dois momentos processuais os tempos inexoráveis de indicação das provas - com preclusão da sua menção em momento posterior - parece ter esquecido que se manteve a possibilidade de alteração do rol de testemunhas, por força do artigo 316º do Código nesta parte não modificado.
E assim, o que o artigo 340º agora diz é uma incongruência: as provas não são admitidas se poderiam ter sido indicadas na acusação e na contestação com a possibilidade de serem indicadas, porém, em momento posterior àqueles dois momentos, o que o artigo 316º clausula e aquele artigo não ressalva.
É o que sucede quando se emitem leis avulsas sobre Códigos que têm a sua lógica. Altera-se um preceito esquecendo-se os outros que são o que conferem a plenitude e a suposta harmonia do ordenamento jurídico.


Peculato do acessível


Determinou a Relação de Coimbra no seu recente acórdão de 23.01.13 [proferido no processo n.º 214/11.8PCCBR, texto integral aqui] que «O segmento “acessível em razão das suas funções” referido no n.º 1, do art.º 375º, do C. Penal, que se reporta ao tipo legal de crime de “Peculato”, exige uma especial relação de poder ou de domínio ou de controlo/supervisão sobre a coisa que o agente detém em razão das suas específicas funções e que vem a postergar com abuso ou infidelidade das específicas funções, ao apropriar-se, para si ou para terceiro, dessa mesma coisa - não sendo suficiente apenas a simples acessibilidade física em relação à coisa de que se apropria.»

Li-o com atenção, a este controverso acórdão, porque estou a rever, para o fazer publicar no próximo mês, um estudo jurídico sobre este tipo de crime, o de peculato, o primeiro de uma série regular de monografias sobre os crimes com relevo patrimonial. 

A rota farpela do Estado


Sob a ameaça de os meter na cadeia, o Estado torna cada cidadão um recebedor de impostos, no caso do IVA e do IRS: retêm-nos com a obrigação de os entregar ao Fisco. Quem presta um trabalho cobra IVA a quem o prestou e paga IRS por tê-lo prestado. Idem quem vende o que seja.
Agora, sob a ameaça de multa, o Estado torna cada cidadão fiscal das obrigações tributárias dos comerciantes, punindo-os se não lhes exigirem facturas.
Em vez de pagar aos funcionários, o Estado corta-lhes o vencimento e despede-os. Em contrapartida, usando o Direito Penal como forma de pressão, o Estado privatiza o serviço fiscal pela pior forma, a mais desproporcionada, a mais atentatória dos princípios constitucionais.
Até aqui os tribunais, que terão de ser o braço armado do sistema, têm estado calados e sobretudo quietos. Até ao dia em que o primeiro tribunal levantar a mão para a acabar com este expediente que degrada o cidadão no cobrador de fraque, a rota farpela do Estado.

* texto reproduzido do que hoje publiquei no blog de intervenção cívica A Revolta das Palavras.

O caminho pedregoso


Talvez ao sair da Faculdade eu já não tivesse do Direito a noção de que ele se exprimia more geometrico, como uma racionalidade de postulados demonstráveis, como uma escolástica de silogismos dedutíveis. Apenas o meu contacto com zonas crescentes do pensamento filosófico que então me povoavam o espírito e que me levaram a visitar a genialidade de Leibnitz e todos os outros que o antecederam, terminando então em Norbert Wiener, e a traduzir mesmo um capítulo do livro Giuscibernetica, macchine e modelli cibernetici nel Diritto do professor Mario G. Losano para uma antologia de textos sobre as novas epistemologias - a qual a PIDE entretanto apreendeu em ainda em fase de provas para revisão por suspeitar que poderia trazer o vírus da subversão, imagino porque alguns autores do livro viriam da "Cortina de Ferro" - apenas tudo isso me faziam supor que houvesse alguma homologia entre os modelos que a ciência do mundo físico estudava e aquilo de que o Direito tratava, uma possibilidade de extrapolar da lógica alética para a lógica deôntica, como imaginou o finlandês von Wright e eu aprendi, conhecendo-os, com o espanhol Miguel Sánchez-Mazas e o polaco Georges Kalinowsi.
Esse tempo passou. O que poderia ter sido um caminho, que me traria uma falsa pista intelectual, salvando o Direito do desprezo, mas talvez por troca com uma vida universitária, foi. Pelas minhas mãos, a incúria, a sorte da vida, sei lá.
Regressei à estrada por onde estão os marcos miliários romanos que mostram que o caminho do Direito se faz pelo solo pedregoso e pela heurística da tentativa e erro. Advogado, aprendi pela forma mais dura de se aprender, rasgando as mãos a abrir caminho onde caminho teria de haver.
Estou hoje convencido de que o apriori pesa muito em muitas mentes, o jurídico torna-se em pura legitimação para todas as possíveis soluções. Que a razão é apenas um modo.
Lembrei-me disso este começo de manhã, não por saudade desse tempo de vida acumulado mas por me perguntar se não haverá da decência da Justiça um modo pelo qual tudo se não resuma à retórica e à sofística da argumentação.

Começar de novo


A quantos me visitam com regularidade, na esperança defraudada de aqui encontrarem algo de novo e nas últimas largas semanas se defrontam com o vazio, peço compreensão.
Há momentos em que a vida nos concentra naquele mínimo que é a sobrevivência. No meu caso as circunstâncias fizeram com que tentasse não falhar no cumprimento dos deveres da minha profissão e pouco mais. A alma sensível, essa, espelhou-se, como um reflexo, num ou outro escrito, em outro lugar, em poética de nostalgia, mesmo assim incerta. O resto foi a mecânica do que estava feito e sua irrupção à luz do dia, em aparência de novidade, ilusão de criação.
Deveria ser o jurídico, eu sei, e nele o seu intrínseca humanismo, terra justa e recta do Homem para o Homem, que me deveria ter feito vir aqui, não ter deixado de vir aqui. Não foi, porém, assim.
A docência inesperada fez de mim um aprendiz de processualista. Estudei então para tentar ensinar. Talvez por isso a técnica e a forma tenham, nesse meu ser que se tornou improvisado professor, obnubilado a substância. Dezassete anos de docência, mais de quarenta de profissão nesta área foram-me inimizando em amargura e incompreensão.
No Direito Criminal, nos subterrâneos do seu pulsar, está a tragédia humana na sua máxima expressão, a latrina social no seu mais fétido odor, o universo de moribundos sem Lei e dos que se destroem destruindo, vítimas todos, culpados quantos. E, no entanto, é ali, essencialmente ali, que pulsam os sentimentos da maior nobreza e da maior baixeza, é ali que a sociedade trava com o indivíduo, através do Estado, a cruel batalha para que aquela viva e este consiga sobreviver. Está ali o amor e o desamor, a essência do que há.
No Processo Criminal, nesse porém, alberga-se, quantas vezes, como numa fria autópsia de cinismos, o modo de tornar esses humanos em corpos, essas misérias expiações, a batalha em técnica, a vida em pura função. Por ele, assim não haja o escrúpulo de o tornar serviço de uma essência, instrumento de valores, tudo se perverte ainda que em aparência de verdade.
Talvez, por isso, no campo onde tudo isto sucede, eu devesse ter sido outro ou devesse ter aprendido a ser outro. 
Tenho, arrastado há anos, progressivamente soterrado pelo entulho de legislação que se sucede, o que poderia ter sido um livro sobre essa ramo do Direito adjectivo. A última vez que juntei as folhas eram mil e quinhentas. 
Em bom rigor há que começar por rasgá-las. 
Há um dia em que o Homem dá conta ao espelho que se esqueceu da Humanidade, soterrado ele próprio no local onde o Direito os vai sepultando e às suas vítimas.
Encontrei-me hoje ali. Hei-de conseguir novos olhos e novos braços. Medíocres que sejam, permitir-me-ão escalar ao local onde o ser encontra a existência e com ela defrontar-me. Há na contrição intimidade. O mundo não é só subsistir.

