Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




França: nova reforma penal


Em França, a lei de 15 de Agosto deste ano, agora publicada no jornal oficial, do dia 17 [ver o texto aqui], aprovou, na sequência de esforços da ministra da Justiça, Christiane Taubira, a Reforma Penal, de há muito controversa.
Eis os principais eixos da reforma [para desenvolvimentos ler aqui e aqui] cujo propósito essencial é o combate à reincidência [que é o critério de sucesso de uma política criminal]:


-» Il supprime les automatismes qui entravent la liberté du juge et font obstacle à l'individualisation de la sanction. Sont ainsi supprimées les peines plancher et les révocations de plein droit du sursis simple ou du sursis avec mise à l'épreuve. La peine encourue par les récidivistes demeurera doublée par rapport à celle encourue par les nonrécidivistes et le juge conservera la possibilité de prononcer la révocation des sursis antérieurs par décision motivée si la situation le justifie. Il instaure ensuite la césure du procès pénal : le tribunal pourra, après s'être prononcé sur la culpabilité, ajourner la décision sur la condamnation afin qu'une enquête sur la personnalité et la situation sociale du condamné soit effectuée. Le tribunal pourra ainsi statuer sur les dommages et intérêts des victimes dès le prononcé de la culpabilité et obtenir les éléments nécessaires pour déterminer la sanction la plus adéquate. Dans l'attente de cette enquête, il pourra placer en détention le condamné si cela est nécessaire.

-» Crée une nouvelle peine, la contrainte pénale: cette peine pourra être prononcée lorsqu'un délit est puni d'une peine d'emprisonnement maximale inférieure ou égale à cinq ans. Cette nouvelle peine n'est pas définie par rapport à une durée d'emprisonnement de référence. Elle ne se substitue pas aux peines existantes mais s'y ajoute, de sorte que les juges disposeront d'un nouvel outil de répression. Cette peine vise à soumettre la personne condamnée, pendant une durée comprise entre six mois et cinq ans et qui est fixée par la juridiction, à des obligations ou interdictions justifiées par sa personnalité, les circonstances de l'infraction, ou la nécessité de protéger les intérêts de la ou des victimes ainsi qu'à des mesures d'assistance et de contrôle et à un suivi adapté à sa personnalité. Ces mesures, obligations et interdictions seront déterminées, après évaluation de la personnalité de la personne condamnée par le service pénitentiaire d'insertion et de probation, par le juge de l'application des peines. [ver desenvolvimentos aqui]. Les obligations peuvent être la réparation de dommages causés par l’infraction, l’obligation de suivre un enseignement ou une formation professionnelle, des traitements médicaux ou des soins, ou encore un stage de citoyenneté. Le condamné intègre un programme de suivi et de contrôle, visant à le responsabiliser et à interrompre sa trajectoire de délinquance. Le condamné pourra aussi se voir contraint de participer à des programmes individuels ou collectifs de prévention de la récidive. Les interdictions, elles aussi en relation directe avec l’infraction, peuvent par exemple empêcher la personne condamnée de conduire un véhicule, d’entrer en relation avec la victime, de fréquenter les débits de boisson, de se présenter dans certains lieux.

-» Instaure un nouveau dispositif pour éviter les sorties de prison sans contrôle ni suivi: lorsque les condamnés sortent de prison sans contrôle et sans suivi, le risque de récidive est nettement majoré. Afin d'éviter ce type de sorties, la réforme introduit le principe d'un examen systématique de la situation de tous les condamnés qui ont exécuté les 2/3 de leur peine. S'agissant des longues peines (supérieures à cinq ans), la situation des condamnés sera obligatoirement examinée par le juge ou le tribunal de l'application des peines qui statuera après débat contradictoire sur l'octroi éventuel d'une libération conditionnelle. S'agissant des courtes peines (inférieures à cinq ans), la situation des personnes condamnées sera examinée par le juge de l'application des peines en commission de l'application des peines

Pena de morte: proposta de restabelecimento em 1937


«Em 1937, o Deputado José Cabral [José Pereira dos Santos Cabral] apresentou o projeto de lei n.º 191, que estabelecia a pena de morte para crimes contra a segurança do Estado, alterando o n.º 11 do artigo da Constituição Política da República Portuguesa. Até 1976, o Código de Justiça Militar manteve a pena de morte. Atualmente, segundo o artigo 24.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, “em caso algum haverá pena de morte”.» [fonte: newsletter da Assembleia da República, aqui; ver mais aqui].

