Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Delação premiada - um exemplo




Para que se entenda do que se fala - e abrindo excepção à regra editorial que impus a este blog de não me reportar a casos concretos - publico um documento que circula no ciberespaço, um acordo de delação premiada. Pode ler-se aqui.

Delação premiada-2


O facto vem do Brasil e com ele a sugestão. No âmbito de uma operação judiciária denominada “Lava Jato” tem sido feito uso generalizado da “delação premiada”. Resultados, vários: no imediato, denúncias em cascata, prisões em sequência, atingindo já o coração do sistema político governante, não se sabendo se é este o investigado ou o tecido empresarial sob suspeita; para além disso, o surgimento de advogados especializados nesta forma de delação, justificando publicamente a mesma como uma forma de defesa como outra qualquer, porque o delator obtém benefício na pena expondo o delatado a ser punido: redução da prisão em 2/3 ou substituição da prisão por penas mais benignas ou ao limite a impunidade, para além de outros «prémios acrescidos».
O debate está em aberto e estou certo que contagiará em Portugal aqueles sectores do judiciário que louvaram o estatuto de “arrependidos” – mesmo quando se generalizou a partir do núcleo inicial para o combate ao terrorismo – e ensaiaram recentemente a entronização da “pena negociada”, forma tida por análoga à da justiça norte-americana. E na escola americana se formou a linha da frente dos magistrados brasileiros que agora avançam, com amplo respaldo mediático, para a nova fase da operação, denominada “ninguém pode dormir”.
A delação premiada tem do ponto de vista da eficácia penal notórias vantagens: abre o apetite aos arguidos necessitados que dão a morte aqueles que, julgam, saciarão a fome probatória dos investigadores. E faz progredir a investigação com celeridade e redução de custos.
O problema são os seus “quês”. Já nem falo no moral, porque essa é hoje, tempos de pragmatismo, tida como uma excrescência do passado: permitimo-nos, dizem, o que censuramos aos filhos na escola. Nem refiro quanto estão em causa princípios que pareciam universais da Justiça Penal, porque o mundo mudou e com ele endureceu certo crime e está a endurecer toda a Justiça.
Refiro-me aos riscos deste expediente para a própria investigação. Este meio de obtenção da prova penal – porque a delação não é prova em si – é obtido com promessa de vantagem e sob receio de punição. O delator que veja provar-se o denunciado obtém, no mínimo, redução da pena, o que viu ser infirmado o que contou vê a sua pena agravada. Ora, não se tratando de declarações livres, e muitas vezes não sendo espontâneas, fica em aberto saber se não integram o conceito de prova proibida. Por outro lado, meio sugestivo que é, abre a porta à efabulação, que pode lançar a investigação por caminhos sinuosos e enganadores.
Tal como a concebe a justiça brasileira, esta colaboração passa por um acordo em que se envolve o próprio juiz, homologando-o. E significa que o delator renuncia ao direito ao silêncio e se obriga a prestar declarações.
Até aqui tem havido o benefício de uma jurisprudência complacente com isto, que data já de 1990, com a Lei dos Crimes Hediondos, e desde 1998 se tem vindo a estender ao universo da criminalidade económico-financeira. Mas assim o seu uso leve a situações em que a convicção judicial expressa na sentença se firme mais na íntima convicção do juiz baseada no assim delatado do que na demais prova que o confirme, assim podem os tribunais superiores entender que se transpôs a linha do admissível.

O problema é que, se no Brasil, tudo isto é muito rápido – e as condenações estão já a surgir e pesadas – em Portugal tudo pode levar anos. E, anos depois, surgirem as anulações decretadas em recurso. Com as consequências e as inconsequências do costume.

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Fonte da imagem aqui. O original do texto foi publicado no jornal Sol.

Maurice Garçon: o mal e a malignidade


Não são raros os advogados que ao Direito juntam um igual envolvimento na cultura, humanismo integral feito pelo convívio com o lado controverso, tantas vezes horrendo da vida. 
O Ministério da Justiça de França lembra a figura de Maurice Garçon [biografia aqui]. Um entrevista a ler aqui, na sequência de uma memória que o Barreau de Paris decidiu consagrar-lhe [ver aqui].
Pintor, escritor, um dos temas da sua predilecção foram os de recorte demonológico, talvez porque quem vive entre o mal compreende a malignidade. O seu journal [ver sobre ele uma recensões aqui e aqui]
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Fonte da imagem: aqui

