Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




O Círculo Mágico, a 1300 €/hora

É um dos problemas que nunca encontrou definição objectiva, o montante dos honorários dos advogados em Portugal. Não há propriamente uma tabela oficial que os defina. Há critérios gerais orientadores, que fazem atender a vários factores, mas que têm o seu quê de relativo. Dado o contexto da economia global em que se vive e a cada vez maior predominância de grandes sociedades de advogados é, porém, um problema que ganha acuidade.

O Estatuto da Ordem dos Advogados estabelece nos seus artigos 105º e 106º o essencial quanto à matéria:

Artigo 105º

Honorários
1 - Os honorários do advogado devem corresponder a uma compensação económica adequada pelos serviços efetivamente prestados, que deve ser saldada em dinheiro e que pode assumir a forma de retribuição fixa.
2 - Na falta de convenção prévia reduzida a escrito, o advogado apresenta ao cliente a respetiva conta de honorários com discriminação dos serviços prestados.
3 - Na fixação dos honorários deve o advogado atender à importância dos serviços prestados, à dificuldade e urgência do assunto, ao grau de criatividade intelectual da sua prestação, ao resultado obtido, ao tempo despendido, às responsabilidades por ele assumidas e aos demais usos profissionais.

Artigo 106.º

Proibição da quota litis
1 - É proibido ao advogado celebrar pactos de quota litis.
2 - Por pacto de quota litis entende-se o acordo celebrado entre o advogado e o seu cliente, antes da conclusão definitiva da questão em que este é parte, pelo qual o direito a honorários fique exclusivamente dependente do resultado obtido na questão e em virtude do qual o constituinte se obrigue a pagar ao advogado parte do resultado que vier a obter, quer este consista numa quantia em dinheiro, quer em qualquer outro bem ou valor.
3 - Não constitui pacto de quota litis o acordo que consista na fixação prévia do montante dos honorários, ainda que em percentagem, em função do valor do assunto confiado ao advogado ou pelo qual, além de honorários calculados em função de outros critérios, se acorde numa majoração em função do resultado obtido.
Muitos acham razoável estimá-los em função de uma taxa horária. É critério que tem a vantagem da objectividade e o defeito de penalizar os advogados que sejam mais rápidos porque mais competentes e eficazes, os que, com menos tempo gasto alcançam um melhor resultado para os seus clientes.
Há, por outro lado, os que tentam valorar o critério do sucesso, estipulando-o como regra de cálculo, se bem que a deontologia e e lei impeçam, como se viu, o advogado de ser sócio do constituinte e assim quinhoar nos proventos do caso.
A situação não é confortável. Nem para quem tem de pagar porque nem sempre se defronta com situações expectáveis nem para quem recebe porque fica impossibilitado de de fazer estimativas seguras porque os casos podem tornar-se mais complexos do que se supunha.
A Ordem dos Advogados, quando é chamada a pronunciar-se, emite laudos, que são, afinal, perícias, mas que dão como pressuposto a verdade daquilo que o advogado diz ter sido o trabalho prestado e o tempo nisso implicado; em caso de discussão sobre o tema, as partes litigantes terão de ir discutir o assunto para tribunal.
Nos países de cultura anglo-americana a taxa horária é ainda o critério maioritário e os escritórios funcionam todos na base do time-sheet, uma folha de cálculo em que as horas de trabalho são computadas consoante 
A questão mais disseminada e que dá azo a mais questões tem, porém, a ver com o montante. Revelados publicamente os valores causam sempre reprovação, Mas se comparados com as taxas praticadas pelos auditores, nomeadamente de firmas de primeira linha, pode dizer-se que na generalidade ficam muito aquém.
A situação vive da desregulação em que imperam as regras da concorrência, só que estas sujeitas à dominação dos escritórios que podem impor as regras.
Este relatório [ver aqui], oriundo do britânico Centre for Policy Studies [ver mais aqui] é concludente. 
Os valores que indica estão a ser objecto de comentários críticos, nomeadamente por porem em causa o próprio acesso à justiça. Com os honorários dos advogados britânicos do chamado Círculo Mágico [la crème de la crème dos escritórios de advocacia, ver aqui a definição] a atingirem 13 00 € [1 000 £], com médias entre as 700 e as 900 libras por hora trata-se de um verdadeiro cartel de justiça para poucos.

O ilícito dito de "mera" ordenação social


A princípio, visto do ponto de vista ingénuo das meras categorizações jurídicas abstractas, parecia lógico e isento de problemas de maior, tinha a sedução do que ainda não se vira pelo ângulo dos efeitos práticos e preenchia a necessidade de racionalização dos que supõem o Direito como um teorema da geometria.
Nessa altura o teoria do Direito Criminal fazia-o recuar para as zonas subsidiárias que o tornavam algo de fragmentário no campo do Direito punitivo, subsidiário, enfim - para usar uma expressão latina clássica a ultima ratio - no campo da repressão, algo que só entraria em acção quando e na medida em que estivessem em causa valores e interesses - bens jurídicos se lhes chamou a partir de então - com consagração constitucional.
Eram tempos em que a categoria das contravenções, pertencendo como coisas menores ao domínio do Direito Penal, pareciam no campo substantivo um excesso para este, e no campo das competências judiciárias e do processo, uma sobrecarga, incongruentes, em suma, com a valia e a solenidade que presidiriam por essências ao que do Direito Penal se reclamasse. E daí que tivessem de ser dele expurgadas e substituídas por algo de diverso.
Veio assim, sugestivo, o universo das contra-ordenações, ilícitos de cunho estritamente administrativo e as coimas, sanções pecuniárias que no seu âmbito se poderiam aplicar. Era assim na Alemanha e isso valia como critério de legitimação a quantos no Direito se reviam em tudo o que de germânico houvesse, ainda que discrepante com a nossa cultura ou com o nosso tipo de sociedade, ou com a globalidade do nosso sistema jurídico.
O ilícito de mera ordenação social fez assim a sua entrada como forma de punir, uma outra forma acrescida de punir, que rapidamente se espraiou pelos sectores das actividades de cunho patrimonial, financeiro, mas não só, afinal em todos os campos em que a regulação administrativa se tornava necessária, como o da concorrência, o dos mercados, o financeiro, o bancário, o ambiente, o fiscal, e tantos e tantos outros.
Foi atribulada a sua aparição no nosso sistema jurídico: aprovado pelo Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho [ver aqui], foi esvaziado e colocado no limbo da suspensão pelo Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro [ver aqui], pois que se tornava inviável torná-lo mera conversão automáticas das antigas contravenções e transgressões e sem encontrar as entidades públicas, a quem se destinava, providas de estruturas para a sua aplicação. Só entraria em vigor com o Decreto-Lei n.º 432/82, de 27 de Outubro [ver aqui a redacção em vigor]
Vista a realidade com os olhos desses tempos, início da década de oitenta, pareceria que doravante as realidades de menor censurabilidade social passariam a ser reprimidas por esse Direito Administrativo punitivo, através de um procedimento administrativo também adequado a este ramo jurídico, pautado pela ductibilidade formal, simplificação e celeridade; tudo garantido com controlo judicial das decisões. E que tudo se pautaria numa lógica de proporcionalidade de não intromissão excessiva nos direitos de defesa nem na liberdade patrimonial dos cidadãos.
Olhando hoje que panorama encontramos?
Primeiro, o valor elevadíssimo a que podem chegar as coimas, tornando-as, no ângulo prático, bem mais agressivas para o património dos cidadãos do que era suposto suceder naquele tipo de processo.
Segundo, o facto de o Direito Penal ter estado em expansão, abrangendo progressivamente territórios onde dificilmente se concebe a sua natureza supostamente subsidiária, cumulativamente com a repressão contra-ordenacional, ambas concorrendo para uma sobrecarga punitiva sobre a mesma realidade.
Terceiro, a circunstância de o procedimento contra-ordenacional, privado que está de garantias formais, servir amiúde de forma expedita de captação de prova para uso subsequente no processo penal; assim um processo em que o investigador é também acusador e julgador, torna-se, como se forma de processo justo, meio de obtenção de prova que acaba por ser incorporada no processo penal com as gravosas consequências daí decorrentes.
Dito de "mera" ordenação social este tipo de ilícito tornou-se, pois, num instrumento complementar e por isso acessório da repressão penal, com ela miscigenada na prática dos seus efeitos.