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«[...] José Pereira dos Santos Cabral [1885-1950], nasceu [16 de Setembro] em Travanca de Tavares (Mangualde). Formado em Direito por Coimbra [entra em 1906-07], foi advogado em Fornos de Algodres, director-geral dos Serviços Prisionais (1929), presidente da direcção da Associação do Patronato das Prisões, director geral dos Serviços Jurisdicionais de Menores, director dos Serviços de Acção Social e Política da Legião Portuguesa (medalha de oiro, por dedicação), administrador das Companhias Reunidas de Gás e Electricidade, da Companhia das Águas de Lisboa e presidente da assembleia-geral da Companhia de Seguros "Europeia". 
Monárquico [aparece como candidato eleito nas listas monárquicas, pelo círculo nº 18 de Gouveia nas eleições de 28 de Abril de 1918 e participa narevolta monárquica de 1919, tendo de exilar-se em Espanha] e católico, pertenceu ao grupo fascista formado em torno da revista Ordem Nova, à Liga Nacional do 28 de Maio e foi militante nacional-sindicalista [integrou e chefiou o grupo de Coimbra, fazendo parte do directório do Grande Conselho Nacional Sindicalista]. Mais tarde aderiu ao Salazarismo e à União Nacional [participa, mesmo, no I Congresso na União Nacional] rompendo (Março de 1934) com chefia dos “camisas azuis” de Rolão Preto e Alberto de Monsaraz[a cisão no movimento nacional-sindicalista e o “trânsito” para o Estado Novo foi acompanhada por outros, como Pedro Teotónio Pereira, Manuel Múrias,João Costa Leite (Lumbrales), Fernando Pires de Lima, Eusébio Tamagnini, Cabral Moncada, Ramiro Valadão, Supico Pinto, Dutra Faria,Luís Forjaz Trigueiros, Amaral Pyrrait, Castro Fernandes].
Curiosamente a proposta de dissolução do Movimento Nacional-Sindicalista(e a aceitação da liderança por Salazar) partiu do próprio José Cabral, na reunião do directório de Agosto de 1934» [fonte, aqui]
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Fonte da foto: Ephemera.

A presença do arguido: da sujeição à dispensa


Está publicada no último número da Jurismat, a revista jurídica do Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes. Não querendo prejudicar a leitura integral, deixo aqui o que é o tema de abertura dessa crónica sobre a presença do arguido no processo penal, o que ora é um estado de sujeição ora uma formalidade tida como dispensável, dependendo de razões que exigem que se convoquem os princípios para que tudo seja repensado. E foi esse o objectivo do que escrevi, o fomentar a discussão.

«Ao contrário do processo civil – de onde dimanaram historicamente alguns dos conceitos do primitivo processo penal – a presença do arguido na audiência de julgamento é um requisito lógico ante a natureza do sistema de justiça de que se trata e com ele compatível numa unidade indissociável.

Várias são as razões que podem ser alinhadas em tal sentido:

(1) Como forma única de o fazer sentir aquele acto processual como coisa sua, ante o qual ele haverá de interiorizar os termos em que decorre a tramitação, a produção da prova, afinal, o próprio ritual de julgamento, criando no seu mundo cognitivo a representação da Justiça em acção, e na sua emotividade, os sentimentos consequentes dos quais resultará a sua adesão ao sistema de valores do Estado de Direito;

Creio ser este o ponto nodal do sistema, tantas vezes esquecido por alguma da nossa prática judiciária: o julgamento não é uma formalidade em que a presença do arguido seja algo dispensável, sim momento formal essencial de um ritual que é – em caso de condenação – o primeiro passo para a interiorização pela sua pessoa dos valores basilares do Estado de Direito, das regras de vivência comunitária, em suma, o iniciar do caminho para a sua ressocialização.

(2) Como meio adestrado a garantir-lhe a percepção da prova que vai desfilar ante o pretório, aquela que o poderá incriminará e aquela de onde poderá resultar a sua exculpação, tudo lhe proporcionando a oportunidade de sobre isso formar um juízo e, em nome do contraditório, intervir, fazendo consignar a sua posição;

Como poderá alguém que não o próprio, cujos actos estão sujeitos a julgamento, percepcionar, até ao limite do pormenor relevante, o que é dito pelos coarguidos – tantas vezes propensos a exonerarem-se sobrecarregando no ausente – pelos ofendidos, pelas testemunhas, o que está nos documentos, o que é, em sede de prova pericial tida como verdade oponível autoritariamente ao próprio poder de julgar (veja-se o artigo 163º)?

