Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




A Justiça fora do mapa...


À mercê da retórica, o País assistiu à afirmação reiterada de que havia falta de juízes, sobrecarga no trabalho dos que serviam nos tribunais, na necessidade de o Centro de Estudos Judiciários habilitar a Justiça com mais magistrados, mesmo através de meios extraordinários e céleres de formação. Vem agora o "mapa judiciário" e os portugueses assistem à noção exactamente inversa, a de que, afinal, há juízes e procuradores a mais. E ficamos todos perplexos.
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Tendo ouvido dizer que, em obediência às regras gerais de legitimação da Justiça, esta deve desempenhar uma função preventiva, sobretudo a penal, para que que, em função do julgamento, a comunidade aprenda que o crime não compensa e se abstenha de fazer o que nos tribunais se condenou, o País assistiu à noção da Casa da Justiça, o tribunal ao pé da porta, os juízes de fora que iam às comarcas, as NUTS, enfim, a Justiça de proximidade e assiste agora ao encerramento de tribunais, a julgamentos que vão ter lugar a dezenas e dezenas de quilómetros do local onde tudo se passou, essa forma da desaforamento encapotado em favor do tribunal de conveniência. E ficamos todos boquiabertos.
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Tendo visto os políticos clamarem o imperativo da reforma judiciária e o consequente "mapa judiciário", como condição essencial ditada pela troika porque o País real, o produtivo, o empresarial, estaria bloqueado por causa do mau funcionamento dos tribunais, o País apercebe-se que só quando a troika se foi, enfim, embora, é que o dito "mapa" surge, e, afinal, com isso, estão suspensas as marcações de julgamentos, haverá milhares de processos que vão ser encaixotados, juízes transferidos, magistrados novos que vão ter pegar nos processos desde a estaca zero quando havia outros que já os conheciam de fio a pavio. E ficamos como parvos.
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Tendo aprendido a não acreditar em coisa alguma, o País, não quer de nada saber. Problema é o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol. E, em matéria de juízes, grave é o que se passa com os árbitros de futebol! O mais que se dane!
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Viva, pois, tudo, e viva, por isso, nada! Tanto faz. 
O mapa judiciário, esse, será, assim, apenas um problema de camionagem, com polícias e soldados a alombarem com processos de cá para lá. 
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Conclusão: sem os Ministérios da Defesa e da Administração Interna, que seria do Ministério da Justiça? E porque é que, já que de mapas se fala, não se pediu ajuda aos Serviços Cartográficos do Exército, e, ao Instituto Português do Mar e da Atmosfera, para se decidir o caso de tribunais nas Berlengas, no Farol do Bugio, e sobretudo nas Selvagens?

A Justiça na Constituição de 1976


A gentileza do Centro de Estudos Judiciários permitiu que eu tivesse proferido ali a seguinte intervenção, que irei agora rever tentando melhorar e corrigir, mas que aqui fica como uma primeira reflexão:


«Quais as questões controversas no domínio da Justiça, quando eclodiu o 25 de Abril de 1974, onde surgiu, com a queda do regime político anterior, a situação que acabaria por encontrar na Constituição de 1976 a sua primeira fase de pretensa consolidação?

Correndo o risco de simplificar, e porque o tempo é limitado, enuncio as seguintes:

-» A da separação das magistraturas, pois que a carreira do Ministério Público era vestibular da judicial, mesclada por passagem de alguns selectos “delegados do Procurador da República” pela Polícia Judiciária;

-» A da autonomia do Ministério Público e do próprio poder judicial face ao Executivo, pois que eram ministros quem acabavam por deter a competência para a nomeação dos delegados e de certos juízes, nomeadamente os que serviriam em cargos mais sensíveis;

-» A dos tribunais especiais, nomeadamente o plenário criminal para o julgamento dos crimes políticos, apodados de crimes contra a segurança interna e externa do Estado, sistema pelo qual a magistratura judicial se coresponsabilizava em tal repressão, sucedendo nisso ao que até então era da competência do Tribunal Militar Especial;

-» A da judicialização das fases nevrálgicas do processo criminal, quer na averiguação pré-acusatória, quer na fase pós-acusatória e antecedente ao julgamento, a primeira ou para apenas para garantir os direitos fundamentais civis ou para funcionar como modo judicial de investigação com afastamento do Ministério Público, a segunda como forma efectiva de garantir controlo da acção penal pública, sobretudo em caso de arquivamento que poderia passar a funcionar como autêntica amnistia administrativa;

-» A prevalência e avantajamento de meios de acção dos órgãos de polícia criminal, quer da Polícia Judiciária propriamente dita, quer da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), mais tarde crismada em DGS (Direcção-Geral de Segurança), isto por comparação com os poderes concedidos a magistrados;

-» A da indefinição da privação da liberdade, quer pela indeterminação dos pressupostos da prisão preventiva, quer pela prorrogabilidade e indefinição temporal das medidas de segurança e de certas penas, quer pela ineficácia do habeas corpus;

-» A da legitimação da justiça togada e a eventualidade de a participação privada na administração da justiça poder torná-la mais equitativa quanto eficaz;

-» O das garantias de defesa em processo criminal.

Nem tudo poderá ser aqui analisado. Circunscreverei, pois.

Todo este acervo de problemáticas decorria de uma longa polémica que várias vezes se colocou, umas vezes de forma explícita e polémica – como quando se aprovou, em marcha acelerada o Código de Processo Penal de 1929, tirando da gaveta um projecto que vinha da República Velha – outras já sotto voce – devido aos riscos inerentes ao exercício da liberdade de expressão – e foi assim que se passou quando das reformas aprovadas entre 1945 e 1954.

Não podendo aqui historiar esse longo e polémico curso dos acontecimentos, retomo parte dos temas que enunciei, focando-os naquilo em que a Constituição de 1976 acabou por encontrar solução.

[continua aqui]

Ramalhal visão



Com o devido respeito, que é muito, e o farto riso, que é maior, este excerto que vem dos tempos em que Eça de Queiroz proclamava que forraria o seu quarto de estudante coimbrão "a pele de Lente": «Em cada ano, pelo verão, quando as moscas chegam, a Universidade de Coimbra: abre as suas portas e esparge sobre o corpo social trinta bacharéis formados em direito. O país, tendo reconhecido nos últimos anos que há cinquenta indivíduos para cada um dos lugares destinados pelo estado para um jurisconsulto inteligente e sábio, havendo portanto para cada emprego provido um saldo importuno de quarenta e nove sábios desempregados, pede insistentemente à universidade que lhe mande bacharéis ignorantes a fim de que o país, não podendo, como é impossível, fazer deles procuradores da coroa, possa pelo menos estabelecê-los como contínuos de secretaria.(...)»

Ramalho Ortigão, As Farpas (1872)

O humor e a compreensão



O humor não ofende. Ajuda a compreender. A epistemologia contemporânea, sisuda e chata, dominada pela frieza lógica e seus resfriados mentais recolhe-a entre cobertores. 

