Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




A engenharia social através do Direito

A movimentação no sentido da criação de mecanismos de denúncia gratificada prossegue. A reiterada presença do agora ministro da Justiça do Brasil em Portugal em eventos que têm aquele tema como referência é disso exemplo. Do mesmo modo o que possa resultar da breve entrada em vigor da Directiva sobre a protecção dos denunciantes.
Tratando-se de matérias da competência reservada da Assembleia da República seguramente já não será na corrente legislatura que haverá iniciativas legislativas em agenda. A própria ministra da Justiça portuguesa já o disse. É, porém, questão de tempo.
A possibilidade de países integrados no concerto europeu resistirem é, como se sabe diminuta. 
O mesmo se diga da tendência, que cada vez mais se desenha, de alteração do paradigma do processo penal. 
A questão é claramente de mentalidade, o culto do pragmatismo.
A lógica da privatização e do outsorcing vai ganhando campo e, assim, os poderes conferidos à transacção no âmbito criminal estão aí claramente presentes. 
Trata-se de uma justiça a materializar fora das instâncias formais ou sem o procedimento que essas instâncias supõem, tudo tido por obsoleto. 
Sempre em nome da eficácia, da celeridade, da avaliação quantitativa dos resultados vão criando instrumentos de notação da produtividade, de ponderação estatística da média dos resultados. 
A injustiça tornou-se, tal como na doutrina militar, mero dano colateral: a engenharia social através do Direito está na ordem do dia.

Dia do Advogado

«Tornar o problema num caso», ensinou-me o meu patrono na advocacia. Problema, aquela amálgama sincrética de factos e sentimentos, assuntos irrelevantes somados ao essencial; caso aquilo que, enquadrado pelo Direito, possa ser colocado a um tribunal e este decida em alguma media favorável a quem patrocinarmos.
Trata-se de recortar o objecto onde se encontrem os factos, às vezes apenas os que permitam esclarecer, nem sempre só as circunstância que possam atenuar.
À regra «não se defende tudo» talvez tenha mais mérito esta outra «não se defende tudo de qualque maneira».
E trata-se, sobretudo, de tarefa que exige, desde logo, profissionalismo e, por isso mesmo, distância. 
Distância sentimental para que não fique o advogado contagiado pela emotividade que perturbe o rigor do raciocínio, e o arraste para a pura retórica, tão amiúde sedutora na aparência quanto, por vezes, inútil na eficácia.
Distância existencial também, não se confundam os negócios do cliente com a profissão do advogado, conserve este sempre a liberdade para que não perca autonomia.
Actividade profissional, a advocacia implica assumir riscos, logo precisamente aquele acima referido, o de transmutar em caso o que é problema: há factos a seleccionar em detrimento de outros, caminhos argumentativos a seguir por abandono dos demais. No final, pode a linha seguida revelar-se ineficaz e cabe ao advogado saber então conviver com esse fracasso, assim como encararia o sucesso. 
Advocacia técnica, advocacia cada vez mais técnica, a contemporânea não pode, porém, prescindir da convivência humana, nem será advogado, no sentido cabal do termo, quem não for humanista, quem não se encontrar, pela cultura, com o mote «nada do que seja o humano me deixa indiferente».
Tarefa árdua de aproximação compreensiva com o outro que não somos, o outro que fez o que não faríamos, o outro que fez o que nós consideramos errado, por vezes profundamente errado, ter-se feito.
Aproximação para conhecer para logo distanciar e poder defender: é este o compromisso que faz a ponte entre o injusto com que nos encontramos e a justiça que almejamos.
Não uma vez, mas tantas quantos os casos que tenhamos a cargo. Muitas, assim e mais as regras de processo que são meio e limite: através delas sujeitamos o caso a quem decida, são elas que governam o modo de se chegar à decisão.
Lembrei-ma hoje disto, esta tarde, em Santarém. 
É Dia do Advogado. E, afinal, o que é ser-se advogado?  Alguém de quem a Justiça precisa para assegurar a mediação e garantir ao juiz isenção. O que tantas vezes é esquecido.