Como poderá um defensor consciente sentir-se confortável ante factos ou alegados factos que atingem aquele que assiste sem ter consigo quem sobre eles dar-lhe o arrimo de uma versão, um comentário, uma sugestão quanto à forma de os contraditar?

Acaso não é a percepção de um tribunal prudente que, tendo diante de si o próprio arguido, pode fazer funcionar, nos seus rigorosos termos, a regra da imediação probatória, que não é um princípio atinente à forma do processo, mas meio instrumental essencial para se alcançar a íntima convicção, a qual é critério reitor da aferição da prova, consoante o artigo 127º do CPP?

Como, sem a presença do próprio, medir a reacção, até fisionómica, que a prova produz naquele contra quem ou a benefício de quem é produzida?

Como aferir, com empenhamento e profundidade, da personalidade de quem é julgado e assim a culpabilidade – que é o requisito ético de um Direito Penal da culpa – sem ter em julga-lo a personagem do qual se cura? E não se diga que se julgam apenas factos na sua dimensão objectiva, sim factos oriundos de seres humanos concretos que na sua possível prática se envolvem com a dimensão integral dos seus seres e que, julgados em ausência ou com rara presença, não são – diga-se – julgados sequer, sim avaliados apenas um corpo decapitado de ocorrências sem causa.

(3) Como local onde, por estar em causa o apuramento da sua responsabilidade, lhe é conferida a oportunidade formal (artigo 61º, n.º 1, b)) de a poder reconhecer, através de confissão (artigo 344º), de a negar, ou invocar circunstâncias mitigadoras da mesma, prestando declarações, querendo fazê-lo, pois que quanto aos factos a tal não é obrigado (artigos 343º, 61º, n.º 1, d)).

Estamos ante um sistema em que a confissão é acto pessoal, insusceptível de ser prestada mediante representação, mesmo nos casos em que, ausente, o arguido é representado pelo defensor (artigo 343º, n.º 4 e artigo 344º).

Trata-se daquela pessoalidade que não está coberta pela faceta da defesa em que esta, para além de garantir a assistência técnica ao arguido, opera como representação do mesmo (artigo 63º, n.º 1).

Toda uma progressiva aculturação que tem vindo a tomar conta do nosso subconsciente colectivo em matéria de justiça penal tem trazido, porém, a representação imagética do julgamento criminal com um figurino em que, tal como no processo civil, o arguido está ao lado do seu defensor, e não sentado na cena de julgamento, como o vértice para onde tudo naquele acto converge; assim é no que chega em doses maciças pela cinematografia, pela televisão, dos julgamentos norte-americanos.

De facto, a arquitectura das nossas salas de audiências para a justiça penal traduz bem essa triangulação de que o “banco dos réus” é o vértice, estando contidos no interior de tal corpo geométrico, na lateral, o Ministério Público, a representação forense dos ofendidos e os defensores, o funcionário que assiste ao acto e redige a acta e, presidindo, os juízes. É nesse espaço geométrico que tudo ocorre; o vértice determina o ponto de convergência, simbólica que denota o sentido e significado do que ali se passa.

A própria prova por declarações e testemunhal ocorre dentro dessa espaço e diante do arguido, se bem que nem sempre em termos de este poder visionar o rosto de quem é ouvido, construção que é apta a pôr em crise um requisito essencial da defesa, qual seja a plenitude da percepção da prova por aquele que sofre os efeitos da mesma.»