O longo penar do sistema penal


Mandam as boas maneiras que não publique aqui a totalidade do texto, quando acaba de sair a revista que o edita, a "Julgar". Escrevi sobre a Justiça no Estado Novo. Ante muitas das afirmações que ali produzi, críticas para a actualidade por comparação a esse passado, há uma declaração de interesses que julgo necessária: a Justiça desse regime impediu-me de seguir a magistratura, porque, submisso à informação da Direcção-Geral de Segurança a meu respeito - segundo a qual eu «não dava garantias de cooperar na realização dos fins superiores do Estado» - me barrou a porta de acesso ao Ministério Público, então carreira vestibular para a magistratura judicial, mesmo que eu tivesse eleito como primeira comarca a Graciosa, e terminado com «qualquer outra» que se encontrasse vaga.
Digo isto, que já tinha tornado público, porque, num território em que pulula o argumento ad hominem, pelo qual, não se podendo atacar o argumento se ataca a pessoa, é bom que conste.
Ficam pois alguns excertos do que escrevi, os da introdução. O artigo é uma tentativa de síntese histórica, para tentar demonstrar que no campo das leis penais, o regime caído a 25 de Abril, se contentou até 1945 e mesmo depois da Constituição de 1933, com a lógica que provinha da "República Velha" e até da Monarquia - disso é exemplo o Código de Processo Penal de 1929 e a subsistência do Código Penal de 1852/versão de 1886 - e só em 1945 inaugurou um sistema próprio, compatível com a "nova ordem" que, entretanto, o desfecho da Segunda Guerra havia apeado na Europa.

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«Não pretendo que este texto seja um ensaio, um estudo, sim uma crónica. É talvez estilo que, não sendo muito usual entre nós no domínio da literatura jurídica, talvez se adapte a fomentar no leitor o gosto pela sua leitura. Não tem o aparelho de erudição que seria necessário para um trabalho académico. É uma reflexão pessoal de quem, tendo entrado na Faculdade de Direito em 1966, conviveu com um regime político que, à data em que estudou Direito Penal e o seu processo, ainda não havia aquele entrado na fase de liberalização que se assinalaria em 1971, alguém que viveria, quer pela vida prática, quer pela participação na vida pública, o que foi o sistema que irrompeu, no ano de 1974 em revolução, até à Constituição de 1976 e depois disso até à situação a que hoje se chegou, em que não se construiu regime algum e se vive o ocaso da partidocracia tornada administração pública comanditária do capital tornado Europa.
Se me é permitida mais uma nota pessoal, direi que de crítico, o autor destas linhas passou a céptico. Concluiu, na recta final da sua vida de jurista, que tenta tornar em recomeço para ganhar o fôlego da esperança, que, lamentavelmente, em muitas facetas o regime jurídico-penal a que se opôs publicamente, porque era o de uma ditadura, não era pior, em alguma das suas facetas, do que aquele que temos de suportar no que se proclama como sendo uma democracia.»

(...)

«Começo com uma declaração de filosofia própria, ou seja o meu modo de entender as coisas na área do jurídico: para compreender o Direito, nomeadamente o Direito Penal, é preciso surpreende-lo na política lato sensu, nas ideologias, nas crenças e nos interesses, nos a priori dos Estados e das pessoas que os integram como governantes e cidadãos, no próprio espírito do tempo e do lugar, na antropologia global do ser, não apenas na hermenêutica das fórmulas legais.
O Direito não é uma produção liofilizada, bacteriologicamente pura, nem uma silogística alcançável more geometrico como mera operação mental. É também argumentação e legitimação do conveniente, evasão à responsabilidade, triunfo de idiossincrasias feitas teoria, sofisma, expediente. Trata-se da “luta pelo Direito”, como magistralmente o surpreendeu Rudolph Ihering, travada no campo do processo legislativo, antes disso nas estruturas de onde dimana o mando e, com ele, o poder de legislar, e depois disso, nos vários órgãos da Administração da Justiça, locais onde o legislado qual mera corporização intelectual, se torna no Direito a ser sentido na pele pelos destinatários do mesmo, os culpados, os inocentes e o grande vagão do meio, o daqueles relativamente aos quais estes conceitos são meras ficções de territórios seguros, de fronteiras fixas; porque não pode em dicotomia o mundo jurídico conter-se nos binómios verdadeiro/falso, justo/injusto, culpado/inocente.
Digo mais: tudo isto se torna urgente, como bandeira por um repensar as origens num momento de sedução intelectual de tantos com responsabilidades no domínio da justiça penal pelas ideias privatísticas da “justiça negociada”, da própria “pena negociada”, da transação tornada justiça, o “negócio jurídico” a romper do Direito Civil onde contaminou todas as suas estruturas conceituais para o campo do Direito Público e, último reduto, do próprio Direito Criminal, num tempo histórico em que a “taylorização” tomou conta do processo penal, como se ele fosse a linha de montagem da fábrica de automóveis do senhor Henry Ford, em que a estatística e a prevalência do número passaram a critério, nomeadamente em que nos processos a fracção anual entre os pendentes os entrados e os findos é índice de avaliação do bom magistrado, o que mais “despacha” processos, em que a celeridade processual passou a valor maior, com o que significa de triunfo do utilitarismo e do pragmatismo, enfim, os pilares da cultura yankee com o que nisso se contem o “admirável mundo novo” mas também o “far west”, há que afirmar que o processo penal não é apenas um formulário de formalidades, os seus agentes não são “burocratas da coacção”, por mais que o Estado sobrecriminalize para defender os seus réditos fiscais, por mais que situações graves sejam sujeitas a processos celerados pela aceleração legalmente imposta, mesmo quando noções que deviam ter, ou a Constituição é um proclamação vazia, conteúdo e substância como a de arguido, a de excepcional complexidade, a de “facto novo”, a de “indício suficiente”, e tantas outras, acabem reduzidas a pretextos e expedientes para prolongar a prisão preventiva, para sujeitar casos a julgamento onde triunfará a lógica do “logo se verá” os «os mega processos que dão mega absolvições», mundo em que violências processuais inadmissíveis são toleradas como meras irregularidades que três dias de sonolência legitimam, de selectividade punitiva para efeitos de estrondosa exemplaridade, de agraciamento de uns e estigmatização mediática de outros.»

(...)

