Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Uma lição de vida

Há quantos anos tenho o seu Tratado, comprado ainda em tempo de poucos recursos e imensas ambições.  Sete volumes, espessos, escritos em linguagem clara, fruto de uma vida dedicada ao ensino do Direito Criminal, redigida durante anos, iniciada em 1946 e prolongada até 1957, ano da sua publicação, sempre me impressionou, que a findar o último tomo, dele conste uma bibliografia dos seus escritos, lista imensa de livros, monografias e traduções. É que, tivesse sido Luis Jiménez de Asúa apenas o professor encerrado no seu gabinete de trabalho, cercado pela biblioteca e dividido entre o ensino e a teoria jurídica e eu compreenderia como teria sido possível aquele agigantado labor, a sua extensão, a sua profundidade.
Mas não. Se há vidas que são várias vidas, a dele é exemplo, vividas todas intensamente.
Nasce em 1889, em Madrid, foi trabalhador-estudante em virtude das dificuldades financeiras, pois ficou órfão bem jovem. Defende tese de doutoramento em 1913, tomando como tema, que será o início maior das suas reflexões, a questão do carácter determinado das penas, enfim o problema de saber se a sua duração pré-fixada é compatível com as finalidades que se propõem.
Ocorre a partir daí a sua formação no estrangeiro, em Paris, na Suiça e em Berlim, onde frequentou as aulas de Franz von Liszt. Tem de abandonar a Alemanha devido ao início da Primeira Guerra. 
É em 1915 que inicia a sua actividade docente especificamente universitária que se prolongou por toda uma vida.
As ideias políticas, que expressou em registo de intervenção cívica, haveriam de colidir, porém, com a História de Espanha, primeiro com o surgimento da ditadura nacionalista de Jose Antonio, Primo de Rivera, depois com a de Francisco Franco, tudo regimes ditatoriais incompatíveis com o seu pensamento liberal. 
Incansável viajante, desloca-se em 1923 à Argentina onde profere conferências que de ora em diante dissemina praticamente por toda da América Latina.  Em 1926 é desterrado para as Ilhas Chafarinas. 
Regressado a Madrid, após indulto Real, depara-se com a impossibilidade de continuar a ensinar e é na circunstância que de novo se translada para a Argentina, sua pátria de acolhimento e se desdobra em périplo incessante.
O advento da II República espanhola, em 1931 convoca-o para a política activa, o que aceita com relutância, mas é eleito deputado, sendo trabalho da Comissão a que presidiu a Constituição da República de então.
É durante o período da Guerra Civil que a sua militância se transforma claramente em acção pública. É nomeado Encarregado de Negócios na Checoslováquia, ponto nevrálgico para a criação de uma rede de espionagem e acção clandestina a favor da causa republicana, sendo ministro plenipotenciário a partir de 15 de Abril de 1937 e presidente da delegação espanhola à Sociedade das Nações.
Finda a guerra, vitorioso o franquismo, resta-lhe o exílio. Arranca então o momento mais criativo, o de sistematização do seu pensamento. No plano político assume a Presidência das Cortes no exílio, as únicas que reconhece como legítimas, saídas de sufrágio popular. Escreve incessantemente, desdobra-se em novas viagens, faz pedagogia em esforço sempre renovado.
É deste período a redacção do Tratado.
Falece em 16 de Novembro de 1970, após um enfarte cardíaco sofrido no ano antecedente.
Advogado durante período efémero defende socialista implicados na Revolução de Outubro de 1934.
Na sua obra, minuciosamente documentada, Enrique Roldán Cañizares traz-nos não apenas os passos do Mestre, mas a evolução das suas ideias. Asúa teve tempo de vida para ter coexistido com a Escola Clássica do Direito Penal, com o pensamento de Edmund Mezger e com o Hans Welzel, para citar três marcos miliários dessa evolução história da teoria jurídica sobre o crime e as penas. O fim da sua vida devolve-o ao encontro dos seus primeiro passos. 
Um trabalho assim sobre uma vida como esta exigiria muito mais do que este breve apontamento. Não me é possível por várias razões até porque, não fosse relevar a ignorância, ainda vou a um terço das 406 páginas. Não poderia, porém, deixar de vir aqui sinalizar, uma estridente alegria ante o livro e a nostalgia pelo que poderia ter feito da sua lição de vida. 

Arresto e perda de bens

Conjugue-se o arresto e o regime de perda previsto no Código Penal com o que resulta da Lei n.º 5/2002, a chamada perda "alargada". Trata-se da inversão dos conceitos fundamentais que julgávamos inderrogáveis no Estado de Direito. Já não é a criação de um ónus de prova a cargo do arguido em matéria penal, é o juiz forçado a condenar, no que afinal é uma sanção, quanto a factos que nem chega a julgar: a partir de um crime-pretexto, o Estado presume uma carreira criminosa, a origem ilícita do património, do próprio arguido ou de terceiro e a tudo lança mão, punitivamente. Tudo permite assim réditos para a Fazenda Nacional, através do confisco. Confisco que a própria Constituição de 1933, a da Ditadura Nacional, proibia, mas que hoje é conceito que passa, sem pudor, pela literatura jurídica sobre o tema. Em algum momento se terá seguramente suspendido a Constituição da República para isto se ter tornado possível. As bases da criminalização do enriquecimento ilícito, estão lançadas e já duram há dezassete anos. Eis o que procurei dizer, na passada sexta-feira, num evento organizado pela Delegação de Portimão da Ordem dos Advogados.


Á ideia de conferência subjaz a de conferir. É esse o propósito: conferir o meu pensamento com o vosso, para que se possa, em diálogo, convergir no possível. A presente comunicação corresponde a uma reflexão a que procedi expressamente para este evento. Trata-se, pois, peço para tal compreensão, de um primeiro contacto mais específico com este controverso tema. 

Indo aos conceitos, importa notar que o arresto, enquanto medida de garantia patrimonial no processo penal, não se confunde com a apreensão de bens, o qual é um modo de obter prova. Além disso, o arresto não visa necessariamente a perda de produtos, instrumentos e vantagens prevista no Código Penal, mas esta uma a inter-relação típica que se tem evidenciado na prática. Mas, e é este o foco da minha ponderação, trata-se, no que à perda de «instrumentos, produtos e vantagens» prevista no Código Penal respeita, de algo diverso do regime de perda de bens entronizada em 2002 e que se denomina de “perda alargada” ou “confisco alargado”. A interligação destas realidades é ainda mais estridente quando se considerar que o arresto é permitido e, por isso, a perda também, relativamente a bens de terceiro. 

É este o tema desta conferência. Uma prevenção liminar se exige: é impossível analisar aqui a densa e controversa problemática do regime da perda de bens, já amplamente ponderada em escritos de vários especialistas e pela jurisprudência, inclusivamente constitucional. 

O propósito a que me abalanço é circunscrito porque focado em algumas das zonas problemáticas sobre as quais entendo não ser demais reflectir, na esperança ténue de que ainda possa haver regressão nesta política legislativa agressiva e em nada dignificante para a Justiça. 

Quando se preparou Código de Processo Penal de 1987 concebeu-se o arresto como medida subsidiária, pois que não imediatamente aplicável, mas operacionalizável apenas por efeito da inexequibilidade de uma outra medida de garantia patrimonial, a caução, isto é, haveria lugar a arresto quando tivesse sido requerida caução e a mesma não fosse prestada. 

O instituto do arresto não tinha antecedente expresso no domínio do Código de Processo Penal de 1929, mas a questão era configurada em termos da literatura jurídica, admitindo-o, por exemplo Cavaleiro de Ferreira nas suas lições, aplicável enquanto acto por essência jurisdicional, por isso numa fase judicial do processo. 

Consagrado antes de 1987 com esta fisionomia, ficava excluída a possibilidade de ser requerido o arresto penal como medida de aplicação directa, ou seja, não tendo que accionar previamente a caução. 

Era, esta a redacção do artigo 228º, n.º 1 do Código de Processo Penal: 

«Se o arguido ou o civilmente responsável não prestarem a caução económica que lhes tiver sido imposta, pode o juiz, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, decretar arresto, nos termos da lei do processo civil.» 

