Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Revista Julgar: 34º número


Está publicado o n.º 34 da revista Julgar, órgão da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. O anúncio está aqui no portal da Associação. Os que, não sendo assinantes, estejam interessados na respectiva compra podem adquiri-la aqui. Nela publica-se o texto da ninha intervenção que já mereceu esta minha declaração de interesses aqui, o que não impediu que um determinado órgão de comunicação social, referindo-se ao evento e sem distinguir, amalgamasse as diversas ideias nele defendidas como se uma só se tratasse e ao serviço de uma determinada estratégia concertada. Sem comentários porque, por uma questão editorial, não comento neste espaço, temas que estejam no espaço mediático, com o devido respeito pelo mesmo, quando é devido.

Voltando à revista, permito-me citar o editorial que resume bem o respectivo conteúdo.



«A Revista ultrapassa, neste número 34, os onze anos completos de vida. “Vida” em mais do que um sentido, porque não lhe tem bastado a sobrevivência, só encontrando sentido como espaço vivo de discussão jurídica, aberto e plural. Como, recentemente, se ouviu (na conferência organizada pela Revista, em 24 de novembro de 2017, na Casa do Juiz, sobre Direito da Insolvência), “a curiosidade jurídica não tem horizonte final e alimenta-se perpetuamente. Todos (…) temos uma vontade de aperfeiçoamento. A Revista JULGAR não é uma peça especial na complexa engrenagem pessoal e institucional que responde a esta necessidade. É apenas mais uma. Mas, como qualquer outro projeto semelhante, existe porque acreditamos que também ela pode contribuir com a sua parcela de luz”.

Alimentando esta ideia, propõem-se temas de grande interesse prático no caderno JULGAR, orientados para a sua dimensão de instrumento de trabalho. Mariana Coimbra Piçarra analisa o direito de retenção do promitente-comprador, um dos temas que maior discussão têm suscitado, na sequência da interpretação fixada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (STJ) n.º 4/2014. Ana Carolina Cardoso trata da mediação como um meio alternativo para a resolução dos litígios, deixando o seu olhar crítico sobre o papel ativo do juiz na tentativa de conciliação e apresentando um conjunto de propostas que visam proporcionar maior celeridade processual, designadamente a introdução da mediação no seio dos tribunais. Sofia Marques e Fernando Vieira trazem-nos um olhar médico sobre o sistema de interdição e de inabilitação, incluindo as suas limitações como resposta a uma situação de incapacidade, referindo os principais problemas do atual regime jurídico português nesta matéria e apontando, para futuro, o caminho da alternativa menos restritiva e da criação de novas medidas.

Publicam‑se, no caderno DEBATER, algumas das intervenções da conferência internacional “Tribunais Constitucionais: entre o Político e o Jurídico”, organizada no passado dia 30 de junho de 2017 pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses e pela MEDEL – Magistrats Européens pour la Démocratie et les Libertés, com a colaboração da Escola de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa e da ANESC – Academic Network on European Social Charter and Social Rights.

A especial natureza e papel dos tribunais constitucionais – órgãos a quem cabe apreciar atos políticos de acordo com critérios estritamente jurídicos – coloca‑os na linha da frente do combate pela independência do Poder Judicial. Muitas vezes olhados pelos demais tribunais como órgãos “politizados” (pela forma como os seus juízes são escolhidos) e pelo poder político como “força de bloqueio” sem legitimidade democrática (atenta a não eleição dos seus juízes), é especialmente nos momentos de crise que a independência dos tribunais constitucionais se revela essencial e mais é posta à prova.

No passado recente, em Portugal, esteve o Tribunal Constitucional na linha de mira quando foi chamado a pronunciar-se sobre as medidas de austeridade aprovadas pelo governo em cumprimento do programa de auxílio financeiro da chamada Troika e também aí foi alvo de críticas de todos os quadrantes: de um lado, aqueles que reclamavam uma maior intervenção e defesa intransigente do texto da Constituição; de outro, os que exigiam mais neutralidade e a ponderação de critérios de oportunidade e conjunturais na apreciação das medidas de austeridade económica. A intervenção do Tribunal Constitucional nesse período é analisada no texto do Mestre Pedro Coutinho (o qual, numa exceção à regra editorial desta revista, se opta por publicar também na sua versão original inglesa, por ter sido a língua na qual originalmente foi escrito, uma vez que se destinava aos participantes estrangeiros da conferência), que faz uma resenha dos principais acórdãos proferidos durante o período da austeridade económico‑financeira.

Os Professores Doutores Joaquim Sousa Ribeiro (que exerceu funções de Presidente do Tribunal Constitucional precisamente durante o período de austeridade) e Catarina Santos Botelho analisam seguidamente qual o lugar de um tribunal constitucional numa sociedade democrática e o papel que nela deve desempenhar, analisando e tentando traçar os limites da sua atuação no confronto dos demais tribunais e também dos restantes poderes do Estado, bem como as garantias que devem estar consagradas para a sua efetiva independência.

Antonio Narváez Rodríguez, juiz do Tribunal Constitucional de Espanha, procura depois definir com precisão, partindo da experiência daquele Tribunal Constitucional e da realidade espanhola, a natureza dos tribunais constitucionais – se órgãos judiciais ou políticos. É precisamente esta – a natureza dos tribunais constitucionais – a questão sobre a qual se debruça Guilherme Fonseca, apontando o seu papel central no funcionamento institucional do Estado e traçando o desígnio fundamental da jurisdição constitucional.

Como nos recorda a Professora Catarina Botelho no seu texto, vivemos numa época em que os textos constitucionais se tornaram crescentemente politizados, criando “expectativas constitucionais”, o que levou, nas palavras de Michel Rosenfeld, “a constitucionalizar o político e a politizar a Constituição”. Ora, numa altura em que se assiste a uma deriva autoritária e antidemocrática em alguns países do leste europeu que fazem parte da União Europeia – fenómeno até há bem pouco tempo inimaginável – e que tem passado precisamente pela tentativa de controlo dos tribunais constitucionais pelo poder político, é fulcral fazer o debate sobre as garantias de independência destes órgãos que estão no vértice da separação de poderes.

No caderno DIVULGAR, abrem-se as portas a um assunto da maior importância e atualidade do direito processual penal: o da natureza dos prazos de duração da fase de inquérito.

No n.º 32 da Revista, Cláudia Cruz Santos trouxe-nos um artigo intitulado “O controlo judicial da violação dos prazos de duração máxima do inquérito”, marcando uma posição muito clara a esse respeito. O debate é anterior, posterior e mais amplo do que aquela edição, claro está, tendo lugar em outras arenas. Em 19 de outubro de 2017, realizou-se, em Coimbra, uma conferência organizada pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados sobre a mesma matéria. Para além da autora já referida, participaram outros oradores de referência do direito processual penal, incluindo Germano Marques da Silva, José António Barreiros e Paulo Dá Mesquita, que enriqueceram o debate com diferentes percursos argumentativos e pontos de vista. Com grande generosidade, estes autores também aceitaram partilhar com a Revista o seu pensamento, permitindo um continuum enriquecedor entre os números 32 e 34, em tema de prazos de inquérito.»