A unicidade do TCIC


Fui dos que afirmei publicamente que o Tribunal Central de Instrução Criminal deveria voltar, no seu funcionamento interno, ao modelo com que já operara, o de um juiz para a prática dos actos jurisdicionais em sede de inquérito e um outro para a fase de instrução.
O regime que vigorava nos últimos tempos era o de impor ao mesmo e único juiz o dever se avaliar da legalidade dos actos que ele próprio praticara em sede de inquérito - quando arguida a sua invalidade através da instrução - e tudo decidir sem recurso.
Não estando em causa a probidade das pessoas, nem a fulanização da questão, sim uma questão de princípio, nunca me convenci de que este sistema fosse compatível com a Lei Fundamental apesar de o Tribunal Constitucional o ter viabilizado, pois nele cumulava-se na mesma entidade judicial a competência para o acto e para a sua sindicância, pondo em causa um pilar fundamental da estruturação do judiciário que é a terciarização face ao caso; isto para além das garantias defesa, que já quase se tornou argumento anémico na actual conjuntura jurídica. Isto para além de supor que a avaliação indiciária em sede de instrução pudesse ser outra quando imposta a respectiva apreciação a um magistrado que fora densificando a sua íntima convicção através dos actos que autorizara, a que presidira e que praticara, como o interrogatório de arguido detido, as intercepções de comunicações, as buscas.
Mais: não compreendi que fosse exigível a um magistrado o esforço acrescido de distanciamento para que, desligando-se do envolvimento que tivesse tido no inquérito, conhecer com a isenção e independência a que está adstrito, o que dera como adquirido pelo seu prévio activo envolvimento com o caso. 
Isto até porque o legislador, ao blindar e brindar com a irrecorribilidade a pronúncia obediente à acusação do Ministério Público, criava, em geral para todas as instruções e não apenas para as daquele Tribunal, uma questão de consciência pessoal: expor a decisão instrutória a recurso, distanciando-a do objecto configurado pelo Ministério Público ou conformá-la nos precisos termos em que este o delineara o caso, garantindo-lhe assim, através do conformismo, estabilidade e, sobretudo, intangibilidade.
Apercebo-me que o problema pode ter perdido actualidade pela nomeação de outro magistrado para aquele tribunal. Resta saber se, em termos da competência funcional, se trata da mera repartição de processos, se de divisão de competência por fases.
É que, ante o que leio - e confesso que leio pouco - parece-me que se está a centrar o problema em termos duplamente inaceitáveis: ou como o fim de um regime de suspeição sobre quem desempenhou funções ou como uma mera partilha da massa processual que por ali se tramita, oriunda do DCIAP que goza do benefício de ter aquele tribunal privativo, o que, só por si, é também uma outra questão; ou como uma mera questão de divisão do excesso de processos, como se de uma questão de gestão burocrática se tratasse.

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Fonte da foto: aqui

Imunidade dos Advogados


Fica aqui, em primeiro apontamento, o texto da intervenção ontem efectivada na conferência organizada pelo Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados. A minha gratidão pela oportunidade e a intenção de continuar o estudo do tema, melhorando este mero esboço.


A CRP e a Advocacia: primeiro, o facto sintomático: a Constituição da República Portuguesa, que dispõe no título dedicado aos tribunais um capítulo próprio para os juízes e outro para o Ministério Público, nenhum espaço sistemático reserva para os Advogados ou para a advocacia, o que só pode ser entendido como uma desconsideração no quadro do travejamento estruturante da Lei Fundamental destes profissionais e desta função de natureza, aliás, pública.
E, no entanto, trata-se de corpo normativo em que os legisladores não terão sido membros daquelas duas magistraturas, pois os advogados têm significativa expressão no hemiciclo parlamentar a ponto de se colocar reiteradamente a problemática da cumulação da profissão de Advogado com a da função política de deputado.
Apesar deste apoucamento normativo, é ali que encontramos o artigo 208º, segundo o qual «a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça.». E, eis, a baliza que enuncia o objecto do nosso tema.
Trata-se, pois, num primeiro encontro com o enunciado jurídico-constitucional, de uma situação duplamente limitada na sua formulação: está prevista, primeiro, sob reserva de lei e considerada, depois, como atinente às imunidades «necessárias». Nesta segunda vertente, diga-se, a fórmula usada lembra o texto da Constituição de 1933 quando previa que ao arguido se conferiam em processo penal, não «todas as garantias de defesa», como actualmente lautamente se promete na Constituição desde 1976, sim as «necessárias garantias», para que sobejo não houvesse no que à outorga de garantias respeita.

Conceito de imunidade: de que imunidade se trata esta que estamos considerando? Estaremos ante o mesmo conceito que surpreendemos no ordenamento jurídico quando este, em vários dos seus momentos, logo na Constituição, utiliza tal vocábulo? Creio que não.
Pacífico parece que a imunidade dos advogados não implica irresponsabilidade total pelos seus actos, a “inviolabilidade” do Advogado, como, por exemplo, o proclama, talvez também em excesso e por isso no vazio, mas afinal de modo aparente, a Constituição brasileira, ao ditar no seu artigo 133º que: «O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão nos limites da lei.»

[continua aqui]

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Fonte da imagem aqui

A Justiça fora do mapa...