O reputado como pária


Acompanho aqui a jurisprudência. Para aprender. E pelos vistos para me surpreender. 
Um acórdão da Relação de Lisboa afirmou, a propósito de um caso de crime contra a honra, que «não será assim qualquer tentativa de ridicularizar ou de ostracizar que pode abalar a reputação de quem a tem». E com este fundamento arquivou o caso.
Reduzindo ao absurdo, quer dizer que chamar ladrão ao gatuno dá a este o direito de clamar por justiça para defender a sua honra e ter os tribunais do seu lado; já quando se chama gatuno a quem é sério este corre o risco de ver virar-se contra si a seriedade!
Ou seja, quem tem reputação tem algo que, julgando valioso, certos tribunais acham que não precisam necessariamente defender, porque ser coisa que vale por si e a tudo resiste. Basta desvalorizar o autor da imputação, rebaixando quem a produz e, assim, no fundo e no final da linha, aquele que é visado.
Ser reputado, é pois, em Portugal, um perigo! Fica-se a mercê de tudo. É-se um pária sem direitos.

Abundância de direitos...

O tema promete porque o título provoca. Trata-se da alegada «abundância de direitos» em tempo de crise. Oradores, Cunha Rodrigues e Teresa Pizarro Beleza.
O evento tem lugar na Livraria Almedina, ao Saldanha, dia 22, pelas 18:00. Organiza o Instituto Europeu.
Onde encontrarão os oradores a abundância? E, sobretudo, quem detém os frutos da ubérrima colheita?

O Homem, esse animal...

A correlação direitos dos Homens/direitos dos animais, que está na ordem do dia a propósito de um cão que mordeu gente, foi tema no Brasil, nos anos de chumbo, a propósito das desumanas condições carcerárias.
Pleiteou-a o corajoso advogado Heráclito Sobral Pinto que, mau grado ser católico fervoroso, não hesitou defender no foro o comunista Carlos Prestes.
Na defesa de um outro comunista preso, não hesitou em impetrar a providência excepcional do habeas corpus com o argumento de que o humano não poderia ser tratado em condições mais cruéis do que um cavalo. Fundava-se em sentença que condenara um brasileiro pela morte de um animal e no regime legal decorrente do Decreto n.º 24645, o qual defendia os animais de maus tratos.
Palavras da petição: «Num País que se rege por uma tal legislação, que os magistrados timbram em aplicar, para, deste modo, resguardarem os próprios animais irracionais dos maus-tratos até de seus donos, não é possível que Harry Berger permaneça, como até agora, meses e meses a fio, com a anuência do Tribunal de Segurança Nacional, dentro de um socavão de escada.».
Era aí, precisamente, num sovacão de escada. «Naquele início de 1937, Berger não era nem sombra do homenzarrão de 1,90 m. Encarcerado em uma cela sem luz, improvisada em um socavão de escada do prédio da Polícia Federal, no Rio de Janeiro, não conseguia ficar em pé naquele diminuto espaço, com pé-direito de 60 cm. Mal movia as articulações. Dormia sobre pedras. Estava sem banho há um ano, sem cortar os cabelos e a barba.» [todo o caso aqui]

O sonho americano


Fica como arquivo a crónica publicada na edição on line do jornal Público. Texto original aqui.


Não foi mais do que o sonho de uma noite de Verão, o de que o modelo americano de Justiça se poderia transpor para Portugal. A operação foi bem organizada mas o poder político não arriscou. Danos colaterais: ficaram evidentes as fragilidades do sistema.
As condições pareciam propícias.
Primeiro, Pinto Monteiro chegava ao fim do seu consulado como Procurador-Geral da República ante a ideia de que o Ministério Público eram bolsas autónomas de poder e não uma hierarquia organizada sob a regência do Palácio de Palmela.
O PGR vivia sob a suspeita permanente de que os processos de “certas e determinadas pessoas” corriam sob a sua alçada. Exigia-se, pois, a fiscalização democrática da Justiça pela participação popular, uma justiça pelo povo e para o povo.
Depois, a lentidão dos processos fazia constante notícia nos jornais, estava no auge a campanha de que os poderosos conseguiam através do expediente processual retardar a Lei, salvando-se dela. Reclamava-se, por isso, a celeridade e a eficácia, os critérios de excelência eram os que o senhor Henry Ford impôs nas suas fábricas de automóveis.
O admirável mundo novo tinha então o seu tempo histórico.
Politicamente, a esquerda judiciária tinha tido a sua oportunidade na geração antecedente, guindada ao sindicalismo e mesmo à função de modo a prosseguir com ela, até no foro, a luta de classes por outros meios. Tinham sido os tempos da gestão processual por critérios de selectividade, a criminalização retumbante de uns em detrimento de outros, a prescrição como modo de agraciamento do incómodo, a estigmatização de certas classes, de certas pessoas, de determinadas organizações.
Agora, supostamente mortas as ideologias, rendidos os seus radicais antecessores, os soixante-huitards das barricadas, às prebendas do capitalismo financeiro e às alcatifas do poder eurocrático, surgia a nova vaga da tecnocracia intelectual, misto de pragmatismo moral e de funcionalismo estatutário, para quem a Justiça era em breve uma forma de resolver processos com rapidez já que, afinal, anos de cultura inspectiva fazia com que a estatística contasse decisivamente para a promoção e, por essa forma, uma engenharia social, tal como a sanitária.
O “sonho americano” teve, então a sua janela de oportunidade. Foi título da revista Sub Judice na primavera de 1998, cantando então loas às virtudes do Supremo Tribunal enquanto órgão de poder na Federação dos Estados Unidos da América.
Seria o 2011 que traria, enfim, a possibilidade de se ir mais longe. De Coimbra o professor Figueiredo Dias emprestaria a sua indiscutível autoridade académica a uma ideia discutível: a da justiça negociada na forma dos acordos sobre a sentença penal, transacionada, em regime paritário, entre o acusador público o acusado e seu defensor e com envolvimento do próprio juiz a quem caberia julgar o caso. Com uma precisão científica a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, em mudança de direcção, traria a ideia como bandeira programática para o campo da discussão.
Que resultou? No plano legal, nada, porque a Constituição impede esta justiça da combina e da transacção, permitindo embora que o consenso opere nos casos em que já foi consagrado por lei no domínio do Código de Processo Penal.
Mostraram-se, isso foi, as fissuras do edifício judiciário: ante a inacção do PGR, houve Procuradorias Distritais que emitiram orientações que viabilizam o sistema, outras omitiram conhecê-lo. Há, pois tribunais em que sim e tribunais em que não.

À espera da hora...

Os tribunais reabriram hoje sem que eu tenha notado propriamente que chegaram a encerrar. Eu e, afinal, todos os que estamos sujeitos a prazos ou às necessidades da vida.
A reabertura é, na sua total verdade, um dos eufemismos que caracterizam o sistema. Há quem possa tirar uns dias de ausência, as exigências do trabalho podem diminuir, mas fica-se por aí.
O que renasce sempre é a expectativa de que algo vai mudar. Aqui há uns meses parece que a sorte do País, a possibilidade de haver investimento privado na economia, uma das exigências mesmo da troika que nos governa eram a celeridade processual e o que se chamou o mapa judiciário.
Os meses volveram, entre discursos e especulações estamos rigorosamente na mesma.
Talvez se legisle por aí sobre o processo civil, havendo já quem vaticine a confusão, ou sobre a nova geografia judiciária, não faltando os que antecipam o custo que vai ter e os bloqueios que vai gerar. Nas "férias" da Pàscoa cá estaremos todos para assitir.
A Boa-Hora, por exemplo, continua sem se saber para quê. Nem porquê. E assim sucessivamente. Estamos todos sempre à espera da hora...