«A revolução militar do 28 de Maio tornou-se no Estado Novo através da Constituição de 1933.
Aqueles que sonhavam com um regime em que a palavra “revolução” fazia sentido, como forma de ressurgimento nacional contra o demoliberalismo de partidocracia em perpétuo rotativismo em que tornara a então chamada 1ª República pagaram com o exílio e com a liberdade e com a própria vida essa ilusão macabra.
António de Oliveira Salazar, católico conservador, jurista de formação mental, oriundo de uma ruralidade de princípios que nele se tornou atavismo, habilidade e culto da modéstia, temente à religião tradicional do Reino, fiel no culto da Família tendo a autoridade por indiscutível, teceu a teia de que resultou, cinco anos volvidos sobre o 28 de Maio de 1926, um regime que era já uma outra ideia.
Não que o general Gomes da Costa na sua marcha sobre Lisboa, vindo do norte regenerador, tivesse mais ideias do que a de Pátria e Nação. Faltava-lhe, porém, pela positiva, uma filosofia sobre o Estado. Queria a ordem nas ruas e no Estado. Pouco mais e já não era pouco. Portugal tinha caído na banca rota.
Foram anos decisivos os que se viveram então. Entre o nacional-sindicalismo de um Francisco Rolão Preto, que terminaria preso, o restauracionismo monárquico de um Paiva Couceiro, que se finaria derrotado, ia um mundo, tudo caldeado pelas tentativas de subversão da banda anarquista, filo-comunista e as sobrevivências já dispersas dos que tinham sobrevivido às hostes republicanas.
Em 1933 uma falsidade política legitimou a Constituição de 1933. Sujeita a “referendo popular”, nela as abstenções valiam como aprovação com base num sofisma tão cínico quanto seria o de os próprios mortos valerem como votos na urna.
Como é sabido a política de “neutralidade colaborante” de Portugal durante a Segunda Guerra permitiu que Salazar se mantivesse no poder quando em 1945 a sorte das armas fez claudicar as ambições imperiais do III Reich de Adolph Hitler e do Eixo nazi-fascista.
Esse perdurar do salazarismo, que se esgotara como política nova, e entraria em agonia com o início da insurgência armada nas colónias em 1961, com a revolta da baixa de Cassanje e a invasão de Goa pela União Indiana, em que já só se tratava, contra os «ventos da História» em saber resistir, foi – e como tantos historiadores arregimentados fingem esquecê-lo – obra da gratidão aliada, favor à cedência aos americanos da base dos Açores, aos esforços que permitiram, para garantia britânica, que Francisco Franco Bahamonde, o Generlaíssimo, não alinhasse com a Alemanha, resistindo a Hitler naquele vagão de caminho-de-ferro em Hendaye, colocando a ensanguentada Espanha em situação de não-beligerância, enfim, por haver fechado dos olhos às deslealdades da Loira Albion, a nossa mais velha Aliada, a Grã-Bretanha.
Seria apenas em 1971 que, caído Salazar, empossado Marcelo José das Neves Alves Caetano, um jurista administrativista que perdera viço quando como Presidente do Conselho, que se daria, com os limites políticos da denominada “evolução na continuidade” a liberalização política do regime com a aprovação da revisão constitucional.
Marcelo tinha bebido na juventude na fonte da militância, escrevera com Albano Guimarães, os vibrantes cadernos da “Ordem Nova”, que fundara em 1926, fora Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa, pagando do seu honrado bolso, a própria farda – mas finara-se nos ímpetos pela docência conservadora, refrigério agora para uma tragédia pessoal, que por um instante intervalar se cruzaria aliás com o Direito Penal, numas magras mas e interessantes lições proferidas ao ano jurídico de 1938-1939, onde aflora um tímido tomismo e com ele o substrato vago de um Direito Natural, tudo cruzando, em intermitência, com passagens por cargos governativos, como a Presidência e as Colónias, onde o seu estilo reformista e organizador se mostrou operosamente, mas também a sua heterodoxia.
Tudo assim seria até à revolução militar do 25 de Abril, logo tornada no 1º de Maio o “levantamento nacional popular” que os sectores comunistas haviam proclamado como sendo o “rumo à vitória” contra o regime político que reduziam ao conceito de “fascismo”, irmanando-o, sem distinguir, ao de Mussolini e ao nazismo do cabo austríaco agora Chanceler do Reich dos mil anos…
A Constituição de 1976 daria legitimação ao que saíra de um “putsch” castrense tornado revolução, e cumpriria o desígnio de todas as Leis Fundamentais, a de impor uma nova «ordem social estabelecida», travando, não sem sobressaltos, o que havia mudar. Aos novos donos dos interesses apeados juntaram-se, regressados, muitos dos que retomaram o que lhes tinha sido tirado e todos irmanados no bloco central de interesses.»
(...)

O Direito que existe mas não se vê




Cito este Domingo o artigo 9º da Constituição japonesa, que abaixo transcrevo, por várias razões.
Primeiro, porque aquele País do Sol Nascente é um laboratório jurídico interessantíssimo: tem um Código Civil, encomendado a um francês [Gustave-Emil Boissonade, ver texto do seu projecto aqui] que o construiu segundo o modelo napoleónico, leis comerciais de inspiração alemã, minutadas pelo prussiano Hermann Roesler [ver aqui], cujo contributo foi decisivo para o ordenamento jurídico autoritário da dinastia Meiji [ver aqui], e, enfim um sistema jurídico-penal de inspiração americana, baseado na lógica adversarial. [sobre tudo isto ler extensamente aqui]
O que é interessante e razão deste texto é o declarado pacifismo, proclamado pelo artigo 9º da Constituição japonesa, a qual foi imposta pela potência ocupante, no estretror da Segunda Guerra, a mesma que cometeu o crime contra a Humanidade que foi o lançamento vingativo de duas bombas atómicas, em Hiroshima e Nagasaki: os Estados Unidos da América
Tudo mostra quanto o Direito é, quantas vezes, uma retórica feita aparente norma. Tudo evidencia quanto o Direito é a lei dos mais fortes.
Mas o que ainda há para dizer é a tentativa de alterar este estado de coisas. Ante um sistema constitucional assente no carácter rígido da Lei Fundamental, o Governo nipónico tenta que, por interpretação, esta proibição seja torneada, como não prejudicando o direito de autodefesa, previsto no artigo 51º da Carta das Nações Unidas. Interpretação que tem se limitar ao conceito em si, sem que extravase para o que muitos gostariam que se tornasse o âmbito de extensão da norma, o de "autodefesa colectiva", porque aí já se estaria em território proibido. 
Dispõe aquele artigo [ver aqui]: «Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou colectiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer momento, a acção que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais.»
Em suma, a vingar esta interpretação constitucional, mesmo na forma consensual, tudo ficando como está no que se lê, tudo mudaria no que sucederá ou poderá suceder.
Eis o Direito, surpreendido na sua ductibilidade, essa perigosa forma de ele ser do acto o instrumento.
Em homenagem ao espírito daquele estranho Povo, fica o facto de, mau grado serem estrangeiras as leis essenciais que o governam e impostas mesmo algumas pela força dos vencedores, o respeito pela sua perdurabilidade permanece como uma segunda pele. Por isso o site onde colhi a informação que deu azo a este escrito, dedicado ao Direito Janponês, se chama "O Direito que existe mas não se vê" [ver aqui], o que, é a poética feita modo de ser normativo.


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«Art. 9

1 - O povo japonês, aspirando sincermanete à paz entre as Nações, fundada na Justiça e na ordem, renuncia para sempre à guerra enquanto direito soberano do Estado e à a ameaça do uso da força militar enquanto meio para resolver as controvérsias internacionais

2 – Para alcançar o objectivo do número precedente, não serão mantidas forças militares terrestres, marítimas ou aéras, ou outras forças militares. Não é reconhecido o direito do Estado de declarar guerra.»

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Já agora, por curiosidade apenas, o original:

第九条 日本国民は、正義と秩序を基調とする国際平和を誠実に希求し、国権の発動たる戦争と、武力による威嚇又は武力の行使は、国際紛争を解決する手段としては、永久にこれを放棄する。

二 前項の目的を達するため、陸海空軍その他の戦力は、これを保持しない。国の交戦権は、これを認めない。

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Fonte da imagem aqui

O peso da Lei


Sir William Rothestein pintou. O quadro chama-se "Carrrying the Law". No caso a Lei judaica. Da imagem fica o símbolo, a do quanto ela pesa para aqueles que verdadeiramente a servem, para os que a não sentem como uma leve folha de papel.

O objecto e o modo de pensar

É a reconstrução da máquina torturadora, inspirada no livto 'A Colónia Penal', de Franz Kafka. A diferença face ao real decorre de ser aqui um objecto não uma prática ou um modo de pensar.