O sistema, convenha-se hoje em balanço crítico, era limitado e pouco apto a gerar os efeitos conservatórios patrimoniais eficazes, até porque aquele contra quem poderia ser actuado o arresto, prevenido que ficava desde logo quanto à sua eventualidade, ante um pedido de caução, tinha tempo para fazer escoar o seu património para zonas mais seguras, ou por ocultação do mesmo, ou por transmissão simulada da sua titularidade para a esfera de terceiro de confiança. 

E logo aqui se alcança a relação típica do arresto com bens de terceiro, bens que o terceiro haja obtido ao arrestando ou por alienação real ou simulada. 

E assim, pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto o sistema do arresto comum foi alterado para o perfil que dele hoje conhecemos, a da possibilidade de tal medida ser requerida imediata e directamente, sem prévia tentativa de obtenção de caução. 

É esta, pois, a redacção actual do referido artigo 228º do Código de Processo Penal: 

«Para garantia das quantias referidas no artigo anterior [pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime ou ainda da perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondente], a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial.» 

Assim reconfigurado, o arresto não tem ficado imune, porém, a dificuldades de aplicação, as quais decorrem de dificuldades na interpretação de um sistema legal que pretendeu ser claro, sobretudo quando [e estamos a antecipar se configurar o arresto para o instituto da perda alargada de bens, como se explicitará a seguir]. 

Vejamos algumas dessas matérias, não perdendo de vista o tema que propus. 

A primeira questão consiste em saber se o arresto apenas pode ser decretado contra o arguido, o que a lei resolve, ao aditar, em formulação embora indirecta, a figura do responsável civil como sujeito processual cujo património pode ser arrestado. 

E se digo em formulação indirecta é porque a figura do responsável civil, enquanto sujeito passivo de arresto, vem indicada num dos números do citado artigo 228º, o n.º 5 do Código de Processo Penal, a propósito da revogação desta medida de garantia patrimonial, onde ali se prevê: 

«O arresto é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente responsável [eis a previsão] prestem a caução económica imposta.» 

Diga-se que, em bom rigor, esta técnica legislativa não é feliz, pois abre a porta a uma interpretação – que nem se poderia considerar muito especiosa - , segundo a qual estando arrestados bens do arguido, o arresto seria revogado quando, não ele, mas o responsável meramente civil, prestasse caução; para afastar este modo de entender, teria sido preferível que a lei clausulasse que o arresto seria revogado quando o arrestado [arguido ou responsável civil] prestasse caução de valor equivalente ao do património sob arresto que a um deles pertencesse. 

Sem dúvida assim aplicável ao arguido e ao responsável meramente civil, outras dúvidas se podem suscitar ainda no que se refere ao âmbito subjectivo de aplicação desta medida de garantia cautelar. 

A primeira é se o arresto pressupõe a prévia constituição de arguido, ou se poderá ser aplicado contra aquele que não o seja sequer, nem venha a ser arguido. 

O problema é estritamente jurídico e decorre de o Código de Processo Penal, em normativo aplicável também às medidas de coacção, ter uma previsão específica que pode dar origem a problemas de interpretação. 

Vejamos, pois, alguns desses temas controversos, fazendo um breve recuo para contextualização. 

Primeiro, tal como o arresto em processo civil, o arresto em processo penal exige a demonstração do receio de perda da garantia patrimonial, com a especificidade de, tendo sido previamente fixada e não prestada caução, o requerente fica então dispensado da prova desse receio [assim se transmutou a relevância da prévia inexequibilidade de caução em mera presunção do perigo efectivo de incumprimento das obrigações inerentes à condenação em justiça penal]. 

Fica, porém, em aberto a necessidade de demonstração do fumus bonis iuris, da aparência convincente do direito que pela medida cautelar se pretende fazer valer? Seguramente não, dir-se-á, apenas porque, ante a especificidade de se estar face uma providência a requerer num processo penal em tramitação, no processo estará precisamente, ainda que em sede indiciária [enquanto em inquérito] a evidência factual desse mesmo direito, pressupondo-se [ressalve-se] que a averiguação tenha chegado a reunir o suficiente no que a tais necessários indícios probatórios respeita. 

Mas, eis o tema em forma de pergunta, estará precludida a eventualidade de se requerer arresto antes da existência de procedimento criminal, como antecedente do mesmo e precisamente na lógica de acautelar o cumprimento do que do processo venha a resultar, sobretudo porque, ante o regime da publicidade-regra do próprio inquérito, pode bem suceder que, conhecedor da existência de um processo criminal, o visado titular dos bens de cujo arresto se trate, os subtraia a qualquer providência conservatória tipo arresto que possa surgir? 

A resposta que, hesitante embora, proponho como hipótese para discussão é: não há preclusão do direito, podendo o requerente solicitá-lo no foro civil, avançando ali com a factualidade que depois vertera na notícia de infracção penal. 

Mas [há sempre um “mas” nas questões jurídicas a embaraçar os raciocínios] estando o requerente deste arresto civil, adstrito, por via das regras processuais civis, a propor a acção principal de que o referido arresto, enquanto medida cautelar, é instrumento, sob pena de caducidade da providência, no prazo de trinta dias após a notificação do trânsito em julgado da decisão judicial que a tiver decretado [artigo 373º do Código de Processo Civil em vigor, artigo 389º do antecedente], pergunto, como aplicar este regime ao processo criminal por via da aplicação subsidiária deste código, já que, no domínio da lei adjectiva penal haja lacuna quanto à previsão da situação? 

A valer esta sugestão, requerida a providência e decretada no foro civil, a propositura da acção principal que impediria a sua caducidade e lhe garantiria a vigência, seria precisamente a resultante de uma subsequente denúncia criminal. 

Não resolver assim o problema [afinal por via do reconhecimento de lacuna e não de vontade legislativa de não admitir a situação, ou seja através do artigo 4º do Código de Processo Penal] será abrir a porta ao desguarnecimento de tutela efectiva a situações nas quais que o perigo de perda de garantia patrimonial pode estar iminente, e as delongas de um procedimento criminal [da notícia da infracção ao momento do inquérito em que haja elementos indiciários seguros da aparência do direito a tutelar] darão tempo suficiente para a ocultação dos bens arrestáveis. 

Resolver como sugiro é, porém, tenho disso consciência, gerar um problema por forma duplamente problemática: porque não há norma jurídica que permita essa exportação do procedimento cautelar civil para o processo penal [já não só como mera prova, mas como decisão a produzir efeitos no que se refere ao decidido em termos da providência] e talvez por uma questão de cultura judiciária, a de separação mental entre os critérios e a competência do foro civil e o mundo processual penal. 

E, no entanto, recorrendo ao ensino de Cavaleiro de Ferreira, nele encontro uma linha de pensamento que abre espaço de legitimação para esta perspectiva. É que, separando o arresto das apreensões, e abrindo como tema a possibilidade deste no domínio processual penal, o referido professor, recorre ao princípio da adesão da acção civil indemnizatória em processo penal, e a propósito escreve: 

«Na verdade, os processos preventivos ou conservatórios devem ser apensados ao processo da acção principal, logo que seja proposta, e se a acção tiver sido intentada noutro tribunal, para este dever ser remetido o processo […]; a partir da apensação só o juiz da acção principal é competente para os termos subsequentes. 

«Ora o tribunal competente para a acção civil principal de indemnização por perdas e danos emergentes de factos criminosos é o tribunal penal; poderá assim entender-se que o arresto para garantia daquela responsabilidade é também da competência do juiz penal.» 

Fica o tema enunciado e aberto em termos de solução possível. 

Equacionado o primeiro tema, equacionarei o seguinte, já acima esboçado, o qual significa saber se o arresto pode ser decretado quanto a terceiro que não seja arguido, em rigor não haja sido ainda constituído a arguido ou não venha sequer a sê-lo, isto independentemente de poder ser sujeito ou participante no processo, por exemplo como testemunha. 

Trata-se de um tema com sério relevo prático. 

Como primeiro enfoque, note-se que, nos termos do artigo 192º, n.º 2 do Código de Processo Penal, a aplicação de uma medida de garantia patrimonial [no caso o arresto, mas o princípio vale igualmente para a outra, a caução] depende da prévia constituição do visado como arguido, isso com duas excepções, uma de cunho estritamente cautelar, outra de cunho prático, ambas ressalvadas naquele preceito. 