Uma tarde em torno de Barbosa de Magalhões


Anunciei aqui o livro que estou a escrever sobre a sua biografia. Aproveitei hoje a possibilidade de uma pausa e estive a trabalhar, organizando-o, num dos seus espólios, o da Biblioteca da Ordem dos Advogados. 
Entre os papéis dispersos, referentes à sua acção como ministro da Instrução Pública, dos Negócios Estrangeiros e da Justiça, estavam também, poucos embora, os que se referiram à missão de José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães como Bastonário, cargo para o qual foi eleito a 21 de Março de 1933, tendo-« desempenhado até 1935. Momentos difíceis então, um deles o decorrente da polémica que instalou quanto à Ordem inserir-se no sistema corporativo que a Constituição de 1933 sufragaria ou manter a sua integral autonomia. 
Vistas assim à luz da História, as questões repetem-se na sua essência, mesmo quando os regimes políticos mudam. O problema é o mesmo: Estado ou Sociedade Civil, funcionalismo ou cidadania, tutela ou liberdade.

Bom Ano!


Abre mais um ano dito judicial, quando talvez se pudesse dizer forense. Para os que trabalham na área do Direito Criminal - e para alguns outros - ele nunca chega verdadeiramente a fechar. Há prazos que não são para todos. 
Abre o ano com problemas que parecem eternizar-se e com garantias que se repetem, coros de indignação e cantatas de sucesso. 
Abre o ano e os jornais respigam os «casos do próximo ano», este ano, centrando-se nos mediáticos como se não houvesse todos os outros e todos os outros fossem irrelevantes e não fossem esses, os anónimos, os atinentes à população em geral, os que raramente são história, que caracterizam o que é a justiça efectiva, feita em nome do povo e para o povo.
Abre o ano judicial e surgem e surgirão os comentadores da generalidade do que se sabe e das particularidades que é patente - e muitos o confessam - não conhecem. São os que pululam na comunicação social, mormente na televisão, a comentarem os processos dos outros, os casos que acabam de surgir, e a começarem as suas doutas considerações pelo «eu do que se passa em concreto não sei nada, porém... (...)», sem pudor do que vem a seguir ao «porém» fundado declaradamente na patente ignorância.
Abre o ano dito judicial com processos em segredo de justiça de que, no entanto, pior do que tudo se saber, sabe-se o que vai convindo que se saiba e todos a fazermos de conta.
Abre o ano forense com mais alterações legislativas, incluindo aos Códigos fundamentais, legislação oriunda de um Governo em defunção e de um Parlamento em fim de legislatura. E o mais que se promete.
Abre o ano e eu vim aqui. Trabalho, como posso, na minha profissão, e tento pensar no que estudei para ela e no que com ela aprendo. Este espaço é a demonstração de que fico aquém e a evidência da esperança de poder progredir.
A todos quantos nos revemos no dia de hoje ou nem notamos que ele existiu, àqueles que um destes dias, muito adiante, celebrarão no Supremo Tribunal de Justiça, a solene abertura do ano judicial, pois que à falta de uma há duas, sem contar com a que se fantasia no 1º de Janeiro, o dia de todas as reflexões e ganas de mudar, um forte abraço e com ele a expectativa que é a forma de aguardar o futuro por aqueles que já viram muito naquilo que viveram.

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Foto: «Palácio situado na Rua de São Domingos,esquina da Rua do Prior , construído no século XVIII, entre 1770 e 1790, para Jacinto Fernandes Bandeira, escrivão do Desembargo do Paço e Conselheiro Real, 1º barão de Porto Covo. Manteve-se na família até 1937, data em que o palácio e todo o seu recheio foram leiloados. O edifício principal e os jardins foram adquiridos pelo Estado Britânico, que entre 1941 e 1995 aí instalou a sua embaixada, o recheio artístico foi comprado por particulares e museus públicos e a capela foi entregue ao Patriarcado.» [fonte, aqui]

Drone Wars


A guerra através de "drones" veio criar novos conceitos não só ao Direito da Guerra, como ao próprio Direito Internacional, com projecção a nível do Direito Penal Internacional e Internacional Penal, incluindo no âmbito do Direito Humanitário. 
Chega-me notícia de um novo livro da Cambridge University Press [ver o site aqui] que terá vindo lançar as bases do tema. Editado por Peter Bergen e Daniel Rothenberg, é uma colectânea de ensaios que mereceu uma recensão crítica aqui.


Sobre o mesmo tema James D. Morrow fez publicar pela mesma editora universitária o seu estudo Order Within Anarchy, dedicado à temática em geral do Direito da Guerra. Uma recensão crítica pode ler-se aqui.

