Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Um pobre sistema para ricos: as gravações de audiências


O Estado implantou um sistema de gravação da prova produzida em audiências que conseguiu o pleno do elevado custo e do péssimo funcionamento.
Ante a ratoeira da deficiência do sistema de documentação da prova - vozes inaudíveis, excertos por gravar - surgiu o problema: como controlar tais deficiências que punham em causa o direito constitucional a recorrer invocando a prova produzida em julgamento.
O racional seria o funcionário que está adstrito à audiência e que coloca o sistema em funcionamento, assegurar não só que ele estava a funcionar capazmente como que o dito era efectivamente gravado em termos de perceptibilidade.
Mas não, talvez porque durante a audiência o funcionário tenha mais que fazer, talvez por aquela razão endémica segundo a qual são os do costume a suportar o custo das disfunções.
E assim surgiu sobre o assunto a querela jurisprudencial, com decisões em todas as variantes: quando interessados em recorrer da matéria de facto e tendo assim que indicar onde estava gravada a prova que demonstrava o contrário do dado como provado ou não provado na decisão recorrida, os advogados, ao aperceberem-se que, afinal, em vez de uma voz estava um silêncio ou um ruído, deparavam-se com tribunais que tinham por legal esta ideia: cabia aos advogados no final de cada audiência solicitarem desde logo as gravações, ouvi-las e, no caso de haver qualquer falha, reportá-la logo num prazo que foi também discutível - o que é que no Direito é certo, seguro e indiscutível, pergunto eu - sob pena de já não poderem levantar a questão por se tratar de uma nulidade sanável.
Isto é, às horas e horas passadas em audiência somavam-se mais umas outras tantas ou quase tantas horas a ouvir o já dito para saber se tinha sido ouvido pelos esquisitos maquinismos que o Ministério da Justiça comprara para equipar os tribunais, alguns servidos com mesas misturadoras com mais botões que os de um estúdio de gravação em alta fidelidade mas inúteis e, assim, meramente decorativos
Claro que ninguém pensou que estas horas perdidas são mais custos para o cidadão que se cruza com a Justiça e torna os advogados serventuários de um sistema oficial que devia ser o sistema público a controlar. É que a ideia tornada jurisprudência tinha a vantagem de matar recursos sobre a incómoda matéria de facto, porque com base na regra do se não se ouve tivesse dito, pelo que reunia o aliciante de ser tentadora.
É este o contexto que subjaz ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 13/2014, de 3 de Julho de 2014 [texto integral aqui] segundo o qual «a nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada».
Claro que os advogados com meios para dedicarem horas a preparar audiências, horas a nelas intervir e horas a ouvirem o que nelas se passou e que supostamente deveria estar gravado não se importarão porque a facturação reflectirá esse tempo todo, assim haja quem pague. 
O problema são os outros, a esmagadora maioria, aqueles que subsistem de magros honorários pagos por remediados constituintes. 
Mas, nesta lógica, que importam esses postergados pelo sistema? No final ainda ficamos todos à mercê de haver uma Justiça para ricos quando é a própria Justiça que prepara tudo para que só o rico se aguente ao seu custo. Irónico, não é?

A Alemanha o País da prisão perpétua...



Em causa a Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas (Resolução da Assembleia da República nº 8/93 de 20/04, publicada no DR n.º 92, Série I, de 20 Abril 1993), numa dupla vertente: a da conversão de uma pena prevista no ordenamento estrangeiro que o nosso não preveja; a prevalência do nosso sistema legal sobre o estrangeiro onde ocorreu a condenação no que se refere à execução da pena, nomeadamente no que se refere à liberdade condicional. Decidiu-o o Acórdão da Relação de Lisboa de 11.09.2014 [proferido no processo 364/13.6YRLSB-A.L1 -9, texto integral aqui]


Primeiro problema: «O arguido LT foi condenado, por decisão transitada em julgado, por tribunal estrangeiro em pena perpétua, pela prática de um crime de homicídio qualificado, por decisão proferida pelas autoridades alemãs, que só admitem a libertação do arguido, após 15 anos de cumprimento de pena». 

Isto é, estamos ante um Estado, o alemão, integrante da União Europeia, que admite a prisão dita perpétua, a qual pode dar azo à libertação quinze anos, porém, após o seu início, verificadas que sejam certas condições e que, se bem que na prática não gere a prisão por mais de vinte e dois anos, mantém aquela regra da perpetuidade tida como legítima.

Mais um Estado que prevê que o homicídio voluntário seja punido com prisão até cinco anos e em «casos  especiais graves» [que não se definem quais sejam] com prisão perpétua, isto é uma variação de penas que mais não é do que o arbítrio concedido à discricionariedade punitiva. 

Para os que têm o germanofilismo jurídico como farol interpretativo do nosso próprio Direito e como critério face ao que é justo porque legal, é caso para pensar.

Assim se transcrevem [ver aqui] o §§ 211 e 212 do Código Penal Alemão:

§ 211

«1) Der Mörder wird mit lebenslanger Freiheitsstrafe bestraft.
«(2) Mörder ist, wer aus Mordlust, zur Befriedigung des Geschlechtstriebs, aus Habgier oder sonst aus niedrigen Beweggründen, heimtückisch oder grausam oder mit gemeingefährlichen Mitteln oder
um eine andere Straftat zu ermöglichen oder zu verdecken,
einen Menschen tötet.»

§ 212

«1) Wer einen Menschen tötet, ohne Mörder zu sein, wird als Totschläger mit Freiheitsstrafe nicht unter fünf Jahren bestraft.
«(2) In besonders schweren Fällen ist auf lebenslange Freiheitsstrafe zu erkennen.»

Segundo problema: prevendo o nosso sistema jurídico condições de execução de pena, nomeadamente no que à liberdade condicional respeita, mais favoráveis do que as que estão previstas no ordenamento do País da condenação, qual deve prevalecer? O Acórdão em referência decidiu que será o português, antes de decorrido o tempo mínimo que a lei alemã previa.

E assim ficou consignado que, fazendo triunfar os nossos princípios jurídicos: 

«I - Tendo-se procedido a revisão de sentença penal estrangeira, no âmbito da qual o Tribunal da Relação converteu para a pena máxima permitida pelo ordenamento jurídico criminal português (25 anos de prisão) a pena de prisão perpétua que havia sido aplicada na Alemanha a cidadão português que aí havia cometido homicídio, e tendo, seguidamente, o condenado, que ali cumpria a pena, sido transferido para Portugal, a seu pedido, para aqui cumprir o remanescente desta, passa a ser a lei portuguesa que, para futuro, regerá todas as questões atinentes à execução da pena. II - Na liquidação de pena dever-se-á fixar a data em que o condenado atingirá o meio da pena, para efeitos de apreciação e eventual concessão da liberdade condicional nesse momento (artigo 61.º, n.º 2, do Código Penal), o que no caso concreto ocorrerá decorridos 12 anos e 6 meses, ainda que atento o disposto no do § 57º do Código Penal alemão a libertação condicional de recluso em prisão perpétua pressuponha terem sido imprescindivelmente cumpridos 15 anos de prisão efetiva de encarceramento penitenciário.»

Assentos e uniformização de jurisprudência: uma questão em aberto


Decisão judicial ou lei? Este era o núcleo problemático do instituto dos Assentos, sobre cuja natureza António Castanheira Neves escreveu a sua decisiva dissertação. Problema que de algum modo parecia reposto em novos termos antes os acórdãos uniformizadores de jurisprudência que tanto o processo civil como o penal acolheram. Mas é questão, afinal, em aberto.

Tirado em matéria cível, este, do Supremo Tribunal de Justiça, de 11.09.2014 [agora publicado na íntegra aqui] veio retomar o problema sentenciando que: «Não basta não se concordar com o entendimento de um acórdão uniformizador. Para decidir em sentido contrário é necessário trazer uma argumentação nova e ponderosa, quer pela via da evolução doutrinal posterior, quer pela via da actualização interpretativa.