Portugaliae Monumenta Iuridica


Cada regime político espelha-se nas suas leis, tentando que sejam elas a nova ordem. Surgiu-me a ideia, revisitando, em modesta escala, Alexandre Herculano e já direi porquê.
Aproveitando ter voz própria através de uma pequena editora a que meti ombros, publicarei, facsimilados da folha oficial, autorizado que fui pela Imprensa Nacional, antecedidas de breve texto puramente explicativo, as principais leis que marcaram os marcos miliários da nossa História colectiva.
Começo pelas do 25 de Abril, compilando os diplomas iniciais do desmantelamento do que sobejava do Estado Novo, já em «evolução na continuidade», e as que tentaram estabelecer um novo Estado e um novo País. Terminarei na Constituição de 1976 para, regredindo no tempo, editar o que foram os diplomas essenciais da Ditadura Militar de 1926 e do Estado Novo de 1933, continuando até ao tempo em que o «corporativismo» se transformara em  alegada «democracia orgânica», caindo com a Revolução dos Cravos.
Os tomos que se irão seguindo ao que conto trazer a lume ainda em Maio, passarão pela República nas suas várias facetas, o vintismo e tudo quanto se lhe seguiu, o pombalismo, enfim...
São leis apenas, dirão. Mas é nelas que se vê o que se quis como Futuro e se percebe o que sucedeu como Presente.
Serve a intenção como arquivo e como esboço de pedagogia. Os mais velhos começam a já não lembrar, os mais novos nunca ouviram falar. Pior: tantos vêem citar em segunda mão, à mercê das interpretações de quem calhou. Aqui iremos às fontes primárias.
A colecção chamar-se-à, e aí a inspiração do insigne historiador [ver porquê, aqui], Portugaliae Monumenta Iuridica

O Império dos Sentidos


O que são as emoções, o que é o crime? As primeiras são, na aparência, o vulcânico jorrante dos sentimentos, o segundo a categorização, igualmente aparente, da racionalidade humana.
Lisa Appignanesi escreveu e o jornal britânico The Guardian fez do livro a recensão. A ler aqui.
O campo é movediço porque as teorias sobre as patologias são volúveis e a consideração da emoção como causa do acto está sujeita a preconceitos. 
Mais depressa o sistema penal convive o frigido pacatoque animo da premeditação. Classicamente ensinava-se que o crime feminino era frio. O envenenamento era o método usual, até por uma razão psicológica, a de que admitia o arrependimento activo, isto é, o cessar a tempo, que é uma forma de perdoar.

Figuras do Judiciário, séculos XIX e XX


Para que os mais velhos não se esqueçam e os mais novos saibam. Em boa hora uma iniciativa conjunta da Associação Sindical dos Juízes Portugueses e do Supremo Tribunal de Justiça, reuniu palestrantes que falaram sobre figuras do judiciários dos séculos XIX e XX.

Contribui com uma comunicação sobre José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, de onde seria exonerado por razões políticas, advogado, jurisconsulto em vários ramos do Direito entre os quais sobretudo o processo civil. Foi Director da Gazeta da Relação de Lisboa, sucedendo a seu pai, ele também um notável jurista. Suspender-lhe-ia a publicação para não ter de a submeter à Censura, depois da polémica que suscitou ao publicar ali, em 1940, um artigo crítico à Concordata com a Santa Sé.

Sobre ele preparo um livro que aguardava a saída desta comunicação e algum tempo de permanência deste para que não se sobrepusesse o que foi um primeiro apontamento a um trabalho que procuro seja de maior fôlego. Tenho trabalho com os hiatos que os meus outros deveres permitem, incluindo no seu espólio, que a Biblioteca Nacional conserva. Em breve haverá notícias sobre essa minha tentativa de dar vida 

Prescrição criminal-conferência no CDL



A neuro-ciência criminal


Em vez de encarcerar delinquentes, ainda vale a pena ter esperança no contributo da neuro-ciência? O tema é teimosamente reiterado sem que se anule com resposta definitiva.
A palestra de Daniel Reisel merece o tempo que use a ouvi-la. O site fornece a transcrição para quem queira seguir pelo texto.  [subtítulos e transcrição em inglês; o vídeo leva alguns segundos a a carregar]
+ Daniel Reisel grew up in Norway but settled in the UK in 1995. He works as a hospital doctor and as a research fellow in epigenetics at University College London. He completed his PhD in Neuroscience in 2005, investigating how learning rewires the brain. Since then, his research has been concerned with the effect of life events on gene function. Daniel is currently training to become an accredited restorative justice facilitator with the UK Restorative Justice Council.

Convite

Trata-se da apresentação do livro, no qual me foi dada a honra de poder colaborar e que referi aqui. Terei o maior gosto em juntar-me aos que puderem estar: no Porto, dia 20, pelas 18.00.


Em "flagrante delito"


Houve tempos em que aqui houve Tribunal.
Em 1908 havia o largo, o quiosque, e este solitário passeante que, ante a canícula, se refrescava copiosamente. 
Joshua Benoliel surpreendeu-o em "flagrante de litro", espécie de justiça sumária destinada a despachar o processo da desidratação naquele ano em que, como diria o Eça, fazia um calor "de ananazes"!
Hoje nem sei o que há por ali. Talvez já nem "um copo de três!". 
No tempo de um outro ministro era para ser "Hotel de Charme". É como tudo na vida: o que tasca é em tasca se pode tornar, até terminar tudo atascado...

P. S. Aos que têm notado que eu não tenho aparecido por aqui digo: ando em obras de arrumação.

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Origem da foto [Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa]: aqui

A "democracia" da Justiça sumária....


Segundo o Código de Processo Penal de 1929, assinado por António de Oliveira Salazar e pelo Ministro da Justiça Mário de Figueiredo, em plena Ditadura Nacional, podiam ser julgados em processo sumário as transgressões e os crimes puníveis com prisão, desterro ou multa até seis meses, ou infracções a isso inferiores quando cometidas em flagrante delito (artigos 67º e 556º a 561º). Veja-se o texto integral aqui.

Com o Código de Processo Penal de 1987 do Estado de Direito Democrático, na sua versão inicial, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17.02, o processo sumário passou a ser possível de aplicar a crimes puníveis com pena de prisão de máximo até três anos (artigo 381º). Ver o texto aqui.

Em 2007, com a nova redacção conferida ao citado artigo pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o processo penal passou a ser aplicável a crimes passíveis de prisão até cinco anos. Ver o texto aqui.

Com a redacção de 2012, decorrente da Lei n.º 20/2012, de 20.02, por proposta do Governo de Passos Coelho, sendo Ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz, o processo sumário passou a ser aplicável a todos os tipos de crimes, incluindo homicídios, pois só ficaram excluídos «aos detidos em flagrante delito por crime a que corresponda a alínea m) do artigo 1.º ou por crime previsto no título iii e no capítulo i do título v do livro ii do Código Penal e na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário». Ver o texto aqui.

Eis como estamos em matéria de protecção de direitos sob a bandeira do Estado de Direito Democrático. Não fosse o Tribunal Constitucional ter considerado «declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição» [texto integral aqui] e, entregues à concepção de Justiça dos nossos políticos era este impudor. 

P. S. Na sua declaração de voto, no sentido de que não existia inconstitucionalidade alguma Maria João Antunes afirma que em relação àquilo que de mais grave poderia ser julgado em processo sumário, porque punível com prisão superior a oito anos, a lei permite que o próprio Ministério Público em nome da defesa e o arguido possam requerer o júri. Que liberalidade e que lógica não é?

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Origem da foto: aqui.

O circuito das leis


Talvez o humor ajude. Rir é, dizia o Eça de Queiroz, uma opinião constitucional. Voilà!

O Direito Colonial


Ainda fui dos que estudei Direito Ultramarino, cadeira a cargo do Professor André Gonçalves Pereira. Por essa altura os velhos diplomas que haviam atingido o seu apogeu com a Carta Orgânica do Império Colonial Português estavam em revisão. 
Adriano Moreira, ministro do Ultramar do Governo de Oliveira Salazar havia ensaiado a possível alteração das estruturas e das mentalidades. E legislava sobre o «trabalho indígena». Um dia escreverei sobre isso.
No início do meu estágio ainda minutei para o meu patrono recursos contenciosos para o Conselho Ultramarino, o Supremo Tribunal Administrativo do Ultramar.
O Direito Colonial ficou como uma memória passada, hoje um facto histórico.
Foi, por isso, com um renovar de memória que dei conta deste livro. Não fala de nós, sim dos espanhóis, nisso se esgotando a Ibéria vista do lando americano.
Pode ser adquirido através daqui.
É uma colectânea de estudos, editada pela Universidade Vanderbilt, coordenados por Santa Arias, professor associado na Universidade do Kansas, nos EUA, e Raul Marrero-Fente, da Universidade do Minnesota.