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Quadro: Pieter Brueghel, o jovem


Adiamentos e prova: o Acórdão n.º 1/2016


O tema da semana foi, na área penal, a publicação no Diáirio da República do Acórdão n.º 1/2016, do STJ, de 12 de Novembro [vê-lo aqui e já antes aqui] fixando jurisprudência quanto à perda de eficácia da prova por adiamento de audiência para além do prazo de trinta dias previsto na lei, tal como o prevê o artigo 328º do Código de Processo Penal. 

Tratou-se, diga-se, de uma forma jurisprudencial de remediar uma falta de previsão da lei numa matéria que carecia de norma, de uma jurisprudência criativa ante uma necessidade que o legislador não supriu.

Estive na Comissão, presidida pelo Professor Figueiredo Dias, de que saiu o Código de Processo Penal em vigor. E recordo a preocupação que houve em dar execução ao comando do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Homem no sentido de que os processos na área criminal tivessem a duração de um prazo razoável e não se arrastassem indefinidamente e., no que às audiências respeita, elas fossem orientadas por um princípio de continuidade [e concentração], segundo o qual, e numa fórmula para leigos, começassem para acabar sem hiatos, suspensões ou interrupções salvo o necessário e inevitável. [sou do tempo em que ainda havia julgamentos à noite na Boa-Hora para terminar audiências que de outro modo passariam para outro dia].

Um dos factores que foi tido em conta no estabelecimento das normas respectivas foi a circunstância de não haver memória humana que resista a intervalos entre audiências demasiadamente extensos, considerando-se que trinta dias era adequado pois, para além disso, já os sujeitos processuais poderiam começar a fazer confusões entre a prova produzida na sessão antecedente da audiência que estivesse em causa.

Foi com base nesta lógica que se redigiu o artigo 328º do Código de Processo Penal, o que está aqui em causa.

De modo a dotar o sistema de garantia de cumprimento - lamentável que as normas sem sanção, porque tidas por meramente ordenadoras, sejam incumpridas, como as do prazo máximo de inquérito - estabeleceu-se que, no caso de o intervalo entre as sessões de audiência ultrapassarem os trinta dias, perdia eficácia a prova produzida até aí. 

E nasceu aí o problema que tem vindo a incidir sobre o preceito: por um lado, aqueles que entendiam que ele era incompatível com o normal funcionamento dos tribunais, que não tinham agenda que resistisse a adiamentos aquém de trinta dias; por outro, os que lembravam que havia casos em que, aguardando-se, em fase de audiência, pelo cumprimento de diligências demoradas - uma informação, um exame, uma precatória ou rogatória - ou interpondo-se férias, para evitar o risco de se perder a prova, as audiências teriam de abrir em regime de mero "pro forma".

Convivemos todos com o caricato sistema de reabaerturas de audiência em que, no dizer irónico de alguém, «o juiz perguntava que horas eram ao arguido», de tal modo tudo se passava a fingir, expediente desprestigiante para a justiça; e todos vivemos com aqueles momentos, de agonia ou alegria - conforme os interesses - em que se temia que o arguido faltasse e não houvesse material humano para esse jogo de "faz de conta" orientado a que não prova não fenecesse

Era esta a redacção primitiva do texto do artigo que a tudo deu causa: « O adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada.»

Sistema demasiado drástico, comentaram alguns, quando o novo regime foi conhecido; sistema inviável, alegaram outros; sistema que teria de ter excepções pensaram quase todos.

Claro que já na altura, se teve em linha de conta que. doaravante, prevalecendo-se dos modernos meios tecnológicos, a prova em audiência seria gravada - prevendo-se até que o pudesse ser em vídeo - e por isso andou pela mente dos legisladores - e depois de alguma jurisprudência - que, uma vez que os intervenientes se poderiam socorrer das gravações, para refrescarem a memória, sempre se poderia abrir excepção à caducidade ao trigésimo dia; e dúvida surgiu quanto a saber se o sistema se aplicava também quando o intervalo surgisse entre o último dia de produção da prova e o dia em que a sentença fosse lida, após ter sido escrita e algumas eram imensamente extensas, sendo que sobre isso, aquilo que na Comissão se esperava e aquele que se viveu na prática dos tribunais houve um mundo de diferença: é que se há momento em que importa que a memória tudo recorde é esse, aquele em que se toma a decisão sobre toda a prova.

Mas há sobretudo algo que não poderia ser esquecido: a continuidade da audiência estava indissociavelmente ligada à sua concentração, pois que um julgamento que, semeado de intervalos extensos, sendo demasiado longo gera o indesejável mas expectável efeito de no último dia já haver só reminiscência de como começou. A sermos honestos com a realidade e excepcionando as "memória de elefante", que as há.

Mau grado a Justiça ter de enfrentar estas vicissitudes, a norma ficou sem modificações, mau grado as três alterações legislativas que incidiram sobre o preceito. E para além daquelas questões outras foram surgindo, mormente quanto à repetição das audiências por outros motivos. Tudo a exigir revisão global do sistema e ela a tardar.

A tentativa de adequação, essa, só surgiu com a Lei n.º 27/2015, de 14 de Abril, após a qual ficou assim: 

«6 -  O adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, por impedimento do tribunal ou por impedimento dos defensores constituídos em consequência de outro serviço judicial já marcado de natureza urgente e com prioridade sobre a audiência em curso, deve o respetivo motivo ficar consignado em ata, identificando-se expressamente a diligência e o processo a que respeita. 
«7 - Para efeitos da contagem do prazo referido no número anterior, não é considerado o período das férias judiciais, nem o período em que, por motivo estranho ao tribunal, os autos aguardem a realização de diligências de prova, a prolação de sentença ou que, em via de recurso, o julgamento seja anulado parcialmente, nomeadamente para repetição da prova ou produção de prova suplementar.»

Como todas as reformas, mesmo as efectivadas com participação dos que têm, pela natureza das suas funções, de conviver com a vida prática, fica sempre algo por prever. 

E eis onde incidiu precisamente o Acórdão que cito, o qual vem resolver um problema que subsistia irresoluto, fazendo-o pela seguinte forma: «O prazo de 30 dias previsto no art 328.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 27/2015, de 14 de Abril, é inaplicável nas fases processuais em que, após a deliberação do tribunal sobre as questões da culpabilidade e da determinação da sanção, seguida ao encerramento da fase de discussão, seja verificada a necessidade de repetição de prova registada no decurso dessa anterior fase de discussão por haver deficiência no registo efectuado mantendo-se, portanto, a eficácia da prova.»

Era o que acontecia não poucas vezes, nomeadamente quando o tribunal de recurso, apercebendo-se da deficiência da gravação, ordenava a repetição de uma dada sessão de julgamento para que a prova fosse "repetida" - na verdade, afinal, de uma nova prova se tratava, tantas vezes diversa da anteriormente obtida.

Enfim, temos lei, através da interpretação jurisprudencial. Lei prática, dentro da lógica do sistema. Que nesse altura, em que se repete a prova, os participantes na audiência ainda se lembrem do que ocorreu antes, fica por demonstrar. Que se socorram de apontamentos fidedignos ou ouçam as gravações para colmatar lapsos de memória, eis o que só a consciência profissional de cada um ditará. Uma coisa ficou: a prova agora não se perderá quando a gravação se perdeu, ainda que surja uma outra prova a fazer de conta que é a mesma. A eficácia triunfou. E essa, ao menos, haveria que não fazer perder. 

Haveria alternativa para desatar este nó górdio? Eis o tema para reflexão. Como diz a sabedoria chinesa nem tudo o que é desejável é possível.