Eis o passo essencial do raciocínio:

«Entre a rigidez interpretativa obrigatória dos antigos assentos e a mera natureza indicativa da jurisprudência em geral, está a jurisprudência uniformizada. Esta tem de ter um valor próprio que não se pode ficar pela mera sugestão (ainda que reforçada), hipótese em que perderia a razão de ser.
A regra só pode ser a de que a jurisprudência uniformizada não deve ser afastada pela mera discordância doutrinal do julgador, caso que não se distinguiria da restante jurisprudência.
A citação do conselheiro Abrantes Geraldes feita no acórdão em apreço resolve de forma lapidar a questão: “o respeito pela qualidade e pelo valor intrínseco da jurisprudência uniformizada do STJ conduzirá a que só razões muito ponderosas poderão justificar desvios de interpretação das normas jurídicas em causa (v.g. violação de determinados princípios que firam a consciência jurídica ou manifesta desactualização da jurisprudência face à evolução da sociedade)”. (...)  “a discordância, a existir, deve ser antecedida de fundamentação convincente, baseada em critérios rigorosos, em alguma diferença relevante entre as situações de facto, em contributos da doutrina, em novos argumentos trazidos pelas partes e numa profunda e serena reflexão interior” Ou seja, não basta não se concordar com o entendimento do acórdão uniformizador. Essa é uma questão ultrapassada. É necessário trazer uma argumentação nova e ponderosa, quer pela via da evolução doutrinal posterior, quer pela via da actualização interpretativa.

[...]
«Citando novamente Abrantes Geraldes – Recursos no Novo Código de Processo Civil, 379 – :

“Ou seja, a divergência ( com a jurisprudência uniformizada) não se justifica por si mesma, antes devendo ser encarada como um objectivo cujo alcance exige um percurso que, sem hiatos, tenha como ponto de partida a letra da lei e percorra todas as etapas intermédias.
Em suma, para contrariar a doutrina uniformizada pelo Supremo devem valer fortes razões ou outras especiais circunstâncias que porventura ainda não tenham sido suficientemente ponderadas.”»

Injustamente desimpedido!



Vivam todos quantos se preocuparam com a minha gripe, forma amável de se preocuparem com a minha pessoa! Pois o malvado bicho lá retornou às catacumbas da minha carcaça, soterrado a um cocktail explosivo de comprimidos que penso devem ter expurgado tudo quanto é ser vivo nas entranhas de mim. 

Semi-refeito cá estou agarrado ao remo da profissão. E sabem porquê? Passo a explicar citando a pertinente jurisprudência:


-» Acórdão da Relação do Porto de 01.06.2011 [texto integral aqui]: «As doenças dos mandatários só em casos limite em que sejam manifesta e absolutamente impeditivas da prática de determinado acto e, além disso, tenham sobrevindo de surpresa, inviabilizando quaisquer disposições para se ultrapassar a dificuldade, podem ser constitutivas de justo impedimento.»

-» 13.05.2008 [texto integral aqui]: «1. A notificação efectivamente expedida para o patrono da parte, ainda que comprovadamente após o falecimento desse patrono, é, todavia operante, face ao disposto no artigo 254.º , nº 4, ª parte do CPC.2. Constatado o decesso do patrono dos RR. antes da expedição da notificação do acto passível de recurso, impor-se-ia que o respectivo escritório diligenciasse pela imediata informação - e comprovação - do referido evento no processo, visando não apenas a suspensão da instância e inutilização do prazo, como a substituição do falecido advogado.
3. Não o tendo feito, e tendo a parte realizado a comunicação do facto para além do decurso do prazo do recurso, quando se demonstrou que o poderia ter efectuado antes desse momento, assim beneficiando do efeito mencionado na parte final do nº 2 do artigo 283 do CPC, o direito de recorrer foi precludido, sem que possa invocar o justo impedimento.»

Por isso, já que nem morto me livraria, cá estou. 

P. S. A propósito, o CITIUS ainda mexe?





O CITIUS e a máquina do tempo...

Enfim, foi achada a solução para o problema do CITIUS. A Senhora ministra tinha dado o mote: o regresso ao "antigamente". Bom fim-de-semana e haja humor, o possível.



Já nem a Vera...


Uma das maravilhas tecnológicas que o CITIUS prometia era a VERA. Rezava assim o anúncio:

«A Vera é a operadora virtual do GRAL. Ela ajuda a perceber qual o meio de resolução alternativa de litigios mais adequado ao seu caso concreto. Não se trata de um motor de busca em que pode procurar palavras. A Vera ainda está em aprendizagem (versão beta), pelo que a interacção com a mesma melhora a sua prestação. Além disso, todas as sugestões que nos queira enviar são importantes para o seu desempenho. Agradecemos a vossa compreensão e utilização.»

Pois, agora, clica-se e aparece, como uma chapada de despontamento, esta mensagem:

Not Found

The requested URL was not found on the server.

Juízes de número...



Comecei agora a receber notíficações e percebo que os juízes são numerados. Os tribunais são identificados por uma frase estranhíssima que culmina com um "J" a que se acrescenta um número.
É mais uma das realidades inauditas. Nem os juízes de linha! 
O magistrado que for o J7 poderá almejar a ser como o R7, o Cristiano Ronaldo, ou temer ser o R4, a carripana da Renault, Ele há coisas!

Espanha: a questão séria das vítimas


Convenhamos, até por se tratar do portal oficial do Ministério da Justiça de Espanha, que, pelo tom de pose galhofeira e de festa, não é propriamente a mais adequada imagem para dar conta da comissão de elaboração do novo Estatuto das Vítimas de Delito, cujos princípios gerais se podem ler aqui, com menção a outros documentos relevantes sobre a matéria.
Citando:

«El proyecto constituye un catálogo general de los derechos procesales y extraprocesales de las víctimas
Se considera víctima a toda persona que sufra un perjuicio físico, moral o económico a consecuencia de un delito, y también a sus familiares
El objetivo es dar una respuesta jurídica y sobre todo social a través de un trato individualizado a todas las víctimas, que serán evaluadas para atender las circunstancias de su caso
Derechos de las víctimas:
Podrán recurrir la libertad condicional aunque no estén personadas en el procedimiento si la pena del delito es superior a cinco años de prisión
Se les comunicará cómo acceder a asesoramiento legal y si lo solicitan se les informará sobre todo el proceso penal (fecha de celebración del juicio, notificación de sentencias y sobreseimientos, etc.)
Podrán requerir medidas de control para garantizar su seguridad cuando el reo quede en libertad condicional
Se reducirán al máximo las declaraciones, se procurará que sea siempre la misma persona quien hable con la víctima y que esta sea de su mismo sexo
Durante el juicio se evitarán preguntas innecesarias y el contacto visual con el infractor
Las víctimas de violencia de género serán informadas de la puesta en libertad de su agresor sin que lo soliciten, salvo que manifiesten expresamente su deseo de no ser notificadas
Se protege a los menores y personas con discapacidad necesitadas de especial protección con medidas específicas encaminadas a evitar una victimización secundaria:
Se suprimirán las declaraciones que no sean imprescindibles y podrán ser grabadas para reproducirlas en el juicio
Tendrá un representante legal cuando exista conflicto de intereses con los progenitores o representantes legales
Los hijos de la pareja fallecida o desaparecida se considerarán también víctimas.»

Continua o estado de Citius...


São 14:54, daqui a pouco mais de uma hora encerram os tribunais e termina o primeiro dia do novo mapa judiciário com as novas tecnologias, o epígono da desmaterialização. Era de prever. E aconteceu: clica-se e surge a mensagem:

Página temporariamente indisponível

Deu-se início ao processo de arranque do Citius nas 23 comarcas. Estima-se que nas próximas horas o sistema esteja operacional. O Portal Citius será disponibilizado durante o dia de hoje.

Comentários para quê? Tribunais há ainda carregados de obras, de lixo, de processos amontoados, de funcionários que nem sabem para onde ir, onde sentar nem o que fazer. 

Brasil: associação criminosa


Só agora é que o Direito Criminal Brasileiro tipificou enquanto tal e de forma específica o crime de associação criminosa. Segundo se noticia no mês de Julho «foi aprovado, na madrugada desta quinta-feira (11), no Senado, o PLS 150/2006, que vai tornar mais eficaz o enfrentamento às organizações criminosas com penas de três a oito anos. Antes, apenas os crimes de quadrilha ou bando, grupos constituídos por mais três pessoas, eram tipificados com penas de até três anos.»

Em rigor dizendo, até aqui a previsão legal naquele País distinguia a organização criminosa da associação criminosa, mas esta exigia para a sua caracterização a pertença de um número mínimo de três pessoas.