Consiste a primeira excepção em poder haver arresto contra quem não haja sido previamente constituído como arguido, se a investidura em tal estatuto [a processar-se como se sabe nos termos do artigo 58º do Código de Processo Penal] puser «em sério risco» [note-se a adjectivação] a finalidade ou a eficácia da medida. É o que está salvaguardado no n.º 3 do citado artigo 192º do Código de Processo Penal, preceito que impõe, porém, que a constituição como arguido se efectue, por despacho judicial, em momento imediatamente posterior ao decretar da providência, em caso algum excedente as setenta e duas horas. 

De acordo com a segunda excepção, ressalvada agora no n.º 5 do mesmo artigo, a não constituição prévia como arguido do arrestando é possível, a ter-se revelado comprovadamente impossível efectuá-la, por o visado estar ausente em parte incerta e se terem frustrado as tentativas de localizar o seu paradeiro, o que terá de resultar de despacho judicial fundamentado. 

Vistos os termos equacionados quanto à correlação decretamento de arresto/constituição como arguido, surge o problema: poderá ser decretado arresto contra não arguido ou responsável civil, nomeadamente em caso de ocultação de património arrestável, concretamente património que o arguido ou o responsável civil hajam dissimulado junto de um terceiro, isto independentemente de o fazerem através de branqueamento de capitais? 

Em rigor, não se tratando de património da titularidade do arguido ou do responsável civil, mas património que hajam alienado, por acto negocial cuja invalidade não esteja decretada, pode ser decretado arresto quanto a esse património, ou seja, contra estes seus novos titulares não arguidos no processo penal? 

Do ponto de vista dos princípios gerais, parece fazer sentido que o sistema de justiça não fique desguarnecido ante uma situação em que a garantia que o arresto supõe seja defraudada através de uma manobra pela qual o arguido ou o responsável civil ocultem os bens em causa nomeadamente dissimulando-os na esfera de titularidade de uma pessoa de confiança, amiúde com uma cláusula de reversão para as suas pessoas, mas em qualquer caso continuando a ser, ele arguido ou ele responsável civil, os beneficiários efectivos do bens em causa. 

Do ponto de vista da segurança jurídica, dos legítimos direitos de terceiros, e do respeito pelas situações negociais cuja invalidade não haja sido decretada, a resposta terá de ser, porém, outra. 

E assim, num primeiro registo, até haver uma decisão judicial transitada que, ao estilo da impugnação pauliana, faça reverter para a esfera patrimonial do arrestando o acervo que este haja alienado para terceiro [a título oneroso ou gratuito, por forma simulada ou não], aqueles bens seriam intangíveis do ponto de vista do arresto. 

A impugnação pauliana, como se sabe, pressupõe [conforme o artigo 610º do Código Civil] a verificação cumulativa de um crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, acto doloso visando impedir a satisfação do direito do futuro credor e resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade. 

Isto até porque importa relevar que as transmissões posteriores a favor de terceiros ou a constituição por terceiros de direitos sob os bens em causa está protegida quando não tiver ficada evidenciada a má fé nesses actos [artigo 613º do Código Civil]. 

Por ser assim é que o n.º 4 do artigo 228º do Código de Processo Penal prevê que «em caso de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados, pode o juiz remeter a decisão para tribunal civil «mantendo-se entretanto o arresto decretado» e sem que fique evidenciado qual o critério a seguir para a devolução de competência na matéria. 

Mas é relevante sobretudo nesta matéria do arresto criminal dos bens transmitidos a terceiro, o estatuído no artigo 392º, n.º 2 do Código de Processo Civil [a aplicar no domínio do processo penal precisamente por força da remissão directa para aquele ordenamento processual civil efectuada pelo n.º 1 do artigo 228º do Código de Processo Penal] quando nele se determina, tal como no n.º 2 do artigo 407º do Código seu antecedente: 

«Sendo o arresto requerido contra o adquirente de bens do devedor, o requerente, se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, deduz ainda os factos que tornem provável a procedência da impugnação.» 

Esta previsão abre efectivamente a porta, em caso de transmissão de bens a terceiro, ao arresto respectivo desde que, ou haja sido accionada a impugnação da transmissão àquele ou, não o tendo sido, se o requerente desse arresto a bens de terceiro convencer o juiz de que tal impugnação é provável. 

Como o evidenciou o Acórdão da Relação de Coimbra de 2 de Novembro de 2005 [proferido ainda no domínio do Código de Processo Civil anterior, mas estabelecendo entendimento válido face ao actual porquanto existe identidade material das normas]: 

«Perante estas circunstâncias os requisitos a preencher no arresto dependem do facto de se encontrar ou não pendente a acção de impugnação pauliana. Assim, se tal acção tiver sido instaurada, bastará a alegação e prova dos factos relativos à probabilidade do crédito (e ao justo receio de perda da garantia), destinando-se o arresto dos bens a dar eficácia à decisão que eventualmente venha a ser proferida; se a acção de impugnação pauliana não tiver sido ainda instaurada, exige-se ainda complementarmente a alegação e prova sumária dos pressupostos da impugnação, como factor de credibilidade e de seriedade da pretensão, tanto mais que vai intervir na esfera pública de terceiros, porventura alheios à esfera creditícia de onde emerge o direito». 

Ou seja, e em suma, no caso de transmissibilidade impugnável de bens arrestáveis, o arresto penal pode incidir sobre esses bens, pois tratar-se de conceder meio cautelar que permita eficácia ao exercício do direito de impugnação. É o velho princípio segundo o qual a cada direito corresponde uma acção apta a possibilitar o seu exercício. 

E, enfim, equacionado o problema do arresto de bens transmitidos a terceiro, tal como se suscita no Direito Processual Penal comum, haverá que revisitar-se o tema agora em face do arresto nos termos da legislação sobre perda de bens. 

É que, para além daqueles referidos arrestos, outro existe, decorrente da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, a qual determina no seu artigo 7º, em termos de perda de bens a favor do Estado, a perda das vantagens ilícitas supostamente obtidas pelo arguido, supostamente porque com base numa presunção, já que, segundo o mencionado preceito, «presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.» 

Trata-se de figura que tem dado azo às mais acerbas críticas pelo contorno invasivo das medidas que permite, pelo carácter ambíguo dos seus conceitos e pela ruptura que significa com os princípios gerais de Direito que balizavam a nossa justiça criminal. 

Não é aqui a ocasião e detalhar o que está em causa, mas, em breve registo, eis alguns dos nós problemáticos de tal instituto: 

-» primeiro, a natureza da figura, que claramente assume natureza sancionatória e materialmente punitiva, e que se distancia da perda de «instrumentos, produtos e vantagens» já prevista no Código Penal, pois tem, como se dirá, um âmbito de incidência bem mais amplo [de «perda alargada» fala o legislador], ao atingir não só vantagens presumidas de um crime, mas bens resultantes de uma «provável actividade criminosa», ou seja, de uma suposta «carreira criminosa», como refere a Exposição de Motivos do diploma que o introduziu no nosso Direito; 

-» segundo, a demonstração probatória da incongruência patrimonial cuja prova negativa ser colocada, não como dever do Ministério Público, mas sim a cargo do arguido, em inversão do princípio da inexistência quanto a este sujeito de ónus probatório penal e isto quando se trata, afinal, de demonstrar a origem lícita e não criminosa dos bens e rendimentos presumidamente excessivos ou, afinal é dizer, da sua natureza não criminosa, ou [sendo incisivo] da prova de facto negativo [a sintomaticamente chamada “prova diabólica”] da inexistência de actividade criminosa que haja gerado tal vantagem que o legislador, afinal, presume; 

-» terceiro, ainda seguindo o mesmo registo, porque se trata de presumidas vantagens emergentes de uma presumida actividade criminosa, esta não tem de estar verificada processualmente na forma de prévia condenação [já nem digo transitada em julgado] por qualquer crime, pois do que se trata é, a partir do pretexto da condenação em um dos crimes do catálogo previsto na lei n-º 5/2002, o legislador extrair um passado criminoso presumido que haja presuntivamente gerado a fortuna ilícita que quer para os cofres do Estado, e isto indo ao ponto de essa presunção ir tão longe quanto implicar como sua consequência que tal presumida actividade possa nem ter ocorrido pela prática reiterada de crimes que sejam os do catálogo onde se localiza o [chamemos-lhe assim], “crime-pretexto”; 

-» quarto, porque de confisco se trata afinal, o que irresistivelmente exige que lembremos que na Constituição autoritária do Estado Novo, saído da Ditadura Nacional, promulgada em 1933 era garantia do cidadão o não haver confisco de bens [artigo 8º, n.º 12º], isto sem excepção permitida à lei ordinária; 