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Imagem: Jeff Wall, Untangling, 1994

O piropo e a reminiscência do "macho ibérico"


O acto de legislar, sobretudo no domínio repressivo e no âmbito deste na esfera penal, arrasta consigo questões de substância, de forma e de adesão: trata-se, em primeiro lugar, de determinar num sector da vida que exija a edição de uma norma, depois, de saber redigi-la em termos de rigor na fórmula, delimitação do âmbito e compreensão pelos destinatários, enfim, concitar em seu torno a apoio da sociedade ou pelo menos de sectores da mesma que se pautem pelos princípios basilares do Direito. 
Se o primeiro vector implica que se não convoque o Direito Penal sem necessidade, o segundo supõe que o mesmo surja sem ambiguidade, o terceiro que a lei apareça com oportunidade. Assim se torna provável que uma lei ganhe autoridade.
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Vem isto a propósito da legislação penal dita sobre o "piropo", que está sujeita à chacota pública, mesmo em meios não masculinos; a qual, provém, diga-se, frequentemente de quem a não leu e, convocado a pronunciar-se sobre o seu conteúdo, é incapaz de a reproduzir, mas dita, no entanto, opinião
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Por isso há, em primeiro lugar, que ler a letra da lei para que não se corra o risco de falar do que não se sabe, pecha típica de muitos dos nossos concidadãos, até dos que têm responsabilidades públicas ou profissionais mas que não se coíbem de se arvorarem em comentadores de serviço, não os desanimando a ignorância ante o assunto.

Tudo gira em torno do artigo 170º do Código Penal, em função da alteração [a trigésima oitava] que lhe foi dada pela Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto [ver aqui], o qual por passou a estar redigido com o acrescento do inciso «formulando propostas de teor sexual».

Citando a norma na sua integralidade, ei-la com a redacção em vigor: «Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexuall ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.» [o sublinhado contém o que se aditou e está agora em causa}.
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Posto isto, e sem qualquer consideração especial de cunho jurídico, desde logo se nota, antes de mais, que não se trata de legislação para proteger apenas as mulheres mas sim seres humanos, independentemente do sexo, se bem que se possa argumentar que a maioria dos pressupostos "suspeitos" sejam, por razões históricas ou sociológicas, homens. Quod erat demonstrandum, porém, nos tempos correntes e correndo as variantes em que o género e o trans-género se subdivide.
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Além disso, verifica-se que estão fora de questão quaisquer ditos, apartes ou verbalizações, ainda que expressas e audíveis, de valoração ou derrogação de outrem no plano que na sexualidade se reveja, pois o que a lei exige é que se trate de «propostas», algo que signifique unilateralidade, por um lado, e no campo sexual por outro, na expectativa, pois, de uma eventual de aceitação, formuladas, no entanto, de forma a «importunar», [E antecipo que ao usar o termo «propostas» o legislador, nolens volens acabou por restringir o domínio de acção da norma porquanto quem propõe espera aceitação o que deixa desguarnecidas de tutela situações em que o afirmado o é a título gratuito e sem qualquer propósito de obter eco ou efeito].
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Posta a questão nestes termos, delimitado o teor do que está em causa, ganha compreensão o que poderia ter sido a intenção legislativa quando pretenderia, por um lado, defender a dignidade do ser humano - não o colocando como mero objecto de propostas que não pretenda receber - vindas de quem possam vir ou formuladas pela forma como possam surgir - e por outro tutelar a liberdade sexual, pela qual o relacionamento com este perfil - ainda que não directamente ao nível do acto mas, muito antes, no quadro do próprio envolvimento, tem de exigir uma mútua liberdade sem a sobrecarga que o importunar afinal significa.
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Ora é aqui que a lei abriu o flanco, expondo-se ao que assistimos como manifestações de apoucamento em seu redor: é que, se num registo aceitável, os actos de sedução, o "flirt", o "galanteio", tudo quanto esteja no quadro do que se considere o "namoro" - e todas estas expressões, por não jurídicas que sejam, salvo a primeira, creio que explicitam o que pretendo - não podem porque não devem ser criminalizáveis, nem sequer actos ilegítimos, pois fazem parte de um trato social em que a liberdade dos envolvidos não é posta em causa, a consciência erógena a situação é assimilada e a dignidade pública é mantida, tudo no quadro de uma proporção de razoabilidade, aqui a fórmula legal, ao ficar-se pelo conceito proposta sexual importuna, se não quis invadir aquele território, pareceu querer fazê-lo, abrindo a porta à ideia de que o desejava sob a alçada penal, 
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É certo ao utilizar o conceito aberto - e por isso indeterminado - de «importunar», o legislador abriu a porta a interpretações que não favorecem a explicitação do que está em causa, porque a palavra se abrange o "molestar", o "agredir", também inclui o simples "maçar" e o "aborrecer", estas zonas aquém do que se se supõe expectável no domínio do criminalizável.
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E por outro lado, fica, afinal, por proteger nesta norma o que só no quadro da injúria ou da difamação pode encontrar defesa: a manifestação de juízos valorativos que atinjam a honra ou a consideração social, no primeiro caso dirigidos ao próprio, no segundo ante terceiros.
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Em suma, aquilo perante o que estamos é de uma indevida equiparação pública do "piropo" a propostas sexuais importunas e foi isto e não aquilo que o legislador pode ter querido. Entre um mundo e outro vai uma diferença, quer no campo das realidades da vida, quer naquele outro em que surge o Direito Criminal a intervir. Assim quem tiver de aplicar o novo preceito saiba usar de critérios de prudência, gerando rigor em face de uma situação que, como se viu, na opinião pública, está a ser tratada com soez displicência.
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É que, em matéria de critério de apreciação da liberdade sexual, todos temos bem presentes este excerto de um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 1989, publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 390, de Novembro de 1989 que sentenciou pela seguinte forma quanto a um crime de sequestro e outro de violação cometidos no Algarve na pessoa de uma estrangeira, valha o facto de terem decorrido 16 anos sobre a sua prolação e ser de admitir ou esperar que hoje uma nova mentalidade possa reinar nas instâncias:

«(...) II - Contribui para a realização de um crime de violação a ofendida, rapariga nova mas mulher feita que: a) Sendo estrangeira, não hesita em vir para a estrada pedir boleia a quem passa; b) Sendo impossível que não tenha previsto o risco em que incorre; c) Se mete num carro, com outra e com dois rapazes, ambas conscientes do perigo que corriam, por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde abundam as turistas estrangeiras com comportamento sexual muito mais liberal do que o da maioria das nativas; d) E conduzida durante alguns quilómetros pelo agente, que se desvia da estrada para um sitio ermo; e) E puxada para fora do carro e tenta fugir, mas e logo perseguida pelo agente, que a empurra e faz cair no chão; f) Sendo logo agredida por ele com pontapés, agarrada pela blusa e arrastada pelo chão cerca de 10 metros; g) Tentando ainda libertar-se, e esbofeteada, agarrada por um braço e ameaçada pelo agente com o punho fechado; h) E intimidada assim, pelo agente, que lhe tira os calções e as cuecas, não oferece mais resistência e, contra a sua vontade, é levada a manter relações sexuais completas pelo primeiro; e i) Após ter mantido, à força, relações sexuais, com medo de que o agente continuasse a maltratá-la, torna-se amável para com ele, elogia-o, dizendo-lhe que era muito bom no desempenho sexual e assim consegue que ele a leve ao local de destino, onde a deixou.»

E, como se não bastasse para explicitar o que entendeu ser a "contribuição" da vítima para a violação, ainda se escreveu:

«Se é certo que se trata de dois crimes repugnantes que não têm qualquer justificação, a verdade é que, no caso concreto, as duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização. Na verdade, não podemos esquecer que as duas ofendidas, raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado “macho ibérico”. É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atração pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la. Ora, ao meterem-se as duas num automóvel juntamente com dois rapazes, fizeram-no, a nosso ver, conscientes do perigo que corriam, até mesmo por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde abundam as turistas estrangeiras habitualmente com comportamento sexual muito mais liberal e descontraído do que a maioria das nativas».


Ilustração: quadro de Eugenio de Blaas, nascido em 1843.