Copio do índice do que se trata:

Politics
-» Jose de Acosta: Colonial Regimes for a Globalized Christian World
Ivonne del Valle

-» Conquistador Counterpoint: Intimate Enmity in the Writings of Bernardo de Vargas 
MachucaKris Lane

-» Voices of the Altepetl: Nahua Epistemologies and Resistance in the Anales de Juan Bautista
Ezekiel Stear

-» Performances of Indigenous Authority in Postconquest Tlaxcalan Annals: Don Juan Buenaventura Zapata y Mendoza's Historia cronologica de la noble ciudad de Tlaxcala
Kelly S. McDonough

Religion

-» Translating the "Doctrine of Discovery": Spain, England, and Native American Religions
Ralph Bauer

-» Narrating Conversion: Idolatry, the Sacred, and the Ambivalences of Christian Evangelization in Colonial Peru
Laura Leon Llerena

-» Old Enemies, New Contexts: Early Modern Spanish (Re)-Writing of Islam in the Philippines
Ana M. Rodríguez-Rodríguez

-» Art That Pushes and Pulls: Visualizing Religion and Law in the Early Colonial Provinces of Toluca
Delia A. Cosentino

Law

-» The Rhetoric of War and Justice in the Conquest of the Americas: Ethnography, Law, and Humanism in Juan Gines de Sepulveda and Bartolome de Las Casas
David M. Solodkow

-» Human Sacrifice, Conquest, and the Law: Cultural Interpretation and Colonial Sovereignty in New Spain
Cristian Roa

-» Legal Pluralism and the "India Pura" in New Spain: The School of Guadalupe and the Convent of the Company of Mary
Monica Diaz

-» Our Lady of Anarchy: Iconography as Law on the Frontiers of the Spanish Empire
John D. (Jody) Blanco

Afterword

-» Epilogue: Teleiopoesis at the Crossroads of the Colonial/Postcolonial Divide
Jose Rabasa

A Luta pelo Direito



Foi ao escrever um artigo, já atrasado, para a revista "Julgar" [ver aqui] que de novo ressurgiu, vinda do campo de batalha onde se trava o combate pela Justiça, a noção que é a lição de uma vida. E escrevi: «Para compreender o Direito é preciso surpreende-lo na política, nas ideologias, nas crenças e nos interesses, nos a priori dos Estados e das pessoas. Ele não é uma produção liofilizada, bacteriologicamente pura, nem uma silogística alcançável “more geometrico” como mera operação mental. É também argumentação e legitimação do conveniente, evasão à responsabilidade, triunfo de idiossincrasias. Trata-se da “luta pelo Direito”, como magistralmente o surpreendeu Rudolph Jhering»


«[...] O direito é o trabalho sem tréguas, e não somente o trabalho dos poderes públicos, mas sim o de todo o povo. Se passarmos um golpe de vista em toda a sua história, esta nos apresenta nada menos que o espectáculo de uma nação inteira despendendo ininterruptamente para defender o seu direito penosos esforços, como os que ela emprega para o desenvolvimento de sua actividade na esfera da produção económica e intelectual.
Todo aquele que tem em si a obrigação de manter o seu direito, participa neste trabalho nacional e contribui na medida de suas forças para a realização do direito sobre a terra.
Sem dúvida, este dever não se impõe a todos na mesma proporção. Milhares de homens passam sua vida de modo feliz e sem luta, dentro dos limites fixados pelo direito, e, se lhes fôssemos dizer, falando-lhes da luta pelo direito, — que o direito é a luta, não nos compreenderiam, porque o direito foi sempre para eles o reino da paz e da ordem.
Sob o ponto de vista de sua experiência pessoal, têm toda a razão; procedem como todos os que, tendo herdado ou tendo conseguido sem esforço o fruto do trabalho dos outros, negam esta proposição: — a propriedade é o trabalho.
O motivo desta ilusão está nos dois sentidos em que encaramos a propriedade e o direito, podendo decompor-se subjectivamente de tal modo que o gozo e a paz estejam de um lado, a luta e o trabalho noutro. Se interpelássemos aqueles que o encaram sob este último aspecto, certamente nos dariam uma resposta em contrário.
O direito e a propriedade são semelhantes à cabeça de Jano, têm duas caras; uns não podem ver senão um dos lados, outros só podem ver o outro, daí resultando o diferente juízo que formam do assunto.
O que temos dito do direito, aplica-se não somente aos indivíduos, mas sim às gerações inteiras. A paz é a vida de umas, a guerra a de outras, e os povos como os indivíduos estão, em consequência desse modo de ser subjectivo, expostos ao mesmo erro; e, embalados em um belo sonho de uma longa paz, cremos na paz perpétua, até o dia em que troe o primeiro tiro de canhão, vindo dissipar nossas esperanças, ocasionando com tal mudança o aparecimento duma geração, posterior à que vivera em deliciosa paz, que se agitará em constantes guerras, não desfrutando um só dia sem tremendas lutas e rudes trabalhos [...]». 
Rudolph Jhering dixit em 1872. O texto [cuja grafia adaptei] pode ler-se aqui, em tradução brasileira, aqui ou aqui (facsimile) no original.

Participação económica em negócio: um crime de fronteira



É o segundo número de uma colecção de monografias dedicadas aos crimes com recorte económico. Estuda o de participação económica em negócio, sobre o qual escasseia a literatura e a jurisprudência. Nele consigno opiniões seguramente controversas. Mas tento vencer perplexidades que me assaltaram ante uma configuração legal que não é fácil de entender menos ainda será de aplicar. 
Acaba de sair. Seguir-se-à em breve um terceiro dedicado ao crime de burla.

A reforma penal de 2013 em registo cirúrgico...




Resulta de um colóquio organizado em 2013 pela Faculdade de Direito do Porto, em parceria com a Associação Jurídica do Porto sobre a reforma do Código Penal e do Código de Processo Penal efectivada em 2013 pelas Leis n.ºs 19 e 30, ambas de 21 de Fevereiro. Acaba de ser publicado. Um trabalho de mérito muito devedor ao André Lamas Leite.

Eis o conteúdo:

-» Cândido da Agra, A investigação científica, a acção e as politicas criminais numa relação dialética

-» André Lamas Leite, Penas acessórias, questões de género, de violência doméstica e o tratamento jurídico-criminal do "shoplifter"

-» António Gama Ferreira Ramos, As alterações de 2013 ao Código Penal, suspensão da prescrição do procedimento criminal, descriminalização e neo-criminalização

-» Paulo Dá Mesquita, A utilizabilidade probatória no julgamento das declarações processuais anteriores do arguido e a revisão de 2013 do Código de Processo Penal

-» Manuel da Costa Andrade, O regime do "conhecimento de investigação" em processo penal, reflexões a partir das escutas telefónicas

-» José António Barreiros, Prova pericial, uma oportunidade perdida

-» João Conde Correia, Os processos sumários e o carácter simbólico de uma justiça dita imediata

-» Sandra Oliveira e Silva, As alterações em matéria de recursos, em especial a restricção de acesso à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça

Vagueando ao Domingo





Por ser Domingo, que tal uma deambulação por estes campos de nomadismo jurídico, o insólito território de um Direito sem Estado? [quem quiser saber mais, leia aqui, em francês]?
É que há mais mundos debaixo do Céu do que imaginamos soterrados nas catacumbas da onerosa profissão.

A César o que é de César...