Banco de Portugal: actividade sancionatória/primeiro trimestre

Segundo comunicado oficial do Banco de Portugal: «No decurso do primeiro trimestre de 2018 o Banco de Portugal instaurou 34 e decidiu 30 processos de contraordenação. Dos 30 processos decididos, 11 respeitam a infrações de natureza comportamental, 10 respeitam a infrações a deveres relativos à prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo e 9 respeitam a infrações de natureza prudencial. No contexto das decisões proferidas foram aplicadas 8 admoestações e aplicadas coimas que totalizaram € 694.500,00 (seiscentos e noventa e quatro mil e quinhentos euros), dos quais € 566.000,00 (quinhentos e sessenta e seis mil euros) suspensos na sua execução.»

Protecção de delatores: uma próxima Directiva da União Europeia

A noticia surgiu ontem. A União Europeia tornou pública uma proposta de Directiva que procederá a uma uniformização das legislações dos Estados membros em matéria de "alertadores" - eis o termo da tradução oficial, próximo do francês "lanceurs d'alerte" - em suma, a protecção dos delatores, os "whistleblowers" [tocadores de apito], segundo é a expressiva terminologia inglesa.

Para mais detalhes ver aqui e aqui o vídeo do anúncio público da iniciativa.

Cito, com a devida vénia, do texto oficial do anúncio público [ver aqui]:

«A proposta hoje apresentada garantirá um elevado nível de proteção dos alertadores que denunciem violações do direito da UE, definindo novas normas à escala da UE. A nova legislação instaurará canais seguros para lançar o alerta, tanto no interior das organizações como junto das autoridades públicas. Permitirá ainda proteger os alertadores contra o despedimento, a despromoção e outras formas de retaliação, obrigando as autoridades nacionais a informar os cidadãos e a proporcionar formação às autoridades públicas sobre a forma de lidar com os alertadores.
«O Primeiro Vice-Presidente da Comissão, Frans Timmermans, declarou: Muitos dos escândalos recentes nunca teriam vindo a lume se não existissem vozes corajosas para os denunciar. Mas essas pessoas assumiram enormes riscos. Assim se protegermos melhor os alertadores poderemos detetar e prevenir melhor as situações lesivas do interesse público, como a fraude, a corrupção, a evasão fiscal por parte das empresas ou os danos à saúde humana e ao ambiente. Ninguém deve ser punido por fazer o que está certo. Além disso, as propostas hoje apresentadas protegem também as fontes dos jornalistas de investigação, contribuindo assim para garantir a liberdade de expressão e a liberdade dos meios de comunicação social na Europa.
«Věra Jourová, Comissária Europeia responsável pela Justiça, Consumidores e Igualdade de Género, acrescentou: «As novas regras de proteção dos alertadores agirão como um catalisador da mudança. Num mundo globalizado em que a tentação de maximizar o lucro, por vezes a expensas da lei, é muito real, temos de apoiar as pessoas que estão dispostas a correr o risco de denunciar graves violações do direito da UE. É o nosso dever para com os cidadãos honestos da Europa.
«Os alertadores podem ajudar a detetar, investigar e sancionar as violações do direito da UE. Desempenham também um importante papel ao permitirem aos jornalistas e à imprensa livre ocupar o seu lugar fundamental nas nossas democracias. É por tudo isto que os alertadores necessitam de uma proteção adequada contra a intimidação e as represálias. Os cidadãos que desmascaram atividades ilegais não devem ser punidos em consequência da sua ação. Mas, na realidade, muitos pagam a sua ação com os seus postos de trabalho, a sua reputação ou mesmo a sua saúde; 36 % dos trabalhadores que denunciaram situações irregulares sofreram retaliações (de acordo com o projeto de investigação «Global Business Ethics Survey», de 2016). A proteção dos alertadores contribuirá também para salvaguardar a liberdade de expressão e a liberdade dos meios de comunicação e é essencial para a proteção do Estado de direito e da democracia na Europa.
Proteção relativamente a um vasto conjunto de violações do direito da UE
«A proposta de hoje garante proteção em toda a União Europeia em caso de alerta relativamente a violações da legislação da UE nos domínios dos contratos públicos, serviços financeiros, branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo; segurança dos produtos; segurança dos transportes; proteção ambiental; segurança nuclear; segurança dos alimentos para consumo humano e animal e saúde e bem-estar animal; saúde pública; proteção dos consumidores; privacidade, proteção de dados e segurança das redes e dos sistemas de informação. Aplica-se igualmente às infrações às regras de concorrência da UE, às violações e abusos em matéria de regras de tributação das sociedades, bem como a situações lesivas dos interesses financeiros da UE. A Comissão incentiva os Estados-Membros a irem além desta norma mínima e a criarem quadros globais de proteção dos alertadores assentes nos mesmos princípios.
Mecanismos e obrigações claros para os empregadores
«Todas as sociedades com mais de 50 empregados ou com um volume de negócios anual superior a 10 milhões de EUR terão de estabelecer um procedimento interno para gerir as denúncias dos alertadores. Todas as administrações nacionais e regionais, bem como de municípios com mais de 10 000 habitantes, serão igualmente abrangidas.
«Os mecanismos de proteção a introduzir devem incluir:
  • Canais de comunicação de informações claros dentro e fora da organização de forma a garantir a confidencialidade;
  • Um sistema de comunicação de informações de três níveisincluindo:
  • Canais de comunicação internos;
  • Comunicação de informações às autoridades competentes, caso os canais internos não funcionem ou não se espere que venham a funcionar (por exemplo, quando a sua utilização possa comprometer a eficácia das investigações levadas a cabo pelas autoridades competentes);
  • Comunicação ao público/meios de comunicação — caso não sejam tomadas medidas adequadas após comunicação das informações através de outros canais ou em caso de perigo iminente ou claro para o interesse público, ou ainda em caso de danos irreversíveis;
  • Obrigações de resposta das autoridades e empresas, que terão de responder e dar seguimento às denúncias dos alertadores no prazo de três meses para canais de comunicação internos;
  • Prevenção de represálias e proteção eficaz: todas as formas de represália são proibidas e devem ser punidas. Se um alertador sofrer represálias, deve ter acesso a aconselhamento gratuito e vias de recurso adequadas (por exemplo, medidas para impedir o despedimento ou o assédio no local de trabalho). Nestes casos, o ónus da prova será invertido, pelo que a pessoa ou organização deve provar que não se trata de uma represália contra o alertador; Os alertadores serão igualmente protegidos nos processos judiciais, nomeadamente através de uma isenção de responsabilidade pela divulgação das informações.
Salvaguardas eficazes
«A proposta protege o lançamento de alerta responsável, com a intenção genuína de proteger o interesse público. Por conseguinte, inclui salvaguardas destinadas a desencorajar as denúncias mal-intencionadas ou abusivas e evitar danos injustificados à reputação. As pessoas afetadas pela denúncia de um alertador beneficiarão plenamente da presunção de inocência, do direito a recurso efetivo, do direito a um processo equitativo e do direito de defesa».