-» quinto, porque este regime é, afinal, uma retroacção punitiva quanto a crimes meramente presumidos relativamente aos quais [a haver verosimilhança na sua existência] as autoridades judiciárias e os órgãos de polícia criminal terão falhado e só agora, estendem o braço punitivo do Estado pela via indirecta de uma sanção pecuniária que é a sua perda para a Fazenda Nacional; 

-» sexto, porque a presunção da ilicitude do património, é ela própria extensa, porquanto não engloba apenas o património emergente do “crime-pretexto”, mas afinal todo o património da pessoa, que assim é considerado, na sua totalidade, presuntivamente ilícito, e é aqui que de verdadeiro confisco se trata, pois, como efeito deste sistema, quem não apresentar prova da origem do património, a partir de um crime em que seja condenado, arrisca-se a ficar sem todo ele, assim a liquidação feita pelo Ministério Público quanto às presumidas vantagens seja de um tal valor; 

-» sétimo, porque ainda neste registo, nem se diga que essa presunção de ilicitude na origem de todo o património do agente decorre de o “crime-pretexto” se enquadrar, também ele presumidamente, numa actividade criminosa organizada, ou seja, fruto de uma estrutura apta a gerar rendimentos ilícitos, porquanto, conferindo o catálogo de “crimes-pretexto” [que está enunciado logo no artigo 1º do diploma], verificamos que apenas em relação a três deles [os das alíneas p) a r) do n.º 1] se manda aplicar a lei a “crimes-pretexto” praticados «de forma organizada», sendo esses crimes os de lenocínio, contrabando e tráfico e viciação de veículos furtados, pelo que em relação a todos os demais, o requisito de crime organizado é dispensado; 

-» oitavo, porque a própria isenção e dignidade do juiz do processo fica posta em crise ao coonestar, por decisão sua afinal, a sanção que a perda alargada materializa, a qual assenta na presunção de actividade criminosa que ele juiz não julgou pois lhe é apresentada como mera presunção, ou mais grave ainda dito assim, o juiz que condenar pelo “crime-pretexto” condena também pelos crimes presumidos para que enriquecida fique a Caixa do Tesouro à conta de uma violência judicial. 

E muito mais se diria, sempre numa lógica nada abonatória para esta figura. 

Ora para se operacionalizar a referida perda destas vantagens presuntivas, o n.º 1 do artigo 10º dessa lei especial determina que «é decretado arresto de bens do arguido», ou seja, numa forma injuntiva nem sequer parece deixar margem à avaliação de tal medida de cunho cautelar. 

Não fora o número seguinte introduzir alguma restricção a esta fórmula agressiva pareceria que estaríamos até ante um arresto automático ou necessariamente obrigatório. 

É no n.º 2 que encontramos alguma ordem e critério para esta situação, por sua natureza já nos limites do razoável [ou dir-se-á para além dos limites], pois aí se clausula: 

«A todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação [da pressuposta e referida desconformidade patrimonial], quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa.» 

Só que, numa remissão duplamente disparatada, o n.º 3 do artigo 10º da referida Lei, estabelece que o arresto, é decretado: 

«[…] independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime.» 

O disparate é duplo, como disse, primeiro porque o artigo 227º do Código de Processo Penal se refere à caução económica e não ao arresto penal; segundo porque, tratando-se de um arresto especial referente a «actividade criminosa», para o caso de «condenação pela prática de crime», a previsão parece redundante. 

Mas, se esta segunda faceta ainda pode ser aceite, podendo dar-se ao legislador o benefício de ter pretendido circunscrever este arresto especial a casos em que haja mais do que meros indícios de crime e tenha de haver «fortes indícios» da prática de crimes, já a primeira bem poderia ter sido evitada. 

O que o legislador quis dizer – e quase que com pudor obnubilou através da remissão para um artigo incongruente – é que este arresto especial dispensa a demonstração do fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias «de pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime» [é isso quanto consta no n.º 1 do artigo 227º para onde se remete]. 

Ou seja, este arresto penal especial, havendo fortes indícios da prática de crime, pode ser decretado [ante a fórmula do nº 1 do artigo até quase diria «é decretado»] sem que haja que evidenciar, porque, também aqui implicitamente se presume, que as garantias em causa estão em perigo. 

Tudo visto, é precisamente quanto a este tipo de situação especial que é possível decretar arresto indiscriminado quando a bens de terceiros, porquanto até esses podem ser objecto do regime especial de perda previsto naquela lei. 

Incindido sobre vantagens [presumidas], nos termos do artigo 7º são passíveis de perda os bens que integrem o património do arguido, sendo que por tal se entende [nos termos do n.º 2 de tal preceito] o conjunto de bens: 

«a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente; 

«b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido; 

«c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.» 

E mais ainda, são passíveis de perda e por isso de arresto, conforme esta lei, os juros, lucros e outros benefícios obtidos com os bens em causa: 

«[…] que estejam nas condições do artigo 111º do Código Penal.» 

Ora dispõe o citado artigo 111º: 

«1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada. 

«2 - Ainda que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a terceiro, é decretada a perda quando: 

a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios; 

b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou 

c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida. 

«[…].» 

Como conjugar este enredo de remissões? 

De facto, o Código Penal já prevê a perda de «instrumentos, produtos e vantagens» de terceiros, mas pressupõe uma relação do terceiro com o agente do crime, ou por concurso para a prática do ilícito, ou por conhecimento do modo ilícito da aquisição ou da finalidade escapatória da transmissão; na Lei n.º 5/2002 do que se trata, em termos de perda e destarte de arresto, é de bens transmitidos a terceiros «a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido» e sem que se explicite o conceito de «contraprestação irrisória» e abrando-se assim, também aqui, a porta ao arbítrio. 

Isto para além de, em relação ao arguido, serem passíveis de perda e assim de arresto os bens que estejam na sua titularidade, «ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente» e os bens «recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.» 

Em suma, a interconexão do arresto com a perda alargada acaba consagrada no artigo 12º da Lei n.º 5/2012, que vimos acompanhando, porquanto aí se prevê que, em caso de condenação o arguido e não havendo caução prestada, pode livrar os bens arrestados [leia-se, incluindo os de terceiro] pagando o valor que o Ministério Público tiver liquidado como correspondendo à presumida incongruência patrimonial, presumidamente oriunda de actividade criminosa e não apenas do crime-pretexto que deu abertura a tudo isso. 

O que significa que há lugar a uma condenação alargada em valor pecuniário, através do instrumento do arresto de bens, espécie de sentença sem julgamento. 

Se isto é constitucional é seguramente porque se suspendeu a Constituição, em estado de sítio jurídico-penal. 

Tenho dito.

A engenharia social através do Direito

A movimentação no sentido da criação de mecanismos de denúncia gratificada prossegue. A reiterada presença do agora ministro da Justiça do Brasil em Portugal em eventos que têm aquele tema como referência é disso exemplo. Do mesmo modo o que possa resultar da breve entrada em vigor da Directiva sobre a protecção dos denunciantes.
Tratando-se de matérias da competência reservada da Assembleia da República seguramente já não será na corrente legislatura que haverá iniciativas legislativas em agenda. A própria ministra da Justiça portuguesa já o disse. É, porém, questão de tempo.
A possibilidade de países integrados no concerto europeu resistirem é, como se sabe diminuta. 
O mesmo se diga da tendência, que cada vez mais se desenha, de alteração do paradigma do processo penal. 
A questão é claramente de mentalidade, o culto do pragmatismo.
A lógica da privatização e do outsorcing vai ganhando campo e, assim, os poderes conferidos à transacção no âmbito criminal estão aí claramente presentes. 
Trata-se de uma justiça a materializar fora das instâncias formais ou sem o procedimento que essas instâncias supõem, tudo tido por obsoleto. 
Sempre em nome da eficácia, da celeridade, da avaliação quantitativa dos resultados vão criando instrumentos de notação da produtividade, de ponderação estatística da média dos resultados. 
A injustiça tornou-se, tal como na doutrina militar, mero dano colateral: a engenharia social através do Direito está na ordem do dia.