Directiva Europeia: whistleblowers

Sob a moderação de Vítor Costa, Director Adjunto de Informação da agência LUSA, com a participação do jornalista António Tadeia e da eurodeputada Ana Gomes, teve lugar, no passado dia 7 de Maio, um debate sobre a nova Directiva europeia sobre a protecção dos "whistleblowers" que muito em breve será publicada [ver o texto aqui].

O meu contributo nesse debate centrou-se nos seguintes tópicos:

-» a legislação portuguesa em matéria criminal, centrada na Lei n.º 19/2008 [primitivamente aplicável apenas ao sector público, depois estendida ao sector privado por via da Lei n.º 30/2015] e no âmbito desta para uma remissão que torna aplicável a lei de protecção de testemunhas [Lei n.º 93/99, modificada pelas Leis ns. 29/2008 e 42/2010], é insuficiente do ponto de vista das garantias outorgadas aos denunciantes;

-» já no domínio contra-ordenacional e regulatório multiplicam-se as formas de tutela da auto-denúncia e do tutela da mesma, com incentivos a que a mesma ocorra para efeito de benefício de regime de clemência;

-» a situação internacional gerada pela política norte-americana, nomeadamente no que se refere ao combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo tem tornado irreversível a tendência no sentido do incremento da colaboração com a investigação criminal;

-» comparada com a realidade norte-americana, a Europa encontra-se ainda dentro dos limites de um significativo equilíbrio, até porque não se trata de um sistema que gratifique monetariamente os denunciantes;

-» entre os vários modelos em curso de discussão e desenvolvimento legislativo configura-se a protecção dos denunciantes, sobretudo face à reacção pública e das autoridades judiciárias no que se refere às situações reveladas pelos Panama Papers, Paradise Papers, Luxleaks, etc.;

-» o tema torna-se problemático tratando-se de denúncias relativas a informações obtidas de forma ilícita, nomeadamente punível criminalmente, sobretudo em face da legislação que torne esse tipo de prova, em geral, proibida, como é o caso do sistema português [artigo 126º do Código de Processo Penal];

-» mas o problema não se esgota com informações obtidas por essa forma, podendo tratar-se de conhecimento obtido pelo denunciante no quadro das suas funções profissionais no quadro de uma organização;

-» a Directiva restringe precisamente o seu âmbito aos denunciantes que se integrem em organizações e que hajam efectuado uma denúncia interna para as competentes entidades corporativas incumbidas de funções de compliance;

-» A Directiva cobre um amplíssimo território de tutela, praticamente toda a área sobre a qual a União Europeia emitiu normativos;

-» a Directiva oferece protecção não apenas aos denunciantes mas igualmente aos "facilitadores";

-» a Directiva enuncia um conceito aberto quanto à credibilidade da denúncia, ao prever que relevará a situação daqueles que tiverem «motivos razoáveis para crer que as informações comunicadas eram verdadeiras no momento em que foram comunicadas e são abrangidas pelo âmbito de aplicação da presente diretiva»;

-» a Directiva salvaguarda o segredo médico e de advogados e declara não prejudicar as normas internas sobre processo penal.

Assunto relevante é saber em que termos se verificará a transposição da Directiva para o Direito nacional, conhecidas como são as dificuldades que se verificaram no âmbito da transposição em matéria de branqueamento de capitais em que o previsto enferma de dúvidas e incongruências, ainda por resolver.

Importa igualmente relevar a cultura judiciária de cada país, nomeadamente quanto à prevalência nos tribunais superiores de exigências formais e de procedimento as quais, se facilitadas na recepção da denúncia e na sua valoração probatória, podem redundar no inêxito do sistema pela anulação das decisões judiciais sustentadas nesse tipo de prova.