Meio particularmente perigoso

 
«O significado jurídico-penal de “meio particularmente perigoso”, tanto pode corresponder ao “instrumento” ou “utensílio” utilizado para causar a morte, como é habitualmente empregue, como ao “processo” e “método” com que esse mesmo instrumento foi utilizado, havendo assim uma similitude de significados, ainda que plural, entre aquela leitura e o vocábulo “meio” expresso no texto da circunstância qualificativa da al. h), do n.º 2 do art.º 132º do C. Penal, havendo, por isso, uma correspondência de terminologias». Assim o definiu o Acórdão da Relação do Porto de 03.12.12 [proferido no processo n.º 1947/11.4JAPRT.P1, relator Joaquim Gomes, texto integral aqui].

Segundo o aresto: «Na leitura do que será o significado jurídico-penal de um “meio particularmente perigoso”, temos de atender à sua razão de ser (i), à sua inserção sistemática no tipo qualificado do crime de homicídio (ii), à sua descrição textual (iii), partindo do seu significado comum, bem como à compreensão que o mesmo tem tido na jurisprudência (iv). [sic]
No que concerne ao primeiro tópico, temos que o mesmo encontra a sua justificação no maior desvalor da acção conducente à produção do resultado morte, tendo em atenção o meio utilizado para o efeito, sendo certo que este desfecho é idêntico aos demais tipos legais de homicídio. Assim, não bastará que o meio utilizado para causar a morte seja simplesmente apto ou mesmo perigoso para provocar esse desfecho fatal, mas que, para provocar esse resultado, seja especialmente idóneo e grave.
No que diz respeito ao segundo tópico podemos dar conta que a descrição agravativa aqui em causa surge a par da morte ser produzida pelo agente “juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas” ou então que se “traduza na prática de crime de perigo comum”, estando estes ilícitos criminais referenciados nos artigos 276.º a 284.º, destacando-se destes os crimes de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas (272.º C. Penal), energia nuclear (273.º C. Penal), poluição (279.º a 281.º C. Penal) e corrupção de substâncias alimentares ou medicinais (282.º C. Penal). Isto dá a ideia de que estes contextos qualificativos reduzem a capacidade defensiva por parte da vítima, sendo ainda estes últimos susceptíveis de colocar em perigo outros bens jurídicos.
Fazendo a ponte entre este segundo tópico e o seguinte relativo ao texto descritivo desta circunstância agravativa, podemos constatar que a mesma surge imediatamente antes daquela que faz menção de que a morte veio a ser provocada por o agente “utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso” (alínea i)). Daí que para além da identidade do texto em relação ao vocábulo “meios”, donde partem e estão ancorados tais conceitos, naturalmente que as referências a “meio particularmente perigoso” e “meio insidioso”, exprimem necessariamente significados jurídico-penais distintos. Porém, o vocábulo “meio” tem um significado polissémico, pelo que o mesmo tanto pode ter o sentido de “instrumento”, “utensílio” ou “ferramenta” como exprimir um “processo” ou “método”. E nenhum destes significados é excludente do outro, como é óbvio.
Por último temos a leitura jurisprudencial, com destaque para o STJ, dos conceitos de “meio insidioso” e “meio particularmente perigoso”. Ora por “meio insidioso” tem-se considerado todo aquele processo que se revela enganador, desleal, sub-reptício, dissimulado ou oculto, criando uma situação que coloca a vítima numa posição de indefesa ou então de mais difícil reacção defensiva, como sucederia em circunstância normais (Ac.STJ de 2010/Mai./27 CJ (S) II/206, Cons. Santos Cabral), como sucede quando apenas se exibe uma arma de fogo junto da vítima, que é sacada de surpresa (Ac.STJ 2004/Mai./20, CJ (S) II/195, Cons. Costa Mortágua; 2006/Jul./13, CJ (S) II/244, Cons. Rodrigues da Costa) ou então manieta previamente a vítima pelo pescoço e pelas costas, encosta a pistola à cabeça e dispara (Ac.STJ 2000/Dez./13, CJ (S) III/241, Cons. Mariano Pereira) e a generalidades dos tiros disparados à “queima roupa” ou desferidos de modo traiçoeiro (Ac. STJ 2007/Mar./29, CJ (S) I/238, Cons. Pereira Madeira). O mesmo sucede quando o arguido, sem qualquer troca de palavras, saca de uma faca de que estava munido e golpeia outra pessoa (Ac.STJ 1994/Abr./14, CJ I/263, Cons. Fisher Sá Nogueira).
A propósito do conceito de “meio particularmente perigoso” considera-se que o mesmo é o instrumento, método ou processo que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, tem que revelar uma aptidão reforçada, muito superior ao normal em relação a outros meios e procedimentos, para causar a morte, constituindo ainda um perigo para outros bens pessoais, excluindo-se, em regra, desta estrutura valorativa as facas, as pistolas e os instrumentos contundentes em geral (Ac.STJ 2006/Mar./02, Cons. Sima Santos). A título exemplificativo considerou-se que não se tratava de um meio particularmente perigoso, causador da morte, a utilização de uma machada, em que o cabo rondava os 18 cm e a lâmina cortante 10 cm (Ac.STJ 2007/Set./05, Cons. Oliveira Mendes) ou então o uso de um machado, tendo o cabo de madeira 71,5 cm e a lâmina de 12 cm (Ac.STJ 2012/Fev./23, Cons. Rodrigues da Costa). O mesmo sucedeu em relação à utilização de uma faca, em que o comprimento da lâmina era de 9,5 cm e a largura máxima da mesma de 2,5 cm. (Ac.STJ 2011/Dez./07, CJ (S) III/227, Cons. Santos Carvalho). Do mesmo modo não existiria um meio particularmente perigoso se este se tratasse de uma pistola de calibre 6,35 mm (Ac.STJ 2000/Dez./13 CJ (S) III, Cons. Mariano Pereira; 2003/Out./15, Cons. Henriques Gaspar) ou então de uma arma caçadeira (Ac.STJ 2002/Mai./17, Cons. Flores Ribeiro), ainda que a mesma seja municiada com cartuchos carregados de zagalotes, próprios para a caça ao javali (Ac.STJ 2002/Dez./18, Cons. Carmona da Mota).(3)
Mas a utilização de um veículo automóvel dirigido contra a vítima, mediante o seu atropelamento intencional (Ac.STJ 2007/Out./17, Cons. Armindo Monteiro) ou o uso de uma adaga, com duas linhas de corte, sendo uma delas em serra e a outra direita, com o comprimento de lâmina de 21,5 cm e cabo de 14,5 cm (Ac.STJ 2008/Jul./03, Cons. Rodrigues da Costa)(4), correspondem a um meio particularmente perigoso.
No entanto também se expressou uma corrente de que a particularidade do meio empregue depende não só da natureza e das características do instrumento utilizado (i), mas também do contexto em que se faz uso do mesmo (ii), de modo que o seu uso ou o processo da sua utilização dificultem significativamente a defesa da vítima, violando ou que sejam susceptíveis de lesar outros bens jurídicos importantes (Ac. STJ de 2000/Set./27, CJ (S) III/179, Cons. Lourenço Martins). Tal ocorreria com o uso de uma caçadeira de canos serrados, sem que nada fizesse prever essa utilização (Ac.STJ de 2004/Dez./07, Cons. Pereira Madeira), mormente quando aquela é municiada com cartuchos de calibre 12 (Ac. STJ de 2007/Set./05, Cons. Oliveira Mendes).
Por tudo isto, o significado jurídico-penal de “meio particularmente perigoso”, tanto pode corresponder ao “instrumento” ou “utensílio” utilizado para causar a morte, como é habitualmente empregue, como ao “processo” e “método” com que esse mesmo instrumento foi utilizado, havendo assim uma similitude de significados, ainda que plural, entre aquela leitura e o vocábulo “meio” expresso no texto da circunstância qualificativa da al. h), havendo, por isso, uma correspondência de terminologias (9.º do Código Civil). Aliás, só assim a lei penal revela a sua racionalidade e uma dinâmica distintiva entre o crime matriz de homicídio e o crime qualificado de homicídio, por um lado, bem como entre aquelas circunstâncias qualificativas constantes nas alíneas h) e i) do n.º 2 do artigo 132.º, por outro lado. Também só através desta conceitualização é que a norma pode assumir a sua estrutura comunicativa clara e perceptível entre o legislador, os tribunais e os cidadãos. Cremos, por tudo isto, que a expressão “meio particularmente perigoso” tanto pode ser revelada pela natureza e as características do instrumento (“utensílio” ou “ferramenta”) empregue no acto de matar, como também do contexto que rodeou o processo (“expediente” ou “método”) causador dessa mesma morte.
Como se sabe, uma das características de uma faca de mato é ter uma serrilha na sua parte anterior superior, conjugada com uma lâmina metálica corto-perfurante, que termina em forma pontiaguda, mas com um certo desnível no seu limite superior. Por isso a mesma, acaba por ser, como é da experiência comum, um instrumento com uma capacidade perfurante e destruidora muito acima da média do que qualquer faca, face às flagrantes potencialidades de penetração no corpo humano, tendo a faca de mato uma aptidão muito acentuada para perfurar e dilacerar, de modo intenso e eficaz, o tecido e órgãos humanos que atinge. Tanto é assim, que as facas de mato são normalmente utilizadas pelas unidades de elite das forças armadas (v.g. comandos, fuzileiros, pára-quedistas ou as forças de operações especiais, vulgarmente designadas por “rangers”) como instrumentos de agressão na luta corpo a corpo. Mas também são aproveitadas para actividades venatórias ou florestais, atenta a sua potencialidade devastadora. No caso em apreço a faca de mato aqui em causa tem uma lâmina corto-perfurante com um comprimento de 19,3 cm, pelo que a mesma enquadra-se perfeitamente na classificação de instrumento particularmente perigoso. Tanto mais que com essa mesma faca de mato foram desferidas várias ofensas no corpo da vítima, atingindo-a em diversas zonas do corpo (região anterior do pescoço; região anterior esquerda do tórax; região dorsal esquerda), anulando totalmente toda a defesa que foi esboçada pelo visado (20 parte final dos factos provados).
A isto acresce que o arguido, ao ter entrado no logradouro das traseiras da residência da sua ex-namorada, com o intuito de vigiar esta trazia consigo dissimulada e presa nos cintos das suas calças, aquela faca de mato. Foi então, numa ocasião em que já era de noite e sem que nada o fizesse prever, que o arguido, ao ser surpreendido naquele logradouro pelo avô daquela sua ex-namorada, se dirigiu ao mesmo, tendo-lhe desferido violentos golpes no tórax, provocando a sua queda no solo, continuando o arguido a golpeá-lo (16 a 21 dos factos provados), o que não deixa de ser revelador de um meio insidioso, enquanto processo causador do decesso daquela vítima.»