À mercê da retórica, o País assistiu à afirmação reiterada de que havia falta de juízes, sobrecarga no trabalho dos que serviam nos tribunais, na necessidade de o Centro de Estudos Judiciários habilitar a Justiça com mais magistrados, mesmo através de meios extraordinários e céleres de formação. Vem agora o "mapa judiciário" e os portugueses assistem à noção exactamente inversa, a de que, afinal, há juízes e procuradores a mais. E ficamos todos perplexos.
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Tendo ouvido dizer que, em obediência às regras gerais de legitimação da Justiça, esta deve desempenhar uma função preventiva, sobretudo a penal, para que que, em função do julgamento, a comunidade aprenda que o crime não compensa e se abstenha de fazer o que nos tribunais se condenou, o País assistiu à noção da Casa da Justiça, o tribunal ao pé da porta, os juízes de fora que iam às comarcas, as NUTS, enfim, a Justiça de proximidade e assiste agora ao encerramento de tribunais, a julgamentos que vão ter lugar a dezenas e dezenas de quilómetros do local onde tudo se passou, essa forma da desaforamento encapotado em favor do tribunal de conveniência. E ficamos todos boquiabertos.
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Tendo visto os políticos clamarem o imperativo da reforma judiciária e o consequente "mapa judiciário", como condição essencial ditada pela troika porque o País real, o produtivo, o empresarial, estaria bloqueado por causa do mau funcionamento dos tribunais, o País apercebe-se que só quando a troika se foi, enfim, embora, é que o dito "mapa" surge, e, afinal, com isso, estão suspensas as marcações de julgamentos, haverá milhares de processos que vão ser encaixotados, juízes transferidos, magistrados novos que vão ter pegar nos processos desde a estaca zero quando havia outros que já os conheciam de fio a pavio. E ficamos como parvos.
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Tendo aprendido a não acreditar em coisa alguma, o País, não quer de nada saber. Problema é o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol. E, em matéria de juízes, grave é o que se passa com os árbitros de futebol! O mais que se dane!
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Viva, pois, tudo, e viva, por isso, nada! Tanto faz. 
O mapa judiciário, esse, será, assim, apenas um problema de camionagem, com polícias e soldados a alombarem com processos de cá para lá. 
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Conclusão: sem os Ministérios da Defesa e da Administração Interna, que seria do Ministério da Justiça? E porque é que, já que de mapas se fala, não se pediu ajuda aos Serviços Cartográficos do Exército, e, ao Instituto Português do Mar e da Atmosfera, para se decidir o caso de tribunais nas Berlengas, no Farol do Bugio, e sobretudo nas Selvagens?

A Justiça na Constituição de 1976


A gentileza do Centro de Estudos Judiciários permitiu que eu tivesse proferido ali a seguinte intervenção, que irei agora rever tentando melhorar e corrigir, mas que aqui fica como uma primeira reflexão:


«Quais as questões controversas no domínio da Justiça, quando eclodiu o 25 de Abril de 1974, onde surgiu, com a queda do regime político anterior, a situação que acabaria por encontrar na Constituição de 1976 a sua primeira fase de pretensa consolidação?

Correndo o risco de simplificar, e porque o tempo é limitado, enuncio as seguintes:

-» A da separação das magistraturas, pois que a carreira do Ministério Público era vestibular da judicial, mesclada por passagem de alguns selectos “delegados do Procurador da República” pela Polícia Judiciária;

-» A da autonomia do Ministério Público e do próprio poder judicial face ao Executivo, pois que eram ministros quem acabavam por deter a competência para a nomeação dos delegados e de certos juízes, nomeadamente os que serviriam em cargos mais sensíveis;

-» A dos tribunais especiais, nomeadamente o plenário criminal para o julgamento dos crimes políticos, apodados de crimes contra a segurança interna e externa do Estado, sistema pelo qual a magistratura judicial se coresponsabilizava em tal repressão, sucedendo nisso ao que até então era da competência do Tribunal Militar Especial;

-» A da judicialização das fases nevrálgicas do processo criminal, quer na averiguação pré-acusatória, quer na fase pós-acusatória e antecedente ao julgamento, a primeira ou para apenas para garantir os direitos fundamentais civis ou para funcionar como modo judicial de investigação com afastamento do Ministério Público, a segunda como forma efectiva de garantir controlo da acção penal pública, sobretudo em caso de arquivamento que poderia passar a funcionar como autêntica amnistia administrativa;

-» A prevalência e avantajamento de meios de acção dos órgãos de polícia criminal, quer da Polícia Judiciária propriamente dita, quer da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), mais tarde crismada em DGS (Direcção-Geral de Segurança), isto por comparação com os poderes concedidos a magistrados;

-» A da indefinição da privação da liberdade, quer pela indeterminação dos pressupostos da prisão preventiva, quer pela prorrogabilidade e indefinição temporal das medidas de segurança e de certas penas, quer pela ineficácia do habeas corpus;

-» A da legitimação da justiça togada e a eventualidade de a participação privada na administração da justiça poder torná-la mais equitativa quanto eficaz;

-» O das garantias de defesa em processo criminal.