«4. Nos termos do art. 10.º da Concordata de 2004, “A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil”, as quais podem assumir a natureza de Associações Públicas ou Privadas de Fieis.
«5. Estando em causa a (abstenção da) prática de actos de representação da segunda requerente – em violação de um Decreto Bispal de nomeação de uma comissão, à luz do Cân. 318 do Código de Direito Canónino – como sejam os de conferir mandatos, administrar bens, ou onerar bens de uma associação pública de fiéis, como é o caso da Pia União, a qual prossegue estatutariamente fins religiosos, como a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e normas da Igreja e a evangelização dos Pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia, e em que se prova que os respectivos membros sempre observaram e cumpriram, na sua actividade, as normas do Direito Canónico, os tribunais judiciais portugueses não podem interferir na apreciação daqueles actos, quando praticados em conformidade com o Direito Canónico, sendo, por isso, internacionalmente e em razão da matéria incompetentes (cfr.arts.65 nº1e 66 do CPC).», estatuiu o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 10 de Dezembro de 2013 [texto integral aqui].

Na fundamentação do decidido, que cita em seu apoio abundante literatura e jurisprudência, pode ler-se:


«Relativamente à separação de poderes entre, de um lado, as Igrejas e outras comunidades religiosas, e, do outro, o Estado, uns e outros são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto, tal como definido no art. 41.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) segundo o qual «A Igrejas e outras comunidades Religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto».
A respeito da separação de poderes entre a Igreja e o Estado, como se refere no acórdão deste Supremo de 26-04-2007, proferido nos autos de revista n.º 723/07 (Rel. João Bernardo), disponível in www.itij.pt «Está aqui uma emanação, em duas vertentes, da inviolabilidade de consciência, de religião e de culto: A primeira consiste na separação entre as igrejas e outras comunidades religiosas (princípio da não confessionalidade do Estado), por um lado, e o Estado por outro; A segunda, concatenada com a primeira, cifra-se na liberdade de organização e no exercício das funções e do culto que assistem àquelas (princípio de liberdade de organização e independência das igrejas e confissões religiosas).
A propósito deste regime de liberdade e seus limites, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, anotação a este artigo) acentuam a “não ingerência do Estado na organização das igrejas e no exercício das suas funções de culto”, com ressalva, que aqui não nos interessa e Jorge Miranda vai mesmo mais longe, admitindo apenas os limites resultantes do artigo 29.º, n.º 2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (A Concordata e a Ordem Constitucional Portuguesa, in A Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, ed. da Almedina, 79)».
O art. 41.º da CRP não permite definir qual o âmbito de competência da Igreja e do Estado mas, como referem Vital Moreira e Gomes Canotilho, “A separação entre o Estado e as igrejas e confissões religiosas não impede, em termos absolutos, a celebração de concordatas ou convenções entre um e outras, para regular as respectivas relações institucionais e concretizar alguma especificidade que possa haver lugar” (ob. e loc. cit.).
E como tal, no desenvolvimento do princípio de liberdade de organização e independência das igrejas e confissões, a definição de competências veio a ser plasmada nas Concordatas celebradas entre a Santa Sé e a República Portuguesa, em 7 de Maio de 1940 e 18 de Maio de 2004 (doravante designadas de Concordata de 1940 e de Concordata de 2004, respectivamente).
As Concordatas que Portugal assinou com a Santa Sé estão compreendidas no conceito de Convenção Internacional a que alude o art. 8.º da nossa Lei Fundamental e vigoram na ordem interna com primazia na escala hierárquica sobre o direito interno anterior e posterior – neste sentido o Acórdão de 26-04-2007 (já citado) e, conforme nele mencionados, os Acórdãos n.o 118/85, 409/87 e 218/88, no BMJ n.º 360, 501, 370, 175 e 380, 183, respectivamente.
Como se adianta no mencionado acórdão de 26-04-2007, «De acordo com os artigos 3.º e 4.º da Concordata de 1940 a Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas de Direito Canónico e constituir dessa forma associações ou organizações que se administram livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica.
(…) Se, porém, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários ou de encargos que onerem heranças, legados ou doações, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para essas associações ou corporações».
Por sua vez, a Concordata de 2004 também estabelece que «As pessoas jurídicas canónicas, reconhecidas nos termos do artigo 10.º, que, além de fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade, desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português».
Ou seja, é o próprio regime concordatário, que, olhado em primazia, conduz à aplicação do direito interno português no que concerne à actividade assistencial das instituições. Não é este que prevalece relativamente àquele ou que se coloca a par dele, mas aquele que determina, em plano superior, a aplicação deste.
Só que, no próprio artigo 4.º da Concordata de 1940 precisa-se que o regime instituído para o direito português para estas associações se tornará efectivo através do Ordinário competente.
Cremos estar aqui uma estatuição relativa à incompetência dos tribunais civis para impor o próprio «regime instituído pelo direito português». Não quiseram os outorgantes o normal, ou seja, que fossem os tribunais civis portugueses a velarem pelo cumprimento do direito interno nacional.
E, lembremo-nos sempre, estamos em plano hierarquicamente superior ao das normas de direito interno português.(...)
Esta nossa construção complica-se, no entanto, com a entrada em vigor, em 18.12.2004, da Concordata actualmente vigente.
Nela se continua, para além do regime de liberdade de organização em geral, o regime de livre constituição, modificação e extinção de pessoas jurídicas canónicas, com reconhecimento da personalidade jurídica por parte do Estado Português.
Tendo-se também atentado nas pessoas jurídicas canónicas que, além dos fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade. Estatuiu-se, em consonância com o que vinha da anterior concordata, que desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português e gozam dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas colectivas privadas com fins da mesma natureza.
Mas existe uma diferença.
Desapareceu a referência do artigo 4.º da Concordata de 1940 quanto à imposição do direito português pelo Ordinário competente. Pelo contrário, ficou estatuído, no artigo 11.º, que, regendo-se as pessoas jurídicas canónicas pelo direito canónico e pelo direito português, cada um é aplicado pelas respectivas autoridades.
Está em causa a violação do direito canónico: será chamada a intervir a autoridade da Igreja. Está em causa a violação do direito interno português: recorre-se aos tribunais civis». 
Neste sentido cfr. também o Ac deste Supremo de 17.02.2009 ( Rel. Cons. Lopes do Rego) proferido nos autos de Revista nº 743/08 .0TBABT-A. E1.S1 ,acessível via www.itij.pt o qual concluiu que « Face ao preceituado nos arts.10º,11º e 12º da Concordata de 2004,não se situa no âmbito da jurisdição dos tribunais portugueses a dirimição de litígios situados na vida interna de pessoas jurídicas canónicas , regidas pelo Direito Canónico, aplicado pelos órgãos e autoridades do foro canónico que exerçam uma função de vigilância e fiscalização sobre as mesmas.» 
Em síntese, no que importa à separação de poderes entre o Estado e as Igrejas Religiosas, perante a Concordata de 2004, o critério de distinção faz-se de acordo com esta destrinça: se está em causa a violação do direito canónico, será chamada a intervir a autoridade da Igreja; se está em causa a violação do direito interno português, recorre-se aos tribunais civis.
No seguimento do critério apontado pelo citado acórdão, que acolhemos, no que respeita à separação de poderes entre o Estado e as Igrejas, em face do que supra se expôs, cumpre, antes de mais, aquilatar se tais regras decorrem da aplicação do direito canónico ou do direito interno português.»

Corrupção e crimes conexos: uma análise sociológica


Interessante, documentada, discutível que seja. Trata-se da tese de mestrado intitulada A Corrupção Participada na Administração Local em Portugal (2004-2008), da autoria de Inês Glória Simões Lima, apresentada em 2011 no ICS da Universidade de Lisboa. Pode ser lida aqui.