Probidade

Quatro semanas de ausência. E, no entanto, a vontade íntima de que isso não tivesse sucedido, porque ao falhanço antecedeu a promessa de que iria revigorar este blog. Felizmente há o imperfeito para demonstrar a existência da perfeição. A regressar, que seja com ironia. É sinal de saúde. Hesitei se deveria retomar no dia 1 de Janeiro. Decidi que faria mais sentido fazê-lo antes. Para evitar regularidades.


Fonte: este blog aqui. Do Pais contíguo.

Violência doméstica

«A Ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, afirmou que o Governo vai abrir um concurso para adquirir mais mil pulseiras electrónicas, a somar às 700 já existentes. A Ministra acrescentou ainda que quer reforçar as equipas que monitorizam a vigilância electrónica, especialmente em casos de violência doméstica.
Estas declarações foram feitas no seminário «10 anos de Vigilância Electrónica em Portugal», na Faculdade de Direito de Lisboa, onde estiveram também presentes a Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, o juiz do Tribunal de Contas e ex-presidente da Reinserção Social, João Figueiredo, o ex-presidente da Comissão de Acompanhamento da Vigilância Electrónica, Germano Marques da Silva, e o diretor-geral dos Serviços prisionais, Rui Sá Gomes.
Referindo que, a partir de 2007, o uso desta pulseira se alargou à execução da pena e que já foram aplicadas mais de 5 mil medidas com recurso a esta tecnologia, Paula Teixeira da Cruz realçou que a taxa de cumprimento desta medida de coação, em outubro de 2012, era de 97%.
Mas o número de pulseiras electrónicas ainda é «insuficiente»,afirmou a Ministra, acrescentando que «a aposta do Governo é reforçar estes meios», que em 2012 já se aplicam ao dobro dos agressores por violência doméstica do que no ano anterior.
Entre as soluções de controlo dos agressores são também utilizados meios tecnológicos de segunda geração, através da geolocalização por satélite, o que «coloca o Ministério da Justiça na vanguarda europeia nesta matéria», afirmou Paula Teixeira da Cruz.
Este ano, a violência doméstica já matou 30 mulheres e manteve em prisão efetiva 320 agressores.»

Erro sobre a ilicitude

Rara a ponderação da relevância do erro sobre a ilicitude, o qual é daquelas categorias conceituais que jazem adormecidas na parte geral do Código Penal. E, no entanto, ei-lo, fundado no pensamento de Figueiredo Dias e Taipa de Carvalho, a orientar esta decisão do Tribunal da Relação de Guimarães [proferida em 05.11.12, relator João Lee Ferreira, texto integral aqui]: «I- O erro sobre a ilicitude excluirá o dolo do tipo sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito. O erro será censurável, ou não, consoante ele próprio seja, revelador e concretizador de uma personalidade indiferente perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta do agente.
II) - Um homem “normal”, dotado de uma recta consciência ética e social não sentiria a obrigação de se informar periodicamente junto das autoridades rodoviárias sobre eventual alteração do regime da habilitação de condução de velocípedes com motor e de ciclomotores, tanto mais que a sua licença de condução não tinha qualquer prazo de validade.
III) - Assim, não se pode de forma alguma dizer que a falta de esclarecimento e de conhecimento da alteração dos requisitos necessários à condução daquele tipo de veículo se tenha ficado a dever a uma qualquer qualidade desvaliosa e juridico-penalmente relevante da personalidade do agente, a uma indiferença perante o bem jurídico protegido pela norma ou que seja consequência de uma omissão do cuidado exigível.»