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Fonte da imagem: aqui

Excepcional complexidade: (não) audição do arguido...irregularidade

Já me tinha perguntado quando chegaria o dia em que, nesta progressiva caminhada para o desguarnecimento de garantias fundamentais, a audição de arguido em matéria de despacho que decrete a excepcional complexidade do processo passaria a ficar à mercê. Já sucedeu. O Acórdão do Tribunal Constitucional de 21.02.2018 [proferido no processo n.º 1326/2017] e e que me penitencio só agora ter lido, determinou: 

«Não é julgada inconstitucional a interpretação, extraída da conjugação dos artigos 118.º, n.ºs 1 e 2, 123.º, n.º 1 e 215.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, conducente ao sentido de que constitui mera irregularidade a não audição do arguido sobre o requerimento do Ministério Público tendente à declaração da especial complexidade do procedimento, em momento prévio à prolação do despacho judicial que defira esse requerimento, procedendo a tal declaração. A irregularidade só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar, quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado. A preterição do ato obrigatório de audição prévia do arguido é facilmente detetável e a sua invocação não exige uma especial análise do processo, pelo que o regime legal por via da sua qualificação como irregularidade não se traduz num ónus excessivo ou desproporcionado, impendente sobre o arguido prejudicado pelo vício».

Na mira de tentar encontrar uma fundamentação adequada para o decidido o acórdão explicitou:

«No âmbito da definição do regime de invalidades, o legislador ordinário dispõe de uma margem de liberdade de conformação, condicionada pelo respeito do núcleo essencial do direito envolvido.
A questão de saber se a solução normativa, preconizada no critério sob sindicância, se encontra compreendida no âmbito da liberdade de conformação do legislador infraconstitucional reconduz-se, no fundo, à averiguação sobre se a modalidade e intensidade da violação do direito em causa - especificamente, o direito ao exercício do contraditório - vincula, constitucionalmente, à consagração de uma solução mais grave - no âmbito dos vícios de incumprimento das disposições legais - do que a irregularidade.
Nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, "[o] processo criminal assegura todas as garantias de defesa" e, de acordo com o n.º 5 do mesmo preceito, a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar encontram-se subordinados ao princípio do contraditório.
O preceito do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, ao dispor que «o processo penal assegurará todas as garantias de defesa», funciona como cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da proteção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, 4.ª edição revista, I Vol., p. 516). Nas palavras de Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1.ª reimp., Coimbra Editora, 2004 (1.ª ed.: 1974), p. 142), as garantias de defesa impõem um processo estruturado de forma a que ao arguido seja assegurada «a mais ampla possibilidade de tomar posição, a todo o momento, sobre o material que possa ser feito valer processualmente contra si (...)».
No âmbito do Acórdão n.º 555/2008, o Tribunal Constitucional concluiu:
«[a excepcional complexidade do procedimento] é qualificação que, nos termos do n.º 3 do artigo 213.º do CPP, acarreta a elevação dos prazos de prisão preventiva. Por conseguinte, a decisão afecta[ ]pessoalmente[o arguido], incidindo directamente no núcleo do seu direito fundamental à liberdade, pois é susceptível de provocar a extensão temporal de uma medida de coacção que o priva desse bem primário, sendo certo que, por imperativo constitucional (artigo 32.º, n.º 2, da CRP), ele é presumido inocente. É quanto basta para considerar que aqui se fazem sentir, de forma particularmente intensa, as razões garantísticas que dão suporte axiológico ao direito de audição, arredando qualquer justificação, no plano da legitimidade constitucional, de uma interpretação que a dispense».
Naquele aresto, porém, o Tribunal Constitucional apenas se pronunciou sobre a obrigatoriedade de audição do arguido, em caso de declaração oficiosade excecional complexidade do processo, julgando inconstitucional a interpretação normativa, extraída do artigo 215.º, n.º 4, do CPP, conducente à negação dessa obrigatoriedade (sublinhado nosso).
A questão que se coloca no âmbito dos presentes autos é diversa, por não ser problematizada essa obrigatoriedade, sendo, pelo contrário, a mesma pressuposta, a ponto de ser considerado assente que o incumprimento dessa imposição se traduz num vício. A questão decidenda prende-se, como já referimos, com a suficiência, em termos de exigências constitucionais, da qualificação do vício em causa como irregularidade.
Nos termos do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, a irregularidade «só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar, quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado».
Embora não especificamente a respeito da norma em crise nestes autos, este Tribunal já se pronunciou sobre casos em que igualmente se discutia a constitucionalidade da consequência - nulidade insanável, nulidade dependente de arguição ou mera irregularidade - ligada ao incumprimento de ónus ou imposições processuais.
Para aquilatar dessa suficiência, convém ter presente, por um lado, que o vício em causa - a preterição do ato obrigatório de audição prévia do arguido - é facilmente detetável e que a sua invocação não exige uma especial análise do processo, pelo que o regime legal convocável por via da sua qualificação como irregularidade não se traduz num ónus excessivo ou desproporcionado, impendente sobre o arguido prejudicado pelo vício (menos ainda nas circunstâncias do caso presente).
De facto, encontrando-se a reposição da legalidade, relativamente ao cumprimento efetivo da formalidade de audição, prevista no artigo 215.º, n.º 4, do CPP, apenas dependente da arguição do respetivo vício pelo arguido, nos termos plasmados no artigo 123.º, n.º 1, do referido diploma, sendo que o mesmo se encontra assistido por defensor, não se vislumbra que esse condicionamento extravase o âmbito de conformação confiado ao legislador, que optou por não colocar todos os vícios no mesmo plano, «gradua[ndo] os seus efeitos de acordo com a respetiva gravidade», como pode ler-se no Acórdão n.º 350/2006, tendo em conta a necessidade de equilíbrio entre a realização da pretensão punitiva do Estado e a tutela de direitos fundamentais dos arguidos.
No Acórdão n.º 429/95 - que, a propósito da nulidade resultante da omissão do dever de informar os arguidos do que se passou, em audiência, na sua ausência, nos casos em que é determinada a audição em separado dos co-arguidos, concluiu pela não desconformidade constitucional das «normas do artigo 343.º, n.º 4, conjugada com a do artigo 120.º, ambos do CPP, interpretadas no sentido de que a nulidade prevista na primeira das referidas normas é sanável» - pode ler-se, nomeadamente, o seguinte:
«Com efeito, como bem faz ressaltar o Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal nas suas alegações, no processo penal existem outros valores relevantes para além do direito da defesa à obtenção de uma sentença absolutória:
- o dever de diligência do arguido - e, muito em particular, do defensor que obrigatoriamente o deve assistir ao longo do processo (e da audiência) - que obviamente deverão de imediato reagir contra as nulidades ou irregularidades que considerem cometidas e entendam relevantes, na perspectiva de defesa, não podendo naturalmente escudar-se na sua própria negligência no acompanhamento das diligências ou audiências para intempestivamente vir reclamar o cumprimento da lei relativamente a que estiveram presentes e de que, agindo com a prudência normal, não puderam deixar de se aperceber;
- dever de boa fé processual, que naturalmente impedirá que possam - arguido e defensor - ser tentados a aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um «trunfo» para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado».
Nestes termos, aplicando as considerações expendidas ao critério normativo aqui em apreciação, diremos que a interpretação, extraída da conjugação dos artigos 118.º, n.ºs 1 e 2, 123.º, n.º 1, e 215.º, n.ºs 3 e 4, todos do CPP, conducente ao sentido de que constitui mera irregularidade a não audição do arguido sobre o requerimento do Ministério Público tendente à declaração da especial complexidade do procedimento, em momento prévio à prolação do despacho judicial que defira esse requerimento, procedendo a tal declaração, não se apresenta desconforme à Constituição, não extravasando a margem de liberdade que é conferida ao legislador, no âmbito da definição dos vícios correspondentes ao incumprimento das disposições processuais penais».