Cauções: igualdade e meios

A nova geração portuguesa no domínio judiciário tem uma apetência progressivamente maior pelo sistema de justiça penal norte-americano. Pressentia-se isso quando da tentativa - abortada - de fazer vingar o sistema da "negociação da pena": configurado em tese por um estudo do Professor Figueiredo Dias encontrou eco amplo na magistratura do Ministério Público. A actual ministra da Justiça, à data em funções na Procuradoria Distrital de Lisboa, emitiu mesmo instruções no sentido de se fomentar tal sistema na área que tutelava. Isto apesar de - era esta a minha opinião e a de muitos - não haver lei que o legitimasse.
A sedução regressa agora com o que se está a passar no Brasil quanto à delação premiada, sistema que é protagonizado sintomaticamente naquele País por um escol de magistrados formados nos Estados Unidos da América. Entre nós, o Director do DCIAP, em declarações citadas pela comunicação social, exprimiu o que permite pensar ser um sentimento de simpatia por algo de semelhante.
Nunca escondi total aversão a qualquer das duas modalidades, por razões de que dei conta na ocasião.
Está agora na ordem do dia outro dos pilares da justiça norte-americana, o problema da gestão das cauções, quer enquanto medida de coacção, quer como medida de garantia patrimonial. Problema com várias dimensões, uma delas é poder funcionar como uma forma não igualitária de aplicação da justiça, sobretudo a funcionar como alternativa a outras medidas ablativas ou restritivas da liberdade.
Nesse aspecto, descontando o facto de os valores hoje decretados começarem a ser superavitariamente superiores ao que era tradição - assim os tribunais tivessem critérios igualmente pródigos no arbitramento de indemnizações às vítimas ! - o nosso sistema ainda não tem de gerir com acuidade aquilo que hoje é a questão premente nosStates [para mais ler aqui]. reconhecendo-se haver uma justiça para ricos e outra para pobres, ser através das cauções ditas "carcerárias" que se alcança de modo nítido a diferença.
O que não demonstra que não haja entre nós subjectivismo e por isso inexplicável diferenciação nos critérios da sua aplicação. E essa é uma questão de ordem pública e como tal exige reflexão e talvez regulamentação
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Autor do quadro: Vicent van Gogh

As novas leis das BVI's


São um dos clássicos paraísos fiscais, as Ilhas Virgens Britânicas [situadas aqui], sede de companhias num pequeníssimo espaço territorial, cuja capital é Road Town situada na Ilha de Tortola [com 55 km2]. Tem cerca de 27 mil habitantes. 
Pertencem ao Reino Unido, com governo próprio.
Sobre a pressão internacional [nomeadamente do FATF-GAFI,] acaba de mudar a sua legislação em matéria de branqueamento de capitais. O texto da nova lei pode ver-se, na sua versão oficial, aqui, aqui e aqui. O conjunto completo encontra-se aqui.
A nova legislação entra em vigor em 1 de Janeiro de 2016.
Algumas das novas exigências prendem-se com o maior controlo da identidade dos últimos beneficiários económicos das sociedades comerciais ali sedeadas [UBO's], e restricção às pessoas autorizadas a procederem à constituição das mesmas de acordo com listagens certificadas.
Há em tudo isto a evidência de uma contradição endémica do capitalismo financeiro: por um lado cria e tolera e anima até estes locais offshore onde se alcança simultaneamente o anonimato da titularidade do capital e a evasão fiscal consentida; por outro, conclui-se que esta conjunção pode ser útil ao dinheiro de origem ilícita, e por isso se persegue, sendo que o fecho do sistema dá-se quando se considere que a própria evasão fiscal - que o "paraíso" fiscal permite - já é crime precedente do branqueamento, que a ocultação do dinheiro na offshore indicia e assim se persegue o que se facilitou. 
A decorrência do sistema é o capital, que não tem Pátria, mudar de paragens...

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Ilustração: lavadeiras de Odemira Ilustração Portugueza - Novembro de 1913

Remodelação




O presente blog sofre uma remodelação antes de encerrar o ano de 2015. Ao invés de ser um local onde ocasionalmente escrevo ao sabor das circunstâncias, passo a actualizá-lo semanalmente. É uma tentativa de manter uma fidelidade ao lugar através da dedicação ao tema.
O estilo altera-se também: os escritos passarão a ter o formato de crónica.
Mantém-se a mesma linha de orientação: não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, que é a de Advogado.
Tem sido a profissão que me trouxe muita da consciência crítica relativamente àquilo que, visto na formulação abstracta da lei ou na expressão teórica dos livros não tem a dimensão material, humana, por vezes dolorosa, que suscita a dúvida e abre espaço para a crítica. Mas não devo, por uma razão ética, vir ao espaço mediático emitir juízo sobre aquilo que se encontra sujeito ao foro próprio.
Num outro aspecto também alterarei: a imagem que ilustrará cada escrito será a de uma obra de Arte, devidamente identificada.
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Ilustração: Honoré Daumier

"Salamizar" ou concentrar?


«A colaboração premiada continua, qual maré negra, a fazer no Brasil as suas vítimas. Mas já tem, na sua cauda, a sombra do que poderá ser-lhe fatal: o risco de transformar-se de meio de obtenção da prova, tal como prevê o artigo 3º da lei que a regula – a 12.850/13 – em meio de prova em si e os tribunais condenarem, não como base na prova que o arguido delator permite encontrar com a sua denúncia – com isso beneficiando-se na pena e até dela se livrando – mas sim na mera delação em si, sem mais; e os tribunais, em recurso, virem depois a anular o julgado.
A este risco, que foi claramente enunciado pelo juiz (ministro como ali se designa) Dias Toffoli na recente decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro, julgando em plenário, segue-se um outro, o facto de a delação poder permitir a manipulação das regras de competência dos tribunais, gerando, em suma, através da suposta conexão de processos, que causas diversas se vão somando como da jurisdição do mesmo juiz.
O tema, gerando aceso debate público em terras brasileiras, é ali encarado não como uma fria problemática estritamente jurídica – saber qual o tribunal competente para conhecer cada um dos casos delatados, se o mesmo juiz, se juízes diferentes conforme o lugar dos acontecimentos – mas como tórrida questão política e fulanizada.
É como se o «fatiamento» da operação significasse não só o “desaforamento” do juiz que até agora tudo centralizava na sua pessoa – o qual assim ficava privado de jurisdição quanto a estes novos casos – mas o perigo de os novos alegados crimes sob investigação – agora distribuídos por outros tribunais – «caírem no esquecimento», como argumentou o juiz Sérgio Moro, prevenindo publicamente quanto ao risco que a operação corre se atribuída doravante a outras mãos que não as suas. E cita sintomaticamente as «mãos limpas» italianas.
Em Portugal tudo isto é conhecido nas suas várias vertentes, mas – terra de “brandos costumes” – ainda que com impacto menos luxuriante.
Menos exuberante, o estatuto de “arrependido” tem feito aqui também as suas “vítimas”: se bem que, como o próprio nome o sugere, ainda se pressuponha da parte daquele que supostamente se arrependeu uma pelo menos aparente contrição de alma e a denúncia de outros surja assim como espécie de purga interior e o colaboracionismo expressão de alinhamento com as forças do Direito – trazendo para o sistema judiciário recônditos religiosos do pecado, sua culpa e expiação – na prática, o requisito torna-se formal e, assim, o próprio rancor vingativo ou a ânsia de “safar a própria pele” a troco de “dar outros à morte” são relevados como se de virtude teologal estivéssemos a falar, aceitando Deus negociar com o próprio Diabo.
E, por igual, as regras de conexão processual foram também usadas quer no sentido de multiplicar processos sob o mesmo sujeito – fazendo-o sujeitar-se a julgamentos sucessivos e a sucessivas condenações que, ao limite, podem equivaler a prisão perpétua, como, ao invés, no sentido de autuar num só processo casos diferenciados em que o ponto de referência comum, por mais ténue que seja, traz o benefício ilusório de um megaprocesso, mastodôntico e, por isso, amplamente mediático sujeito sempre ao mesmo tribunal.
Em ambos os casos o legislador teve de intervir já para introduzir alguma disciplina no sector porque, em recurso, os tribunais superiores tinham transformado os megaprocessos em mega absolvições, fazendo fracassar o que parecia ser uma promissora “barrela” jurídico-criminal e a “salamização” processual ia para além do tolerado em termos de garantias constitucionais de um processo justo.
O mesmo sucedeu no que se refere à extensão indefinida dos prazos de inquérito e à prorrogação indeterminada do segredo de justiça. Quando o legislador português, para evitar a primeira, legislou no sentido de que a publicidade do processo penal ocorreria, com excepções, a partir de certo prazo razoável de inquérito secreto – retomando o que era, aliás, uma garantia do Código de Processo Penal de 1929, promulgado pela Ditadura Nacional – logo surgiu uma interpretação jurisprudencial em primeira instância no sentido de que no caso das excepções poderia chegar-se ao limite de perpetuar o secretismo contra os direitos do arguido. O caso é por demais conhecido porque mediático, assim como a decisão da segunda instância que a invalidou.
E está aqui a questão essencial.
Os tempos correm hoje na Justiça a favor do pragmatismo como critério da validação: bom é o que se revela eficaz. Princípios como o direito dos arguidos ao silêncio – que estavam adquiridos como regras de decência processual e pedra basilar do Estado de Direito – tornam-se, como no caso da colaboração premiada brasileira, em obrigação de prestar declarações, assim o arguido em causa tenha negociado com as autoridades judiciárias que, em troca de favor para si, denunciará outros mais apetitosos. E há quem, entre nós, esteja sugestionado já pelos seus resultados estatístico-punitivos.
Mais: são tempos de chumbo de apoucamento dos direitos dos arguidos, tidos por privilégios passadista de uma justiça elitista que não cuida suficientemente das anónimas vítimas: por causa do pouquíssimo para estas há quem promova o muitíssimo menos para aqueles.
Centremo-nos, porém, no tema que me traz aqui: regras como a do “juiz natural”, segundo a qual o juiz tem de estar predisposto antes do processo entrar em juízo e ser escolhido para ele segundo regras gerais e abstractas e por sorteio, tornaram-se no “juiz pré-determinado”, cumulando competências e somando casos sob a sua jurisdição. E no caso brasileiro, como já foi no nosso antigo Direito, com competência para instruir e julgar.
Os séculos somados de anos de cadeia das suas condenações, sendo notícia, tornam-se a medida da excelência do sistema; as absolvições em recurso, quando ocorrem, não merecem sequer uma linha no espaço mediático, nem como discreta necrologia processual.
Em suma: «a prorrogação de competência do juiz processante» com fundamento não na conexão material dos casos mas sim no «mero encontro furtivo da prova» - e ademais da prova por delação – foi agora barrada pelo Supremo brasileiro. É um sinal de que os tribunais superiores, tanto lá como cá, começam a intervir, mesmo em território sensível, e evidência, sobretudo, de na dialética judiciária, o respeito pela legalidade do processo ainda condicionar a eficácia do processado. O que se regista com aplauso.
A concentração de competência judiciária dá poder. Todo o poder é, porém, por populares que sejam os seus resultados, ilusório e precário.