De facto, o § 1º, do art. , da Lei 12.850/2013 [ver o texto integral aqui] previa que: «Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.»

Enquanto isso, o artigo 288 do CP (alterado pela Lei 12.850/2013, art. 24) trata do tipo penal da “Associação Criminosa”, onde o mínimo para a sua configuração é de 3 pessoas ou mais e é aplicado às infrações penais cujas penas máximas sejam inferiores a 4 (quatro) anos. 

Transcrevendo: «Art. 288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes: (Redação dada pela Lei nº 12.850, de 2013) (Vigência)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.850, de 2013) (Vigência)
Parágrafo único. A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente. (Redação dada pela Lei nº 12.850, de 2013) (Vigência)»

"Escuta" a Advogados


Com o Tribunal de Estrasburgo, defensor, diga-se, dos Direitos do Homem, a viabilizar a escuta num caso de terrorismo [ver aqui], também no Brasil a questão da licitude da intercepção telefónica da conversa entre o advogado e o seu constituinte está em aberto, agora no domínio do Direito Criminal Comum. Citando:

«Recentemente, tem se observado o vazamento dessas conversas gravadas, especialmente aquelas havidas entre o investigado e seu advogado, visando macular essa relação profissional de desconfiança pela sociedade em geral. Ainda que tal prática seja extremamente imoral, esse artigo se voltará para questão correlata de maior importância: Pode a conversa gravada entre cliente e advogado ser utilizada como meio de prova no processo penal?
Recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, datado de 27 de maio de 2014, nos autos do RMS 33.677 – SP, negou provimento ao recurso interposto por um escritório de advocacia que postulava pelo desentranhamento de interceptação telefônica onde foram captados diálogos havidos entre advogados daquele escritório com um investigado, tendo o tribunal justificado a manutenção daquela interceptação nos autos do processo sob o fundamento de que “não é porque o advogado defendia o investigado que sua comunicação com eles foi interceptada, mas tão somente porque era um dos interlocutores, não havendo, assim, nenhuma violação ao sigilo profissional”.Com a devida vênia, ousamos discordar da decisão proferida por aquela Egrégia Corte, uma vez que (...) [ler o texto integral aqui]

+
Fonte da imagem: aqui

França: a Cour d'Asises

Para que se saiba o que é e como funciona. Texto aqui.

Como no Animal Farm, há uns mais iguais do que outros


Claro que as alterações aos grandes diplomas, como o Código Penal, poderiam não ser feitas aos poucos, uma de cada vez. 
Ainda na terça-feira falava na 32ª segunda alteração ao Código Penal, pela qual se alterou o seu artigo 132º, assim qualificando o homicídio e as ofensas à integridade física de solicitadores, agentes de execução e administradores judiciais e já surge a 33ª alteração, desta feita relativa a maus tratos a animais de companhia. Está aqui, sendo a Lei n.º 69/2014, de 29 de Agosto.
Lendo o preceituado em primeira leitura fica-se com estas controversas ideias. Ou eu estarei errado.
Primeira, de que a regra de que o definido não entra na definição é pura e simplesmente esquecida por este descuidado legislador para quem animal de companhia é o «detido ou destinado a ser detidos por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia». Em suma, animal de companhia é o que serve para fazer companhia, vício definitório que já decorria da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, para a protecção dos animais, com a especificidade de nesta se prever «prazer» em vez de «entretenimento».
A segunda e substancial é que o âmbito de protecção não se estende aos animais domésticos em geral e assim quem infligir dor ou privar de importante órgão ou membro animal que tenha na sua capoeira ou redil ficará impune, como se a lógica cruel de que, destinando-se a matança, podem ficar à mercê de qualquer malfeitoria imperasse com o apoio do legislador.
É aqui que ocorre a perplexidade. É que a acima citada Lei n.º 92/95, que, repete-se, pretendia a protecção aos animais e previa toda uma série de condutas lesivas dos mesmos [ver abaixo o artigo 1º], deixava em aberto a punição à violação dos seus preceitos, já que no artigo 9º estabelecia que «as sanções por infracção à presente lei serão objecto de lei especial», de que se ficou à espera.
Ora a dita «lei especial» acabou por ser esta que não só introduziu um título novo no Código Penal, alterando-lhe a sistemática, como, para além disso, acabou por restringir o âmbito de protecção penal aos animais ditos de companhia, com esquecimento dos demais.
Isto é, quando desde 1995 se aguardou uma legislação criminal que desse execução à lei de protecção a animais, com esta lei hoje publicada acabou por manter-se aquela lei geral sem protecção penal e deliberadamente criou-se por cima dela um articulado que, pela nova redacção ao artigo 9º - que agora trata ade outra matéria, concretamente dos poderes de intervenção das associações zoófilas - dá um sinal de que relativamente aos animais que não sejam os de companhia o Direito Penal os abandonou de vez. Até porque quanto aos de companhia já existia outro diploma o Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro [ver aqui com a redacção em vigor], que procurou dar execução a uma Convenção Europeia sobre a matéria.
Como no Animal Farm, há uns animais mais iguais do que outros.

+
* Artigo 1º da lei n.º 92/95


1 - São proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal. 
2 - Os animais doentes, feridos ou em perigo devem, na medida do possível, ser socorridos. 
3 - São também proibidos os actos consistentes em: 
a) Exigir a um animal, em casos que não sejam de emergência, esforços ou actuações que, em virtude da sua condição, ele seja obviamente incapaz de realizar ou que estejam obviamente para além das suas possibilidades; 
b) Utilizar chicotes com nós, aguilhões com mais de 5 mm, ou outros instrumentos perfurantes, na condução de animais, com excepção dos usados na arte equestre e nas touradas autorizadas por lei; 
c) Adquirir ou dispor de um animal enfraquecido, doente, gasto ou idoso, que tenha vivido num ambiente doméstico, numa instalação comercial ou industrial ou outra, sob protecção e cuidados humanos, para qualquer fim que não seja o do seu tratamento e recuperação ou, no caso disso, a administração de uma morte imediata e condigna; 
d) Abandonar intencionalmente na via pública animais que tenham sido mantidos sob cuidado e protecção humanas, num ambiente doméstico ou numa instalação comercial ou industrial; 
e) Utilizar animais para fins didácticos, de treino, filmagens, exibições, publicidade ou actividades semelhantes, na medida em que daí resultem para eles dor ou sofrimentos consideráveis, salvo experiência científica de comprovada necessidade; 
f) Utilizar animais em treinos particularmente difíceis ou em experiências ou divertimentos consistentes em confrontar mortalmente animais uns contra os outros, salvo na prática da caça.

+
Fonte da imagem [capa da primeira edição do livro de George Orwell], aqui.

2ª feira próxima


Diria que Segunda-Feira regresso à minha profissão. Mas, na verdade, nunca deixei de estar com a minha profissão. É daquelas que nos seguem como uma sombra, porque há prazos que nela nunca se interrompem, porque as angústias e ânsias daqueles que assistimos não se suspendem no tempo apenas faz intervalo, quando possível, o respeito que alguns têm ante o tempo em que nos supõem a descansar.
Além disso, tenho feito ironia com a frase de "estar sempre de férias", forma de me organizar fazendo, durante todo o ano, para além do que devo o que quero, descansando sempre que posso, mesmo quando descansar é fazer outra coisa.
+
Fiz ponto de honra não usar este espaço para falar da minha profissão nem dos casos profissionais. Acho que nunca quebrei, nem por aproximação, essa regra. E, no entanto, como se imagina, pretextos não faltariam porque cada dia é um manancial de razões para trazer aqui todo o teclado de sentimentos nesse piano de acontecimentos que vão do risível ao revoltante, só para me ficar pela letra erre. Mesmo nos dias em que apeteceu gritar alto ou em que fez sentido o "é preciso avisar toda a gente", abstive-me. Talvez tenha feito mal mas é um modo de ser. E contra isso a razão pode pouco e a vontade de intervenção cívica fica desguarnecida.
+
Assim, Segunda-Feira não regresso, pois, à minha profissão, continuo, afinal, com ela. Para além disso, mantenho-me naquela outra vida que tenho procurado viver, a da escrita e agora a da edição, esta a diminuir o tempo para aquela, ambas a abrir espaço para o perpétuo renascer através da renovação. 
No campo jurídico tinha planeado ter adiantado para Setembro dois livros, mas talvez isso só seja verdade mais para o fim do mês. 
É que, estando sempre de férias, devo ter estado em Agosto mais em férias do que devia, entregue àquela preguiça inocente de quem acorda cedo deita-se tarde mas trabalha pouco e dormita angustiado pelo pesadelo do que poderia ter sido, como se numa escada rolante em que se está sempre abaixo do degrau seguinte.
+
Tudo começou em 1966 quando entrei na Faculdade de Direito. Cinco anos depois, quando saí, queria ser juiz. O tempo ocupou, porém, o seu espaço. Proporcionou-se mais tarde ensinar e estudei, enfim, para isso. O resto tem sido a profissão, a avalanche dos factos e das histórias de vida de que se é confidente, a esmagadora maioria a de pessoas de quem não reza a História. 
A realidade tem pouco a ver com o mito, assim como o sonho é diverso da ilusão.