Cito o resumo:

«Um estudo recente sobre a corrupção participada e criminalidade conexa em Portugal mostrou, no que toca aos Ministérios e Serviços com maior número de arguidos, que a Administração Local é o principal foco de corrupção participada entre os anos 2004-2008. Construído através dos dados do Projecto “O Estudo da Corrupção em Portugal: A realidade judiciária – Um enfoque sociológico”, baseado numa amostra composta pelos processos instaurados entre o ano de 2004 e 2008 por crime de corrupção e infracções conexas (N=345) e numa amostra dos arguidos constituídos no âmbito desses mesmos processos-crime (N=352), o presente estudo centra-se na análise da interdependência entre os múltiplos indicadores de caracterização sociológica dos agentes corruptos e dos processos-crime instaurados e pretende averiguar que configurações são definidas no contexto da governação local. Este trabalho procura ainda reflectir acerca das causas que condicionam a ocorrência e persistência da corrupção na Administração local e as suas implicações no capital social e na qualidade e desempenho da governação local democrática.»

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Fonte da foto aqui

Traduzir uma acusação? Para quê?


O Acórdão trata de vários assuntos, desde o mandado de detenção europeu à responsabilidade civil do Estado pela função jurisdicional, incluindo a contumácia, etc. 
Mas tem este momento que não pode deixar de se publicar: 


«V - A notificação da acusação deduzida contra um arguido que desconhece a língua portuguesa não carece de tradução escrita por intérprete nomeado, não ficando lesadas, por esse facto, as suas garantias de defesa, estabelecidas nos arts. 32.º, n.º 1, da CRP, e 6.º, n.º 3, al. a), da CEDH.». Eis o que definiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Dezembro de 2013 [texto integral aqui].

Naturalmente, dirão muitos em aplauso! Para quê gastar dinheiro e perder tempo? Claro que a notificada [uma alemã que residia em Munique e ali foi notificada por via postal] não percebia nada do que lhe foi comunicado, no caso uma acusação em processo penal e um termo de identidade de residência, tudo ao abrigo do expedito referido MDE, e está em causa a sua responsabilização criminal. Vivia no estrangeiro! Além disso estamos ante uma Europa dos cidadãos construída para que o pilar da segurança tivesse tivesse como sustentáculo a protecção dos direitos humanos fundamentais. Uma Europa cuja burocracia gasta rios de dinheiro em traduções para que os seus documentos e intervenções sejam lidos e ouvidos nos areópagos, gabinetes e secretarias onde se trata do nosso destino comum. Mas que interessa isso quando se trata de um vulgar de Lineu embrulhado em responsabilidades criminais? Teve intérprete quando foi interrogada em Portugal, não teve? Basta. Quanto ao resto fica-se tudo pelo campo das nulidades sanáveis essa forma de em cinco dias estarem resolvidos problemas destes.

É que, como ali se escreve, a legitimar a situação: 

«Abre-se aqui um parêntesis para abordar uma sub-questão que se relaciona com esta: a circunstância da A. ser uma cidadã estrangeira, tendo a acusação sido remetida para a morada constante do TIR, desacompanhada de qualquer tradução.
Nos termos do n.º 4, do art. 20.º da Constituição, na redacção da lei Constitucional n.º 1/97, “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão [...] mediante processo equitativo”. Por outro lado, o n.º 1, do art. 32.º da CRP, prescreve que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa”.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, a relação existente entre estas duas normas constitucionais é evidente: “O significado básico da exigência de um processo equitativo é o da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva. Uma densificação do processo justo ou equitativo é feita pela própria Constituição em sede de processo penal (cf. art. 32.º) — garantias de defesa, presunção de inocência, julgamento em prazo curto compatível com as garantias de defesa, direito à escolha de defensor e à assistência de advogado, reserva de juiz quanto à instrução do processo, observância do princípio do contraditório, direito de intervenção no processo, etc. (…)”. E os mesmos Autores acrescentam mais à frente: “Em “todas as garantias de defesa” engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (…)”.[26]
Decorre do art. 92.º, n.º 2, do CPP que: “Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada”.
Dispõe o art. 6.º, n.º 3, al. a), da CEDH: “O acusado tem, no mínimo, os seguintes direitos: a) Ser informado no mais curto espaço, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada”. A este preceito importa aproximar o que consta da al. e) do mesmo art. 6.º, n.º 3, que reconhece ao acusado o direito de “fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo”.
A preterição da obrigação de nomeação de intérprete a toda a pessoa que não domine a língua portuguesa assume contornos especiais quando essa pessoa é o próprio arguido: tratando-se o arguido de um cidadão estrangeiro que não conheça ou domine a língua portuguesa deve ser-lhe nomeado intérprete para qualquer acto processual em que o mesmo esteja presente, designadamente quando lhe são comunicados os seus direitos.
No caso de falta de nomeação de intérprete, a lei comina essa desconformidade como sendo uma nulidade sanável, que deverá ser suscitada pelo interessado e no caso do mesmo estar presente no próprio acto antes deste estar encerrado, sob pena da mesma ficar sanada, como decorre da conjugação do disposto no arts. 120.º, n.ºs 2, al. c), e 3, al. a), e 121.º, n.º 1, este por interpretação extensiva, do CPP.
No processo em que a recorrente era arguida, é ostensivo que aquela formalidade foi cumprida, conforme se alcança do auto de 1.º interrogatório judicial de arguido detido do qual resulta que lhe foi nomeada uma intérprete, sendo certo que nessa mesma ocasião foi determinada a prestação de TIR – cf. fls. 16 a 20.
A prestação de TIR, nos termos do art. 196.º do CPP, regula um específico processo comunicacional entre arguido e tribunal, cabendo ao primeiro indicar uma residência para as notificações e o dever de comunicar a subsequente mudança de residência, ficando o mesmo em auto, descrevendo-se aí as operações praticadas, fazendo este fé em juízo – cf. art. 99.º, n.ºs 1, e 3, als. a), c) e d), do CPP.
Trata-se de um acto pessoal do arguido, representando uma declaração vinculada, que possibilita uma via segura de comunicação dos actos do processo, que gera a eficácia nas notificações efectuadas pelo tribunal para a residência indicada, salvo casos fortuitos ou de força maior.
Tal como acentuado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 378/03, de 15-07, 545/06, de 27-09, e 111/07, de 15-02[27], no estatuto jurídico do arguido, tomando como referência os seus deveres específicos e complementares, sobressai o seu dever geral de diligência, não na perspectiva de um dever de colaboração, mas antes de dar funcionalidade àquele seu estatuto, que não é compatível com um posicionamento de alheamento processual e muito menos de violação dos seus deveres processuais – há que ter em conta, por um lado, os deveres funcionais e deontológicos que impendem sobre o defensor do arguido, e, por outro lado, a indiferença revelada pelo arguido, que, ciente da imputação de um facto punível, se desinteressa de obter o oportuno conhecimento da sorte do processo.[28]
Contrariamente ao referido pela recorrente, o Tribunal Constitucional já decidiu, no Acórdão n.º 547/98, de 23-09, que o art. 92.º, n.º 2, do CPP, em conjugação com o disposto no art. 111.º, n.º 1, al. c), do mesmo Código, interpretado no sentido de que a notificação da acusação deduzida contra o arguido que desconhece a língua portuguesa não carece de tradução escrita pelo intérprete nomeado, não lesa as suas garantias de defesa, constitucionalmente estabelecidas nos arts. 32.º, n.º 1, e 6.º, n.º 3, al. a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.[29]
Aliás, o mesmo entendimento foi sufragado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) no Caso Kamasinski (Acórdão de 19-12-89, série A, n.º 168), onde, entre outras questões, se suscitava a de saber se a Convenção obrigava, na comunicação da acusação ao arguido que não dominasse a língua usada no processo, à tradução escrita da peça acusatória. Muito embora chamando a atenção para o extremo cuidado de que deve revestir-se a notificação da acusação, o TEDH ali expressamente reconheceu que a Convenção não exige a tradução escrita da peça acusatória.
Nada, pois, de substancialmente diverso do que o art. 32.º, n.º 1, da CRP, postula como garantia de defesa do arguido, a que se conforma o preceituado nos citados artigos do CPP.[30]
De igual modo, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2010, de 12-01-2010, escreveu-se “Também com relevância para o caso em apreço, importa ter presente que o artigo 6.º, n.º 3, alíneas c) e d), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, dispõe que o acusado tem inter alia o direito de defender-se a si próprio e de interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação.
Segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, os referidos direitos só podem ser exercidos plenamente na própria audiência de julgamento, para a qual o acusado tem de ser adequadamente notificado, sem prejuízo da possibilidade de ulterior renúncia ao direito de intervir na audiência (Decisão do caso Colozza v. Italy, de 12 de Fevereiro de 1985, Decisão do caso T. v. Italy, de 12 de Outubro de 1992, Decisão do caso Somogyi. v. Italy, de 18 de Maio de 2004, Decisão do caso Sejdovic. v. Italy, de 10 de Novembro de 2004, Decisão do caso R. R. v. Italy, de 9 de Junho de 2006, disponíveis em www.echr.coe.int).
Nestes arestos, o TEHD, quanto à forma adoptada para efectuar a notificação do acusado para a audiência de julgamento, entendeu que os Estados Contratantes gozam de uma ampla discricionariedade na escolha dos meios utilizados para realizar a referida notificação, desde que seja garantida a efectividade do conhecimento pelo acusado através dos procedimentos legalmente previstos, não relevando, assim, um conhecimento presumido, vago ou informal”.[31]
Não se verifica, assim, que tenha ocorrido violação dos arts. 92.º do CPP, 6.º, n.ºs 1 e 3, al. a) da CEDH, 20.º, n.º 4, e 32.º da CRP, art. 7.º da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal aberta à assinatura dos Estados membros do Conselho da Europa em 20-04-1959, aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 39/94, de 14-07[32], e dos arts. 15.º e 16.º do Segundo Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, aberto à assinatura em Estrasburgo em 08-11-2001, aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 18/2006, de 07-12-2005[33], e art. 52.º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14-06-1985[34].»+