Tudo passa, mesmo a vã glória de mandar.»

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Artigo originariamente publicado no jornal "Público".
Fonte da imagem: aqui

Espanha: revisão da lei processual penal


A polémica está aberta em Espanha com a reforma da lei de processo penal, nomeadamente no que se refere aos prazos previstos para a investigação. [ver aqui o texto actual, com a redacção vigente]

Declarações recentes do ministro da Justiça, Rafael Català Polo dão conta de que o Governo não recuará quanto à entrada em vigor das leis aprovadas a 5 de Outubro que proclamam visar a agilização do processo penal e o reforço das garantias individuais a lei n.º 41/2015 [texto oficial aqui]e a lei orgânica n.º 13/2015 [texto oficial aqui], tudo na lógica do projecto de elaboração de um Código de Processo Penal, projectado em 2012 e submetido a discussão pública. Poderão, sim, ser tomadas medidas visando preparar as estruturas aos novos ditames legais.

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Citam-se, para elucidação, alguns excertos explicativos da primeira das leis, sublinhando a essência das modificações previstas:

Em geral

«Existen ciertas medidas, de sencilla implantación, que permiten evitar dilaciones innecesarias, sin merma alguna de los derechos de las partes: a) la modificación de las reglas de conexidad y su aplicación al determinar la competencia de los tribunales; b) la reforma del régimen de remisión por la Policía Judicial a los juzgados y al Ministerio Fiscal de los atestados relativos a delitos sin autor conocido; c) la fijación de plazos máximos para la instrucción; y d) la regulación de un procedimiento monitorio penal.»

Conexão processual


«La reforma de las reglas de conexidad supone una racionalización de los criterios de conformación del objeto del proceso, con el fin de que tengan el contenido más adecuado para su rápida y eficaz sustanciación. Con ello se pretende evitar el automatismo en la acumulación de causas y la elefantiasis procesal que se pone de manifiesto en los denominados macroprocesos. La acumulación por conexión solo tiene sentido si concurren ciertas circunstancias tasadas que se expresan en el artículo 17.1 y 2 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal, cuando el conocimiento de los asuntos por separado no resulte más aconsejable. Esta valoración de la concurrencia de las reglas y condiciones de conexidad corresponde en exclusiva al juez instructor. La novedad de la reforma consiste en establecer que la simple analogía o relación entre sí no constituye una causa de conexión y solo se justifica la acumulación cuando, a instancia del Ministerio Fiscal, en su condición de defensor de la legalidad y del interés público, el juez lo considere más conveniente para el esclarecimiento de los hechos y la determinación de las responsabilidades procedentes, salvo que suponga excesiva complejidad o dilación para el proceso, y siempre que con ello no se altere la competencia. Así, además, se evitará el frecuente trasiego de causas entre distintos juzgados a la búsqueda del que deba conocer del asunto por una simple coincidencia de la persona a la que se atribuyen distintos delitos.»

Investigação de crimes de desconhecidos

«También constituye una medida de agilización, sencilla de llevar a la práctica, la consistente en evitar el uso irracional de los recursos humanos y materiales de la Administración de Justicia para gestionar los atestados policiales sin autor conocido, pues dan lugar en los juzgados a innecesarias aperturas de diligencias que son de inmediato archivadas previo visto del Ministerio Fiscal. Se trata de un trabajo superfluo y perturbador. Para garantizar un adecuado control judicial basta con que dichos atestados sean conservados por la Policía Judicial a disposición de jueces y fiscales. No obstante, la remisión a la autoridad judicial será preceptiva en todo caso respecto a materias especialmente sensibles, como son los delitos contra la vida, contra la integridad física, contra la libertad e indemnidad sexuales o los delitos relacionados con la corrupción. Deberán también remitirse todos los atestados en los que, pasadas las primeras setenta y dos horas, la Policía Judicial practique cualquier diligencia tendente a la identificación del autor, siempre que arroje algún resultado. Se trata de garantizar que no habrá investigaciones autónomas de la policía, pero evitar también que todas las causas terminen recalando en los juzgados cuando no exista avance respecto de la situación inicial

Prazos de investigação


«Por otro lado, siguiendo la propuesta de la Comisión Institucional antes mencionada, para la finalización de la instrucción, se sustituye el exiguo e inoperante plazo de un mes del artículo 324 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal por plazos máximos realistas cuyo transcurso sí provoca consecuencias procesales. Se distinguen los asuntos sencillos de los complejos, correspondiendo su calificación inicial al órgano instructor. Se prevé la posibilidad de la prórroga de estos últimos a instancia del Ministerio Fiscal, como garante de la legalidad ex artículo 124 de la Constitución, y en todo caso, oídas las partes personadas, y, para todos los supuestos, de una prórroga excepcional a instancia de cualquiera de las partes personadas y oídas las demás, con mucha flexibilidad, pero de forma que finalmente exista un límite temporal infranqueable en el que el sumario o las diligencias previas hayan de concluir y haya de adoptarse la decisión que proceda, bien la continuación del procedimiento ya en fase intermedia, bien el sobreseimiento de las actuaciones. Para la determinación de los plazos ordinarios de seis y de dieciocho meses, según se trate de un asunto sencillo o complejo, respectivamente, se ha tomado como referencia los plazos medios de duración de la instrucción, tal y como se reflejan en los estudios estadísticos judiciales y fiscales. Se trata, pues, de plazos fiables en que las diligencias instructoras deben haber ya cumplido sus fines. No obstante, el sistema prevé reglas de adecuación de los plazos a la realidad de la instrucción, de modo que una causa inicialmente declarada sencilla pueda transformarse en compleja, y que situaciones como la declaración del secreto de las actuaciones, lo que de hecho ocurrirá en el supuesto de intervención de las comunicaciones, no afecten al cómputo de los plazos, toda vez que en este caso se verá interrumpido. Otro tanto sucederá si el instructor acuerda el sobreseimiento provisional al considerar que no puede avanzarse de forma positiva en la tramitación de la causa por cualesquiera circunstancias.A modo de cláusula de cierre de esta nueva regulación se elimina cualquier riesgo de impunidad por el transcurso de los referidos plazos al excluirse que su agotamiento dé lugar al archivo automático de las actuaciones, fuera de los supuestos en que proceda el sobreseimiento libre o provisional de la causa