Ou seja, a lesão de uma garantia primária de defesa - o direito a ser ouvido por juiz antes de este decidir algo tão relevante quanto uma excepcional complexidade do processo, com tudo quanto releva a nível da própria duração do prazo de inquérito e sobretudo da prisão preventiva - fica sanada se não for arguida em três dias.

A lógica do decidido pressupõe três fundamentos de que me permito duvidar:

-» Que há um ónus de arguição [em três dias], sem o que o vício fica sanado;
-» Que a não arguição, dispensa o conhecimento oficioso do vício;
-» Que, ao limite, a defesa até poderia usar como "trunfo" essa não arguição, assim o vício fosse entendido como nulidade insanável [o que consubstancia uma interessante suspeição sobre a defesa e uma jurisprudência defensiva, como se as invalidades fossem não patologias processuais universalmente inaceitáveis mas sim fragilidades face ao adversário arguido].

Resta o que ainda há dias ouvi de autorizada boca: nem todo o mau Direito é inconstitucional. Seguramente. A inversa é também verdade: nem é tudo quanto é constitucional é bom Direito.

Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Direito Penal


Sob a coordenação científica de Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes foi publicado o livro Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Direito Penal. O índice permite alcançar o seu interessante e útil conteúdo.


I. LAW ENFORCEMENT E COMPLIANCE

Law enforcement & compliance Paulo de Sousa Mendes 11

O que não se diz sobre o criminal compliance Paulo César Busato 21

Compliance, cultura corporativa e culpa penal da pessoa jurídica Teresa Quintela de Brito 57

A responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva no contexto do “Estado Regulador” Alexandra Vilela 101

A elaboração de programas de compliance Filipa Marques Júnior e João Medeiros 123


II. QUESTÕES PROCESSUAIS

Questões processuais da responsabilidade penal das pessoas coletivas Germano Marques da Silva 151 

O advogado interno (in-house lawyer): Estatuto e particularidades do segredo profissional Filipe Matias Santos 171

O segredo de negócio como escudo e como espada Nuno Sousa e Silva 209 


III. RESPONSABILIDADE DO COMPLIANCE OFFICER

A responsabilidade penal do compliance officer: fundamentos e limites do dever de auto-vigilância empresarial Tiago Geraldo 267

Responsabilidade penal das instituições de crédito e do Chief Compliance Officer no crime de branqueamento José Neves da Costa 303 


IV. RESPONSABILIDADE CONTRAORDENACIONAL

Compliance em processo contraordenacional: Da alegação à decisão através da prova Alexandre Leite Baptista 345

Os poderes de cognição e decisão do tribunal na fase de impugnação judicial do processo de contraordenação Marta Borges Campos 385


V. MERCADOS FINANCEIROS

A revisão das diretivas do abuso de mercado: Novo âmbito, o mesmo regime Helena Magalhães Bolina 425 

A utilização em processo penal das informações obtidas pelos reguladores dos mercados financeiros Paulo de Sousa Mendes 453

Para melhor percepção, permito-me citar da sinopse da obra: «Qual é a relevância do compliance nos diversos âmbitos da ação regulatória (preventiva e sancionatória) e da atividade empresarial? E em que medida será possível relacionar e compatibilizar o compliance com o law enforcement a cargo das autoridades competentes?  A estas questões fundamentais procurou responder o I Curso de Pós-Graduação sobre "Law Enforcement, Compliance e Direito Penal nas atividades bancária, financeira e económica", organizado pelo Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais (CIDPCC) da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no ano letivo de 2015/2016, o qual está na origem da presente publicação. À semelhança do Curso e do seu programa multidisciplinar, esta é uma obra pioneira no tratamento sistemático dos principais problemas jurídicos que resultam da tensão entre law enforcement e compliance. Suportados no conhecimento atualizado da doutrina e da jurisprudência nacionais e estrangeiras relevantes, os diferentes contributos cruzam temas substantivos e processuais de inegável interesse teórico e grande relevância prática, em particular nos domínios regulatório, penal e contraordenacional».

Remissão nas contra-ordenações: incerteza e insegurança

Por gentileza do Exmo. Presidente da Comarca de Santarém, Dr. Luís Miguel Caldas, foi-me dada oportunidade de intervir nas II Jornadas do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão que tiveram lugar no passado dia 20 de Abril. 

Retomei, com maior desenvolvimento, o tema que já expressara quando das jornadas sobre a mesma matéria levadas a cabo pelo Forum Penal na cidade do Porto em Setembro de 2017: o problema das remissões efectuadas nos artigos 32º e 41º do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social para o Código Penal e para o Código de Processo Penal.

Artigo 32.º
(Do direito subsidiário)


Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal.

Artigo 41.º
Direito subsidiário


1 - Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
2 - No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma.

Permito-me deixar aqui alguns apontamentos dessa intervenção que será publicada na íntegra, excertos em que exprimo sentir crítico quanto à devolução indeterminada e contraditória que aquelas normas materializam como se os ordenamentos remetidos fossem congruentes com o regime das contra-ordenações e somo se isso não abrisse, como abre, a porta à ambiguidade e à insegurança jurídica, fruto da casuística com que as autoridades reguladoras e a jurisprudência encaram a técnica remissiva, tudo sob a complacente fiscalização «de baixa intensidade» do Tribunal Constitucional:


«É que à indeterminação na devolução [remete-se, não para preceitos específicos da lei, mas para todo um sistema legal junta-se a ductilidade da remissão [«devidamente adaptados», se diz para a remissão em favor do processo criminal e «em tudo o que não for contrário à presente lei», se afirma na remissão para o Código Penal] e – eis o ponto de agonia do sistema – tratando-se de sistemas normativos que, não comungam da mesma natureza pois se o sistema remetido é sancionatório criminal e processo criminal, sistema remetente é algo sobre cuja natureza ainda não se ganhou sequer certeza jurídica, tanto na literatura como na jurisprudência, pois sobre ele encontramos inúmeras soluções contrastantes.»

[...]

Mas mais: é que o núcleo essencial do problema já não é a existência de diversidade entre os ilícitos criminais e contraordenacionais e, por isso, dos respectivos processos, mas sim poder não existir denominador comum que os considere parte daquele Direito sancionatório ou punitivo em que haja regras que sejam comuns não direi por paridade, mas, ao menos, por um mínimo de razão.

[...]

Ficciona-se haver uma «unidade do sistema jurídico», mas sucede que, como vimos, é de diversidade que se trata, neste caso em que o legislador determina a remissão no quadro de um sistema legal sobre ilícito de mera ordenação social para outro sistema legal de natureza jurídico-criminal em sentido amplo, pois que englobando o processual penal e a execução das decisões. 

Ficciona-se fundar-se o sistema numa situação de analogia quando, de facto, ao ter previsto o funcionamento da regra da adaptabilidade, o legislador reconhece que de analogia imperfeita ou até impossível se trata. 

Por isso e por procurar evitar estas dificuldades construtivistas inerentes a pensarmos o problema como se de lacuna se tratasse, e por seguramente por lhe percepcionar as consequências, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2014, de 06.03.2104 [Diário da República, 14.04.2104], considerou que o Direito subsidiário aqui em causa «tem a ver com o elenco das fontes de direito mobilizáveis como critério para a sua realização, diferente no problema das lacunas vai ínsita a ausência de uma fonte ou critério positivo para essa objectivação». 