Dia do Advogado

«Tornar o problema num caso», ensinou-me o meu patrono na advocacia. Problema, aquela amálgama sincrética de factos e sentimentos, assuntos irrelevantes somados ao essencial; caso aquilo que, enquadrado pelo Direito, possa ser colocado a um tribunal e este decida em alguma media favorável a quem patrocinarmos.
Trata-se de recortar o objecto onde se encontrem os factos, às vezes apenas os que permitam esclarecer, nem sempre só as circunstância que possam atenuar.
À regra «não se defende tudo» talvez tenha mais mérito esta outra «não se defende tudo de qualque maneira».
E trata-se, sobretudo, de tarefa que exige, desde logo, profissionalismo e, por isso mesmo, distância. 
Distância sentimental para que não fique o advogado contagiado pela emotividade que perturbe o rigor do raciocínio, e o arraste para a pura retórica, tão amiúde sedutora na aparência quanto, por vezes, inútil na eficácia.
Distância existencial também, não se confundam os negócios do cliente com a profissão do advogado, conserve este sempre a liberdade para que não perca autonomia.
Actividade profissional, a advocacia implica assumir riscos, logo precisamente aquele acima referido, o de transmutar em caso o que é problema: há factos a seleccionar em detrimento de outros, caminhos argumentativos a seguir por abandono dos demais. No final, pode a linha seguida revelar-se ineficaz e cabe ao advogado saber então conviver com esse fracasso, assim como encararia o sucesso. 
Advocacia técnica, advocacia cada vez mais técnica, a contemporânea não pode, porém, prescindir da convivência humana, nem será advogado, no sentido cabal do termo, quem não for humanista, quem não se encontrar, pela cultura, com o mote «nada do que seja o humano me deixa indiferente».
Tarefa árdua de aproximação compreensiva com o outro que não somos, o outro que fez o que não faríamos, o outro que fez o que nós consideramos errado, por vezes profundamente errado, ter-se feito.
Aproximação para conhecer para logo distanciar e poder defender: é este o compromisso que faz a ponte entre o injusto com que nos encontramos e a justiça que almejamos.
Não uma vez, mas tantas quantos os casos que tenhamos a cargo. Muitas, assim e mais as regras de processo que são meio e limite: através delas sujeitamos o caso a quem decida, são elas que governam o modo de se chegar à decisão.
Lembrei-ma hoje disto, esta tarde, em Santarém. 
É Dia do Advogado. E, afinal, o que é ser-se advogado?  Alguém de quem a Justiça precisa para assegurar a mediação e garantir ao juiz isenção. O que tantas vezes é esquecido.

Directiva Europeia: whistleblowers

Sob a moderação de Vítor Costa, Director Adjunto de Informação da agência LUSA, com a participação do jornalista António Tadeia e da eurodeputada Ana Gomes, teve lugar, no passado dia 7 de Maio, um debate sobre a nova Directiva europeia sobre a protecção dos "whistleblowers" que muito em breve será publicada [ver o texto aqui].

O meu contributo nesse debate centrou-se nos seguintes tópicos:

-» a legislação portuguesa em matéria criminal, centrada na Lei n.º 19/2008 [primitivamente aplicável apenas ao sector público, depois estendida ao sector privado por via da Lei n.º 30/2015] e no âmbito desta para uma remissão que torna aplicável a lei de protecção de testemunhas [Lei n.º 93/99, modificada pelas Leis ns. 29/2008 e 42/2010], é insuficiente do ponto de vista das garantias outorgadas aos denunciantes;

-» já no domínio contra-ordenacional e regulatório multiplicam-se as formas de tutela da auto-denúncia e do tutela da mesma, com incentivos a que a mesma ocorra para efeito de benefício de regime de clemência;

-» a situação internacional gerada pela política norte-americana, nomeadamente no que se refere ao combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo tem tornado irreversível a tendência no sentido do incremento da colaboração com a investigação criminal;

-» comparada com a realidade norte-americana, a Europa encontra-se ainda dentro dos limites de um significativo equilíbrio, até porque não se trata de um sistema que gratifique monetariamente os denunciantes;

-» entre os vários modelos em curso de discussão e desenvolvimento legislativo configura-se a protecção dos denunciantes, sobretudo face à reacção pública e das autoridades judiciárias no que se refere às situações reveladas pelos Panama Papers, Paradise Papers, Luxleaks, etc.;

-» o tema torna-se problemático tratando-se de denúncias relativas a informações obtidas de forma ilícita, nomeadamente punível criminalmente, sobretudo em face da legislação que torne esse tipo de prova, em geral, proibida, como é o caso do sistema português [artigo 126º do Código de Processo Penal];

-» mas o problema não se esgota com informações obtidas por essa forma, podendo tratar-se de conhecimento obtido pelo denunciante no quadro das suas funções profissionais no quadro de uma organização;

-» a Directiva restringe precisamente o seu âmbito aos denunciantes que se integrem em organizações e que hajam efectuado uma denúncia interna para as competentes entidades corporativas incumbidas de funções de compliance;

-» A Directiva cobre um amplíssimo território de tutela, praticamente toda a área sobre a qual a União Europeia emitiu normativos;

-» a Directiva oferece protecção não apenas aos denunciantes mas igualmente aos "facilitadores";

-» a Directiva enuncia um conceito aberto quanto à credibilidade da denúncia, ao prever que relevará a situação daqueles que tiverem «motivos razoáveis para crer que as informações comunicadas eram verdadeiras no momento em que foram comunicadas e são abrangidas pelo âmbito de aplicação da presente diretiva»;

-» a Directiva salvaguarda o segredo médico e de advogados e declara não prejudicar as normas internas sobre processo penal.

Assunto relevante é saber em que termos se verificará a transposição da Directiva para o Direito nacional, conhecidas como são as dificuldades que se verificaram no âmbito da transposição em matéria de branqueamento de capitais em que o previsto enferma de dúvidas e incongruências, ainda por resolver.

Importa igualmente relevar a cultura judiciária de cada país, nomeadamente quanto à prevalência nos tribunais superiores de exigências formais e de procedimento as quais, se facilitadas na recepção da denúncia e na sua valoração probatória, podem redundar no inêxito do sistema pela anulação das decisões judiciais sustentadas nesse tipo de prova.

1º de Maio

Se o princípio «cada poder, cada força, traz consigo o seu Direito», oriundo de Pierre-Joseph Proudhon, traduz a matriz de uma concepção libertária no domínio do jurídico, talvez seja este outro termo,  cunhado pelo filósofo alemão Johann Kaspar Schmidt [Max Stirner] «tu tens direito àquilo a que tens o poder de ser», que lhe dá mais sentido e significado.
Sentido, pois associa o direito próprio à capacidade de o poder exercer; significado, enquanto exprime concordância lógica com a regra «cada coisa traz em si mesma a sua lei, isto é o modo do seu desenvolvimento, da sua existência e da sua acção paralela», pensada pelo russo Mikhail Aleksandrovitch Bakunin.
Vem isto precisamente a propósito de ser hoje o dia 1º de Maio.
Filosofia de negação de uma fonte única do Direito, estadual sobretudo, trata-se, nesta sua visão anarquista, de ir ao encontro das forças colectivas como geradoras de direitos, afinal não transcendentes, mutáveis pois fruto da tensão social e da correlação de forças, fruto de uma, ainda que irracional, razão colectiva, direitos já como expressão de um Direito ainda sem regras porquanto anterior à sua formulação.
Vem isto a propósito do dia de hoje.
Passando do campo da teoria legal à Literatura, necessariamente à crónica de Eça de Queiroz sobre o 1º de Maio, publicado na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1892, ei-lo, num daqueles arremessos de bom humor, em que, surpreende a farta, porque pingue, burguesia francesa ante a revolta dos famintos, a clamar a «justiça do pobre», mas, apesar de provida de paióis e fortunas, afinal tremente e espavorida
Naquele seu modo acre de trazer, pelo riso, sabedoria, Eça nota, perplexo, quanto essa burguesia ameaçada «treme e grita, à maneira daquele que, gozando à muito, além da sua leira de terra, a leira do seu vizinho, visse de repente surdir furiosamente esse vizinho com o seu direito e um grosso cajado». Precisamente.