Nem tudo poderá ser aqui analisado. Circunscreverei, pois.

Todo este acervo de problemáticas decorria de uma longa polémica que várias vezes se colocou, umas vezes de forma explícita e polémica – como quando se aprovou, em marcha acelerada o Código de Processo Penal de 1929, tirando da gaveta um projecto que vinha da República Velha – outras já sotto voce – devido aos riscos inerentes ao exercício da liberdade de expressão – e foi assim que se passou quando das reformas aprovadas entre 1945 e 1954.

Não podendo aqui historiar esse longo e polémico curso dos acontecimentos, retomo parte dos temas que enunciei, focando-os naquilo em que a Constituição de 1976 acabou por encontrar solução.

[continua aqui]

Ramalhal visão



Com o devido respeito, que é muito, e o farto riso, que é maior, este excerto que vem dos tempos em que Eça de Queiroz proclamava que forraria o seu quarto de estudante coimbrão "a pele de Lente": «Em cada ano, pelo verão, quando as moscas chegam, a Universidade de Coimbra: abre as suas portas e esparge sobre o corpo social trinta bacharéis formados em direito. O país, tendo reconhecido nos últimos anos que há cinquenta indivíduos para cada um dos lugares destinados pelo estado para um jurisconsulto inteligente e sábio, havendo portanto para cada emprego provido um saldo importuno de quarenta e nove sábios desempregados, pede insistentemente à universidade que lhe mande bacharéis ignorantes a fim de que o país, não podendo, como é impossível, fazer deles procuradores da coroa, possa pelo menos estabelecê-los como contínuos de secretaria.(...)»

Ramalho Ortigão, As Farpas (1872)

O humor e a compreensão



O humor não ofende. Ajuda a compreender. A epistemologia contemporânea, sisuda e chata, dominada pela frieza lógica e seus resfriados mentais recolhe-a entre cobertores. 

O longo penar do sistema penal


Mandam as boas maneiras que não publique aqui a totalidade do texto, quando acaba de sair a revista que o edita, a "Julgar". Escrevi sobre a Justiça no Estado Novo. Ante muitas das afirmações que ali produzi, críticas para a actualidade por comparação a esse passado, há uma declaração de interesses que julgo necessária: a Justiça desse regime impediu-me de seguir a magistratura, porque, submisso à informação da Direcção-Geral de Segurança a meu respeito - segundo a qual eu «não dava garantias de cooperar na realização dos fins superiores do Estado» - me barrou a porta de acesso ao Ministério Público, então carreira vestibular para a magistratura judicial, mesmo que eu tivesse eleito como primeira comarca a Graciosa, e terminado com «qualquer outra» que se encontrasse vaga.
Digo isto, que já tinha tornado público, porque, num território em que pulula o argumento ad hominem, pelo qual, não se podendo atacar o argumento se ataca a pessoa, é bom que conste.
Ficam pois alguns excertos do que escrevi, os da introdução. O artigo é uma tentativa de síntese histórica, para tentar demonstrar que no campo das leis penais, o regime caído a 25 de Abril, se contentou até 1945 e mesmo depois da Constituição de 1933, com a lógica que provinha da "República Velha" e até da Monarquia - disso é exemplo o Código de Processo Penal de 1929 e a subsistência do Código Penal de 1852/versão de 1886 - e só em 1945 inaugurou um sistema próprio, compatível com a "nova ordem" que, entretanto, o desfecho da Segunda Guerra havia apeado na Europa.