Ficciona-se, mais ainda, que se tenham presente as condições específicas do tempo em que é aplicada a norma, mas estamos hoje a aplicar um sistema legal contraordenacional que foi gizado para suceder ao regime das transgressões e contravenções, ou seja, aplicável às infracções de menor relevo social, que não colocam em causa bens jurídicos fundamentais, isto quando estamos hoje ante a possibilidade de coimas de vários milhões de euros e de sanções acessórias altamente lesivas e estigmatizantes, mais graves até do que é o quotidiano no sistema penal quando opera em se de penas não privativas da liberdade. 

Ficciona-se, enfim, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados quando aquilo de que estamos a curar é de uma devolução indeterminada, maleável, incerta no consequente e imperfeita no antecedente: o que se remete? Para onde se remete? Até que ponto se remete? 

Tudo é insegurança: equipara-se o diferenciado, presume-se identidade normativa onde não existe sequer analogia jurídica. E torna-se isso lei repressiva. O insuportável não é diferente disto. 

Em suma: como o Direito Criminal e seu processo gozam de tutela constitucional, estamos ante a possibilidade de, por acto do intérprete, por mera manipulação de etiquetas, recusar a garantia constitucional a zonas específicas do Direito contraordenacional, bastando que considere e, no caso, a remissão para a norma criminal ou processual criminal não deverá efectuar-se.»

Um novo formato


De há muito adiada a iniciativa, o blog sofreu hoje alteração de formato. O propósito é torná-lo mais acessível a quem tenha a gentileza de ser seu leitor.
Do ponto de vista do conteúdo, focará os temas do Direito Criminal e de ordenação social, bem como as normas de regulação dos mercados, com ênfase para as de compliance e cujo propósito seja o combate à criminalidade de cunho patrimonial.
A tendência de o restringir ao Direito Português ficará definitivamente afastada. A globalização das relações económicas e financeiras impedem que possamos confinar-nos ao que se passa no nosso espaço nacional.
Tentando manter-se actualizado, manterá o tom crítico quando tal se suscitar.
No cabeçalho encontram de modo mais explícito e directo ligações para as contas Linkedin e Twitter para onde reencaminho o que é objecto das minhas leituras.
Oxalá tenha sido a decisão correcta e executada de modo útil. É esse o objectivo.

Assembleia da República: iniciativas legislativas em Março


Segundo o portal da Assembleia da República, o qual, entretanto, alterou a sua configuração, são estas as iniciativas legislativas registadas durante o mês de Março com relevo na área jurídico-penal:

-» 08.03 Projeto de Resolução 1391/XIII [CDS-PP]: Recomenda ao Governo que proceda à regulamentação urgente da Lei Orgânica n.º 4/2017, de 25 de agosto [“Aprova e regula o procedimento especial de acesso a dados de telecomunicações e Internet pelos oficiais de informações do Serviço de Informações de Segurança e do Serviço de Informações Estratégicas e de Defesa e procede à segunda alteração à Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário)”]

-» 08.03 Projeto de Resolução 1394/XIII [PCP]: Recomenda ao Governo que acelere o processo de construção do novo estabelecimento prisional do Algarve

14.03 Proposta de Lei 113/XIII [Governo]: Tipifica o crime de agressão, procedendo à segunda alteração à Lei n.º 31/2004, de 22 de julho, que adapta a legislação penal portuguesa ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional.

26.03 Proposta de Lei 119/XIII [Governo]: Estabelece o regime jurídico da segurança do Ciberespaço, transpondo a Diretiva (UE) 2016/1148.

26.03 Proposta de Lei 120/XIII [Governo]: Assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) 2016/679, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados.

ASAE: branqueamento de capitais em consulta

A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica submeteu a consulta pública, até 16 de Abril de 2018, um projeto de Regulamento dos deveres gerais e específicos de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo previstos na Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto. O texto pode ser encontrado aqui.

Luxemburgo: "amnistia fiscal" e branqueamento

O ministro das Finanças do Luxemburgo, Pierre Gramegna, informou que a amnistia fiscal que vigorou durante o ano de 21017 permitiu um encaixe financeiro da ordem dos cinquenta milhões de euros. As primeiras estimativas apontavam para um valor da ordem dos trinta e seis milhões de euros. A Directora da administração fiscal para os impostos directos, Pascale Toussing, por seu turno aproveitou para explicar que a aplicação de uma lei [a Lei n. º 7020, de 23 de Dezembro de 2016, texto integral aqui] que antecipa o teor da 4ª Directiva sobre o branqueamento de capitais [(EU) 2015/849] havia contribuído para melhorar a imagem do país face ao exterior.

Dois comentários a propósito:

-» primeiro: a criminalização e a descriminalização fiscal tornaram-se generalizadamente meios coercivos discricionários de cobrança fiscal, com o Estado a fazer avançar e recuar a linha da frente da Justiça Penal consoante as suas necessidade de meios orçamentais;

-» segundo: se bem que a avaliação GAFI tenha reconhecido [ver aqui] que o país efectuou significativos progressos desde o ano de 2011 [altura em que, sujeito a uma avaliação efectuada em 2010 [texto aqui] saiu da lista cinzenta em função do escasso controlo do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo].

Quando o Estado se isenta do que ao País proíbe!


Que o Estado a si mesmo se permite o que aos particulares proíbe é princípio ao qual a consciência social dos portugueses já se acomodaram. Basta ver as condições de falta de segurança e insalubridade em que estavam e estão ainda muitos tribunais para não falar nas repartições públicas em geral.
Agora que o Conselho de Ministros haja aprovado um diploma pelo qual o Estado isenta a Administração Pública de pagar durante três anos as coimas que são exigidas aos cidadãos e empresas é intolerável se não fosse mais um de tantos funestos exemplos.
O princípio decorre do aprovado em sede de Regulamento Geral de Protecção de Dados no último Conselho de Ministros, quinta-feira passada.


Segundo o comunicado:

«O Governo aprovou a proposta de lei que assegura a execução do regulamento comunitário relativo à proteção das pessoas singulares sobre o tratamento de dados pessoais e sua livre circulação.
Através deste diploma, «o Governo aprova a legislação nacional necessária à execução do Regulamento Geral de Proteção de Dados, adotando as soluções que o Estado considera mais adequadas para proteger os direitos das pessoas» num contexto de crescente competitividade das empresas no quadro da União Europeia (UE), refere o comunicado do Conselho de Ministros de 22 de março.
Com entrada em vigor dia 25 de maio, o Regulamento tem como principais novidades:

• O reforço dos direitos dos titulares dos dados;
• A definição de categorias especiais de dados pessoais – como os biométricos ou os de saúde; 
• A obrigação de uma autoavaliação, pelos responsáveis do tratamento de dados pessoais e subcontratantes, cabendo-lhes a obrigação de notificação prévia à Autoridade Nacional de Controlo; 
• A criação de mecanismos de certificação para comprovar a conformidade das operações de tratamento de dados levadas a cabo pelos responsáveis e subcontratantes com o Regulamento; 
• A obrigatoriedade de notificar a Autoridade Nacional de Controlo em caso de violação de dados pessoais;
• A obrigatoriedade da existência de um Encarregado de Proteção de Dados nas entidades públicas e privadas; 
• O agravamento dos valores das coimas, em caso de violação do Regulamento.»