O estado de Citius...


É parte do caos: «A plataforma CITIUS estará indisponível desde as 24h00m do dia de hoje 26 Agosto 2014 (Terça-Feira), até às 24h00m do dia 31 Agosto 2014 (Domingo), devido à realização de intervenções técnicas», informa-se.
Estamos para ver o estado em que estarão tribunais, processos, magistrados, funcionários no dia 1 de Setembro.
Isto por causa de algo que, recém chegada a troika, foi propagandeado pelas hostes governamentais como uma das causas do atraso económico do País, a morosidade na Justiça, de que o mapa judiciário seria a prioritária solução.
A propósito será interessante ler isto aqui que consta do site do Ministério da Justiça como sendo o papel deste e, afinal, o seu plano de acção, ante os memorandos com a dita troika.



Homicídio e OIF qualificados: a 32ª alteração ao Código Penal


É trigésima segunda alteração ao Código Penal de 1982, decretada pela Lei n.º 59/2014, de 26 de Agosto [ver aqui], alterando o artigo 132º do Código Penal e assim qualificando o homicídio e as ofensas à integridade física de solicitadores, agentes de execução e administradores judiciais.
Como se legisla ao sabor da casuística, fica por saber porque se não qualifica o homicídio e as ditas ofensas quando cometidas sobre revisores oficiais de contas, os notários privados ou aqueles que, em geral, devido à natureza da sua profissão, vêm a sua vida e segurança posta em risco.
Além disso, prevendo-se no artigo em causa, como uma das entidades especialmente protegidas pela qualificação do crime, os funcionários, e admitindo-se que se pretenda aí o conceito de funcionário no sentido incomum penal, previsto no último artigo do Código Penal - outra estranha particularidade do nosso sistema a pôr em crise a noção de plenitude e coerência do ordenamento jurídico, o qual vale como mera regra aparente - sempre fica a dúvida quanto a saber se os casos que em concreto se previram já não estariam, por aquela forma, tutelados penalmente.

França: nova reforma penal


Em França, a lei de 15 de Agosto deste ano, agora publicada no jornal oficial, do dia 17 [ver o texto aqui], aprovou, na sequência de esforços da ministra da Justiça, Christiane Taubira, a Reforma Penal, de há muito controversa.
Eis os principais eixos da reforma [para desenvolvimentos ler aqui e aqui] cujo propósito essencial é o combate à reincidência [que é o critério de sucesso de uma política criminal]:


-» Il supprime les automatismes qui entravent la liberté du juge et font obstacle à l'individualisation de la sanction. Sont ainsi supprimées les peines plancher et les révocations de plein droit du sursis simple ou du sursis avec mise à l'épreuve. La peine encourue par les récidivistes demeurera doublée par rapport à celle encourue par les nonrécidivistes et le juge conservera la possibilité de prononcer la révocation des sursis antérieurs par décision motivée si la situation le justifie. Il instaure ensuite la césure du procès pénal : le tribunal pourra, après s'être prononcé sur la culpabilité, ajourner la décision sur la condamnation afin qu'une enquête sur la personnalité et la situation sociale du condamné soit effectuée. Le tribunal pourra ainsi statuer sur les dommages et intérêts des victimes dès le prononcé de la culpabilité et obtenir les éléments nécessaires pour déterminer la sanction la plus adéquate. Dans l'attente de cette enquête, il pourra placer en détention le condamné si cela est nécessaire.

-» Crée une nouvelle peine, la contrainte pénale: cette peine pourra être prononcée lorsqu'un délit est puni d'une peine d'emprisonnement maximale inférieure ou égale à cinq ans. Cette nouvelle peine n'est pas définie par rapport à une durée d'emprisonnement de référence. Elle ne se substitue pas aux peines existantes mais s'y ajoute, de sorte que les juges disposeront d'un nouvel outil de répression. Cette peine vise à soumettre la personne condamnée, pendant une durée comprise entre six mois et cinq ans et qui est fixée par la juridiction, à des obligations ou interdictions justifiées par sa personnalité, les circonstances de l'infraction, ou la nécessité de protéger les intérêts de la ou des victimes ainsi qu'à des mesures d'assistance et de contrôle et à un suivi adapté à sa personnalité. Ces mesures, obligations et interdictions seront déterminées, après évaluation de la personnalité de la personne condamnée par le service pénitentiaire d'insertion et de probation, par le juge de l'application des peines. [ver desenvolvimentos aqui]. Les obligations peuvent être la réparation de dommages causés par l’infraction, l’obligation de suivre un enseignement ou une formation professionnelle, des traitements médicaux ou des soins, ou encore un stage de citoyenneté. Le condamné intègre un programme de suivi et de contrôle, visant à le responsabiliser et à interrompre sa trajectoire de délinquance. Le condamné pourra aussi se voir contraint de participer à des programmes individuels ou collectifs de prévention de la récidive. Les interdictions, elles aussi en relation directe avec l’infraction, peuvent par exemple empêcher la personne condamnée de conduire un véhicule, d’entrer en relation avec la victime, de fréquenter les débits de boisson, de se présenter dans certains lieux.

-» Instaure un nouveau dispositif pour éviter les sorties de prison sans contrôle ni suivi: lorsque les condamnés sortent de prison sans contrôle et sans suivi, le risque de récidive est nettement majoré. Afin d'éviter ce type de sorties, la réforme introduit le principe d'un examen systématique de la situation de tous les condamnés qui ont exécuté les 2/3 de leur peine. S'agissant des longues peines (supérieures à cinq ans), la situation des condamnés sera obligatoirement examinée par le juge ou le tribunal de l'application des peines qui statuera après débat contradictoire sur l'octroi éventuel d'une libération conditionnelle. S'agissant des courtes peines (inférieures à cinq ans), la situation des personnes condamnées sera examinée par le juge de l'application des peines en commission de l'application des peines

Pena de morte: proposta de restabelecimento em 1937


«Em 1937, o Deputado José Cabral [José Pereira dos Santos Cabral] apresentou o projeto de lei n.º 191, que estabelecia a pena de morte para crimes contra a segurança do Estado, alterando o n.º 11 do artigo da Constituição Política da República Portuguesa. Até 1976, o Código de Justiça Militar manteve a pena de morte. Atualmente, segundo o artigo 24.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, “em caso algum haverá pena de morte”.» [fonte: newsletter da Assembleia da República, aqui; ver mais aqui].

+

«[...] José Pereira dos Santos Cabral [1885-1950], nasceu [16 de Setembro] em Travanca de Tavares (Mangualde). Formado em Direito por Coimbra [entra em 1906-07], foi advogado em Fornos de Algodres, director-geral dos Serviços Prisionais (1929), presidente da direcção da Associação do Patronato das Prisões, director geral dos Serviços Jurisdicionais de Menores, director dos Serviços de Acção Social e Política da Legião Portuguesa (medalha de oiro, por dedicação), administrador das Companhias Reunidas de Gás e Electricidade, da Companhia das Águas de Lisboa e presidente da assembleia-geral da Companhia de Seguros "Europeia". 
Monárquico [aparece como candidato eleito nas listas monárquicas, pelo círculo nº 18 de Gouveia nas eleições de 28 de Abril de 1918 e participa narevolta monárquica de 1919, tendo de exilar-se em Espanha] e católico, pertenceu ao grupo fascista formado em torno da revista Ordem Nova, à Liga Nacional do 28 de Maio e foi militante nacional-sindicalista [integrou e chefiou o grupo de Coimbra, fazendo parte do directório do Grande Conselho Nacional Sindicalista]. Mais tarde aderiu ao Salazarismo e à União Nacional [participa, mesmo, no I Congresso na União Nacional] rompendo (Março de 1934) com chefia dos “camisas azuis” de Rolão Preto e Alberto de Monsaraz[a cisão no movimento nacional-sindicalista e o “trânsito” para o Estado Novo foi acompanhada por outros, como Pedro Teotónio Pereira, Manuel Múrias,João Costa Leite (Lumbrales), Fernando Pires de Lima, Eusébio Tamagnini, Cabral Moncada, Ramiro Valadão, Supico Pinto, Dutra Faria,Luís Forjaz Trigueiros, Amaral Pyrrait, Castro Fernandes].
Curiosamente a proposta de dissolução do Movimento Nacional-Sindicalista(e a aceitação da liderança por Salazar) partiu do próprio José Cabral, na reunião do directório de Agosto de 1934» [fonte, aqui]
+
Fonte da foto: Ephemera.