Justiça negociada


«Adicionalmente, como también propuso la Comisión, se establece el proceso por aceptación de decreto. Se trata de un procedimiento monitorio penal que permite la conversión de la propuesta sancionadora realizada por el Ministerio Fiscal en sentencia firme cuando se cumplen los requisitos objetivos y subjetivos previstos y el encausado da su conformidad, con preceptiva asistencia letrada. Siguiendo un modelo de probado éxito en el Derecho comparado, se instaura un mecanismo de aceleración de la justicia penal que es sumamente eficaz para descongestionar los órganos judiciales y para dispensar una rápida respuesta punitiva ante delitos de escasa gravedad cuya sanción pueda quedar en multa o trabajos en beneficio de la comunidad, totalmente respetuoso con el derecho de defensa. El objetivo de esta reforma es el establecimiento de un cauce de resolución anticipada de las causas penales para delitos de menor entidad, aplicable con independencia del procedimiento que les corresponda. Resulta, pues, aplicable tanto a los delitos leves como a los delitos menos graves que se encuentren dentro de su ámbito material de aplicación, a instancia del Ministerio Fiscal y antes de la conclusión de la fase de instrucción. También responde a la posibilidad de culminar la fase de diligencias de investigación del Ministerio Fiscal con una elevación de las actuaciones al juzgado de instrucción que implique no ya la puesta en conocimiento del hecho sino, de facto, la solicitud de la sentencia y pena correspondiente. Su efectiva aplicación implicará una reducción significativa de las instrucciones y ulteriores juicios orales, lo que redunda también en beneficio del acortamiento de la denominada «fase intermedia» de los procedimientos.»

Perda de bens

«La Directiva 2014/42/UE del Parlamento Europeo y del Consejo, de 3 de abril de 2014, sobre el embargo y el decomiso de los instrumentos y del producto del delito en la Unión Europea exige a los Estados miembros articular cauces para su implementación, en especial para permitir la efectividad de las nuevas figuras de decomiso. Se regula así un proceso de decomiso autónomo que permita la privación de la titularidad de los bienes procedentes del delito pese a que el autor no pueda ser juzgado. El procedimiento responde a un equilibrio entre la agilidad que le es propia y las garantías para las personas demandadas. Se ha optado por la remisión al procedimiento verbal de la Ley de Enjuiciamiento Civil, lo que contribuye a la seguridad jurídica. Se han incluido, no obstante, las especialidades propias del procedimiento en el articulado y un sistema de recursos basado en el procedimiento abreviado. Se prevé además la fase de ejecución de los bienes decomisados, en la que la investigación asociada será dirigida por el Ministerio Fiscal, sin detrimento de las funciones investigadoras de éste en la fase prejudicial. Esta regulación ha de ponerse en contexto con las modificaciones del decomiso que por su parte introduce la reforma del Código Penal, y en concreto, como complemento de aquella, se ha previsto ahora la intervención en el procedimiento de los terceros que puedan verse afectados por el decomiso. Sus derechos se garantizan no solo en este procedimiento, sino con la articulación de un recurso de anulación, por remisión nuevamente a la Ley de Enjuiciamiento Civil, en caso de que la resolución se haya dictado sin considerar su condición de interesado en la causa.»

Reforma do sistema de recursos

«Pese a que la Ley Orgánica del Poder Judicial establece las oportunas previsiones orgánicas para la generalización de la segunda instancia en el proceso penal, en desarrollo del derecho reconocido por el artículo 14.5 del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, conforme al cual todo condenado por delito podrá someter a revisión la causa ante un tribunal superior, la ausencia de regulación procesal del recurso de apelación contra las sentencias dictadas por las Audiencias Provinciales y por la Sala de lo Penal de la Audiencia Nacional, previa celebración de juicio ante dichos órganos judiciales, mantiene una situación insatisfactoria que, al tener que compensarse con mayor flexibilidad en el entendimiento de los motivos del recurso de casación, desvirtúa la función del Tribunal Supremo como máximo intérprete de la ley penal. Por ello, se procede a generalizar la segunda instancia, estableciendo la misma regulación actualmente prevista para la apelación de las sentencias dictadas por los juzgados de lo penal en el proceso abreviado, si bien adaptándola a las exigencias tanto constitucionales como europeas. Se ha considerado oportuno completar la regulación del recurso de apelación con nuevas previsiones legales relativas al error en la valoración de la prueba como fundamento del recurso y al contenido de la sentencia que el órgano ad quem podrá dictar en tales circunstancias, cuyo fin último es ajustar la reglamentación de esta materia a la doctrina constitucional y, en particular, a las exigencias que dimanan del principio de inmediación. En relación con lo primero, cuando la acusación alegue este motivo como base de su recurso ya fuera a fin de anular una sentencia absolutoria, ya para agravar las condiciones fijadas en una condenatoria, deberá justificar la insuficiencia o falta de racionalidad de la misma o su apartamiento manifiesto de las máximas de experiencia o la omisión de todo razonamiento sobre alguna de las pruebas practicadas, siempre que fueran relevantes, o cuya nulidad hubiera sido improcedentemente declarada. En esta tesitura, el tribunal de apelación verá limitadas sus facultades a declarar la nulidad de la sentencia cuando fuera procedente, fijando el alcance de esa declaración, esto es, si afecta exclusivamente a la resolución del órgano a quo o si ha de extenderse al juicio oral y, en este último caso, si debe darse una nueva composición a ese órgano al objeto de garantizar su imparcialidad.»

Maior generalização do recurso de cassação

«Junto con la reforma de la segunda instancia es necesario remodelar la casación para conseguir que cumpla de forma eficaz su función unificadora de la doctrina penal. Actualmente un porcentaje limitado de delitos tiene acceso al recurso de casación y, por consiguiente, su interpretación unificadora se lleva a cabo por las Audiencias Provinciales, lo que no garantiza un tratamiento homogéneo para toda España. A esta realidad se unen las sucesivas reformas del Código Penal, a impulsos de exigencias sociales, transposición de directivas europeas o con motivo del cumplimiento de normativas internacionales, la última de las cuales en virtud de la Ley Orgánica 1/2015, de 30 de marzo, ha supuesto cambios profundos en la ley sustantiva. Ante esta situación se hacía imprescindible una reforma del ámbito material del recurso de casación para permitir que el Tribunal Supremo aportara la exigible uniformidad en tales materias.
Para hacer posible el acceso de los nuevos delitos al recurso de casación la reforma contempla distintas medidas que actuarán como contrapesos para equilibrar el modelo y hacerlo plenamente viable. En primer lugar, se generaliza el recurso de casación por infracción de ley, si bien acotado al motivo primero del artículo 849, y reservando el resto de los motivos para los delitos de mayor gravedad. En segundo lugar, se excluyen del recurso de casación las sentencias que no sean definitivas, esto es, aquellas que se limiten a declarar la nulidad de las resoluciones recaídas en primera instancia, por considerarse que en estas situaciones la casación se convertiría en un trámite superfluo y dilatorio, sin que suponga sustraer la causa al conocimiento del Tribunal Supremo, toda vez que esta vía impugnativa permanecerá abierta una vez resueltas las causas de nulidad. Y, finalmente, se instituye la posibilidad de que el recurso pueda ser inadmitido a trámite mediante providencia «sucintamente motivada» por unanimidad de los componentes de la Sala cuando carezca de interés casacional, aunque exclusivamente cuando se trate de recursos interpuestos contra sentencias dictadas por las Audiencias Provinciales o la Sala de lo Penal de la Audiencia Nacional. A efectos de determinar la existencia de ese interés casacional deberán tomarse en consideración diversos aspectos, entre otros, los siguientes: si la sentencia recurrida se opone abiertamente a la doctrina jurisprudencial emanada del Tribunal Supremo, si resuelve cuestiones sobre las que exista jurisprudencia contradictoria de las Audiencias Provinciales, o si aplica normas que no lleven más de cinco años en vigor, siempre que, en este último caso, no existiese una doctrina jurisprudencial del Tribunal Supremo ya consolidada relativa a normas anteriores de igual o similar contenido.
De esa forma, existirá doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo en todas las materias, sustantivas, procesales y constitucionales.»

