Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Em "flagrante delito"


Houve tempos em que aqui houve Tribunal.
Em 1908 havia o largo, o quiosque, e este solitário passeante que, ante a canícula, se refrescava copiosamente. 
Joshua Benoliel surpreendeu-o em "flagrante de litro", espécie de justiça sumária destinada a despachar o processo da desidratação naquele ano em que, como diria o Eça, fazia um calor "de ananazes"!
Hoje nem sei o que há por ali. Talvez já nem "um copo de três!". 
No tempo de um outro ministro era para ser "Hotel de Charme". É como tudo na vida: o que tasca é em tasca se pode tornar, até terminar tudo atascado...

P. S. Aos que têm notado que eu não tenho aparecido por aqui digo: ando em obras de arrumação.

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Origem da foto [Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa]: aqui

A "democracia" da Justiça sumária....


Segundo o Código de Processo Penal de 1929, assinado por António de Oliveira Salazar e pelo Ministro da Justiça Mário de Figueiredo, em plena Ditadura Nacional, podiam ser julgados em processo sumário as transgressões e os crimes puníveis com prisão, desterro ou multa até seis meses, ou infracções a isso inferiores quando cometidas em flagrante delito (artigos 67º e 556º a 561º). Veja-se o texto integral aqui.

Com o Código de Processo Penal de 1987 do Estado de Direito Democrático, na sua versão inicial, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17.02, o processo sumário passou a ser possível de aplicar a crimes puníveis com pena de prisão de máximo até três anos (artigo 381º). Ver o texto aqui.

Em 2007, com a nova redacção conferida ao citado artigo pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o processo penal passou a ser aplicável a crimes passíveis de prisão até cinco anos. Ver o texto aqui.

Com a redacção de 2012, decorrente da Lei n.º 20/2012, de 20.02, por proposta do Governo de Passos Coelho, sendo Ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz, o processo sumário passou a ser aplicável a todos os tipos de crimes, incluindo homicídios, pois só ficaram excluídos «aos detidos em flagrante delito por crime a que corresponda a alínea m) do artigo 1.º ou por crime previsto no título iii e no capítulo i do título v do livro ii do Código Penal e na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário». Ver o texto aqui.

Eis como estamos em matéria de protecção de direitos sob a bandeira do Estado de Direito Democrático. Não fosse o Tribunal Constitucional ter considerado «declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição» [texto integral aqui] e, entregues à concepção de Justiça dos nossos políticos era este impudor. 

P. S. Na sua declaração de voto, no sentido de que não existia inconstitucionalidade alguma Maria João Antunes afirma que em relação àquilo que de mais grave poderia ser julgado em processo sumário, porque punível com prisão superior a oito anos, a lei permite que o próprio Ministério Público em nome da defesa e o arguido possam requerer o júri. Que liberalidade e que lógica não é?

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Origem da foto: aqui.

O circuito das leis


Talvez o humor ajude. Rir é, dizia o Eça de Queiroz, uma opinião constitucional. Voilà!

O Direito Colonial


Ainda fui dos que estudei Direito Ultramarino, cadeira a cargo do Professor André Gonçalves Pereira. Por essa altura os velhos diplomas que haviam atingido o seu apogeu com a Carta Orgânica do Império Colonial Português estavam em revisão. 
Adriano Moreira, ministro do Ultramar do Governo de Oliveira Salazar havia ensaiado a possível alteração das estruturas e das mentalidades. E legislava sobre o «trabalho indígena». Um dia escreverei sobre isso.
No início do meu estágio ainda minutei para o meu patrono recursos contenciosos para o Conselho Ultramarino, o Supremo Tribunal Administrativo do Ultramar.
O Direito Colonial ficou como uma memória passada, hoje um facto histórico.
Foi, por isso, com um renovar de memória que dei conta deste livro. Não fala de nós, sim dos espanhóis, nisso se esgotando a Ibéria vista do lando americano.
Pode ser adquirido através daqui.
É uma colectânea de estudos, editada pela Universidade Vanderbilt, coordenados por Santa Arias, professor associado na Universidade do Kansas, nos EUA, e Raul Marrero-Fente, da Universidade do Minnesota.