1º de Maio

Se o princípio «cada poder, cada força, traz consigo o seu Direito», oriundo de Pierre-Joseph Proudhon, traduz a matriz de uma concepção libertária no domínio do jurídico, talvez seja este outro termo,  cunhado pelo filósofo alemão Johann Kaspar Schmidt [Max Stirner] «tu tens direito àquilo a que tens o poder de ser», que lhe dá mais sentido e significado.
Sentido, pois associa o direito próprio à capacidade de o poder exercer; significado, enquanto exprime concordância lógica com a regra «cada coisa traz em si mesma a sua lei, isto é o modo do seu desenvolvimento, da sua existência e da sua acção paralela», pensada pelo russo Mikhail Aleksandrovitch Bakunin.
Vem isto precisamente a propósito de ser hoje o dia 1º de Maio.
Filosofia de negação de uma fonte única do Direito, estadual sobretudo, trata-se, nesta sua visão anarquista, de ir ao encontro das forças colectivas como geradoras de direitos, afinal não transcendentes, mutáveis pois fruto da tensão social e da correlação de forças, fruto de uma, ainda que irracional, razão colectiva, direitos já como expressão de um Direito ainda sem regras porquanto anterior à sua formulação.
Vem isto a propósito do dia de hoje.
Passando do campo da teoria legal à Literatura, necessariamente à crónica de Eça de Queiroz sobre o 1º de Maio, publicado na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1892, ei-lo, num daqueles arremessos de bom humor, em que, surpreende a farta, porque pingue, burguesia francesa ante a revolta dos famintos, a clamar a «justiça do pobre», mas, apesar de provida de paióis e fortunas, afinal tremente e espavorida
Naquele seu modo acre de trazer, pelo riso, sabedoria, Eça nota, perplexo, quanto essa burguesia ameaçada «treme e grita, à maneira daquele que, gozando à muito, além da sua leira de terra, a leira do seu vizinho, visse de repente surdir furiosamente esse vizinho com o seu direito e um grosso cajado». Precisamente.

Encontrando a frase e o caminho

Escrevo com a convicção de que leitores amáveis pensarão que não é verdade, antes vaidade. Mas decidi-me a estudar Direito. Aos setenta anos, sim. Depois de ter saído da Faculdade em 1971, é verdade. Depois de ter tentado ensinar Direito durante dezassete anos e porque não. 
A verdade é que há momentos na vida em que importa dar tudo como írrito e nulo e começar de novo. Li a frase, fantasiei que saiu da mente genial de Leonardo Coimbra, nas não a encontro. 
Dir-se-à que é uma neurose esta, a da ilusão de se voltar a ter vinte anos. Seja, mas se nem tudo quanto é saudável é necessariamente bom, a inversa pode ter o seu espaço de oportunidade.
Dei conta de um mundo carregado de leis, as nossas, as europeias, as outras internacionais. Muitas dessas leis são apenas regulamentos, porque ainda há diferença.
Percebi que muito do pensamento jurídico está carregado de pompa erudita, tornando-se de tal modo ilegível que a meio o leitor desiste e fica a amarga sensação de cansaço inútil. Sobretudo quando ao ler se tem um fim em vista.
Tanta escrita jurídica, arrastando em pé de página o aluvião de todos os outros, lembra a música wagneriana, torrencial, em fluxos helicoidais, expectante de um termo mas, afinal um sem-fim de tirar o fôlego.
Por tudo isso, regressando ao princípio, aqui estou. Saturado de encargos da profissão, menos resistente ao cansaço, a não querer esgotar-me no Direito, recomeço neste. Por onde não sei. A cada um encontrar o seu caminho. 
Um dia li um pequeno texto de João Baptista Machado sobre antropologia, existencialismo e Direito. Foi uma revelação. Imagine-se como uma obra que ficou lateral, pode tornar-nos outros. 
A vida, entretanto, com o castigo das suas obrigações, a prática como o saber o mínimo só para o caso, que outros há na linha de montagem em que a profissão se tornou, tal como a fábrica do Senhor Henry Ford, acabou por tudo soterrar. 
Urge, pois, cavar. Não como o conto do extraordinário José de Almeida Negreiros, O Cágado, que o cavador procurou, desesperado, inutilmente. Sim, jogando fora quanto inumou a mente e encontrando, não a frase, mas o sentido da frase, seja ela ou ou não do autor de A Alegria, a Dor e a Graça.