Execução das sentenças do TEDH

«Por último, la necesidad de establecer en el ordenamiento español un cauce legal de cumplimiento de las sentencias dictadas por el Tribunal Europeo de Derechos Humanos, hasta ahora sin otra cobertura que la interpretación jurisprudencial, impone la reforma de los motivos del recurso de revisión, en el marco de la mejora técnica de los diversos supuestos y con inclusión también de la posibilidad de impugnación de sentencias penales que puedan resultar contradictorias con la dictada posteriormente en otro orden jurisdiccional acerca de una cuestión prejudicial no devolutiva y de las sentencias dictadas en los procedimientos de decomiso autónomo en el caso de que la ulterior sentencia penal recaída en el procedimiento principal no considerara acreditado el hecho delictivo que habilitó el decomiso.»

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Fonte da imagem: aqui.


Delação premiada - um exemplo




Para que se entenda do que se fala - e abrindo excepção à regra editorial que impus a este blog de não me reportar a casos concretos - publico um documento que circula no ciberespaço, um acordo de delação premiada. Pode ler-se aqui.

Delação premiada-2


O facto vem do Brasil e com ele a sugestão. No âmbito de uma operação judiciária denominada “Lava Jato” tem sido feito uso generalizado da “delação premiada”. Resultados, vários: no imediato, denúncias em cascata, prisões em sequência, atingindo já o coração do sistema político governante, não se sabendo se é este o investigado ou o tecido empresarial sob suspeita; para além disso, o surgimento de advogados especializados nesta forma de delação, justificando publicamente a mesma como uma forma de defesa como outra qualquer, porque o delator obtém benefício na pena expondo o delatado a ser punido: redução da prisão em 2/3 ou substituição da prisão por penas mais benignas ou ao limite a impunidade, para além de outros «prémios acrescidos».
O debate está em aberto e estou certo que contagiará em Portugal aqueles sectores do judiciário que louvaram o estatuto de “arrependidos” – mesmo quando se generalizou a partir do núcleo inicial para o combate ao terrorismo – e ensaiaram recentemente a entronização da “pena negociada”, forma tida por análoga à da justiça norte-americana. E na escola americana se formou a linha da frente dos magistrados brasileiros que agora avançam, com amplo respaldo mediático, para a nova fase da operação, denominada “ninguém pode dormir”.
A delação premiada tem do ponto de vista da eficácia penal notórias vantagens: abre o apetite aos arguidos necessitados que dão a morte aqueles que, julgam, saciarão a fome probatória dos investigadores. E faz progredir a investigação com celeridade e redução de custos.
O problema são os seus “quês”. Já nem falo no moral, porque essa é hoje, tempos de pragmatismo, tida como uma excrescência do passado: permitimo-nos, dizem, o que censuramos aos filhos na escola. Nem refiro quanto estão em causa princípios que pareciam universais da Justiça Penal, porque o mundo mudou e com ele endureceu certo crime e está a endurecer toda a Justiça.
Refiro-me aos riscos deste expediente para a própria investigação. Este meio de obtenção da prova penal – porque a delação não é prova em si – é obtido com promessa de vantagem e sob receio de punição. O delator que veja provar-se o denunciado obtém, no mínimo, redução da pena, o que viu ser infirmado o que contou vê a sua pena agravada. Ora, não se tratando de declarações livres, e muitas vezes não sendo espontâneas, fica em aberto saber se não integram o conceito de prova proibida. Por outro lado, meio sugestivo que é, abre a porta à efabulação, que pode lançar a investigação por caminhos sinuosos e enganadores.
Tal como a concebe a justiça brasileira, esta colaboração passa por um acordo em que se envolve o próprio juiz, homologando-o. E significa que o delator renuncia ao direito ao silêncio e se obriga a prestar declarações.
Até aqui tem havido o benefício de uma jurisprudência complacente com isto, que data já de 1990, com a Lei dos Crimes Hediondos, e desde 1998 se tem vindo a estender ao universo da criminalidade económico-financeira. Mas assim o seu uso leve a situações em que a convicção judicial expressa na sentença se firme mais na íntima convicção do juiz baseada no assim delatado do que na demais prova que o confirme, assim podem os tribunais superiores entender que se transpôs a linha do admissível.

O problema é que, se no Brasil, tudo isto é muito rápido – e as condenações estão já a surgir e pesadas – em Portugal tudo pode levar anos. E, anos depois, surgirem as anulações decretadas em recurso. Com as consequências e as inconsequências do costume.

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Fonte da imagem aqui. O original do texto foi publicado no jornal Sol.

Maurice Garçon: o mal e a malignidade


Não são raros os advogados que ao Direito juntam um igual envolvimento na cultura, humanismo integral feito pelo convívio com o lado controverso, tantas vezes horrendo da vida. 
O Ministério da Justiça de França lembra a figura de Maurice Garçon [biografia aqui]. Um entrevista a ler aqui, na sequência de uma memória que o Barreau de Paris decidiu consagrar-lhe [ver aqui].
Pintor, escritor, um dos temas da sua predilecção foram os de recorte demonológico, talvez porque quem vive entre o mal compreende a malignidade. O seu journal [ver sobre ele uma recensões aqui e aqui]
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Fonte da imagem: aqui

Uma tarde em torno de Barbosa de Magalhões


Anunciei aqui o livro que estou a escrever sobre a sua biografia. Aproveitei hoje a possibilidade de uma pausa e estive a trabalhar, organizando-o, num dos seus espólios, o da Biblioteca da Ordem dos Advogados. 
Entre os papéis dispersos, referentes à sua acção como ministro da Instrução Pública, dos Negócios Estrangeiros e da Justiça, estavam também, poucos embora, os que se referiram à missão de José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães como Bastonário, cargo para o qual foi eleito a 21 de Março de 1933, tendo-« desempenhado até 1935. Momentos difíceis então, um deles o decorrente da polémica que instalou quanto à Ordem inserir-se no sistema corporativo que a Constituição de 1933 sufragaria ou manter a sua integral autonomia. 
Vistas assim à luz da História, as questões repetem-se na sua essência, mesmo quando os regimes políticos mudam. O problema é o mesmo: Estado ou Sociedade Civil, funcionalismo ou cidadania, tutela ou liberdade.

Bom Ano!


Abre mais um ano dito judicial, quando talvez se pudesse dizer forense. Para os que trabalham na área do Direito Criminal - e para alguns outros - ele nunca chega verdadeiramente a fechar. Há prazos que não são para todos. 
Abre o ano com problemas que parecem eternizar-se e com garantias que se repetem, coros de indignação e cantatas de sucesso. 
Abre o ano e os jornais respigam os «casos do próximo ano», este ano, centrando-se nos mediáticos como se não houvesse todos os outros e todos os outros fossem irrelevantes e não fossem esses, os anónimos, os atinentes à população em geral, os que raramente são história, que caracterizam o que é a justiça efectiva, feita em nome do povo e para o povo.
Abre o ano judicial e surgem e surgirão os comentadores da generalidade do que se sabe e das particularidades que é patente - e muitos o confessam - não conhecem. São os que pululam na comunicação social, mormente na televisão, a comentarem os processos dos outros, os casos que acabam de surgir, e a começarem as suas doutas considerações pelo «eu do que se passa em concreto não sei nada, porém... (...)», sem pudor do que vem a seguir ao «porém» fundado declaradamente na patente ignorância.
Abre o ano dito judicial com processos em segredo de justiça de que, no entanto, pior do que tudo se saber, sabe-se o que vai convindo que se saiba e todos a fazermos de conta.
Abre o ano forense com mais alterações legislativas, incluindo aos Códigos fundamentais, legislação oriunda de um Governo em defunção e de um Parlamento em fim de legislatura. E o mais que se promete.
Abre o ano e eu vim aqui. Trabalho, como posso, na minha profissão, e tento pensar no que estudei para ela e no que com ela aprendo. Este espaço é a demonstração de que fico aquém e a evidência da esperança de poder progredir.
A todos quantos nos revemos no dia de hoje ou nem notamos que ele existiu, àqueles que um destes dias, muito adiante, celebrarão no Supremo Tribunal de Justiça, a solene abertura do ano judicial, pois que à falta de uma há duas, sem contar com a que se fantasia no 1º de Janeiro, o dia de todas as reflexões e ganas de mudar, um forte abraço e com ele a expectativa que é a forma de aguardar o futuro por aqueles que já viram muito naquilo que viveram.