Apontamento, depósitos e demais tropelias

O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 362/2012, de 27 de Junho deste ano [publicado aqui] sentenciou que «Não julga inconstitucional a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 411.º do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, interpretada no sentido de que «o prazo para a interposição de recurso, onde se impugne a decisão da matéria de facto cujas provas produzidas em sede de audiência tenham sido gravadas, conta-se sempre a partir da data do depósito da sentença na secretaria e não a partir da data da disponibilização ao arguido dos suportes materiais da prova gravada, ainda que estes tenham sido diligente e tempestivamente requeridos por este último - por as considerar essenciais para o cabal exercício do direito de defesa mediante recurso -, se diligentemente facultados pelo tribunal».

O que é interessante é quando ilegalmente a sentença é lida «por apontamento» - isto é dizendo a verdade com todas as letras não está escrita! - e só é depositada depois - quantas vezes em data incerta - pois, uma vez que a lei não obriga à notificação do acto do depósito, o sujeito processual por ela afectado - sobretudo aquele que não tem o privilégio de estar no intramuros do tribunal e ter assim informação privilegiada, como sucede ao com isso bafejado Ministério Público - tem de andar num jogo de gato e rato para saber quando é que o depósito ocorreu para apurar quando é que começa o prazo para recorrer, ou seja, quando é que, enfim, tem na mão o texto da sentença que até ali era uma inexistência!
Alguém fala disto?

Lugares comuns


Regressei de um tempo de voluntária pausa e fui dar uma volta pelo que escreve na blogoesfera jurídica.
Vejo que a escrita sobre casos concretos sujeitos à Justiça continua. O fundamento factual é o relato do que a comunicação social noticia, mesmo sabendo-se a imperfeição com que as notícias são dadas. 
Um minuto de reflexão leva a que se pense que a complexidade de um processo dificilmente se reduz a uma forma simples de o expressar. 
Ora é a lei da simplificação do facto uma das regras que permite aos media serem conhecidos e o que através deles se relata. 
Além disso, estão em causa, outras vezes, questões de cunho técnico que não é viável reduzir à formulação que o leigo entenda e este não tem outro meio de saber salvo o que a sua formação não jurídica lhe permite compreender. 
Enfim, é sabido que o relato mediático é centrado por uma lógica adversarial, sublinhando o que é contrastante, polémico, apto a ser notícia por causar sensação.
Estas constatações não desencorajam quantos cronistas há que diariamente emitem opinião sobre o que conhecem pelos jornais.
Mais: quantas vezes quando a notícia ainda revela apenas o embrião do facto, indefinidos os contornos. Mais ainda: na hora zero da notícia permitem-se serem comentadores em directo na TV e na rádio, brevemente informados pelos jornalistas quanto ao que supostamente se está a passar, não se desencorajando por reconhecerem que «do caso concreto nada sabem, mas...», estando ao abrigo do dito «mas» o resto do longo discurso e do autoritário veredicto com que nos brindam nem percebendo quanto se aviltam nesse falar do que ignoram.
Vem a isto propósito de se concluir que a comunicação social se deve abster de divulgar o que pela Justiça se passa? Não, antes pelo contrário, assim certas realidades que verdadeiramente se passam fossem relatadas, mas não são. É que há buracos negros no que se noticia, santuários de protecção.
Vem sim, a propósito, de quantos, tendo tido ou tendo ainda responsabilidades públicas no que à Justiça respeita, deveriam ter, assim o penso, mais contenção verbal não só quanto ao modo como se pronunciam mas sobre aquilo sobre o que se pronunciam.
A comunicação social, na ânsia de ter colaboradores privilegiados, multiplica os tempos de antena. A questão é saber se com isso ganha a Justiça ou a comunidade em nome da qual ela é administrada.
Confesso que ao regressar fiquei impressionado como a blogoesfera jurídica, mesmo a que deveria ser um espaço para os que nela fazem vida profissional, ainda aquela que visa intervenção cívica, se está a tornar indiscriminadamente num replicar dos jornais, numa lógica de espelhos, o território dos lugares comuns.

O político e o judiciário

É a França. A política em matéria criminal é determinada pelo Governo através do Ministério da Justiça e concretizada por circulares. 
Aqueles que, entre nós,gostam de fundamentar-se em exemplos alheios terão dificuldade em compreender e na maioria repudiarão 
A notícia, para que se fale do que se sabe, está aqui, a circular aqui.
Nela assume-se sem complexos o critério de separação entre o poder político, o Ministério Público e o poder judicial.
Discutível? Sem dúvida. Inaplicável em Portugal? Mais do que evidentemente. Para quê citar? Para demonstrar que na Justiça as coisas podem ser assumidas clara e transparentemente, sem que ninguém se sinta limitado no seu mandar e no seu agir.

Honrados, desde que não muito pobres

Na hora em que escrevo o tema está já fartamente tratado, em tom de indignada resposta da maioria e de tímida complacência de alguns outros. Trata-se de se ter considerado, pelas palavras do Presidente da ASJP, que a diminuição remuneratória dos juízes pode afectar a sua independência.
Há só duas coisas que talvez ainda valha a pena dizer.
Primeiro, que o argumento do ataque à independência judicial tem sido tantas vezes usado, em relação a reformas processuais, em relação a soluções de administração judiciária, até de simples nomenclaturas normativas, que acaba, não só por se banalizar, como ainda por mostrar que, afinal, de tão pouco vale a dita independência, porque a pouco resiste e, a qualquer pretexto, se grita por «lobo, lobo».
Segundo, que a questão que se coloca é clara e descaradamente que, ante a magreza remuneratória, pode haver juízes que alienem a independência em favor da dependência do que lhes trouxer melhor benefício patrimonial.
Ora isso é uma facada dada, pela própria magistratura, no coração do que verdadeiramente caracteriza o poder judiciário, precisamente a independência.
Viesse a suspeita da boca de quantos têm sistematicamente emporcalhado a Justiça, não chegaria com mais opróbio.
Um dia, ouvi da boca de um senhor alto magistrado deste País, quando se discutiam, em sede de reforma legislativa, as questões dos conflitos de competência, esta lapidar frase: «no tempo em que os juízes ganhavam emolumentos, os conflitos de competência eram todos positivos».
Confesso que corei de vergonha. Mais de quinze anos passaram sobre essa frase. Não sabia eu o que ainda me faltava ouvir: o assim nos paguem pouco e a tentação pode surgir.
Fantástico, de facto!
A gravidade do dito exigiria solenidade na retratacção. Não vai chegar. Houve tempos em que o «pobres mas honrados» era uma virtude moral, hoje, já nem há pudor em proclamar-se que honrados, desde que não muito pobres.
Eis, insofismavelmente, a questão.