As consciências adormecidas

De todos os lados surgem avisos: os populismos sociais tornam-se autoritarismos políticos. Que sejam reposições do nazismo, do fascismo, supõe apenas que a História se repita pela mesma forma; pode ser diverso apenas o modo. Por isso no Direito há que ficar aviso: afinal, o totalitarismo também ajustou o jurídico às suas necessidades e dele se serviu e nele encontrou os seus servidores. E muitas das suas criaturas perduraram. 
Há os que, vivendo hoje o mundo da eficácia e do utilitarismo, trocam o saber como foi pela interesse quanto ao que há. 
Nem tudo está, porém, perdido. Fica para esses outros esta nota de leitura.

Eugenio Raul Zaffaroni, magistrados e professor argentino escreveu, Francisco Muñoz Conde, professor em Sevilha, prefaciou. Editado em 2017 em Buenos Aires. 
Trata-se de um aprofundado e documentado estudo sobre quanto o nazismo construiu para o seu Direito, desde a escola jurídica de Kiel [essa Stosstruppfakultät, Faculdade de Tropa de Assalto - e nela os nomes de dois dos seus fautores principais, Georg Dahm [1904-1963] e Friedrich Schaffstein [1905-2001] - à arquitectura do Estado total nacional-socialista, como estrutura que o Direito serviria, mas sobretudo dos conceitos jurídicos que dali emergiram como instrumentos de sustentação, defesa e disseminação do III Reich e seu espaço vital.


Estou ainda a ler, porque não é texto de apreensão imediata e alguma da forma de expor reconduz o leitor à necessidade de clarificar o sentido do discurso, por vezes reiterativo. 
Mas de imediato permito-me ir buscar ao texto do prefácio e da narrativa o elenco, parcial seguramente, do que foram os instrumentos  forjados pelos teóricos do nazismo jurídico, aptos a dar, à boa maneira alemã, consistência teórica e legitimação normativa às ideias que, oriundas da política que o Führerprinzip definia e que funcionavam como critério último de interpretação das leis e guia seguro para a sua correcta aplicação, corporizando esse autêntico "vendaval jurídico" na Europa dos anos trinta e quarenta do século vinte e a que poucos resistiram - entre estes Gustav Radbruch - e muitos cederam e se adaptaram- como Edmund Mezger.

Ei-los, pois  [entre tantos], no plano da dita "dogmática" jurídica:

-» violação do dever como núcleo do conceito de ilicitude [do "injusto"];
-» crítica ao conceito de bem jurídico como delimitador dos limites da tipicidade e critério orientador da interpretação normativa;
-» concepção de Direito Penal de autor;
-» formulação do Direito Penal da vontade;
-» hiper-valorização dos crimes omissivos;
-» crítica da teoria da não exigibilidade;
-» demolição do conceito de culpabilidade;
-» formulação de uma teoria unitária do crime;
-» admissão da analogia incriminatória;
-» profusão de tipos de crime de perigo abstracto;
-» punição da tentativa de instigação;
-» punição de actos preparatórios e de tentativas inidóneas;
-» tipificação da associação criminosa com fundamento no mero acordo de vontades;
-» sobrecarga punitiva nomeadamente em crimes contra interesses públicos.

Dir-se-à que há em alguns conformações oriundas do passado; sem dúvida, mas com uma reformulação apta a torná-los úteis à Nova Ordem.
É este o perigo das consciências que adormecem: forjam armas para a burocracia da repressão. Primeiro, para enfrentar o excepcional, depois, tarde demais, está o geral contaminado. Só lhes resta dizer que, afinal, não se tinham dado conta.