Encontrando a frase e o caminho

Escrevo com a convicção de que leitores amáveis pensarão que não é verdade, antes vaidade. Mas decidi-me a estudar Direito. Aos setenta anos, sim. Depois de ter saído da Faculdade em 1971, é verdade. Depois de ter tentado ensinar Direito durante dezassete anos e porque não. 
A verdade é que há momentos na vida em que importa dar tudo como írrito e nulo e começar de novo. Li a frase, fantasiei que saiu da mente genial de Leonardo Coimbra, nas não a encontro. 
Dir-se-à que é uma neurose esta, a da ilusão de se voltar a ter vinte anos. Seja, mas se nem tudo quanto é saudável é necessariamente bom, a inversa pode ter o seu espaço de oportunidade.
Dei conta de um mundo carregado de leis, as nossas, as europeias, as outras internacionais. Muitas dessas leis são apenas regulamentos, porque ainda há diferença.
Percebi que muito do pensamento jurídico está carregado de pompa erudita, tornando-se de tal modo ilegível que a meio o leitor desiste e fica a amarga sensação de cansaço inútil. Sobretudo quando ao ler se tem um fim em vista.
Tanta escrita jurídica, arrastando em pé de página o aluvião de todos os outros, lembra a música wagneriana, torrencial, em fluxos helicoidais, expectante de um termo mas, afinal um sem-fim de tirar o fôlego.
Por tudo isso, regressando ao princípio, aqui estou. Saturado de encargos da profissão, menos resistente ao cansaço, a não querer esgotar-me no Direito, recomeço neste. Por onde não sei. A cada um encontrar o seu caminho. 
Um dia li um pequeno texto de João Baptista Machado sobre antropologia, existencialismo e Direito. Foi uma revelação. Imagine-se como uma obra que ficou lateral, pode tornar-nos outros. 
A vida, entretanto, com o castigo das suas obrigações, a prática como o saber o mínimo só para o caso, que outros há na linha de montagem em que a profissão se tornou, tal como a fábrica do Senhor Henry Ford, acabou por tudo soterrar. 
Urge, pois, cavar. Não como o conto do extraordinário José de Almeida Negreiros, O Cágado, que o cavador procurou, desesperado, inutilmente. Sim, jogando fora quanto inumou a mente e encontrando, não a frase, mas o sentido da frase, seja ela ou ou não do autor de A Alegria, a Dor e a Graça.

As consciências adormecidas

De todos os lados surgem avisos: os populismos sociais tornam-se autoritarismos políticos. Que sejam reposições do nazismo, do fascismo, supõe apenas que a História se repita pela mesma forma; pode ser diverso apenas o modo. Por isso no Direito há que ficar aviso: afinal, o totalitarismo também ajustou o jurídico às suas necessidades e dele se serviu e nele encontrou os seus servidores. E muitas das suas criaturas perduraram. 
Há os que, vivendo hoje o mundo da eficácia e do utilitarismo, trocam o saber como foi pela interesse quanto ao que há. 
Nem tudo está, porém, perdido. Fica para esses outros esta nota de leitura.

Eugenio Raul Zaffaroni, magistrados e professor argentino escreveu, Francisco Muñoz Conde, professor em Sevilha, prefaciou. Editado em 2017 em Buenos Aires. 
Trata-se de um aprofundado e documentado estudo sobre quanto o nazismo construiu para o seu Direito, desde a escola jurídica de Kiel [essa Stosstruppfakultät, Faculdade de Tropa de Assalto - e nela os nomes de dois dos seus fautores principais, Georg Dahm [1904-1963] e Friedrich Schaffstein [1905-2001] - à arquitectura do Estado total nacional-socialista, como estrutura que o Direito serviria, mas sobretudo dos conceitos jurídicos que dali emergiram como instrumentos de sustentação, defesa e disseminação do III Reich e seu espaço vital.


Estou ainda a ler, porque não é texto de apreensão imediata e alguma da forma de expor reconduz o leitor à necessidade de clarificar o sentido do discurso, por vezes reiterativo. 
Mas de imediato permito-me ir buscar ao texto do prefácio e da narrativa o elenco, parcial seguramente, do que foram os instrumentos  forjados pelos teóricos do nazismo jurídico, aptos a dar, à boa maneira alemã, consistência teórica e legitimação normativa às ideias que, oriundas da política que o Führerprinzip definia e que funcionavam como critério último de interpretação das leis e guia seguro para a sua correcta aplicação, corporizando esse autêntico "vendaval jurídico" na Europa dos anos trinta e quarenta do século vinte e a que poucos resistiram - entre estes Gustav Radbruch - e muitos cederam e se adaptaram- como Edmund Mezger.

Ei-los, pois  [entre tantos], no plano da dita "dogmática" jurídica:

-» violação do dever como núcleo do conceito de ilicitude [do "injusto"];
-» crítica ao conceito de bem jurídico como delimitador dos limites da tipicidade e critério orientador da interpretação normativa;
-» concepção de Direito Penal de autor;
-» formulação do Direito Penal da vontade;
-» hiper-valorização dos crimes omissivos;
-» crítica da teoria da não exigibilidade;
-» demolição do conceito de culpabilidade;
-» formulação de uma teoria unitária do crime;
-» admissão da analogia incriminatória;
-» profusão de tipos de crime de perigo abstracto;
-» punição da tentativa de instigação;
-» punição de actos preparatórios e de tentativas inidóneas;
-» tipificação da associação criminosa com fundamento no mero acordo de vontades;
-» sobrecarga punitiva nomeadamente em crimes contra interesses públicos.

Dir-se-à que há em alguns conformações oriundas do passado; sem dúvida, mas com uma reformulação apta a torná-los úteis à Nova Ordem.
É este o perigo das consciências que adormecem: forjam armas para a burocracia da repressão. Primeiro, para enfrentar o excepcional, depois, tarde demais, está o geral contaminado. Só lhes resta dizer que, afinal, não se tinham dado conta.


Ler e tentar escrever


Dei com esta frase que tinha escrito na página do FB que dedico à minha profissão, a ilustrar uma fotografia da sala onde trabalho:

«Livros. Advogar e ler. Ler e tentar escrever. A profissão hoje devora a capacidade de se parar e reflectir. Em cada dia surge o anseio e a tentativa de o resolver. Quem vive intensamente a prática tem de ter uma reflexão que a resolva, de outro modo convive com o absurdo. E com isso sofre.»

Hilgendorf & Valerius: 2ª edição traduzida

Publicado agora em 2019 pela Marcial Pons [que edita também livros em português], trata-se da tradução feita para português do Brasil da segunda edição obra de Eric Hilgendorf [Würzburg] e Brian Vallerius [Bayreuth].
O texto é reportado ao Direito Alemão vigente em 2015, pelo que, nessa parte haverá de relevar qualquer imprecisão por falta de actualização. 
Na apresentação da obra o tradutor explica que, tratando-se de um simples livro didáctico, ele é mais do que isso. Por um lado, porque todos os principais tópicos da disciplina do Direito Penal são ali tratados. Depois porque o livro contém inúmeras referências a literatura jurídica e jurisprudencial. 
Trata-se, como acentua Luís Greco, no prefácio, de um «livro acessível, despretensioso, escrito para um público de estudantes em busca de um primeiro contacto com a matéria».
Estas considerações talvez deixem a obra aquém da sua real valia, porque a narrativa do mesmo é objectiva.
Li hoje quanto nele se relata sobre a problemática dos crimes omissivos impróprios negligentes e penso que se fica com uma noção rigorosa da configuração dos problemas relevantes.
A tradução poderia, por ventura, ser melhorada, mas admito situar-me no quadro do português que se fala em Portugal e tratar-se, portanto, de crítica injusta.
Cito, por exemplo a tradução do § 13 do Código Penal Alemão [StGB]: «Aquele que se omite em evitar um resultado proibido por uma norma penal [...]» não é clara, porque ao verter expressamente a desinência "es" do original «Wer es unterläßt, einen Erfolg abzuwenden, der zum Tatbestand eines Strafgesetzes gehört [...]» ganha em literalidade o que perde em compreensão.
Do mesmo modo, sendo típica daquele Direito a diferença entre crimes [Verbrechen] e delitos [Vergehen], os primeiros puníveis com prisão superior a um ano, e fazendo o tradutor menção expressa a essa dicotomia [nota na página 53], usa generalizadamente o termo "delito» ao longo do livro quando afinal de trata de teoria sobre a problemática do crime.