Mas, como informou a ministra da Presidência, citada pela comunicação social: «“O regulamento permite que as coimas não se apliquem às administrações públicas“, anunciou a ministra, na conferência de imprensa do Conselho de Ministros, esta quinta-feira, uma vez que o Estado, ao contrário das empresas, não comercializa esses dados. A proposta do Executivo prevê que a isenção “aconteça por três anos e que depois seja reapreciada”. É o tempo do Estado se organizar para o “novo paradigma”, diz Maria Manuel Leitão Marques.»

Naturalmente, Senhora ministra. É caso para sorrir. Sem mais comentários.

Suspensão provisória do processo: relatório de síntese da PGR/2017

A PGR publicou o relatório de síntese referente ao ano de 2017 [texto integral, aqui] em matéria de suspensão provisória do processo penal.

A justificar a relevância e actualidade do instituto, escreve-se nesse documento de 26 páginas:

«O relevo que o instituto da Suspensão Provisória do Processo, introduzido no sistema processual penal português com o Código de Processo Penal de 1987, tem assumido na resolução do conflito penal no domínio da pequena e média criminalidade justifica que se proceda à sua avaliação por referência, designadamente, às tipologias criminais em que a sua aplicação tem lugar, ao tipo de injunções e regras de conduta aplicadas e aos resultados obtidos.»

A aplicação da suspensão provisória decorre de duas Directivas da PGR, publicadas respectivamente em 2014 e 2015 {ver os textos respectivos aqui], como se cita no relatório:

«A Diretiva nº 1/14, de 15-1-2014, da Procuradora-Geral da República, posteriormente atualizada e republicada pela Diretiva 1/15, de 30-4-2015, define, para a magistratura do Ministério Público, orientações destinadas a potenciar a eficácia deste instituto e a uniformizar procedimentos e critérios, designadamente em matéria de injunções e regras de conduta, de modo a que sejam respeitados princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade face ao caso concreto e atendidas as exigências de prevenção que o mesmo reclama.»

Em termos de centralização da informação relativa àquela figura processual:

«A aplicação do instituto é acompanhada pelas estruturas hierárquicas do Ministério Público e encontra-se sujeita a registo numa Base de Dados, legalmente prevista no DL n.º 299/99, de 04 de Agosto, alterado pela Lei n.º 27/2015, de 14/04, estando já em fase de testes um movo módulo da Base de Dados, que irá permitir registar, por comarca/departamento, todas as IPSS elegíveis e fornecer dados automáticos sobre os montantes globais já entregues a cada uma delas.»

Elucidativo da prática seguida na aplicação da suspensão, o documento esclarece, em termos estatísticos:

«No ano de 2017 a suspensão provisória do processo foi aplicada pelo Ministério Público, a nível nacional, na fase de inquérito, na fase preliminar do processo sumário e em sede de processo abreviado, em 34145 situações. 
«A diminuição da aplicação da suspensão provisória do processo em relação ao ano de 2016 (36623 casos) situou-se em cerca de 6,76%.»
«No ano de 2017 foi exercida a ação penal, com recurso às diversas formas processuais, em 97542 processos - 63397 processos por acusação nas diversas formas processuais e 34145 casos por aplicação da suspensão provisória do processo. 
«O exercício da ação penal por aplicação de suspensão provisória do processo correspondeu a uma percentagem de cerca de 35% do número total de processos em que foi exercida a ação penal. »
«Os crimes em que a aplicação da suspensão provisória do processo teve maior expressão continuaram a ser os crimes de Condução de veículo sob influência de álcool (cerca de 26,07%) e de Condução sem habilitação legal (cerca de 11,66%)»
«Em 2017, e ao contrário dos dois anos anteriores, o crime de desobediência teve um maior número de casos de suspensão provisória do processo, correspondentes a cerca de 6,90% do total de suspensões, seguido do crime de Violência doméstica contra cônjuge ou análogos, que foi objeto de suspensão provisória do processo em cerca de 5,85% do total de casos de suspensão provisória, valor ligeiramente inferior a 2016 (6,7%). 
«Foi também superior o número de suspensões provisórias do processo em casos de consumo de substâncias estupefacientes, que se cifrou numa percentagem de cerca de 5,83% face ao total de suspensões. 
«Salientam-se ainda os crimes de ofensa à integridade física voluntária simples, que constituíram cerca de 4,31% do total de suspensões provisórias, e de detenção ou tráfico de armas proibidas, que representaram cerca de 4,20%. »
«Os crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social, no seu conjunto, constituíram cerca de 3,53% dos casos de suspensão provisória durante o ano, com um total de 1208 casos (746 e 462, respetivamente). 
«Pela atualidade e evolução, designadamente face ao ano de 2015, e pese embora a ligeira diminuição verificada face a 2016 (menos 11), anotam-se ainda os 36 casos de suspensão provisória relativos ao crime de abandono de animais de companhia.»

Assembleia da República - iniciativas legislativas pendentes

Eis as iniciativas legislativas actualmente pendente na Assembleia da República com relevo para a matéria de justiça, incluindo a penal e contraordenacional:

-» Apreciação Parlamentar 50/XIII do Decreto-Lei n.º 93/2017, de 1 de agosto [PSD] - "Cria o serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital" [aqui], entrada a 13.10.2017

-» Apreciação Parlamentar 47/XIII do Decreto-Lei n.º 117/2017, de 12 de setembro [PCP]- “Altera o regime sancionatório aplicável às transgressões ocorridas em matéria de transportes coletivos de passageiros” [aqui], entrada  a 12.10.2017

-» Projeto de Lei 788/XIII-12.ª alteração à Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro [CDS/PP], que aprova o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; criação de equipas extraordinárias de juízes administrativos e tributários  [aqui], entrado a 22.02.2018

-» Projeto de Lei 787/XIII [CDS/PP] - 45.ª alteração ao Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, que aprova a Lei Geral Tributária e 32.ª alteração ao Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de outubro, que aprova o Código de Procedimento e Processo Tributário [aqui], entrado a 22.02.2018]

-» Projeto de Lei 785/XIII [CDS/PP] - 3.ª alteração à Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto ("Lei da Organização do Sistema Judiciário") [aqui], entrada a 22.02.2018

-» Projeto de Lei 784/XIII [CDS/PP] - 2.ª alteração à Lei n.º 78/2001, de 13 de julho ("Julgados de Paz - Competência, Organização e Funcionamento") [aqui], entrado a 22.02.2018

-» Projeto de Lei 783/XIII [CDS/PP]- 6.ª alteração ao Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho [aqui], entrado a 22.02.2018

-» Projeto de Lei 781/XIII [PS] - Altera o Código Civil, reconhecendo a possibilidade de renúncia recíproca à condição de herdeiro legal na convenção antenupcial [aqui], entrado a 20.02.2108

-» Projeto de Lei 773/XIII [BE] - Define e regula as condições em que a antecipação da morte, por decisão da própria pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e que se encontra em sofrimento duradouro e insuportável, não é punível [aqui], entrado a 07.02.2108

-» Projeto de Lei 749/XIII [PAN] - Altera o Código Penal, criminalizando novas condutas praticadas contra pessoas especialmente vulneráveis [aqui], entrado a 26.01.2018

Branqueamento de capitais: novo Aviso do BdP em preparação

O Banco de Portugal submete a consulta pública, até 29 de março de 2018, um projeto de aviso sobre a prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo. Com este projeto de aviso, pretende-se emitir um instrumento regulamentar que, entre outros aspetos, defina: 
As condições de exercício dos deveres preventivos do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo previstos nos Capítulos IV e V da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto;

Os meios e os mecanismos necessários ao cumprimento, pelas entidades financeiras, dos deveres previstos na Lei n.º 97/2017, de 23 de agosto, tendo em a vista aplicação e a execução de medidas restritivas aprovadas pela Organização das Nações Unidas ou pela União Europeia;

As medidas que os prestadores de serviços de pagamento devem adotar para detetar as transferências de fundos em que as informações sobre o ordenante ou o beneficiário são omissas ou incompletas e os procedimentos adequados a gerir as transferências de fundos que não sejam acompanhadas das informações requeridas pelo Regulamento (UE) 2015/847.