Ler e tentar escrever


Dei com esta frase que tinha escrito na página do FB que dedico à minha profissão, a ilustrar uma fotografia da sala onde trabalho:

«Livros. Advogar e ler. Ler e tentar escrever. A profissão hoje devora a capacidade de se parar e reflectir. Em cada dia surge o anseio e a tentativa de o resolver. Quem vive intensamente a prática tem de ter uma reflexão que a resolva, de outro modo convive com o absurdo. E com isso sofre.»

Hilgendorf & Valerius: 2ª edição traduzida

Publicado agora em 2019 pela Marcial Pons [que edita também livros em português], trata-se da tradução feita para português do Brasil da segunda edição obra de Eric Hilgendorf [Würzburg] e Brian Vallerius [Bayreuth].
O texto é reportado ao Direito Alemão vigente em 2015, pelo que, nessa parte haverá de relevar qualquer imprecisão por falta de actualização. 
Na apresentação da obra o tradutor explica que, tratando-se de um simples livro didáctico, ele é mais do que isso. Por um lado, porque todos os principais tópicos da disciplina do Direito Penal são ali tratados. Depois porque o livro contém inúmeras referências a literatura jurídica e jurisprudencial. 
Trata-se, como acentua Luís Greco, no prefácio, de um «livro acessível, despretensioso, escrito para um público de estudantes em busca de um primeiro contacto com a matéria».
Estas considerações talvez deixem a obra aquém da sua real valia, porque a narrativa do mesmo é objectiva.
Li hoje quanto nele se relata sobre a problemática dos crimes omissivos impróprios negligentes e penso que se fica com uma noção rigorosa da configuração dos problemas relevantes.
A tradução poderia, por ventura, ser melhorada, mas admito situar-me no quadro do português que se fala em Portugal e tratar-se, portanto, de crítica injusta.
Cito, por exemplo a tradução do § 13 do Código Penal Alemão [StGB]: «Aquele que se omite em evitar um resultado proibido por uma norma penal [...]» não é clara, porque ao verter expressamente a desinência "es" do original «Wer es unterläßt, einen Erfolg abzuwenden, der zum Tatbestand eines Strafgesetzes gehört [...]» ganha em literalidade o que perde em compreensão.
Do mesmo modo, sendo típica daquele Direito a diferença entre crimes [Verbrechen] e delitos [Vergehen], os primeiros puníveis com prisão superior a um ano, e fazendo o tradutor menção expressa a essa dicotomia [nota na página 53], usa generalizadamente o termo "delito» ao longo do livro quando afinal de trata de teoria sobre a problemática do crime.

Mysterios da Boa Hora


Sem ostensivo nome de autor, surgindo no final um abreviado José Maria, mas apenas o da tipografia Gutierres, ao 92 da Rua do Norte, onde fora impresso, o folheto está escrito naquele magnífico estilo irreverente que caracterizou a época, publicado que foi em 1882. Encontrei-o nem sei como, talvez por encomenda ao meu alfarrabista de eleição.

Abre a fantasiosa cena com uma caminhada para São Bento onde dois deputados, descritos pelo desconchavo, são seguidos por um jornalista. «A S. Bento, a S. Bento.. é a voz que se ouve repetir nas lojas e nos cafés». E porquê?

Siga a narrativa, pícara e esclarecedora [para ler, clicar na imagem, ampliando-a]:


Ora quando tudo parecia encaminhar-se para as Cortes, e para a magna questão das finanças judiciárias que ali se discutia, em pleno fontismo, eis que as palavras Escândalos! Maldita Boa Hora, distraindo-a da atenta vigilância em que se encontrava à conversa dos pais da Pátria, «lhe feriram o ouvido». E então:


E eis, por isso, que os passos se alteram e o infatigável jornalista, ávido de escândalo, segue pela Rua Formosa [hoje Rua do "Século", nome que tomou do vetusto jornal, entretanto falido], ali em busca de «dois íntimos», fontes alegadamente credível de informação. Segue a prosa:


Que se passaria na Boa-Hora? De que escândalos se trataria? Hoje, ficamos por aqui. Como nos folhetins, importa criar suspense. Aguardam-se, pois, cenas dos próximos capítulos.