A presença do arguido: da sujeição à dispensa


Está publicada no último número da Jurismat, a revista jurídica do Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes. Não querendo prejudicar a leitura integral, deixo aqui o que é o tema de abertura dessa crónica sobre a presença do arguido no processo penal, o que ora é um estado de sujeição ora uma formalidade tida como dispensável, dependendo de razões que exigem que se convoquem os princípios para que tudo seja repensado. E foi esse o objectivo do que escrevi, o fomentar a discussão.

«Ao contrário do processo civil – de onde dimanaram historicamente alguns dos conceitos do primitivo processo penal – a presença do arguido na audiência de julgamento é um requisito lógico ante a natureza do sistema de justiça de que se trata e com ele compatível numa unidade indissociável.

Várias são as razões que podem ser alinhadas em tal sentido:

(1) Como forma única de o fazer sentir aquele acto processual como coisa sua, ante o qual ele haverá de interiorizar os termos em que decorre a tramitação, a produção da prova, afinal, o próprio ritual de julgamento, criando no seu mundo cognitivo a representação da Justiça em acção, e na sua emotividade, os sentimentos consequentes dos quais resultará a sua adesão ao sistema de valores do Estado de Direito;

Creio ser este o ponto nodal do sistema, tantas vezes esquecido por alguma da nossa prática judiciária: o julgamento não é uma formalidade em que a presença do arguido seja algo dispensável, sim momento formal essencial de um ritual que é – em caso de condenação – o primeiro passo para a interiorização pela sua pessoa dos valores basilares do Estado de Direito, das regras de vivência comunitária, em suma, o iniciar do caminho para a sua ressocialização.

(2) Como meio adestrado a garantir-lhe a percepção da prova que vai desfilar ante o pretório, aquela que o poderá incriminará e aquela de onde poderá resultar a sua exculpação, tudo lhe proporcionando a oportunidade de sobre isso formar um juízo e, em nome do contraditório, intervir, fazendo consignar a sua posição;

Como poderá alguém que não o próprio, cujos actos estão sujeitos a julgamento, percepcionar, até ao limite do pormenor relevante, o que é dito pelos coarguidos – tantas vezes propensos a exonerarem-se sobrecarregando no ausente – pelos ofendidos, pelas testemunhas, o que está nos documentos, o que é, em sede de prova pericial tida como verdade oponível autoritariamente ao próprio poder de julgar (veja-se o artigo 163º)?

Como poderá um defensor consciente sentir-se confortável ante factos ou alegados factos que atingem aquele que assiste sem ter consigo quem sobre eles dar-lhe o arrimo de uma versão, um comentário, uma sugestão quanto à forma de os contraditar?

Acaso não é a percepção de um tribunal prudente que, tendo diante de si o próprio arguido, pode fazer funcionar, nos seus rigorosos termos, a regra da imediação probatória, que não é um princípio atinente à forma do processo, mas meio instrumental essencial para se alcançar a íntima convicção, a qual é critério reitor da aferição da prova, consoante o artigo 127º do CPP?

Como, sem a presença do próprio, medir a reacção, até fisionómica, que a prova produz naquele contra quem ou a benefício de quem é produzida?

Como aferir, com empenhamento e profundidade, da personalidade de quem é julgado e assim a culpabilidade – que é o requisito ético de um Direito Penal da culpa – sem ter em julga-lo a personagem do qual se cura? E não se diga que se julgam apenas factos na sua dimensão objectiva, sim factos oriundos de seres humanos concretos que na sua possível prática se envolvem com a dimensão integral dos seus seres e que, julgados em ausência ou com rara presença, não são – diga-se – julgados sequer, sim avaliados apenas um corpo decapitado de ocorrências sem causa.

(3) Como local onde, por estar em causa o apuramento da sua responsabilidade, lhe é conferida a oportunidade formal (artigo 61º, n.º 1, b)) de a poder reconhecer, através de confissão (artigo 344º), de a negar, ou invocar circunstâncias mitigadoras da mesma, prestando declarações, querendo fazê-lo, pois que quanto aos factos a tal não é obrigado (artigos 343º, 61º, n.º 1, d)).

Estamos ante um sistema em que a confissão é acto pessoal, insusceptível de ser prestada mediante representação, mesmo nos casos em que, ausente, o arguido é representado pelo defensor (artigo 343º, n.º 4 e artigo 344º).

Trata-se daquela pessoalidade que não está coberta pela faceta da defesa em que esta, para além de garantir a assistência técnica ao arguido, opera como representação do mesmo (artigo 63º, n.º 1).

Toda uma progressiva aculturação que tem vindo a tomar conta do nosso subconsciente colectivo em matéria de justiça penal tem trazido, porém, a representação imagética do julgamento criminal com um figurino em que, tal como no processo civil, o arguido está ao lado do seu defensor, e não sentado na cena de julgamento, como o vértice para onde tudo naquele acto converge; assim é no que chega em doses maciças pela cinematografia, pela televisão, dos julgamentos norte-americanos.

De facto, a arquitectura das nossas salas de audiências para a justiça penal traduz bem essa triangulação de que o “banco dos réus” é o vértice, estando contidos no interior de tal corpo geométrico, na lateral, o Ministério Público, a representação forense dos ofendidos e os defensores, o funcionário que assiste ao acto e redige a acta e, presidindo, os juízes. É nesse espaço geométrico que tudo ocorre; o vértice determina o ponto de convergência, simbólica que denota o sentido e significado do que ali se passa.

A própria prova por declarações e testemunhal ocorre dentro dessa espaço e diante do arguido, se bem que nem sempre em termos de este poder visionar o rosto de quem é ouvido, construção que é apta a pôr em crise um requisito essencial da defesa, qual seja a plenitude da percepção da prova por aquele que sofre os efeitos da mesma.»

A unicidade do TCIC


Fui dos que afirmei publicamente que o Tribunal Central de Instrução Criminal deveria voltar, no seu funcionamento interno, ao modelo com que já operara, o de um juiz para a prática dos actos jurisdicionais em sede de inquérito e um outro para a fase de instrução.
O regime que vigorava nos últimos tempos era o de impor ao mesmo e único juiz o dever se avaliar da legalidade dos actos que ele próprio praticara em sede de inquérito - quando arguida a sua invalidade através da instrução - e tudo decidir sem recurso.
Não estando em causa a probidade das pessoas, nem a fulanização da questão, sim uma questão de princípio, nunca me convenci de que este sistema fosse compatível com a Lei Fundamental apesar de o Tribunal Constitucional o ter viabilizado, pois nele cumulava-se na mesma entidade judicial a competência para o acto e para a sua sindicância, pondo em causa um pilar fundamental da estruturação do judiciário que é a terciarização face ao caso; isto para além das garantias defesa, que já quase se tornou argumento anémico na actual conjuntura jurídica. Isto para além de supor que a avaliação indiciária em sede de instrução pudesse ser outra quando imposta a respectiva apreciação a um magistrado que fora densificando a sua íntima convicção através dos actos que autorizara, a que presidira e que praticara, como o interrogatório de arguido detido, as intercepções de comunicações, as buscas.
Mais: não compreendi que fosse exigível a um magistrado o esforço acrescido de distanciamento para que, desligando-se do envolvimento que tivesse tido no inquérito, conhecer com a isenção e independência a que está adstrito, o que dera como adquirido pelo seu prévio activo envolvimento com o caso. 
Isto até porque o legislador, ao blindar e brindar com a irrecorribilidade a pronúncia obediente à acusação do Ministério Público, criava, em geral para todas as instruções e não apenas para as daquele Tribunal, uma questão de consciência pessoal: expor a decisão instrutória a recurso, distanciando-a do objecto configurado pelo Ministério Público ou conformá-la nos precisos termos em que este o delineara o caso, garantindo-lhe assim, através do conformismo, estabilidade e, sobretudo, intangibilidade.
Apercebo-me que o problema pode ter perdido actualidade pela nomeação de outro magistrado para aquele tribunal. Resta saber se, em termos da competência funcional, se trata da mera repartição de processos, se de divisão de competência por fases.
É que, ante o que leio - e confesso que leio pouco - parece-me que se está a centrar o problema em termos duplamente inaceitáveis: ou como o fim de um regime de suspeição sobre quem desempenhou funções ou como uma mera partilha da massa processual que por ali se tramita, oriunda do DCIAP que goza do benefício de ter aquele tribunal privativo, o que, só por si, é também uma outra questão; ou como uma mera questão de divisão do excesso de processos, como se de uma questão de gestão burocrática se tratasse.