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«Não pretendo que este texto seja um ensaio, um estudo, sim uma crónica. É talvez estilo que, não sendo muito usual entre nós no domínio da literatura jurídica, talvez se adapte a fomentar no leitor o gosto pela sua leitura. Não tem o aparelho de erudição que seria necessário para um trabalho académico. É uma reflexão pessoal de quem, tendo entrado na Faculdade de Direito em 1966, conviveu com um regime político que, à data em que estudou Direito Penal e o seu processo, ainda não havia aquele entrado na fase de liberalização que se assinalaria em 1971, alguém que viveria, quer pela vida prática, quer pela participação na vida pública, o que foi o sistema que irrompeu, no ano de 1974 em revolução, até à Constituição de 1976 e depois disso até à situação a que hoje se chegou, em que não se construiu regime algum e se vive o ocaso da partidocracia tornada administração pública comanditária do capital tornado Europa.
Se me é permitida mais uma nota pessoal, direi que de crítico, o autor destas linhas passou a céptico. Concluiu, na recta final da sua vida de jurista, que tenta tornar em recomeço para ganhar o fôlego da esperança, que, lamentavelmente, em muitas facetas o regime jurídico-penal a que se opôs publicamente, porque era o de uma ditadura, não era pior, em alguma das suas facetas, do que aquele que temos de suportar no que se proclama como sendo uma democracia.»

(...)

«Começo com uma declaração de filosofia própria, ou seja o meu modo de entender as coisas na área do jurídico: para compreender o Direito, nomeadamente o Direito Penal, é preciso surpreende-lo na política lato sensu, nas ideologias, nas crenças e nos interesses, nos a priori dos Estados e das pessoas que os integram como governantes e cidadãos, no próprio espírito do tempo e do lugar, na antropologia global do ser, não apenas na hermenêutica das fórmulas legais.
O Direito não é uma produção liofilizada, bacteriologicamente pura, nem uma silogística alcançável more geometrico como mera operação mental. É também argumentação e legitimação do conveniente, evasão à responsabilidade, triunfo de idiossincrasias feitas teoria, sofisma, expediente. Trata-se da “luta pelo Direito”, como magistralmente o surpreendeu Rudolph Ihering, travada no campo do processo legislativo, antes disso nas estruturas de onde dimana o mando e, com ele, o poder de legislar, e depois disso, nos vários órgãos da Administração da Justiça, locais onde o legislado qual mera corporização intelectual, se torna no Direito a ser sentido na pele pelos destinatários do mesmo, os culpados, os inocentes e o grande vagão do meio, o daqueles relativamente aos quais estes conceitos são meras ficções de territórios seguros, de fronteiras fixas; porque não pode em dicotomia o mundo jurídico conter-se nos binómios verdadeiro/falso, justo/injusto, culpado/inocente.
Digo mais: tudo isto se torna urgente, como bandeira por um repensar as origens num momento de sedução intelectual de tantos com responsabilidades no domínio da justiça penal pelas ideias privatísticas da “justiça negociada”, da própria “pena negociada”, da transação tornada justiça, o “negócio jurídico” a romper do Direito Civil onde contaminou todas as suas estruturas conceituais para o campo do Direito Público e, último reduto, do próprio Direito Criminal, num tempo histórico em que a “taylorização” tomou conta do processo penal, como se ele fosse a linha de montagem da fábrica de automóveis do senhor Henry Ford, em que a estatística e a prevalência do número passaram a critério, nomeadamente em que nos processos a fracção anual entre os pendentes os entrados e os findos é índice de avaliação do bom magistrado, o que mais “despacha” processos, em que a celeridade processual passou a valor maior, com o que significa de triunfo do utilitarismo e do pragmatismo, enfim, os pilares da cultura yankee com o que nisso se contem o “admirável mundo novo” mas também o “far west”, há que afirmar que o processo penal não é apenas um formulário de formalidades, os seus agentes não são “burocratas da coacção”, por mais que o Estado sobrecriminalize para defender os seus réditos fiscais, por mais que situações graves sejam sujeitas a processos celerados pela aceleração legalmente imposta, mesmo quando noções que deviam ter, ou a Constituição é um proclamação vazia, conteúdo e substância como a de arguido, a de excepcional complexidade, a de “facto novo”, a de “indício suficiente”, e tantas outras, acabem reduzidas a pretextos e expedientes para prolongar a prisão preventiva, para sujeitar casos a julgamento onde triunfará a lógica do “logo se verá” os «os mega processos que dão mega absolvições», mundo em que violências processuais inadmissíveis são toleradas como meras irregularidades que três dias de sonolência legitimam, de selectividade punitiva para efeitos de estrondosa exemplaridade, de agraciamento de uns e estigmatização mediática de outros.»

(...)