Branqueamento de capitais: a rede 5G

Com ironia e trabalho minucioso Miguel da Câmara Machado orienta-nos desta versão actualizada do livro Regimes de Branqueamento de Capitais e Compliance Bancário pela profusa legislação sobre o sector.

A obra é antecedida de um prefácio que tem duas virtualidades (i) a de sistematizar a legislação que desde a década de noventa tem vindo a ser publicada no quadro europeu e transposta no plano nacional, arrumando o elenco por gerações [tal como nas gerações das comunicações, da 3G à 5G] (ii) fornecendo uma listagem da legislação em vigor, o que antecipa o índice do livro e melhor o permite compreender.

Segundo o autor são estas as cinco gerações normativas que se têm sucedido, em regime de sucessiva revogação:

-» a primeira geração, surgida no final dos anos oitenta, com início nos anos noventa, no contexto da luta contra o tráfico de droga, e que se consubstanciou (i) a nível europeu, na Directiva 91/308/CE, de 10 de Junho de 1991 (ii) a nível nacional no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro [ver aqui, qual reviu a legislação sobre o tráfico de droga] e o Decreto-Lei n.º 325/95, de 2 de Dezembro [ver aqui], «que introduziu os primeiros deveres de prevenção do branqueamento no nosso ordenamento jurídico»;

-»  a segunda geração, editada tomando como contexto os acontecimentos do 11 de Setembro de 2001 e orientadas, portanto para a tutela ante situações de terrorismo e que consistiu no seguintes normativos (i) a nível europeu, na Convenção do Conselho da Europa relativa ao branqueamento, detecção, apreensão e perda dos produtos do crime e ao financiamento do terrorismo (ii) ainda a nível europeu, no Regulamento (CE) 2580/2001, do Conselho, de 27 de Dezembro de 2001 (iii) ao mesmo nível, a Directiva 2001/97/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Dezembro de 2001 (iv) enfim, o Regulamento (CE) 1889/2005, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro de 2005 e (v) a nível nacional a Lei n.º 11/2004, de 27 de Março [ver aqui];

-» a terceira geração, caracterizada pelo reforço dos mecanismos internacionais ainda a propósito do terrorismo e da criminalidade internacional «que orientou os profissionais portugueses nesta matéria ao longo de uma época», expressa pelos seguintes instrumentos jurídicos (i) a nível europeu, a Directiva 2005/60/CE (ii) ainda a nível europeu, o Regulamento (CE) 178/2006, o qual foi concretizado entre nós pelo Decreto-Lei n.º 125/2008 (iii) ao mesmo nível, a Directiva 2006/70/CE, (iv) a nível nacional, transposta, tal como a Directiva anteriormente referida, pela Lei n.º 25/2008,  de 5 de Junho [ver aqui] sucessivamente alterada;

-»  a quarta geração, orientada ao combate contra a corrupção e os crimes fiscais, que se expressou (i) a nível europeu, na Directiva (UE) 2015/849, de 20 de Maio de 2015 (ii) ao mesmo nível na Directiva (UE) 2016/2258, de 6 de Dezembro de 2016 (iii) ainda a nível europeu nos Regulamentos (UE) 2018/1108, de 7 de Maio de 22018, (UE) 2016/1675, de Julho de 2016 e (UE) 2015/847, de 20 de Maio de 2015, o Regulamento (UE) 2018/1672, de 23 de Outubro e a Directiva (UE) 2018/1673, de 23 de Outubro (iii) no plano nacional pelo vulgarizado «pacote de 2017), formado pela Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto [ver aqui] e pelas Leis 89/2017, de 21 de Agosto [ver aqui], 92/2017,  de 26 de Agosto [ver aqui], 96/2017, de 23 de Agosto [ver aqui] e 97/2017, de 23 de Agosto [ver aqui]bem como em outros diplomas legais convergentes como a Lei n.º 15/2017, de 3 de Maio [ver aqui], o Decreto-Lei nº 123/2017, de 25 de Setembro [ver aqui], a Resolução do Conselho de Ministros n.º 88/2015, de 1 de Outubro [ver aqui] e a Portaria n.º 233/2018, de 21 de Agosto [ver aqui];