Delação premiada


A entrevista é apenas o ponto de partida para uma reflexão, a que segue.
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Mais do que uma prática está a ocorrer uma mudança de cultura jurídico-penal no Brasil. A novidade decorre do instituto da delação premiada, uma variante do nosso sistema dos ditos "arrependidos". Se não erro a sugestão do sistema vai propagar-se além-fronteiras. Ver o seu traço geral aqui.
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Tal cultura é subsidiária da influência que o pensamento jurídico norte-americano exerce sobre uma nova geração de procuradores e juízes brasileiros. A sua génese tem também assentimento no Direito Italiano, nomeadamente na legislação anti-mafia.

Trata-se, no fundo, de uma transação processual penal, pela qual o arguido adquire vantagens em torno de declarações úteis.

Tal decorre de lei: Lei n.º 9807/99, Lei do Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) em seu art. 8º, parágrafo único; Lei do Crime Organizado (Lei 9.304/95) em seu art. 6º; o próprio Código Penal brasileiro quando trata do crime de Extorsão mediante seqüestro (art. 159, § 4º); Lei de Lavagem de Capitais (Lei 9.613/98) em seu art. 1º e 5º; Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei 9.807/99) nos arts. 13 e 14 e na Nova Lei Antitóxicos (Lei 10.409/2002) no art. 32,§ 2º estando consagrada na Lei n.º 12850, de 2 de Agosto de 2013 [ver aqui].
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O tema abre a porta a inúmeras questões. Sem pretende esgotar e apenas como convite à reflexão, eis algumas, sem sistemática:

Do ponto de vista da eficácia do sistema:

-» Qual a certeza quanto à veracidade do denunciado pelos delatores premiados? Qual a segurança jurídica de que não estarão a adquirir benefícios em troco de afirmações úteis para a tese dos investigadores?
-» Qual a garantia de que a linha de investigação criminal não fica comprometida pelas denúncias remuneradas com os benefícios processuais concedidos?
-» Qual a evidência de que o aumento exponencial de denunciados não vai gerar, em lógica inversa, o aumento igualmente exponencial de absolvidos, assim o delatado se não confirme em audiência?
-» Em que medida é que as penas aplicadas aos delatores, na aparência severas, para executadas em regime de permissiva tolerância, não expõe o sistema à aparência que é a porta aberta para a sua descredibilização?

Do ponto de vista da arquitectura do sistema:

-» Em que medida a delação premiada abre a porta ao colaboracionismo da defesa com a acusação, gerando, em primeira linha, defensores de actuação útil aos investigadores, ou, como efeito perverso, defensores sugeridos pela investigação, como os mais adequados ao suposto benefício a obter pela delação?
-» Até que ponto o sistema não coloca em crise a independência do sistema judicial, limitado pelos achados probatórios obtidos sob delação premiada?
-» Em que medida tal sistema, incrementando por sua natureza o protagonismo dos procuradores/advogados/negociadores não gera, como seu efeito mediático, o culto da personalidade em detrimento do espírito de corpo e de critérios de reserva e contenção, apanágios de uma justiça serena?

Do ponto de vista da moral do sistema:

-» Haverá limite ao envolvimento do Estado através da autoridade judiciária, com imputados criminosos, para que, em transação, como se de igual para igual, aquele alcance os seus fins através destes meios?
-» Ou será limite imaginar que a liberdade de negociar do delator está limitada, quer pela sugestão do benefício esperado, quer pela ameaça da sanção a que se sujeita caso não aceite a delação, ainda que dos seus anteriores comparsas?
-» Em que ponto de equilíbrio se pode valorar uma delação sem manifestação de arrependimento e interiorização dos valores do Estado de Direito, assunção, em suma, de uma conduta de reintegração social?
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Estou em crer que é um mundo novo. Cada achado obtido por delação enche o espaço mediático e encontra aplauso popular. Quem levantar dúvidas corre o risco de passar pela suspeita de querer a impunidade do crime. Um dia, porém, a fronteira entre os bons e os maus estará esbatida, o justo e o injusto será apenas uma questão de pragmática.

O problema da arguição: a never ending story...