Cúmulo jurídico e princípio da confiança

Extenso texto, mas merece leitura. São três partes diferenciadas, a conduzir à solução. A primeira tem a ver com o princípio constitucional da confiança, essencial à categorização do Estado de Direito. É o Acórdão da Relação do Porto de 10.10.12 [relator Joaquim Gomes, texto integral, aqui]

«A Constituição, através do seu 18.º, n.º 2, estabelece como um dos parâmetros da aplicação de qualquer reacção penal a sua necessidade, ao preceituar que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia também enuncia vinculativamente para os respectivos Estados Membros e através do seu artigo 49.º, n.º 3 que “As penas não devem ser desproporcionadas em relação à infracção”, podendo e devendo esta referência ser constitucionalmente convocada para o ordenamento jurídico nacional (8.º, n.º 2 Constituição). A proporcionalidade tem sido perspectivada a partir de três sub-princípios: da idoneidade ou adequação (i), da necessidade ou exigibilidade (ii), ambos respeitantes à optimização relativa do que é factualmente possível, e da proporcionalidade em sentido estrito ou da justa medida (iii), o qual se reporta à optimização normativa, seja a propósito dos direitos, liberdades e garantias em geral (Ac.TC 11/83, 285/92, 17/84, 86/94, 99/99, 302/2006, 158/2008[1]), seja especificamente no que concerne às reacções penais (Ac.TC 370/94, 527/95, 958/96, 329/97) ou à tipificação criminal (Ac.TC 128/2012).
Decorre da conjugação daqueles preceitos e da sua leitura os princípios constitucionais da intervenção mínima do direito penal e da proporcionalidade das penas, os quais podem ser conjugados com outros, que o aqui recorrente não deixou de fazer apelo.
A propósito foram invocados o princípio da confiança, enquanto dimensão essencial de um Estado de Direito Democrático (2.º Constituição) e o princípio “non bis in idem” (29.º, n.º 5 Constituição).
Na substancialidade do princípio da confiança, entram normalmente em tensão a protecção das legítimas expectativas do cidadão no quadro legislativo vigente e na certeza na aplicação da lei, por um lado, e a margem constitucionalmente vinculada mas ampla de conformação legislativa por parte do Estado legislador, por outro lado.
Na leitura que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a fazer deste princípio da confiança ressaltam duas vertentes. A primeira mediante a proibição constitucionalmente expressa da retroactividade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, das leis penais e das leis criadoras de impostos (18.º,n.º 3, 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, e 103.º, n.º 3 Constituição). A segunda através da afectação das legítimas expectativas dos cidadãos por revisões legislativas que se mostrem inadmissíveis ou arbitrárias. Esta ideia geral de despotismo ou abuso legislativo tem sido aferida a partir dos seguintes critérios: afectação desfavorável das expectativas dos destinatários de certas normas, mediante mudança(s) do respectivo quadro legislativo com que aqueles não estavam, razoavelmente, a contar (i); quando essa mudança não for exigida pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes em relação aos interesses particulares afectados e desde que seja observado o princípio da proporcionalidade (ii) (Ac.TC 176/2012, 135/2012, 18/2011, 158/2008, 615/2007, 302/2006, 160/2000, 99/99, 625/98, 285/92, 303/90, 287/90, 86/84, 17/84, 11/83). Assim e como já se salientou “o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar” (Ac.TC 60/2000).
O STJ tem seguido este posicionamento ao considerar que o principio da protecção da confiança postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas jurídicas que lhe são juridicamente criadas, não admitindo as afectações arbitrárias ou desproporcionalmente gravosas com as quais, o cidadão comum, minimamente avisado, não pode razoavelmente contar (Ac.STJ 2007/Mar./27).».

Segue-se o enunciado da regra non bis in idem, a propósito da qual se escreve: 

«Por sua vez, o princípio ne bis in idem, com assento no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição, estabelece o comando genérico de que “Ninguém pode ser julgado mais que uma vez pela prática do mesmo crime”, no sentido de que após o trânsito em julgado de um sentenciamento, o qual passa a adquirir força obrigatória, quer interior (caso julgado formal), quer externamente ao processo (caso julgado material) (205.º, n.º 2 Constituição; 673.º C. P. Civil “ex vi” 4.º C. P. Penal), os mesmos factos não podem, em regra, ser sujeitos a novo julgamento, salvo razões prementes de justiça, como sucede com os recursos extraordinários, tanto de uniformização de jurisprudência (437.º e ss.), como de revisão de sentença (449.º e ss.). Esta garantia de não se ser julgado mais que uma vez pelo mesmo crime, enquanto umas das vertente do princípio da dignidade humana, pode assumir diversas dimensões, como a de não se ser condenado duas vezes pelo mesmo crime ou então de interditar a dupla valoração dos mesmos factos, tanto em sede culpabilidade, como de determinação da correspondente reacção penal.»


Entra-se, enfim, no essencial do que havia para decidir, o tema do cúmulo jurídico no caso de concurso de crimes.