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Foto: «Palácio situado na Rua de São Domingos,esquina da Rua do Prior , construído no século XVIII, entre 1770 e 1790, para Jacinto Fernandes Bandeira, escrivão do Desembargo do Paço e Conselheiro Real, 1º barão de Porto Covo. Manteve-se na família até 1937, data em que o palácio e todo o seu recheio foram leiloados. O edifício principal e os jardins foram adquiridos pelo Estado Britânico, que entre 1941 e 1995 aí instalou a sua embaixada, o recheio artístico foi comprado por particulares e museus públicos e a capela foi entregue ao Patriarcado.» [fonte, aqui]

Drone Wars


A guerra através de "drones" veio criar novos conceitos não só ao Direito da Guerra, como ao próprio Direito Internacional, com projecção a nível do Direito Penal Internacional e Internacional Penal, incluindo no âmbito do Direito Humanitário. 
Chega-me notícia de um novo livro da Cambridge University Press [ver o site aqui] que terá vindo lançar as bases do tema. Editado por Peter Bergen e Daniel Rothenberg, é uma colectânea de ensaios que mereceu uma recensão crítica aqui.


Sobre o mesmo tema James D. Morrow fez publicar pela mesma editora universitária o seu estudo Order Within Anarchy, dedicado à temática em geral do Direito da Guerra. Uma recensão crítica pode ler-se aqui.

Delação premiada


A entrevista é apenas o ponto de partida para uma reflexão, a que segue.
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Mais do que uma prática está a ocorrer uma mudança de cultura jurídico-penal no Brasil. A novidade decorre do instituto da delação premiada, uma variante do nosso sistema dos ditos "arrependidos". Se não erro a sugestão do sistema vai propagar-se além-fronteiras. Ver o seu traço geral aqui.
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Tal cultura é subsidiária da influência que o pensamento jurídico norte-americano exerce sobre uma nova geração de procuradores e juízes brasileiros. A sua génese tem também assentimento no Direito Italiano, nomeadamente na legislação anti-mafia.

Trata-se, no fundo, de uma transação processual penal, pela qual o arguido adquire vantagens em torno de declarações úteis.

Tal decorre de lei: Lei n.º 9807/99, Lei do Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) em seu art. 8º, parágrafo único; Lei do Crime Organizado (Lei 9.304/95) em seu art. 6º; o próprio Código Penal brasileiro quando trata do crime de Extorsão mediante seqüestro (art. 159, § 4º); Lei de Lavagem de Capitais (Lei 9.613/98) em seu art. 1º e 5º; Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei 9.807/99) nos arts. 13 e 14 e na Nova Lei Antitóxicos (Lei 10.409/2002) no art. 32,§ 2º estando consagrada na Lei n.º 12850, de 2 de Agosto de 2013 [ver aqui].
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O tema abre a porta a inúmeras questões. Sem pretende esgotar e apenas como convite à reflexão, eis algumas, sem sistemática:

Do ponto de vista da eficácia do sistema:

-» Qual a certeza quanto à veracidade do denunciado pelos delatores premiados? Qual a segurança jurídica de que não estarão a adquirir benefícios em troco de afirmações úteis para a tese dos investigadores?
-» Qual a garantia de que a linha de investigação criminal não fica comprometida pelas denúncias remuneradas com os benefícios processuais concedidos?
-» Qual a evidência de que o aumento exponencial de denunciados não vai gerar, em lógica inversa, o aumento igualmente exponencial de absolvidos, assim o delatado se não confirme em audiência?
-» Em que medida é que as penas aplicadas aos delatores, na aparência severas, para executadas em regime de permissiva tolerância, não expõe o sistema à aparência que é a porta aberta para a sua descredibilização?

Do ponto de vista da arquitectura do sistema:

-» Em que medida a delação premiada abre a porta ao colaboracionismo da defesa com a acusação, gerando, em primeira linha, defensores de actuação útil aos investigadores, ou, como efeito perverso, defensores sugeridos pela investigação, como os mais adequados ao suposto benefício a obter pela delação?
-» Até que ponto o sistema não coloca em crise a independência do sistema judicial, limitado pelos achados probatórios obtidos sob delação premiada?
-» Em que medida tal sistema, incrementando por sua natureza o protagonismo dos procuradores/advogados/negociadores não gera, como seu efeito mediático, o culto da personalidade em detrimento do espírito de corpo e de critérios de reserva e contenção, apanágios de uma justiça serena?

Do ponto de vista da moral do sistema:

-» Haverá limite ao envolvimento do Estado através da autoridade judiciária, com imputados criminosos, para que, em transação, como se de igual para igual, aquele alcance os seus fins através destes meios?
-» Ou será limite imaginar que a liberdade de negociar do delator está limitada, quer pela sugestão do benefício esperado, quer pela ameaça da sanção a que se sujeita caso não aceite a delação, ainda que dos seus anteriores comparsas?
-» Em que ponto de equilíbrio se pode valorar uma delação sem manifestação de arrependimento e interiorização dos valores do Estado de Direito, assunção, em suma, de uma conduta de reintegração social?
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Estou em crer que é um mundo novo. Cada achado obtido por delação enche o espaço mediático e encontra aplauso popular. Quem levantar dúvidas corre o risco de passar pela suspeita de querer a impunidade do crime. Um dia, porém, a fronteira entre os bons e os maus estará esbatida, o justo e o injusto será apenas uma questão de pragmática.

O problema da arguição: a never ending story...


Quando integrei a Comissão de que saiu o projecto do que seria o Código de Processo Penal de 1987 pensei que ali se tinha resolvido [ver aqui o texto aprovado] o problema da arguição, quando, afinal, se tinha resolvido apenas parte desse problema. Ante a fórmula consagrada, julguei que já não seria possível inquirir-se abusivamente como testemunha aquele sobre o qual incidia a investigação e que, por isso, teria de ser constituído como arguido. Isto porque, por um lado, se indicava expressamente os casos em que haveria lugar à constituição obrigatória como arguido; por outro porque se dava ao inquirido o direito de requerer a sua investidura nesse estatuto, como arguido, no caso de estarem a ser feitas diligências de investigação contra ele; enfim, porque a partir da acusação ou do requerimento de abertura de instrução contra certa pessoa esta assumiria automaticamente o estatuto de arguido. E, enfim, que estava tudo resolvido.
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A verdade é que a partir daqui passou-se de um extremo ao outro: onde, outrora, era frequente ouvir como testemunha quem deveria ser arguido e, assim, negar ao ouvido em auto o direito a defensor e ao silêncio e obrigar o ouvido ao dever de declarações e verdadeiras, sob ameaça penal, agora passou a generalizar-se a audição como arguido à mínima eventualidade de poder recair sobre o declarante qualquer suspeita. Milhares de pessoas perguntavam-se como era possível serem arguidos com tanta facilidade e encontravam da parte das autoridades a mesma resposta: para seu benefício! Assim pode ter advogado, recusar-se a falar e até a mentir impunemente...
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Tentando enfrentar o problema a reforma de 2007 passou a exigir uma substanciação dos pressupostos de constituição de arguido, isto é a necessidade de haver fundamento indiciário suficiente para que alguém fosse constituído como tal evitando a ligeireza a que a primitiva redacção tinha dado origem [ver aqui o artigo 58º na redacção modificada]. E, diga-se, tinha dado origem porque as autoridades também receavam que a denegação do estatuto de arguido pudesse abrir qualquer brecha no sentido da invalidade do acto e, assim, fazer perigar o processo, de cuja "blindagem" lhes cabia cuidar.
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O panorama actual mostra que se trata de uma "never ending story". Se é verdade que não se castigam pessoas fazendo-as ouvir como "testemunhas" - adstritas ao dever de declarar e com verdade sob ameaça penal * - quando, pois que suspeitas, deveriam ser tratadas e ouvidas como arguidos, o certo é que se está à sombra da lei a evitar a arguição quando o próprio "inquirido" sente e sabe que, ao ser mantido como testemunha, é beneficiado pela investigação criminal que, concomitantemente, o usa para a prova que pretende. Uma sociedade de mútuo interesse.

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* A presença de advogado passou a ser possível também para as testemunhas, de modo a prevenir o testemunho auto-incriminatório sem assistência de defensor.