Pretende-se que o aviso revogue os seguintes instrumentos regulamentares: 
Aviso n.º 5/2013, de 18 de dezembro de 2013;
Aviso n.º 9/2012, de 29 de maio de 2012;

Conteúdo do projeto de aviso

Com o presente projeto de aviso, o Banco de Portugal pretende dar cumprimento aos mandatos que lhe são conferidos pela Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, e pela Lei n.º 97/2017, de 23 de agosto. Pretende ainda contribuir para a simplificação do quadro regulamentar aplicável em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, sistematizando num único aviso matérias que atualmente se encontram dispersas por diferentes instrumentos regulamentares. 

O projeto de aviso não vem, em geral, onerar mais as entidades financeiras relativamente ao quadro legal vigente. De facto, o Banco de Portugal procurou, no diploma que agora submete a consulta pública, conformar os deveres e as obrigações previstos nos diplomas legais às concretas realidades operativas específicas das entidades financeiras sujeitas à sua supervisão, nomeadamente detalhando e exemplificando os meios e os procedimentos que estas entidades devem adotar em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo.

Relativamente ao quadro legal vigente, o projeto de aviso: 

Altera o âmbito subjetivo, dado que inclui: (i) as instituições de pagamento e as instituições de moeda eletrónica com sede noutro Estado-Membro da União Europeia, quando operem em território nacional através de agentes ou distribuidores; (ii) as entidades financeiras, ou outras de natureza equivalente, que operem em Portugal em regime de livre prestação de serviços, apenas para efeitos previstos no artigo 73.º da Lei n.º 83/2017;

Elimina a diferenciação de regime para as contas de depósito bancário;

Apresenta soluções adequadas ao desenvolvimento tecnológico e ao surgimento de procedimentos alternativos;

Prevê um regime simplificado para as operações de crédito;

Unifica num mesmo reporte – o “Relatório de Prevenção do Branqueamento de Capitais e do Financiamento do Terrorismo” − a informação até aqui era transmitida ao Banco de Portugal por intermédio de dois reportes obrigatórios distintos;

Prevê um regime próprio para o Sistema Integrado do Crédito Agrícola Mútuo;

Reforça os poderes do supervisor relativamente à pessoa designada para assegurar, nas instituições financeiras, o cumprimento do quadro normativo em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, considerando-a explicitamente como “titular de funções essenciais”.

Resposta à consulta pública

Apenas serão considerados os contributos que, até ao dia 29 de março de 2018, sejam remetidos ao Banco de Portugal, em formato editável, através do endereço de correio eletrónico averiguacao.accao.sancionatoria@bportugal.pt, com indicação em assunto «Resposta à Consulta Pública n.º 1/2018».

O Banco de Portugal publicará os contributos recebidos ao abrigo desta consulta pública, devendo os interessados que se oponham à publicação, integral ou parcial, da sua comunicação fazer disso menção no contributo que enviem, indicando expressa e fundamentadamente quais os excertos da sua comunicação a coberto de confidencialidade.

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Fonte da imagem: aqui.

Moedas virtuais: aviso do BdP


O Banco de Portugal emitiu um alerta sobre as moedas virtuais. Copiamos abaixo o texto respectivo. 

«A Autoridade Bancária Europeia (EBA), a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA) e a Autoridade Europeia dos Seguros e das Pensões Complementares de Reforma (EIOPA) emitiram hoje um novo alerta aos consumidores para os riscos das moedas virtuais, num contexto de elevada volatilidade dos preços destas moedas.
As autoridades de supervisão europeias alertam que as moedas virtuais apresentam um elevado risco e não oferecem qualquer grau de proteção aos consumidores na medida em que:
Não são garantidas por um banco central ou autoridade nacional;
Não são moeda com curso legal;
Não estão cobertas por nenhum ativo tangível;
Não são reguladas a nível europeu. 
Riscos a que estão sujeitos os consumidores que compram moedas virtuais

As autoridades de supervisão europeias destacam os riscos que os consumidores correm quando adquirem moedas virtuais, designadamente:
Volatilidade extrema ou risco de bolha de mercado – Os preços das moedas virtuais estão sujeitos a uma elevada volatilidade, existindo sinais claros de bolha nos mercados das diferentes moedas virtuais (Bitcoin, Ripple, Ether, etc.). Se os consumidores decidirem comprar produtos financeiros baseados em moedas virtuais, devem ter consciência de que podem perder uma grande quantidade, ou a totalidade, do dinheiro aplicado.
Inexistência de proteção – As plataformas de troca e as carteiras de moedas virtuais (wallets) não são reguladas a nível europeu. Se, por exemplo, uma plataforma de troca de moedas virtuais falir, encerrar atividade ou sofrer um ataque informático, a lei europeia não oferece qualquer proteção ou garantia aos consumidores que detenham moedas virtuais nessa plataforma.
Ausência de “opções de saída” – Quando o consumidor detém moedas virtuais arrisca-se a não conseguir transacioná-las ou trocá-las por euros durante períodos prolongados de tempo, o que pode implicar perdas.
Falta de transparência do preço – A formação dos preços das moedas virtuais não é transparente. Existe um risco bastante elevado de os consumidores não receberem o preço justo ou correto quando compram ou vendem moedas virtuais.
Interrupções operacionais – Algumas plataformas de troca de moedas virtuais têm vindo a sofrer problemas operacionais graves, tais como interrupção das trocas. Durante esses momentos, os consumidores não conseguem comprar ou vender moedas virtuais quando tencionam fazê-lo, incorrendo em perdas resultantes das enormes flutuações nos preços.
Informação enganosa – A informação disponibilizada aos consumidores, quando existe, é muitas vezes incompleta, de difícil compreensão e não apresenta adequadamente os riscos das moedas virtuais.
Inadequação das moedas virtuais para a maioria dos objetivos, incluindo para planeamento da reforma – A elevada volatilidade dos preços das moedas virtuais, a incerteza em relação ao seu futuro e a não confiança nas plataformas de troca e nas carteiras de moedas virtuais tornam-nas inadequadas para determinados fins, como sejam a aplicação de poupanças dos consumidores, designadamente no longo-prazo, como é o caso do planeamento da reforma.
Precauções a tomar pelos consumidores que adquirem moedas virtuais

As autoridades de supervisão europeias esclarecem ainda que, se decidir comprar moedas virtuais ou produtos financeiros com exposição a moedas virtuais, o consumidor deverá perceber as caraterísticas destas moedas e os riscos associados.

Deverá também ter consciência de que a compra de moedas virtuais através de empresas que sejam reguladas não mitiga os riscos referidos.