«Tais princípios tentam, ao fim e ao cabo, traduzir uma ideia de justiça, a qual é imanente a um Estado de Direito Democrático, que tem a sua matriz na Constituição (artigo 2.º), mormente quando estão em causa a efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, sendo neste quadro constitucional que deve ser lido em geral o instituto da punição e especificamente da punição do concurso de crimes superveniente.
Por sua vez, tanto na determinação como na execução das penas, dever-se-á ter em atenção as finalidades da mesmas, que segundo o art. 40.º do Código Penal, consiste na “protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Isto significa que a pena, enquanto instrumento político-criminal de protecção de bens jurídicos, tem, ao fim e ao cabo, uma função de paz jurídica ou social, típica da prevenção geral[2], seguindo-se as vertentes da prevenção especial. Aliás, este fundamento é renovado no artigo 42.º, n.º 1 do Código Penal, ao enunciar que “A execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável”. Tudo isto reforça que a execução de uma pena de prisão tem essencialmente na sua base, sendo de resto a sua âncora, razões nítidas de prevenção geral, associadas à defesa da sociedade e da paz jurídica ou social, mas com nítidas orientações de prevenção especial, tanto positiva na vertente da ressocialização do arguido, como negativa face à perigosidade revelada pelo arguido.
Nesta conformidade, os referidos princípios constitucionais da intervenção mínima do direito penal e da proporcionalidade, têm igualmente reflexos na pena única a determinar no cúmulo jurídico, de modo que a determinação de uma sentença condenatória privativa da liberdade deverá sempre restringir-se aos casos de manifesta idoneidade ou adequação (i), necessidade ou exigibilidade (ii) e, sempre, na sua justa medida, respeitando-se os respectivos pressupostos e limites de não perpetuidade das penas de prisão (27.º, n.º 2 e 30.º, n.º 1 Constituição), bem como as referidas finalidades de punição.O Código Penal estabelece como regra de punição do concurso de crimes e salvaguardados o limite mínimo, que corresponde à pena mais elevada que concretamente foi aplicada aos crimes em concurso, e os limites legais máximos de 25 anos de prisão e 900 dias de multa (determinação legal – 77.º, n.º 2 C. Penal), que “Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” (determinação judicial – 77.º, n.º 2, parte final C. Penal). Para o efeito e previamente estabelece que “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena” (pressuposto formal – 77.º, n.º 1, I parte C. Penal). Consagra-se assim um sistema de cúmulo jurídico das penas, em detrimento do sistema de cúmulo material das mesmas.
Estas regras de determinação legal e judicial são igualmente aplicáveis ao conhecimento superveniente do concurso, apenas diferindo o seu pressuposto formal, que de acordo com o preceituado actualmente no artigo 78.º, n.º 1 é o seguinte: “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes”. Este pressuposto formal resultou da Revisão de 2007 (Lei n.º 59/2007, de 4/Set.), o qual suprimiu o trecho “mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta” – na redacção anterior constava “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se mostrar ….”.
A propósito do regime de punição de concursos superveniente o Tribunal Constitucional já se pronunciou que o mesmo, para além de não postergar os princípios da culpa, das garantias de defesa, de aplicação da lei mais favorável e do direito à liberdade, também não contende com a garantia da proibição do ne bis in idem, ao ter por base o disposto nos artigos 77.º, 78.º e 81.º, todos do Código Penal quando interpretados no sentido de, em sede de cúmulo jurídico superveniente, se deverem considerar, no cômputo da pena única, as penas parcelares, desconsiderando-se uma pena única já julgada cumprida e extinta, resultante da realização de cúmulo jurídico anterior (TC 112/2011).
No entanto, o momento temporal decisivo para o estabelecimento da relação de concurso ou da sua exclusão é o trânsito em julgado de qualquer das decisões condenatórias, com destaque para aquela que foi primeiramente proferida, pois é esta que delimita o conhecimento superveniente, estabelecendo a fronteira até onde se pode formar a unificação das respectivas penas, pois obsta a que se cumulem com infracções que venham a ser praticadas em momento posterior a esse trânsito (Ac.STJ 2012/Jan./18, 2009/Jun./25 CJ (S) I/209, II/247). Daí que os crimes cometidos posteriormente à primeira condenação transitada em julgado, não estejam em relação de concurso superveniente com essa condenação, devendo antes tais ilícitos ser punidos num cumulo jurídico autónomo em relação àquele outro, o que conduz ao cumprimento sucessivo das respectivas penas únicas (Ac.STJ de 2010/Mai./19, CJ (S) II/191).
Também tem vindo a ser ultimamente reiteradamente sufragado pela jurisprudência e não vemos razões válidas para inverter esse caminho que em caso de conhecimento superveniente do concurso de crimes, a pena unitária deve englobar todas as penas de prisão parcelares condenatórias, incluindo aquelas cuja execução ficou suspensa na sua execução, nada obstando que, no julgamento conjunto, se conclua pela necessidade de aplicação de uma pena única de prisão – percurso esse que remonta ao Ac.STJ 1986/Fev./26, BMJ 354/345, passando pelo Ac.STJ de 2006/Nov./09, CJ (S) III/206 até ao Ac.STJ de 2011/Mai./16[3]).
Na sequência da Revisão de 2007 e com a eliminação daquele trecho que excluía a abrangência nos concursos supervenientes das penas já cumpridas, prescrita ou extintas, passou-se a considerar que estas mesmas penas, verificando-se os demais pressupostos formais, passavam a integrar o cúmulo jurídico, procedendo-se, após essa inclusão, no cumprimento da pena única que venha a ser fixada, ao desconto da pena entretanto cumprida (Ac.STJ 2012/Jan./18 CJ (S) I/209, 2011/Fev./02 (Recurso n.º 994/10.8TBLGS.S1)[4], 2009/Jun/25 CJ (S) II/247, 2008/Nov./19 CJ (S) III/229).
Esta alteração legislativa veio, assim, a sufragar o posicionamento minoritário que se tinha anteriormente manifestado neste sentido, que conjugando o disposto naquele artigo 78.º, n.º 1 com o artigo 81.º ambos do Código Penal, argumentava que deveria afastar-se a interpretação literal e formal daquele primeiro segmento normativo por razões de justiça material, pois o princípio da igualdade ficaria tolhido, em virtude de situações que à partida estariam em condições de beneficiar de uma pena única, por realização de um cúmulo jurídico, passariam a estar dependentes da maior ou menor celeridade dos tribunais, sendo este factor prático que acabaria por condicionar o conhecimento superveniente do concurso de crimes (Ac. STJ 2000/Mai./24 e 2001/Mai./30 CJ (S) II/204, II/210). Na linha desta posição só se excluiria do âmbito do cúmulo jurídico a hipótese de na pena cumprida se não achar qualquer benefício para o condenado. Assim, os argumentos decisivos para este entendimento passavam por razões de justiça material, tendo por base o princípio da igualdade e o pressuposto formal da pena de prisão já ter sido cumprida e o critério material de haver benefício para o condenado.
Nesta conformidade, a leitura do que se encontra actualmente disposto no artigo 78.º, n.º 1 do Código Penal, não pode ignorar as razões de justiça material que estavam subjacentes àquela posição minoritária e que foi sufragada pela Revisão de 2007, muito embora a redacção dada àquele segmento normativo, com eliminação pura e simples daquela passagem interlocutória – “mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta” – não tenha sido a mais feliz. Por isso, aquela alteração legislativa que foi efectuada tendo em vista e como consequência jurídica prática a obtenção de um benefício para o condenado, mediante a realização alargada do cúmulo jurídico, desde que se verifiquem os respectivos pressupostos formais, não pode vir a redundar numa situação em que o mesmo condenado venha a ser nitidamente prejudicado. Tanto mais quando essa prejudicialidade infringe até os ditames constitucionais de uma ideia de justiça, que se encontra aqui traduzida no princípio da confiança e da certeza na aplicação da lei pelos tribunais, na vertente de se assegurarem as legítimas expectativas de um condenado que, num primeiro momento, vê a respectiva pena ser declarada extinta para depois, num segundo momento, essa mesma condenação vir a alargar os limites da moldura penal onde se vai encontrar a pena única do concurso de crimes superveniente. No mesmo sentido aponta a garantia constitucional de proibição do ne bis in idem, porquanto está em causa a valoração subsequente e para efeitos de determinação legal da pena unitária de uma condenação numa pena de prisão cuja execução ficou suspensa, mas em que aquela já foi declarada extinta.
Seguindo esta leitura substantiva do que se encontra actualmente disposto no artigo 78.º, n.º 1 do Código Penal, tem surgido o posicionamento de que se a pena suspensa inicialmente aplicada for declarada extinta pelo cumprimento (artigo 57.º, n.º 1), não será tida a mesma em conta para efeitos de concurso superveniente de crimes, devendo aquela condenação ser desconsiderada (Ac.STJ de 2011/Mai./16, 2011/Mai./11, 2011/Dez./07)[5]. Daí que no conhecimento superveniente do concurso de crimes em relação à integração de uma pena de prisão cuja execução tenha ficado suspensa, deva ser desconsiderada para efeitos de determinação legal da pena única aquela que já tenha sido declarada extinta.»
Eis, a conclusão:
«No caso da determinação de uma pena única na sequência de concurso de crimes cujo conhecimento seja superveniente exige-se uma especial necessidade de fundamentação, que passa por uma descrição, ainda que sucinta, dos factos pertinentes a cada um dos crimes cometidos cujas condenações encontram-se em concurso, bem como daqueles factos que sejam reveladores das características pessoais, do modo de vida e inserção social do condenado, a fim que se conheça a globalidade da sua actividade criminosa e a sua personalidade (Ac. STJ de 2012/Jan./18, 2011/Mar./10, CJ (S) I/299, I/206).
Para o efeito deve obstar-se à utilização de formas tabulares ou genéricas, como o “número”, a “natureza” e a “gravidade” dos ilícitos, já que estas são expressões vazias de conteúdo e que não acrescentam nada de útil, ainda que sejam antecedidas de uma mera enunciação dos crimes em causa e das correspondentes condenações. Também não é aceitável a remissão para os factos descritos nas sentenças condenatórios que estão em concurso para a determinação da pena unitária (Ac.STJ de 2011/Mai./11)[6], porquanto exige-se que a fundamentação expressa no sentenciamento da pena unitária tenha, apenas por si e para os seus destinatários ou qualquer outro leitor, a plena suficiência argumentativa, tanto na sua descrição, como na sua justificação. Nessa descrição devem constar as circunstâncias de facto relevantes e indispensáveis tanto na aferição dos pressupostos formais do concurso de crimes superveniente, como para a determinação legal e judicial da pena única, que no caso da pena de prisão cuja execução ficou suspensa na sua execução passa por indicar qual o seu estado no momento da realização do respectivo cúmulo jurídico, designadamente se essa pena de prisão suspensa ainda persiste por ter sido ampliado o respectivo período de suspensão ou então foi declarada extinta ou está em condições de o sê-lo, conduzindo a inobservância dessa especial fundamentação à nulidade do sentenciamento cumulatório, atento o disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. a), c) e n.º 2 (Ac.STJ de 2011/Mai./16, 2008/Abr./09).
»

As galés

Uma coisa é certa, nunca deixei de trabalhar na minha profissão. Quando tudo parou, até quase o ânimo para pensar e assim poder escrever, a mão não largou o remo da advocacia, esta vida que é uma espécie de condenação às galés.
Sempre achei uma ironia trágica chamar a isto profissão «liberal» e não de escravatura.
Sempre achei que a melhor demonstração da completa desconsideração pública que os advogados merecem é a sua falta a um acto processual só quase por favor dar azo ao seu adiamento, as leis quase todas a dizerem que não. «É que se aceitássemos adiar», dizem alguns, entre o convicto em alta voz de uma proclamada verdade e sussurrantes no que ela sugere, «nunca mais havia julgamentos porque os advogados inventavam motivos».
Claro que há os motivos que a vida inventa. Mas desses não cura o pretor.
Fui a todas, actos e prazos, excepto aqui. 
Regressei hoje. Temo que algo tenha mudado para estar tudo na mesma.