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[26] Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição, 2007, pp. 415 e 516.
[27] Acessíveis em texto integral em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
[28] Por essa razão é que o incumprimento de tais deveres, por parte do arguido, legitima que este passe a estar representado pelo seu defensor em todos os actos processuais a que deva ou tenha o direito de estar presente e a realização dos mesmos na sua ausência, de acordo com o estatuído no art. 196.º, n.º 3, al. d), do CPP, como seja a audiência de julgamento, mas neste caso nos termos do art. 333.º, daquele Código.
[29] Publicado no Diário da República II Série, de 13-03-1999.
[30] Em sentido análogo, cf. o Acórdão do STJ, de 03-08-2012, Proc. n.º 449/12.6TBMLD, proferido numa providência de habeas corpus.
[31] Publicado no Diário da República II Série, de 22-02-2010.
[32] O art. 7.º da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, intitulado “Entrega de documentos relativos a actos processuais e de decisões judiciárias - Comparência de testemunhas, peritos e arguidos”, estabelece que:
“1. A Parte requerida procede à entrega dos documentos relativos a actos processuais e a decisões judiciárias que lhe forem enviados, para esse fim, pela Parte requerente. Essa entrega pode fazer-se por simples transmissão do acto ou da decisão ao destinatário. Se a Parte requerente o solicitar expressamente, a Parte requerida efectua a entrega por uma das formas prescritas na sua lei para comunicações análogas, ou por forma especial compatível com essa lei.
2 - A prova da entrega faz-se por meio de recibo datado e assinado pelo destinatário, ou por declaração da Parte requerida verificando o facto, a forma e a data da entrega. Qualquer destes documentos é, de imediato, transmitido à Parte requerente. A pedido desta, a Parte requerida especifica se a entrega foi efectuada em conformidade com a sua lei. Se a entrega não puder efectuar-se, a Parte requerida informa imediatamente a Parte requerente das razões que a impediram.
3 - Qualquer Parte Contratante pode, no momento da assinatura da presente Convenção ou do depósito do respectivo instrumento de ratificação ou adesão, mediante declaração dirigida ao Secretário-Geral do Conselho da Europa, solicitar que a notificação para comparência relativa a um arguido que se encontre no seu território seja enviada às suas autoridades num determinado prazo anterior à data fixada para a mesma comparência. Este prazo é especificado na referida declaração e não pode ser superior a 50 dias. Tem-se em conta este prazo para a fixação da data de comparência e para o envio do pedido de notificação”.

[33] É o seguinte o teor dos arts. 15.º e 16.º do Segundo Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal:

“Artigo 15.º - Língua dos actos processuais e das decisões judiciárias a transmitir
1 - As disposições do presente artigo aplicar-se-ão a qualquer pedido de entrega de documento feito nos termos do artigo 7.º da Convenção ou do artigo 3.º do seu Protocolo Adicional.
2 - Os documentos e as decisões judiciárias serão sempre transmitidos na língua ou nas línguas em que foram produzidos.
3 - Não obstante o disposto no artigo 16.º da Convenção, se a autoridade que está na origem dos documentos sabe ou tem razões para considerar que o destinatário apenas conhece outra língua, os documentos, ou pelo menos as passagens mais importantes dos mesmos, devem ser acompanhados de uma tradução nessa outra língua.
4 - Não obstante o disposto no artigo 16.º da Convenção, os actos processuais e as decisões judiciárias destinados às autoridades da Parte requerida devem ser acompanhados de uma descrição sumária do seu conteúdo traduzida na língua, ou numa das línguas, da Parte requerida”.
“Artigo 16.º - Entrega via postal
1 - As autoridades judiciárias competentes de qualquer Parte podem enviar directamente por via postal documentos e decisões judiciárias às pessoas que se encontrem no território de qualquer outra Parte.
2 - Os documentos relativos a actos processuais e as decisões judiciárias serão acompanhados de uma nota indicando que o destinatário pode obter da autoridade identificada na nota informações relativas aos seus direitos e obrigações que digam respeito à entrega dos documentos. O disposto no n.º 3 do artigo 15.º do presente Protocolo aplica-se a esta nota.
3 - As disposições dos artigos 8.º, 9.º e 12.º da Convenção aplicam-se por analogia à entrega por via postal. 
4 - As disposições dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 15.º do presente Protocolo aplicam-se igualmente à entrega por via postal”.
[34] Revogado, a partir de 23-08-2005, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 2.º da Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 53/2001, de 16-10, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 63/2001, de 21-06.

Crimes militares: prescrição à americana



É a imunidade pelo agraciamento quanto a crimes militares «In 1955 the Supreme Court ruled that veterans of the U.S. armed forces could not be court-martialed for overseas crimes that were not detected until after they had left military service. Territorial limitations placed such acts beyond the jurisdiction of civilian courts, and there was no other American court in which they could be adjudicated. As a result, a jurisdictional gap emerged that for decades exempted former troops from prosecution for war crimes.» [...] «In 2000 Congress attempted to close the jurisdictional gap with passage of the Military Extraterritorial Jurisdiction Act. The effectiveness of that legislation is still in question, however, since it remains unclear how willing civilian American juries will be to convict veterans for conduct in foreign war zones.»

Patrick Hagopian, autor do livro em que a questão da criminalização dos actos de guerra praticados por tropas americanas no exterior, é analisada, é leitor de História e Estudos Americanos na Lancaster University. Sobre a sua pessoa leia-se aqui. Quanto ao livro, editado em Novembro de 2013, poder ler-se mais aqui.

O Military Extraterritorial Jurisdiction Act e o respectivo processo legislativo estão publicados aqui.