Copio do índice do que se trata:

Politics
-» Jose de Acosta: Colonial Regimes for a Globalized Christian World
Ivonne del Valle

-» Conquistador Counterpoint: Intimate Enmity in the Writings of Bernardo de Vargas 
MachucaKris Lane

-» Voices of the Altepetl: Nahua Epistemologies and Resistance in the Anales de Juan Bautista
Ezekiel Stear

-» Performances of Indigenous Authority in Postconquest Tlaxcalan Annals: Don Juan Buenaventura Zapata y Mendoza's Historia cronologica de la noble ciudad de Tlaxcala
Kelly S. McDonough

Religion

-» Translating the "Doctrine of Discovery": Spain, England, and Native American Religions
Ralph Bauer

-» Narrating Conversion: Idolatry, the Sacred, and the Ambivalences of Christian Evangelization in Colonial Peru
Laura Leon Llerena

-» Old Enemies, New Contexts: Early Modern Spanish (Re)-Writing of Islam in the Philippines
Ana M. Rodríguez-Rodríguez

-» Art That Pushes and Pulls: Visualizing Religion and Law in the Early Colonial Provinces of Toluca
Delia A. Cosentino

Law

-» The Rhetoric of War and Justice in the Conquest of the Americas: Ethnography, Law, and Humanism in Juan Gines de Sepulveda and Bartolome de Las Casas
David M. Solodkow

-» Human Sacrifice, Conquest, and the Law: Cultural Interpretation and Colonial Sovereignty in New Spain
Cristian Roa

-» Legal Pluralism and the "India Pura" in New Spain: The School of Guadalupe and the Convent of the Company of Mary
Monica Diaz

-» Our Lady of Anarchy: Iconography as Law on the Frontiers of the Spanish Empire
John D. (Jody) Blanco

Afterword

-» Epilogue: Teleiopoesis at the Crossroads of the Colonial/Postcolonial Divide
Jose Rabasa

A Luta pelo Direito



Foi ao escrever um artigo, já atrasado, para a revista "Julgar" [ver aqui] que de novo ressurgiu, vinda do campo de batalha onde se trava o combate pela Justiça, a noção que é a lição de uma vida. E escrevi: «Para compreender o Direito é preciso surpreende-lo na política, nas ideologias, nas crenças e nos interesses, nos a priori dos Estados e das pessoas. Ele não é uma produção liofilizada, bacteriologicamente pura, nem uma silogística alcançável “more geometrico” como mera operação mental. É também argumentação e legitimação do conveniente, evasão à responsabilidade, triunfo de idiossincrasias. Trata-se da “luta pelo Direito”, como magistralmente o surpreendeu Rudolph Jhering»


«[...] O direito é o trabalho sem tréguas, e não somente o trabalho dos poderes públicos, mas sim o de todo o povo. Se passarmos um golpe de vista em toda a sua história, esta nos apresenta nada menos que o espectáculo de uma nação inteira despendendo ininterruptamente para defender o seu direito penosos esforços, como os que ela emprega para o desenvolvimento de sua actividade na esfera da produção económica e intelectual.
Todo aquele que tem em si a obrigação de manter o seu direito, participa neste trabalho nacional e contribui na medida de suas forças para a realização do direito sobre a terra.
Sem dúvida, este dever não se impõe a todos na mesma proporção. Milhares de homens passam sua vida de modo feliz e sem luta, dentro dos limites fixados pelo direito, e, se lhes fôssemos dizer, falando-lhes da luta pelo direito, — que o direito é a luta, não nos compreenderiam, porque o direito foi sempre para eles o reino da paz e da ordem.
Sob o ponto de vista de sua experiência pessoal, têm toda a razão; procedem como todos os que, tendo herdado ou tendo conseguido sem esforço o fruto do trabalho dos outros, negam esta proposição: — a propriedade é o trabalho.
O motivo desta ilusão está nos dois sentidos em que encaramos a propriedade e o direito, podendo decompor-se subjectivamente de tal modo que o gozo e a paz estejam de um lado, a luta e o trabalho noutro. Se interpelássemos aqueles que o encaram sob este último aspecto, certamente nos dariam uma resposta em contrário.
O direito e a propriedade são semelhantes à cabeça de Jano, têm duas caras; uns não podem ver senão um dos lados, outros só podem ver o outro, daí resultando o diferente juízo que formam do assunto.
O que temos dito do direito, aplica-se não somente aos indivíduos, mas sim às gerações inteiras. A paz é a vida de umas, a guerra a de outras, e os povos como os indivíduos estão, em consequência desse modo de ser subjectivo, expostos ao mesmo erro; e, embalados em um belo sonho de uma longa paz, cremos na paz perpétua, até o dia em que troe o primeiro tiro de canhão, vindo dissipar nossas esperanças, ocasionando com tal mudança o aparecimento duma geração, posterior à que vivera em deliciosa paz, que se agitará em constantes guerras, não desfrutando um só dia sem tremendas lutas e rudes trabalhos [...]». 
Rudolph Jhering dixit em 1872. O texto [cuja grafia adaptei] pode ler-se aqui, em tradução brasileira, aqui ou aqui (facsimile) no original.