O imprevisível e o imprevisto

Há na escolha de Joana Marques Vidal para o cargo de Procuradora-Geral da República o notável de ter-se aberto excepção ao previsível e derrogação ao previsto. 
De há muito que a dança dos nomes tinha palco certo na comunicação social, os prós e os contras faziam da nomeação uma espécie de deve e haver do cálculo político. 
Houve quem se prestasse a declarações ambíguas mas suficientemente interpretáveis como significando uma caução de boa conduta para o lugar. Houve quem desde há anos tivesse assumido pose de mando como se em ensaio geral de tiques para as cortesias palacianas que da função fabulava. Houve silêncios sem desmentidos de ambição.
A degradação começou quando já se dava como assente que iria ser escolhido alguém porque assim era certo poder financeiro com seguro garantido através do cargo, ou outro alguém porque a familiaridade com quem pode sugerir a escolha quando não é motivo é critério. O nojo chegou quando se punha em agenda o que seria conveniente através da escolha para os partidos no poder ou para os indivíduos que servem os círculos políticos que em Belém se concentram.
Enfim, surgiu quem ninguém esperava.
Não vou comentar da designada as virtudes nem sublinhar defeitos. Quanto aos segundos pois não conheço algum, quanto às primeiras porque fiz-me na escola dos que não elogiam magistrados, evitei na advocacia as alegações laudatórias, as que, incensando o espírito de quem as ouve, tentam obter complacência de quem a tal se presta. Não o faria aqui. 
Conheço-a, e tenho com ela uma relação amistosa de há muitos anos, dentro dos limites da distância com que sempre privei com quem desempenha funções na Justiça e por respeito a esta.
Veremos ante os actos, quando eles surgirem o que poderei dizer.
Para já fica aqui uma palavra de profunda esperança e votos de boa sorte. 
É que os tempos são de tal modo duros, o poder está de tal pulverizado, o desprestígio da Justiça é de tal modo grave que, ter aceite o cargo, é risco, inclusivamente vindo de alguns dos desapontados.
O problema do Procurador-Geral da República não é o Ministério Público, sim o que gira em torno do Palácio de Palmela.

Violência doméstica

A propósito do conceito de violência doméstica o Acórdão da Relação do Porto de 19.09.12 [proferido no processo n.º 901/11.0PAPVZ.P1, relator Ernesto Nascimento e publicado aqui] definiu que: «não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.
Reclamações.»

Segundo o aresto:

«I – A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
«II – Da actual descrição do tipo do artigo 152°, resultante da Lei 59/2007, de 4SET, resulta:
a) a ampliação do âmbito subjectivo do crime, que passa a incluir as situações de violência doméstica envolvendo ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges;
b) o recurso, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, com a consolidação do entendimento de que, condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, desde que se revistam de gravidade suficiente, podem ali ser enquadradas e,
c) que, por outro lado, não são, todas as ofensas corporais entre cônjuges que ali cabem, mas só aquelas que se revistam de uma certa gravidade, só aquelas que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação.
«II - Como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”. E estes só se verificam quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.
«III - Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável.»

Com interesse para a temática, permito-me citar da sua extensa fundamentação:

«O objectivo desta incriminação é a de prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis, quão perniciosas, formas de violência no âmbito da família, quer para a saúde física e psíquica e ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem estar.
A necessidade prática desta neo-criminalização, resultou, por um lado, do facto de muitos destes comportamentos não configurarem em si, crime de ofensas corporais simples e, por outro, resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos, consagrando-se a ideia de que a família não mais podia ser vista como um feudo sagrado, onde o direito penal se tinha de abster de intervir.
A razão de ser deste tipo legal, no entanto não é a protecção da comunidade familiar ou conjugal, antes a protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
Com esta incriminação visa-se assegurar uma “tutela especial e reforçada da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pela sua caracterização e motivação - geralmente associada a comportamentos obsessivos e manipuladores - constituam uma situação de maus tratos, que é por si mesma indiciadora do perigo e da ameaça de prejuízo sério frequentemente irreversível”. [5]
Pode-se dizer que os bens jurídicos protegidos pela incriminação deste tipo, são, em geral, os da dignidade humana, particularmente a saúde, compreendendo-se aqui o bem estar físico, psíquico e mental, podendo a sua violação ocorrer por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade do cônjuge e seja susceptível de pôr em causa qualquer dos bens acima mencionados.
O relevante é que os factos praticados, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter para a vida comum, sejam susceptíveis de colocar a vítima na situação de, mais ou menos permanentemente, sofrer um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade no seio da sociedade conjugal. [6]
A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Da actual descrição do tipo do artigo 152º, resultante da Lei 59/2007, de 4SET, resulta,
a ampliação do âmbito subjectivo do crime, que passa a incluir as situações de violência doméstica envolvendo ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges;
o recurso, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, com a consolidação do entendimento de que, condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, desde que se revistam de gravidade suficiente, podem ali ser enquadradas e,
que, por outro lado, não são, todas as ofensas corporais entre cônjuges que ali cabem, mas só aquelas que se revistam de uma certa gravidade, só aquelas que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação.
“O desvalor potencial fundamentalmente tomado em consideração para justificar esta específica modalidade de incriminação se prende com os sérios riscos para a integridade psíquica da vítima que podem advir da sujeição a maus tratos físicos e/ou psíquicos, sobremaneira quando se prolongam no tempo”. [7]
“A panóplia de acções que integram o tipo de crime em causa, analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetradas, constituem-se em maus tratos quando, por exemplo, revelam uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente”. [8]
“Neste sentido, o crime de violência doméstica assume não a natureza de crime de dano mas de crime de perigo, nomeadamente de crime de perigo abstracto. É, com efeito, o perigo para a saúde do objecto de acção alvo da conduta agressora que constitui motivo de criminalização, pretendendo-se deste modo oferecer uma tutela antecipada ao bem jurídico em apreço, própria dos crimes de perigo abstracto”. [9]
“O importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão física de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que, por si, constitui um “risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima”. [10]
Só em tal situação se impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
Como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”. E estes só se verificam quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.
Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável.
“Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”. [11]»


+

5] Cfr. Nuno Brandão, in “A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Julgar, 12º, 18.
[6] Cfr. Ac . deste Tribunal de 29.9.2004, in CJ, IV, 210.
[7] Cfr. Nuno Brandão, 18.
[8] Cfr. Plácido Conde Fernandes, in “Violência doméstica – Novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, 2009, Número especial, 307.
[9] Cfr. Nuno Brandão, 17.
[10] Cfr. Nuno Brandão, pág. 21.
[11] Cfr. Ac. RC de 28JAN2010.