O consumidor deverá ainda tomar precauções de segurança nos equipamentos através dos quais compra, vende ou troca moedas virtuais.

Banco de Portugal reitera alertas

O Banco de Portugal já fez vários alertas públicos sobre os riscos associados às moedas virtuais. Embora as operações com moedas virtuais não sejam ilegais ou proibidas, as entidades que emitem e comercializam moedas virtuais não estão sujeitas a qualquer obrigação de autorização ou de registo junto do Banco de Portugal, pelo que a sua atividade não é sujeita a qualquer tipo de supervisão prudencial ou comportamental.

O Banco de Portugal também já recomendou às instituições de crédito, às instituições de pagamento e às instituições de moeda eletrónica sujeitas à sua supervisão que se abstenham de comprar, deter ou vender moedas virtuais.


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Fonte da imagem: aqui

In dubio pro reo


O Acórdão da Relação do Porto no seu Acórdão de 10.01.2018 [relator José Carreto, texto integral aqui] estatuiu:«O princípio in dubio pro reo não funciona perante uma dúvida emergente da falta de exercício pelo tribunal dos seus poderes de investigação.»
A justificar a asserção escreve-se ali: «Cabe isto para dizer, que o principio in dubio pro reo, não funciona perante uma dúvida emergente da falta de exercício pelo tribunal dos seus poderes de investigação.A dúvida relevante, que faz operar tal principio tem de ser uma dúvida insanável: ou seja, por não ter sido possível ultrapassar o estado de incerteza após aplicação de todo o empenho e diligência no esclarecimento dos factos; dúvida razoável: sendo uma dúvida séria, racional e argumentada; e uma dúvida objectivável: porque justificável perante terceiros excluindo as dúvidas arbitrárias ou as meras conjecturas ou suposições, o que não nos parece ser o caso, pois estando apenas em causa o acesso à plataforma ou o saber, não quanto o arguido se apropriou que esse já é sabido, mas quanto está em dívida, isso pode e devia ser apurado, sendo que, e como referido, tal não interfere com a prática do crime que se mostra consumado, nem parece constituir caus ade justificação.»

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Fonte da imagem aqui [pintura da Ralph Macdonald]

Prova por reconhecimento

O Acórdão da Relação de Évora de 09.01.2018 [relator Carlos Berguete Coelho, texto integral aqui] sentenciou que «A prova por reconhecimento é admissível no processo penal, desde que obedeça aos requisitos legais definidos no art. 147.º do CPP, sob pena de, se assim não for, não poder valer como meio de prova (n.º 7 do mesmo preceito legal), ou seja, de consubstanciar verdadeira proibição de prova, por revestir intromissão ilegal no direito à privacidade da pessoa submetida ao reconhecimento, à luz do art. 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do art. 126.º, n.º 3, do CPP.»

Da respectiva fundamentação consta este excerto elucidativo quanto ao sentido do decidido:

«Não se descura que o reconhecimento traduz uma modalidade muito particular de reconstrução mnemónica do passado, sujeita a numerosos factores de distorção, resultantes de perturbações que a tornam uma das mais falíveis formas de aquisição probatória, pelo que, relevo considerável, assume a escolha do método ou forma que deve seguir, nisso residindo a garantia epistemológica deste meio de prova importante (Alberto Medina de Seiça, in “A Legalidade da prova e reconhecimentos «atípicos» em processo penal”, “Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias”, Coimbra, 2003, págs. 1397, 1415 e 1416).
[...]
«Com efeito, não releva, para diferente entendimento, a circunstância da vítima não ter conseguido esclarecer quem exerceu sobre si o acto violento que se provou, na medida em que essa dificuldade se apresenta, dada a rapidez e a surpresa inerentes, como perfeitamente aceitável segundo a normalidade, a que se junta ter tido possibilidade de, anteriormente, ter visto quem eram as pessoas que o abordaram à entrada da residência.
[...]
«Arredada ficou, pois, a presunção da inocência que à recorrente antes assistia (art. 32.º, n.º 2, da CRP), não se afigurando qualquer razão para trazer à colação o princípio in dubio pro reo, uma vez que é manifesto que o tribunal, e bem, alcançou a certeza sobre a sua participação nos factos, através da motivação que presidiu à sua convicção, devidamente sustentada.»

Violência doméstica: estruturas de acolhimento

O Decreto Regulamentar n.º 2/2018, de 24 de Janeiro [texto aqui] veio regular as condições de organização e funcionamento das estruturas de atendimento, das respostas de acolhimento de emergência e das casas de abrigo que integram a rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica.
Cita-se, pois que esclarecedor, este excerto do respectivo preâmbulo:

«O Decreto Regulamentar n.º 1/2006, de 25 de janeiro, visou introduzir no ordenamento jurídico um conjunto de normas técnicas relativas às casas de abrigo para vítimas de violência doméstica, com o objetivo de conferir maior uniformidade à sua aplicação, acautelando, nomeadamente, as condições mínimas de abertura e de funcionamento, bem como a qualidade dos serviços prestados no âmbito da então Lei n.º 107/99, de 3 de agosto, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 323/2000, de 19 de dezembro, que estabeleceu o quadro geral da rede pública de casas de apoio dirigidas às mulheres vítimas de violência.

«A Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, republicada em anexo à Lei n.º 129/2015, de 3 de setembro, procedeu à revogação da Lei n.º 107/99, de 3 de agosto, assim como da respetiva regulamentação, definindo as estruturas e as respostas que integram a rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica.

«Para além do organismo da Administração Pública responsável pela área da cidadania e da igualdade de género, a rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica compreende também o Instituto da Segurança Social, I. P., as casas de abrigo, as estruturas de atendimento, as respostas de acolhimento de emergência, as respostas específicas de organismos da Administração Pública, o serviço telefónico gratuito com cobertura nacional de informação a vítimas de violência doméstica e, ainda, sempre que o requeiram, os grupos de ajuda mútua de cariz comunitário que visem promover a autoajuda e o empoderamento das vítimas tendo em vista a sua autonomização.

A rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica é constituída por um conjunto de estruturas e respostas que, a par das casas de abrigo, necessitam de ser regulamentadas, agrupando todos os requisitos aplicáveis a cada uma delas, tendo em vista uma harmonização de âmbito nacional das suas regras de funcionamento e garantindo o mesmo nível de qualidade dos serviços prestados, independentemente da sua natureza jurídica.

«Por outro lado, e decorrida uma década da entrada em vigor do Decreto Regulamentar n.º 1/2006, de 25 de janeiro, constata-se que o conteúdo das suas disposições encontra-se não só desajustado às orientações de política nacional e internacional de prevenção da violência doméstica, proteção e assistência das suas vítimas, destacando-se, a este propósito, o previsto na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul), como desadequado face às alterações entretanto verificadas na composição da atual rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica, ocorridas por via do disposto na Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, na sua redação atual.

«Com o presente decreto regulamentar, para além de se clarificarem os aspetos supra referidos, introduz-se um conjunto de regras e de procedimentos tendo em vista a melhoria e eficácia do funcionamento das estruturas de atendimento, respostas de acolhimento de emergência e casas de abrigo, permitindo quer um processo de autoavaliação das mesmas, quer a revisão, de forma sistemática, do seu desempenho, identificando as oportunidades de melhoria e a ligação entre o que se faz e os resultados que se atingem.»

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Fonte da imagem: aqui [pintura de Katerina Apostolakou]