Quando integrei a Comissão de que saiu o projecto do que seria o Código de Processo Penal de 1987 pensei que ali se tinha resolvido [ver aqui o texto aprovado] o problema da arguição, quando, afinal, se tinha resolvido apenas parte desse problema. Ante a fórmula consagrada, julguei que já não seria possível inquirir-se abusivamente como testemunha aquele sobre o qual incidia a investigação e que, por isso, teria de ser constituído como arguido. Isto porque, por um lado, se indicava expressamente os casos em que haveria lugar à constituição obrigatória como arguido; por outro porque se dava ao inquirido o direito de requerer a sua investidura nesse estatuto, como arguido, no caso de estarem a ser feitas diligências de investigação contra ele; enfim, porque a partir da acusação ou do requerimento de abertura de instrução contra certa pessoa esta assumiria automaticamente o estatuto de arguido. E, enfim, que estava tudo resolvido.
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A verdade é que a partir daqui passou-se de um extremo ao outro: onde, outrora, era frequente ouvir como testemunha quem deveria ser arguido e, assim, negar ao ouvido em auto o direito a defensor e ao silêncio e obrigar o ouvido ao dever de declarações e verdadeiras, sob ameaça penal, agora passou a generalizar-se a audição como arguido à mínima eventualidade de poder recair sobre o declarante qualquer suspeita. Milhares de pessoas perguntavam-se como era possível serem arguidos com tanta facilidade e encontravam da parte das autoridades a mesma resposta: para seu benefício! Assim pode ter advogado, recusar-se a falar e até a mentir impunemente...
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Tentando enfrentar o problema a reforma de 2007 passou a exigir uma substanciação dos pressupostos de constituição de arguido, isto é a necessidade de haver fundamento indiciário suficiente para que alguém fosse constituído como tal evitando a ligeireza a que a primitiva redacção tinha dado origem [ver aqui o artigo 58º na redacção modificada]. E, diga-se, tinha dado origem porque as autoridades também receavam que a denegação do estatuto de arguido pudesse abrir qualquer brecha no sentido da invalidade do acto e, assim, fazer perigar o processo, de cuja "blindagem" lhes cabia cuidar.
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O panorama actual mostra que se trata de uma "never ending story". Se é verdade que não se castigam pessoas fazendo-as ouvir como "testemunhas" - adstritas ao dever de declarar e com verdade sob ameaça penal * - quando, pois que suspeitas, deveriam ser tratadas e ouvidas como arguidos, o certo é que se está à sombra da lei a evitar a arguição quando o próprio "inquirido" sente e sabe que, ao ser mantido como testemunha, é beneficiado pela investigação criminal que, concomitantemente, o usa para a prova que pretende. Uma sociedade de mútuo interesse.

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* A presença de advogado passou a ser possível também para as testemunhas, de modo a prevenir o testemunho auto-incriminatório sem assistência de defensor.

Quem agravos faz com eles se perde...


Peças processuais de advogados levadas à estampa eram prática e, numa menor medida, ainda o são. Agora opúsculos de parte litigante levadas aos prelos são mais raros, porque nem sempre o interessado tem dotes de literato.
A particularidade do escrito em causa é que o demandado dava pelo nome de Camilo Castelo Branco e a História esqueceu o nome dos sucessos do editor do notável de São Miguel de Seide, Ernesto Chardron: Lugan & Genelioux, implicados em outras polémicas editoriais como esta com o Visconde de Correia Botelho.
Encontrei o agravo num desses alfarrabistas, já muito sovado pelo tempo e a ter de ser lido com delicadezas de antiquário. 
O caso em si a isto se resume: os agravantes invocavam o direito de propriedade de sobre o livro Boémia do Espírito - apreendido cautelarmente na tipografia - e mais ainda de três outras - Notas Biográficas de Luís de Camões, A Senhora Ratazzi e A questão da Sebenta - que tinham por «fraudulentamente vendidas» ao editor Eduardo da Costa Santos.
O interesse é o vernáculo do escritor, mordente e pugilista do verbo poupando menos o advogado dos autores - que, pelo mínimo, de «rabula» e «raposa jusperita» apoda - do que a estes próprios.
É o libelo do que se sente difamado com a acção que toma como calúnia a dar vigor à pena em texto dirigido «à opinião pública», isso «atendendo mais ao vexame da injúria do que à importância da personalidade dos difamadores me merecia».
Lê-se com o indesfarçável sorriso da troça. Tempos de travar ferro com estrondo no foro e na praça. Ontem como hoje.

Gravação vídeo privada: prova atípica?


Será válida como prova a sucessão de imagens obtidas por sistemas vídeo instalados por privados, e a própria vídeo-conferência, mesmo quando instalados por privados sem autorização judiciária? E haverá um conceito de "prova atípica", isto é não prevista na lei? Eis o que decorre de uma sentença da Corte de Cassação Italiana de 19.05.2015, segundo a qual «la captazione di atti e immagini, eseguite da privati ad opera di telecamere installate esternamente sulla loro proprietà «sono legittime e pienamente utilizzabili senza alcuna autorizzazione dell'autorità giudiziaria», pertanto costituiscono prova atipica, ossia una prova non espressamente disciplinata dal codice di procedura penale o comunque dalla legge» [texto integral aqui].
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