+
Fonte da foto: aqui

Imunidade dos Advogados


Fica aqui, em primeiro apontamento, o texto da intervenção ontem efectivada na conferência organizada pelo Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados. A minha gratidão pela oportunidade e a intenção de continuar o estudo do tema, melhorando este mero esboço.


A CRP e a Advocacia: primeiro, o facto sintomático: a Constituição da República Portuguesa, que dispõe no título dedicado aos tribunais um capítulo próprio para os juízes e outro para o Ministério Público, nenhum espaço sistemático reserva para os Advogados ou para a advocacia, o que só pode ser entendido como uma desconsideração no quadro do travejamento estruturante da Lei Fundamental destes profissionais e desta função de natureza, aliás, pública.
E, no entanto, trata-se de corpo normativo em que os legisladores não terão sido membros daquelas duas magistraturas, pois os advogados têm significativa expressão no hemiciclo parlamentar a ponto de se colocar reiteradamente a problemática da cumulação da profissão de Advogado com a da função política de deputado.
Apesar deste apoucamento normativo, é ali que encontramos o artigo 208º, segundo o qual «a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça.». E, eis, a baliza que enuncia o objecto do nosso tema.
Trata-se, pois, num primeiro encontro com o enunciado jurídico-constitucional, de uma situação duplamente limitada na sua formulação: está prevista, primeiro, sob reserva de lei e considerada, depois, como atinente às imunidades «necessárias». Nesta segunda vertente, diga-se, a fórmula usada lembra o texto da Constituição de 1933 quando previa que ao arguido se conferiam em processo penal, não «todas as garantias de defesa», como actualmente lautamente se promete na Constituição desde 1976, sim as «necessárias garantias», para que sobejo não houvesse no que à outorga de garantias respeita.

Conceito de imunidade: de que imunidade se trata esta que estamos considerando? Estaremos ante o mesmo conceito que surpreendemos no ordenamento jurídico quando este, em vários dos seus momentos, logo na Constituição, utiliza tal vocábulo? Creio que não.
Pacífico parece que a imunidade dos advogados não implica irresponsabilidade total pelos seus actos, a “inviolabilidade” do Advogado, como, por exemplo, o proclama, talvez também em excesso e por isso no vazio, mas afinal de modo aparente, a Constituição brasileira, ao ditar no seu artigo 133º que: «O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão nos limites da lei.»

[continua aqui]

+
Fonte da imagem aqui

A Justiça fora do mapa...


À mercê da retórica, o País assistiu à afirmação reiterada de que havia falta de juízes, sobrecarga no trabalho dos que serviam nos tribunais, na necessidade de o Centro de Estudos Judiciários habilitar a Justiça com mais magistrados, mesmo através de meios extraordinários e céleres de formação. Vem agora o "mapa judiciário" e os portugueses assistem à noção exactamente inversa, a de que, afinal, há juízes e procuradores a mais. E ficamos todos perplexos.
+
Tendo ouvido dizer que, em obediência às regras gerais de legitimação da Justiça, esta deve desempenhar uma função preventiva, sobretudo a penal, para que que, em função do julgamento, a comunidade aprenda que o crime não compensa e se abstenha de fazer o que nos tribunais se condenou, o País assistiu à noção da Casa da Justiça, o tribunal ao pé da porta, os juízes de fora que iam às comarcas, as NUTS, enfim, a Justiça de proximidade e assiste agora ao encerramento de tribunais, a julgamentos que vão ter lugar a dezenas e dezenas de quilómetros do local onde tudo se passou, essa forma da desaforamento encapotado em favor do tribunal de conveniência. E ficamos todos boquiabertos.
+
Tendo visto os políticos clamarem o imperativo da reforma judiciária e o consequente "mapa judiciário", como condição essencial ditada pela troika porque o País real, o produtivo, o empresarial, estaria bloqueado por causa do mau funcionamento dos tribunais, o País apercebe-se que só quando a troika se foi, enfim, embora, é que o dito "mapa" surge, e, afinal, com isso, estão suspensas as marcações de julgamentos, haverá milhares de processos que vão ser encaixotados, juízes transferidos, magistrados novos que vão ter pegar nos processos desde a estaca zero quando havia outros que já os conheciam de fio a pavio. E ficamos como parvos.
+
Tendo aprendido a não acreditar em coisa alguma, o País, não quer de nada saber. Problema é o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol. E, em matéria de juízes, grave é o que se passa com os árbitros de futebol! O mais que se dane!
+
Viva, pois, tudo, e viva, por isso, nada! Tanto faz. 
O mapa judiciário, esse, será, assim, apenas um problema de camionagem, com polícias e soldados a alombarem com processos de cá para lá. 
+
Conclusão: sem os Ministérios da Defesa e da Administração Interna, que seria do Ministério da Justiça? E porque é que, já que de mapas se fala, não se pediu ajuda aos Serviços Cartográficos do Exército, e, ao Instituto Português do Mar e da Atmosfera, para se decidir o caso de tribunais nas Berlengas, no Farol do Bugio, e sobretudo nas Selvagens?

A Justiça na Constituição de 1976


A gentileza do Centro de Estudos Judiciários permitiu que eu tivesse proferido ali a seguinte intervenção, que irei agora rever tentando melhorar e corrigir, mas que aqui fica como uma primeira reflexão:


«Quais as questões controversas no domínio da Justiça, quando eclodiu o 25 de Abril de 1974, onde surgiu, com a queda do regime político anterior, a situação que acabaria por encontrar na Constituição de 1976 a sua primeira fase de pretensa consolidação?

Correndo o risco de simplificar, e porque o tempo é limitado, enuncio as seguintes:

-» A da separação das magistraturas, pois que a carreira do Ministério Público era vestibular da judicial, mesclada por passagem de alguns selectos “delegados do Procurador da República” pela Polícia Judiciária;

-» A da autonomia do Ministério Público e do próprio poder judicial face ao Executivo, pois que eram ministros quem acabavam por deter a competência para a nomeação dos delegados e de certos juízes, nomeadamente os que serviriam em cargos mais sensíveis;

-» A dos tribunais especiais, nomeadamente o plenário criminal para o julgamento dos crimes políticos, apodados de crimes contra a segurança interna e externa do Estado, sistema pelo qual a magistratura judicial se coresponsabilizava em tal repressão, sucedendo nisso ao que até então era da competência do Tribunal Militar Especial;

-» A da judicialização das fases nevrálgicas do processo criminal, quer na averiguação pré-acusatória, quer na fase pós-acusatória e antecedente ao julgamento, a primeira ou para apenas para garantir os direitos fundamentais civis ou para funcionar como modo judicial de investigação com afastamento do Ministério Público, a segunda como forma efectiva de garantir controlo da acção penal pública, sobretudo em caso de arquivamento que poderia passar a funcionar como autêntica amnistia administrativa;

-» A prevalência e avantajamento de meios de acção dos órgãos de polícia criminal, quer da Polícia Judiciária propriamente dita, quer da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), mais tarde crismada em DGS (Direcção-Geral de Segurança), isto por comparação com os poderes concedidos a magistrados;

-» A da indefinição da privação da liberdade, quer pela indeterminação dos pressupostos da prisão preventiva, quer pela prorrogabilidade e indefinição temporal das medidas de segurança e de certas penas, quer pela ineficácia do habeas corpus;

-» A da legitimação da justiça togada e a eventualidade de a participação privada na administração da justiça poder torná-la mais equitativa quanto eficaz;

-» O das garantias de defesa em processo criminal.