Mysterios da Boa Hora


Sem ostensivo nome de autor, surgindo no final um abreviado José Maria, mas apenas o da tipografia Gutierres, ao 92 da Rua do Norte, onde fora impresso, o folheto está escrito naquele magnífico estilo irreverente que caracterizou a época, publicado que foi em 1882. Encontrei-o nem sei como, talvez por encomenda ao meu alfarrabista de eleição.

Abre a fantasiosa cena com uma caminhada para São Bento onde dois deputados, descritos pelo desconchavo, são seguidos por um jornalista. «A S. Bento, a S. Bento.. é a voz que se ouve repetir nas lojas e nos cafés». E porquê?

Siga a narrativa, pícara e esclarecedora [para ler, clicar na imagem, ampliando-a]:


Ora quando tudo parecia encaminhar-se para as Cortes, e para a magna questão das finanças judiciárias que ali se discutia, em pleno fontismo, eis que as palavras Escândalos! Maldita Boa Hora, distraindo-a da atenta vigilância em que se encontrava à conversa dos pais da Pátria, «lhe feriram o ouvido». E então:


E eis, por isso, que os passos se alteram e o infatigável jornalista, ávido de escândalo, segue pela Rua Formosa [hoje Rua do "Século", nome que tomou do vetusto jornal, entretanto falido], ali em busca de «dois íntimos», fontes alegadamente credível de informação. Segue a prosa:


Que se passaria na Boa-Hora? De que escândalos se trataria? Hoje, ficamos por aqui. Como nos folhetins, importa criar suspense. Aguardam-se, pois, cenas dos próximos capítulos.

Branqueamento de capitais: a rede 5G

Com ironia e trabalho minucioso Miguel da Câmara Machado orienta-nos desta versão actualizada do livro Regimes de Branqueamento de Capitais e Compliance Bancário pela profusa legislação sobre o sector.

A obra é antecedida de um prefácio que tem duas virtualidades (i) a de sistematizar a legislação que desde a década de noventa tem vindo a ser publicada no quadro europeu e transposta no plano nacional, arrumando o elenco por gerações [tal como nas gerações das comunicações, da 3G à 5G] (ii) fornecendo uma listagem da legislação em vigor, o que antecipa o índice do livro e melhor o permite compreender.

Segundo o autor são estas as cinco gerações normativas que se têm sucedido, em regime de sucessiva revogação:

-» a primeira geração, surgida no final dos anos oitenta, com início nos anos noventa, no contexto da luta contra o tráfico de droga, e que se consubstanciou (i) a nível europeu, na Directiva 91/308/CE, de 10 de Junho de 1991 (ii) a nível nacional no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro [ver aqui, qual reviu a legislação sobre o tráfico de droga] e o Decreto-Lei n.º 325/95, de 2 de Dezembro [ver aqui], «que introduziu os primeiros deveres de prevenção do branqueamento no nosso ordenamento jurídico»;

-»  a segunda geração, editada tomando como contexto os acontecimentos do 11 de Setembro de 2001 e orientadas, portanto para a tutela ante situações de terrorismo e que consistiu no seguintes normativos (i) a nível europeu, na Convenção do Conselho da Europa relativa ao branqueamento, detecção, apreensão e perda dos produtos do crime e ao financiamento do terrorismo (ii) ainda a nível europeu, no Regulamento (CE) 2580/2001, do Conselho, de 27 de Dezembro de 2001 (iii) ao mesmo nível, a Directiva 2001/97/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Dezembro de 2001 (iv) enfim, o Regulamento (CE) 1889/2005, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro de 2005 e (v) a nível nacional a Lei n.º 11/2004, de 27 de Março [ver aqui];

-» a terceira geração, caracterizada pelo reforço dos mecanismos internacionais ainda a propósito do terrorismo e da criminalidade internacional «que orientou os profissionais portugueses nesta matéria ao longo de uma época», expressa pelos seguintes instrumentos jurídicos (i) a nível europeu, a Directiva 2005/60/CE (ii) ainda a nível europeu, o Regulamento (CE) 178/2006, o qual foi concretizado entre nós pelo Decreto-Lei n.º 125/2008 (iii) ao mesmo nível, a Directiva 2006/70/CE, (iv) a nível nacional, transposta, tal como a Directiva anteriormente referida, pela Lei n.º 25/2008,  de 5 de Junho [ver aqui] sucessivamente alterada;

-»  a quarta geração, orientada ao combate contra a corrupção e os crimes fiscais, que se expressou (i) a nível europeu, na Directiva (UE) 2015/849, de 20 de Maio de 2015 (ii) ao mesmo nível na Directiva (UE) 2016/2258, de 6 de Dezembro de 2016 (iii) ainda a nível europeu nos Regulamentos (UE) 2018/1108, de 7 de Maio de 22018, (UE) 2016/1675, de Julho de 2016 e (UE) 2015/847, de 20 de Maio de 2015, o Regulamento (UE) 2018/1672, de 23 de Outubro e a Directiva (UE) 2018/1673, de 23 de Outubro (iii) no plano nacional pelo vulgarizado «pacote de 2017), formado pela Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto [ver aqui] e pelas Leis 89/2017, de 21 de Agosto [ver aqui], 92/2017,  de 26 de Agosto [ver aqui], 96/2017, de 23 de Agosto [ver aqui] e 97/2017, de 23 de Agosto [ver aqui]bem como em outros diplomas legais convergentes como a Lei n.º 15/2017, de 3 de Maio [ver aqui], o Decreto-Lei nº 123/2017, de 25 de Setembro [ver aqui], a Resolução do Conselho de Ministros n.º 88/2015, de 1 de Outubro [ver aqui] e a Portaria n.º 233/2018, de 21 de Agosto [ver aqui];

-» enfim, a quinta geração, traduzida na Directiva (UE) 2018/843, de 30 de Maio de 2018 [ver aqui], a qual deverá ser transposta para o Direito interno, até 10 de Janeiro de 2020

Crítico em relação ao que compendia, Miguel da Câmara Machado já havia, em prefácio à compilação anterior, perguntado sobre se estaríamos «entre um manual para branqueadores e um código sancionatório em branco». Agora, com humor, suscita a questão e saber se, tal como o quadro de Banski [ver aqui], estes regimes não se vão destruir «antes de acabarem de ser lidos (ou transpostos)», situação que, remata, seria «pior do que as dos filmes, onde as mensagens enviadas a Ethan Hunt se autodestruíam em 5 segundos», como o título do texto com que apresenta a obra: «Estes regimes vão autodestruir-se em 5 segundos».

Direito Penal de empresa: questões gerais

A obra foi publicada este ano, em Janeiro. Reproduz, em escrito, o ensino da autora em cursos de pós-graduação, desde há alguns anos, em Portugal e no Brasil.
É livro pequeno de 150 páginas. Mas os livros pequenos têm a vantagem de se candidatarem a serem lidos. Sobretudo quando escritos com clareza, e é o caso.
O tema é actual, o território jurídico em que se move, mutante.
Trata-se, a nível criminal, da responsabilidade dos administradores, da responsabilidade das pessoas colectivas e da responsabilidade do compliance. Mas para que tudo ganhe compreensibilidade, o capítulo inaugural ensaia uma rememoração dos conceitos fundamentais do Direito Penal de Empresa e a Teoria da Infracção Penal. 
O foco é precisamente o Direito Criminal Empresarial, o corporate crime, no quadro de uma sociedade técnica, progressivamente mais complexa e especializada.
Terminada a leitura dessa análise preambular, eis as notas que, traduzem o que retive como essencial:

-» a evolução de um Estado interventor para um Estado regulador, não diria recuo do Estado mas uma sua recolocação no território económico, financeiro e social, num ambiente contemporâneo de «desregulação da economia»;

-» a natureza «mutável, flexível e assistemático» desse novo Direito;

-» a configuração dos bens jurídicos em causa nesse Direito Penal Económico [de que o Direito Penal Empresarial seria espécie daquele género] como «relevantes para a sobrevivência do sistema económico»;

-» a dicotomia necessária entre a criminalidade na empresa e a criminalidade de empresa, esta a que lesa bens jurídicos e  interesses «externos, incluídos os próprios interesses dos colaboradores da empresa», abrangendo todo o universo de crimes que se situem no ambiente empresarial, desde o direito penal laboral ao de mercado de valores mobiliários, ao do consumidor, às insolvências puníveis, crimes contra a propriedade industrial, enfim os delitos societários.