«A revolução militar do 28 de Maio tornou-se no Estado Novo através da Constituição de 1933.
Aqueles que sonhavam com um regime em que a palavra “revolução” fazia sentido, como forma de ressurgimento nacional contra o demoliberalismo de partidocracia em perpétuo rotativismo em que tornara a então chamada 1ª República pagaram com o exílio e com a liberdade e com a própria vida essa ilusão macabra.
António de Oliveira Salazar, católico conservador, jurista de formação mental, oriundo de uma ruralidade de princípios que nele se tornou atavismo, habilidade e culto da modéstia, temente à religião tradicional do Reino, fiel no culto da Família tendo a autoridade por indiscutível, teceu a teia de que resultou, cinco anos volvidos sobre o 28 de Maio de 1926, um regime que era já uma outra ideia.
Não que o general Gomes da Costa na sua marcha sobre Lisboa, vindo do norte regenerador, tivesse mais ideias do que a de Pátria e Nação. Faltava-lhe, porém, pela positiva, uma filosofia sobre o Estado. Queria a ordem nas ruas e no Estado. Pouco mais e já não era pouco. Portugal tinha caído na banca rota.
Foram anos decisivos os que se viveram então. Entre o nacional-sindicalismo de um Francisco Rolão Preto, que terminaria preso, o restauracionismo monárquico de um Paiva Couceiro, que se finaria derrotado, ia um mundo, tudo caldeado pelas tentativas de subversão da banda anarquista, filo-comunista e as sobrevivências já dispersas dos que tinham sobrevivido às hostes republicanas.
Em 1933 uma falsidade política legitimou a Constituição de 1933. Sujeita a “referendo popular”, nela as abstenções valiam como aprovação com base num sofisma tão cínico quanto seria o de os próprios mortos valerem como votos na urna.
Como é sabido a política de “neutralidade colaborante” de Portugal durante a Segunda Guerra permitiu que Salazar se mantivesse no poder quando em 1945 a sorte das armas fez claudicar as ambições imperiais do III Reich de Adolph Hitler e do Eixo nazi-fascista.
Esse perdurar do salazarismo, que se esgotara como política nova, e entraria em agonia com o início da insurgência armada nas colónias em 1961, com a revolta da baixa de Cassanje e a invasão de Goa pela União Indiana, em que já só se tratava, contra os «ventos da História» em saber resistir, foi – e como tantos historiadores arregimentados fingem esquecê-lo – obra da gratidão aliada, favor à cedência aos americanos da base dos Açores, aos esforços que permitiram, para garantia britânica, que Francisco Franco Bahamonde, o Generlaíssimo, não alinhasse com a Alemanha, resistindo a Hitler naquele vagão de caminho-de-ferro em Hendaye, colocando a ensanguentada Espanha em situação de não-beligerância, enfim, por haver fechado dos olhos às deslealdades da Loira Albion, a nossa mais velha Aliada, a Grã-Bretanha.
Seria apenas em 1971 que, caído Salazar, empossado Marcelo José das Neves Alves Caetano, um jurista administrativista que perdera viço quando como Presidente do Conselho, que se daria, com os limites políticos da denominada “evolução na continuidade” a liberalização política do regime com a aprovação da revisão constitucional.
Marcelo tinha bebido na juventude na fonte da militância, escrevera com Albano Guimarães, os vibrantes cadernos da “Ordem Nova”, que fundara em 1926, fora Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa, pagando do seu honrado bolso, a própria farda – mas finara-se nos ímpetos pela docência conservadora, refrigério agora para uma tragédia pessoal, que por um instante intervalar se cruzaria aliás com o Direito Penal, numas magras mas e interessantes lições proferidas ao ano jurídico de 1938-1939, onde aflora um tímido tomismo e com ele o substrato vago de um Direito Natural, tudo cruzando, em intermitência, com passagens por cargos governativos, como a Presidência e as Colónias, onde o seu estilo reformista e organizador se mostrou operosamente, mas também a sua heterodoxia.
Tudo assim seria até à revolução militar do 25 de Abril, logo tornada no 1º de Maio o “levantamento nacional popular” que os sectores comunistas haviam proclamado como sendo o “rumo à vitória” contra o regime político que reduziam ao conceito de “fascismo”, irmanando-o, sem distinguir, ao de Mussolini e ao nazismo do cabo austríaco agora Chanceler do Reich dos mil anos…
A Constituição de 1976 daria legitimação ao que saíra de um “putsch” castrense tornado revolução, e cumpriria o desígnio de todas as Leis Fundamentais, a de impor uma nova «ordem social estabelecida», travando, não sem sobressaltos, o que havia mudar. Aos novos donos dos interesses apeados juntaram-se, regressados, muitos dos que retomaram o que lhes tinha sido tirado e todos irmanados no bloco central de interesses.»
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