Nem tudo poderá ser aqui analisado. Circunscreverei, pois.

Todo este acervo de problemáticas decorria de uma longa polémica que várias vezes se colocou, umas vezes de forma explícita e polémica – como quando se aprovou, em marcha acelerada o Código de Processo Penal de 1929, tirando da gaveta um projecto que vinha da República Velha – outras já sotto voce – devido aos riscos inerentes ao exercício da liberdade de expressão – e foi assim que se passou quando das reformas aprovadas entre 1945 e 1954.

Não podendo aqui historiar esse longo e polémico curso dos acontecimentos, retomo parte dos temas que enunciei, focando-os naquilo em que a Constituição de 1976 acabou por encontrar solução.

[continua aqui]

Ramalhal visão



Com o devido respeito, que é muito, e o farto riso, que é maior, este excerto que vem dos tempos em que Eça de Queiroz proclamava que forraria o seu quarto de estudante coimbrão "a pele de Lente": «Em cada ano, pelo verão, quando as moscas chegam, a Universidade de Coimbra: abre as suas portas e esparge sobre o corpo social trinta bacharéis formados em direito. O país, tendo reconhecido nos últimos anos que há cinquenta indivíduos para cada um dos lugares destinados pelo estado para um jurisconsulto inteligente e sábio, havendo portanto para cada emprego provido um saldo importuno de quarenta e nove sábios desempregados, pede insistentemente à universidade que lhe mande bacharéis ignorantes a fim de que o país, não podendo, como é impossível, fazer deles procuradores da coroa, possa pelo menos estabelecê-los como contínuos de secretaria.(...)»

Ramalho Ortigão, As Farpas (1872)

O humor e a compreensão



O humor não ofende. Ajuda a compreender. A epistemologia contemporânea, sisuda e chata, dominada pela frieza lógica e seus resfriados mentais recolhe-a entre cobertores. 

O longo penar do sistema penal


Mandam as boas maneiras que não publique aqui a totalidade do texto, quando acaba de sair a revista que o edita, a "Julgar". Escrevi sobre a Justiça no Estado Novo. Ante muitas das afirmações que ali produzi, críticas para a actualidade por comparação a esse passado, há uma declaração de interesses que julgo necessária: a Justiça desse regime impediu-me de seguir a magistratura, porque, submisso à informação da Direcção-Geral de Segurança a meu respeito - segundo a qual eu «não dava garantias de cooperar na realização dos fins superiores do Estado» - me barrou a porta de acesso ao Ministério Público, então carreira vestibular para a magistratura judicial, mesmo que eu tivesse eleito como primeira comarca a Graciosa, e terminado com «qualquer outra» que se encontrasse vaga.
Digo isto, que já tinha tornado público, porque, num território em que pulula o argumento ad hominem, pelo qual, não se podendo atacar o argumento se ataca a pessoa, é bom que conste.
Ficam pois alguns excertos do que escrevi, os da introdução. O artigo é uma tentativa de síntese histórica, para tentar demonstrar que no campo das leis penais, o regime caído a 25 de Abril, se contentou até 1945 e mesmo depois da Constituição de 1933, com a lógica que provinha da "República Velha" e até da Monarquia - disso é exemplo o Código de Processo Penal de 1929 e a subsistência do Código Penal de 1852/versão de 1886 - e só em 1945 inaugurou um sistema próprio, compatível com a "nova ordem" que, entretanto, o desfecho da Segunda Guerra havia apeado na Europa.

+

«Não pretendo que este texto seja um ensaio, um estudo, sim uma crónica. É talvez estilo que, não sendo muito usual entre nós no domínio da literatura jurídica, talvez se adapte a fomentar no leitor o gosto pela sua leitura. Não tem o aparelho de erudição que seria necessário para um trabalho académico. É uma reflexão pessoal de quem, tendo entrado na Faculdade de Direito em 1966, conviveu com um regime político que, à data em que estudou Direito Penal e o seu processo, ainda não havia aquele entrado na fase de liberalização que se assinalaria em 1971, alguém que viveria, quer pela vida prática, quer pela participação na vida pública, o que foi o sistema que irrompeu, no ano de 1974 em revolução, até à Constituição de 1976 e depois disso até à situação a que hoje se chegou, em que não se construiu regime algum e se vive o ocaso da partidocracia tornada administração pública comanditária do capital tornado Europa.
Se me é permitida mais uma nota pessoal, direi que de crítico, o autor destas linhas passou a céptico. Concluiu, na recta final da sua vida de jurista, que tenta tornar em recomeço para ganhar o fôlego da esperança, que, lamentavelmente, em muitas facetas o regime jurídico-penal a que se opôs publicamente, porque era o de uma ditadura, não era pior, em alguma das suas facetas, do que aquele que temos de suportar no que se proclama como sendo uma democracia.»

(...)

«Começo com uma declaração de filosofia própria, ou seja o meu modo de entender as coisas na área do jurídico: para compreender o Direito, nomeadamente o Direito Penal, é preciso surpreende-lo na política lato sensu, nas ideologias, nas crenças e nos interesses, nos a priori dos Estados e das pessoas que os integram como governantes e cidadãos, no próprio espírito do tempo e do lugar, na antropologia global do ser, não apenas na hermenêutica das fórmulas legais.
O Direito não é uma produção liofilizada, bacteriologicamente pura, nem uma silogística alcançável more geometrico como mera operação mental. É também argumentação e legitimação do conveniente, evasão à responsabilidade, triunfo de idiossincrasias feitas teoria, sofisma, expediente. Trata-se da “luta pelo Direito”, como magistralmente o surpreendeu Rudolph Ihering, travada no campo do processo legislativo, antes disso nas estruturas de onde dimana o mando e, com ele, o poder de legislar, e depois disso, nos vários órgãos da Administração da Justiça, locais onde o legislado qual mera corporização intelectual, se torna no Direito a ser sentido na pele pelos destinatários do mesmo, os culpados, os inocentes e o grande vagão do meio, o daqueles relativamente aos quais estes conceitos são meras ficções de territórios seguros, de fronteiras fixas; porque não pode em dicotomia o mundo jurídico conter-se nos binómios verdadeiro/falso, justo/injusto, culpado/inocente.
Digo mais: tudo isto se torna urgente, como bandeira por um repensar as origens num momento de sedução intelectual de tantos com responsabilidades no domínio da justiça penal pelas ideias privatísticas da “justiça negociada”, da própria “pena negociada”, da transação tornada justiça, o “negócio jurídico” a romper do Direito Civil onde contaminou todas as suas estruturas conceituais para o campo do Direito Público e, último reduto, do próprio Direito Criminal, num tempo histórico em que a “taylorização” tomou conta do processo penal, como se ele fosse a linha de montagem da fábrica de automóveis do senhor Henry Ford, em que a estatística e a prevalência do número passaram a critério, nomeadamente em que nos processos a fracção anual entre os pendentes os entrados e os findos é índice de avaliação do bom magistrado, o que mais “despacha” processos, em que a celeridade processual passou a valor maior, com o que significa de triunfo do utilitarismo e do pragmatismo, enfim, os pilares da cultura yankee com o que nisso se contem o “admirável mundo novo” mas também o “far west”, há que afirmar que o processo penal não é apenas um formulário de formalidades, os seus agentes não são “burocratas da coacção”, por mais que o Estado sobrecriminalize para defender os seus réditos fiscais, por mais que situações graves sejam sujeitas a processos celerados pela aceleração legalmente imposta, mesmo quando noções que deviam ter, ou a Constituição é um proclamação vazia, conteúdo e substância como a de arguido, a de excepcional complexidade, a de “facto novo”, a de “indício suficiente”, e tantas outras, acabem reduzidas a pretextos e expedientes para prolongar a prisão preventiva, para sujeitar casos a julgamento onde triunfará a lógica do “logo se verá” os «os mega processos que dão mega absolvições», mundo em que violências processuais inadmissíveis são toleradas como meras irregularidades que três dias de sonolência legitimam, de selectividade punitiva para efeitos de estrondosa exemplaridade, de agraciamento de uns e estigmatização mediática de outros.»