Se esta é a configuração da arquitectura global do Direito em causa, Susana Aires de Sousa conduz-nos, seguidamente, para questões problemáticas que se suscitam na matéria:

-» a utilização pela lei de tipos penais abertos e indeterminados na formulação legal dos ilícitos, nomeadamente através do reenvio para normas extra-penais, inclusivamente de valor infra-legal (decreto, regulamento ou uma portaria) o que coloca problemas de constitucionalidade, pois que o reenvio «pode prejudicar a função de garantia que cabe ao tipo incriminador» [cita a exemplo quanto se passa com o artigo 509º do Código das Sociedades Comerciais, convoca a cascata remissiva do artigo 87º do RGIT - que considera, com ironia, uma das situações «caricatas e de duvidosa constitucionalidade» e cita, deixando a apreciação ao leitor, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Outubro de 1997, segundo o qual o princípio da legalidade incriminatória não está em causa quando o conceito indeterminado utilizado pelo legislador seja «determinável» pelo intérprete;

-» a natureza social e historicamente situa dos bens jurídicos em causa neste tipo de criminalidade [«afastada de um essência axiológica culturalmente consolidada»] e a sua distância relativamente a qualquer «referência individual imediata», valorando o mero «perigo da conduta face à lesão efectiva do bem jurídico» o que «levanta dúvidas sobre a legitimidade da intervenção penal» [e neste domínio chama à colação os denominados «delitos cumulativos», que enfrentam o risco de generalização de uma conduta, modalidade dos crimes de perigo abstracto, que aqui teriam expressão, no caso dos crimes fiscais e contra o mercado de valores mobiliários];

-» o tema da legitimidade para a constituição de assistente [por ampliação do quadro conceptual da noção de ofendido], concluindo que haverá casos nos quais «não obstante a natureza colectiva do interesse protegido pela incriminação, se deve admitir que a empresa pode aceder ao estatuto de sujeito processual», citando ser, em sua opinião, o caso dos crimes societários [artigos 509º a 529º do Código Penal];

-» a matéria da responsabilidade criminal pelo produto [no caso da produção e da distribuição] e que ao dano individual sucede a multiplicação do dano por um elevado número de consumidores e é, assim, um «dano duplamente anónimo», assunto relativamente ao qual, não só sublinha a existência de lacunas de previsão no Direito em vigor [concretamente ante a conjugação dos artigos 282º e 24º do Decreto-Lei n.º 28/84, apresentando proposta de redacção para um Direito a constituir];

-» e, enfim, em breve apontamento, uma nota quanto «às dificuldades dogmáticas para estabelecer a autoria e a participação nos crimes cometidos através de uma organização».

O Advogado e o cidadão

Não há apenas a contemporaneidade, também aquilo que o tempo soterrou mas permite reflectir. Isso torna-se imperioso num tempo, como o que vivemos, em que às novas gerações falta consciência histórica e sobretudo vontade de compreenderem que aquilo que hoje está na lei, ou no sentir da jurisprudência, resulta de um sedimentar histórico até se chegar aqui ou, quantas vezes, de tumultuosa luta jurídica por um outro Direito.
Entre o muito que encontrei em alfarrabista, esta pequena separata do Doutor Adelino da Palma Carlos, breve alegação de recurso para a Relação de Lisboa, merece ser revisitada, como excursão a um Direito que foi para que ganhe sentido o Direito que está e a vida como hoje se vive.
Era tempo em que os advogados publicavam as suas peças processuais. O hábito decaiu porque se considerou que era uma forma indevida de publicidade. Olhando para o mundo actual, em que a incessante publicitação ocupa todo o espaço disponível, é irónico.
Era tempo em que as peças processuais eram publicadas com os nomes dos envolvidos e o mesmo sucedia quanto à jurisprudência, pois não se via então gravame à honra das pessoas nem lesão do seu direito à privacidade.
Era tempo em que a alegação era breve [esta tem 29 páginas em oitavo] e não careciam de conclusões.
No caso, a alegação responde a um recurso interposto pelo Ministério Público.
O caso envolvida um funcionário, que fora condenado pelo crime que então se chamava de suborno e estava tipificado no artigo 318º do Código Penal.
Ao tempo, a matéria de facto dada como provada pelo colectivo era definitiva «ainda que não corresponda à prova produzida, como, neste caso, infelizmente aconteceu, na opinião de quantos acompanharam o julgamento», refere o alegante.
O núcleo do argumento da alegação é que a norma incriminadora em causa exigia ao agente «fazer» um acto de suas funções » e no caso aquilo que era imputado ao alegante era, numa parte da condenação, ter-se abstido de fiscalizar [na outra já a conduta era comissiva na forma de inutilizar ou extraviar processos]. 
Para além disso [precisamente em função deste segundo segmento da condenação, a conduta positiva] alegava-se que a mesma estava prevista em outro preceito do Código Penal, o artigo 312º e não o referido artigo 318º sendo «inadmissível que se conceba a existência, no Código de duas normas punindo a mesma infracção».
Lendo o argumentário, não ficam por aqui os motivos de reflexão.
Curioso [face aos parâmetros actuais] é que se pudesse argumentar que «um empregado dos serviços de fiscalização corporativa, no caso da Intendência Geral dos Abastecimentos] não fosse funcionário público e que para fins penais essa distinção [que tinha colhimento no Decreto-Lei n.º 35809, de 16 de Agosto de 1946, por curiosidade ver aqui] relevasse [e assim o considerou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 1948, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, ano V, página 165]. Hoje, ante a noção amplíssima de funcionário público para efeitos criminais o argumento cairia por terra.
Igualmente interessante que outro tema da alegação haja sido o colocar em crise que, no caso, se tenha tratado de «acto de suas funções» [assim se referia o artigo incriminador em apreço] com fundamento na ideia que tal implicaria tratar-se de acto da competência legal do funcionário. ~
Em prol desta tese o ilustre professor de Direito mobiliza toda a sua erudição: desde a origem histórica do preceito [o Código Criminal «intentado pela Rainha D. Maria I, de Pascoal de Melo, aos Códigos Penais Francês de 1810 e Brasileiro de 1830 e o comentário do próprio Pascoal de Melo e de Levy Maria Jordão, os tratadistas franceses então em voga Chaveau & Hélie e Garraud, bem como o argumento histórico nacional, desde as Ordenações, das Afonsinas às Filipinas, o Direito Romano expresso na Lex Julia repetundarum, e, enfim, a opinião do alemão von Lizt].
Ciente da necessidade de reforçar a razão que tentava sustentar, Palma Carlos convoca por igual o Dicionário de Cândido de Figueiredo para o qual o «de», enquanto preposição, «exprime restricção da palavra que precede». Assim, o extravio de processos não seria acto «de» função.
No centro do tema, pressente-se, já está, porém, aquilo que viria a ditar a formulação actual da norma sobre corrupção. E, em honestidade intelectual, o alegante reconheco-o: «[...] há hoje quem sustente que na repressão do suborno deve punir-se não só a prática do acto da função, mas também a de todos os actos contrários aos deveres de função; e é possível que a defesa social justifique esta orientação, em face da onda de imoralidade que cobre o mundo».
Ao tempo, o alegante ainda poderia invocar, em lógica política, como o fez já na parte decisiva da sua peça processual: que o artigo 177º do Código Penal Francês era idêntico ao nosso mas quando «em França, como entre nós, a onda de corrupção alastrou, quando as liberdades individuais foram cerceadas e o livre direito de crítica ficou sufocado», então, o Governo de Vichy [de colaboracionismo ao invasor nazi] havia acrescentado em 16 de Março de 1943, ao mencionado artigo do Código Penal uma alínea que passara a abranger o caso de se tratar de acto que «ainda que fora das atribuições pessoais da pessoa corrompida, foi ou teria sido facilitado pela sua função ou pelo serviço que assegurava», modificação que seria mantida por Ordenança de 8 de Fevereiro de 1945, ainda a guerra não havia terminado.
Veja-se a honradez da conclusão. Fiel ao seu papel de advogado [o de defender o acusado de suborno] mas não abdicando da sua condição de cidadão, Adelino da Palma Carlos [professor de Direito, que era  então Bastonário da Ordem dos Advogados e viria a ser o primeiro-ministro da Democracia] escreve: «É mau o sistema? Decerto! Mas a culpa não é dos juízes; nem a deficiência da lei lhes dá o direito de passarem a criar direito, ou a punir, por preceito inaplicáveis que a lei não contempla».