(...)

«A revolução militar do 28 de Maio tornou-se no Estado Novo através da Constituição de 1933.
Aqueles que sonhavam com um regime em que a palavra “revolução” fazia sentido, como forma de ressurgimento nacional contra o demoliberalismo de partidocracia em perpétuo rotativismo em que tornara a então chamada 1ª República pagaram com o exílio e com a liberdade e com a própria vida essa ilusão macabra.
António de Oliveira Salazar, católico conservador, jurista de formação mental, oriundo de uma ruralidade de princípios que nele se tornou atavismo, habilidade e culto da modéstia, temente à religião tradicional do Reino, fiel no culto da Família tendo a autoridade por indiscutível, teceu a teia de que resultou, cinco anos volvidos sobre o 28 de Maio de 1926, um regime que era já uma outra ideia.
Não que o general Gomes da Costa na sua marcha sobre Lisboa, vindo do norte regenerador, tivesse mais ideias do que a de Pátria e Nação. Faltava-lhe, porém, pela positiva, uma filosofia sobre o Estado. Queria a ordem nas ruas e no Estado. Pouco mais e já não era pouco. Portugal tinha caído na banca rota.
Foram anos decisivos os que se viveram então. Entre o nacional-sindicalismo de um Francisco Rolão Preto, que terminaria preso, o restauracionismo monárquico de um Paiva Couceiro, que se finaria derrotado, ia um mundo, tudo caldeado pelas tentativas de subversão da banda anarquista, filo-comunista e as sobrevivências já dispersas dos que tinham sobrevivido às hostes republicanas.
Em 1933 uma falsidade política legitimou a Constituição de 1933. Sujeita a “referendo popular”, nela as abstenções valiam como aprovação com base num sofisma tão cínico quanto seria o de os próprios mortos valerem como votos na urna.
Como é sabido a política de “neutralidade colaborante” de Portugal durante a Segunda Guerra permitiu que Salazar se mantivesse no poder quando em 1945 a sorte das armas fez claudicar as ambições imperiais do III Reich de Adolph Hitler e do Eixo nazi-fascista.
Esse perdurar do salazarismo, que se esgotara como política nova, e entraria em agonia com o início da insurgência armada nas colónias em 1961, com a revolta da baixa de Cassanje e a invasão de Goa pela União Indiana, em que já só se tratava, contra os «ventos da História» em saber resistir, foi – e como tantos historiadores arregimentados fingem esquecê-lo – obra da gratidão aliada, favor à cedência aos americanos da base dos Açores, aos esforços que permitiram, para garantia britânica, que Francisco Franco Bahamonde, o Generlaíssimo, não alinhasse com a Alemanha, resistindo a Hitler naquele vagão de caminho-de-ferro em Hendaye, colocando a ensanguentada Espanha em situação de não-beligerância, enfim, por haver fechado dos olhos às deslealdades da Loira Albion, a nossa mais velha Aliada, a Grã-Bretanha.
Seria apenas em 1971 que, caído Salazar, empossado Marcelo José das Neves Alves Caetano, um jurista administrativista que perdera viço quando como Presidente do Conselho, que se daria, com os limites políticos da denominada “evolução na continuidade” a liberalização política do regime com a aprovação da revisão constitucional.
Marcelo tinha bebido na juventude na fonte da militância, escrevera com Albano Guimarães, os vibrantes cadernos da “Ordem Nova”, que fundara em 1926, fora Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa, pagando do seu honrado bolso, a própria farda – mas finara-se nos ímpetos pela docência conservadora, refrigério agora para uma tragédia pessoal, que por um instante intervalar se cruzaria aliás com o Direito Penal, numas magras mas e interessantes lições proferidas ao ano jurídico de 1938-1939, onde aflora um tímido tomismo e com ele o substrato vago de um Direito Natural, tudo cruzando, em intermitência, com passagens por cargos governativos, como a Presidência e as Colónias, onde o seu estilo reformista e organizador se mostrou operosamente, mas também a sua heterodoxia.
Tudo assim seria até à revolução militar do 25 de Abril, logo tornada no 1º de Maio o “levantamento nacional popular” que os sectores comunistas haviam proclamado como sendo o “rumo à vitória” contra o regime político que reduziam ao conceito de “fascismo”, irmanando-o, sem distinguir, ao de Mussolini e ao nazismo do cabo austríaco agora Chanceler do Reich dos mil anos…
A Constituição de 1976 daria legitimação ao que saíra de um “putsch” castrense tornado revolução, e cumpriria o desígnio de todas as Leis Fundamentais, a de impor uma nova «ordem social estabelecida», travando, não sem sobressaltos, o que havia mudar. Aos novos donos dos interesses apeados juntaram-se, regressados, muitos dos que retomaram o que lhes tinha sido tirado e todos irmanados no bloco central de interesses.»
(...)

O Direito que existe mas não se vê




Cito este Domingo o artigo 9º da Constituição japonesa, que abaixo transcrevo, por várias razões.
Primeiro, porque aquele País do Sol Nascente é um laboratório jurídico interessantíssimo: tem um Código Civil, encomendado a um francês [Gustave-Emil Boissonade, ver texto do seu projecto aqui] que o construiu segundo o modelo napoleónico, leis comerciais de inspiração alemã, minutadas pelo prussiano Hermann Roesler [ver aqui], cujo contributo foi decisivo para o ordenamento jurídico autoritário da dinastia Meiji [ver aqui], e, enfim um sistema jurídico-penal de inspiração americana, baseado na lógica adversarial. [sobre tudo isto ler extensamente aqui]
O que é interessante e razão deste texto é o declarado pacifismo, proclamado pelo artigo 9º da Constituição japonesa, a qual foi imposta pela potência ocupante, no estretror da Segunda Guerra, a mesma que cometeu o crime contra a Humanidade que foi o lançamento vingativo de duas bombas atómicas, em Hiroshima e Nagasaki: os Estados Unidos da América
Tudo mostra quanto o Direito é, quantas vezes, uma retórica feita aparente norma. Tudo evidencia quanto o Direito é a lei dos mais fortes.
Mas o que ainda há para dizer é a tentativa de alterar este estado de coisas. Ante um sistema constitucional assente no carácter rígido da Lei Fundamental, o Governo nipónico tenta que, por interpretação, esta proibição seja torneada, como não prejudicando o direito de autodefesa, previsto no artigo 51º da Carta das Nações Unidas. Interpretação que tem se limitar ao conceito em si, sem que extravase para o que muitos gostariam que se tornasse o âmbito de extensão da norma, o de "autodefesa colectiva", porque aí já se estaria em território proibido. 
Dispõe aquele artigo [ver aqui]: «Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou colectiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer momento, a acção que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais.»
Em suma, a vingar esta interpretação constitucional, mesmo na forma consensual, tudo ficando como está no que se lê, tudo mudaria no que sucederá ou poderá suceder.
Eis o Direito, surpreendido na sua ductibilidade, essa perigosa forma de ele ser do acto o instrumento.
Em homenagem ao espírito daquele estranho Povo, fica o facto de, mau grado serem estrangeiras as leis essenciais que o governam e impostas mesmo algumas pela força dos vencedores, o respeito pela sua perdurabilidade permanece como uma segunda pele. Por isso o site onde colhi a informação que deu azo a este escrito, dedicado ao Direito Janponês, se chama "O Direito que existe mas não se vê" [ver aqui], o que, é a poética feita modo de ser normativo.


+

«Art. 9

1 - O povo japonês, aspirando sincermanete à paz entre as Nações, fundada na Justiça e na ordem, renuncia para sempre à guerra enquanto direito soberano do Estado e à a ameaça do uso da força militar enquanto meio para resolver as controvérsias internacionais

2 – Para alcançar o objectivo do número precedente, não serão mantidas forças militares terrestres, marítimas ou aéras, ou outras forças militares. Não é reconhecido o direito do Estado de declarar guerra.»

+

Já agora, por curiosidade apenas, o original:

第九条 日本国民は、正義と秩序を基調とする国際平和を誠実に希求し、国権の発動たる戦争と、武力による威嚇又は武力の行使は、国際紛争を解決する手段としては、永久にこれを放棄する。

二 前項の目的を達するため、陸海空軍その他の戦力は、これを保持しない。国の交戦権は、これを認めない。

+
Fonte da imagem aqui