-» enfim, a quinta geração, traduzida na Directiva (UE) 2018/843, de 30 de Maio de 2018 [ver aqui], a qual deverá ser transposta para o Direito interno, até 10 de Janeiro de 2020

Crítico em relação ao que compendia, Miguel da Câmara Machado já havia, em prefácio à compilação anterior, perguntado sobre se estaríamos «entre um manual para branqueadores e um código sancionatório em branco». Agora, com humor, suscita a questão e saber se, tal como o quadro de Banski [ver aqui], estes regimes não se vão destruir «antes de acabarem de ser lidos (ou transpostos)», situação que, remata, seria «pior do que as dos filmes, onde as mensagens enviadas a Ethan Hunt se autodestruíam em 5 segundos», como o título do texto com que apresenta a obra: «Estes regimes vão autodestruir-se em 5 segundos».

Direito Penal de empresa: questões gerais

A obra foi publicada este ano, em Janeiro. Reproduz, em escrito, o ensino da autora em cursos de pós-graduação, desde há alguns anos, em Portugal e no Brasil.
É livro pequeno de 150 páginas. Mas os livros pequenos têm a vantagem de se candidatarem a serem lidos. Sobretudo quando escritos com clareza, e é o caso.
O tema é actual, o território jurídico em que se move, mutante.
Trata-se, a nível criminal, da responsabilidade dos administradores, da responsabilidade das pessoas colectivas e da responsabilidade do compliance. Mas para que tudo ganhe compreensibilidade, o capítulo inaugural ensaia uma rememoração dos conceitos fundamentais do Direito Penal de Empresa e a Teoria da Infracção Penal. 
O foco é precisamente o Direito Criminal Empresarial, o corporate crime, no quadro de uma sociedade técnica, progressivamente mais complexa e especializada.
Terminada a leitura dessa análise preambular, eis as notas que, traduzem o que retive como essencial:

-» a evolução de um Estado interventor para um Estado regulador, não diria recuo do Estado mas uma sua recolocação no território económico, financeiro e social, num ambiente contemporâneo de «desregulação da economia»;

-» a natureza «mutável, flexível e assistemático» desse novo Direito;

-» a configuração dos bens jurídicos em causa nesse Direito Penal Económico [de que o Direito Penal Empresarial seria espécie daquele género] como «relevantes para a sobrevivência do sistema económico»;

-» a dicotomia necessária entre a criminalidade na empresa e a criminalidade de empresa, esta a que lesa bens jurídicos e  interesses «externos, incluídos os próprios interesses dos colaboradores da empresa», abrangendo todo o universo de crimes que se situem no ambiente empresarial, desde o direito penal laboral ao de mercado de valores mobiliários, ao do consumidor, às insolvências puníveis, crimes contra a propriedade industrial, enfim os delitos societários.

Se esta é a configuração da arquitectura global do Direito em causa, Susana Aires de Sousa conduz-nos, seguidamente, para questões problemáticas que se suscitam na matéria:

-» a utilização pela lei de tipos penais abertos e indeterminados na formulação legal dos ilícitos, nomeadamente através do reenvio para normas extra-penais, inclusivamente de valor infra-legal (decreto, regulamento ou uma portaria) o que coloca problemas de constitucionalidade, pois que o reenvio «pode prejudicar a função de garantia que cabe ao tipo incriminador» [cita a exemplo quanto se passa com o artigo 509º do Código das Sociedades Comerciais, convoca a cascata remissiva do artigo 87º do RGIT - que considera, com ironia, uma das situações «caricatas e de duvidosa constitucionalidade» e cita, deixando a apreciação ao leitor, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Outubro de 1997, segundo o qual o princípio da legalidade incriminatória não está em causa quando o conceito indeterminado utilizado pelo legislador seja «determinável» pelo intérprete;

-» a natureza social e historicamente situa dos bens jurídicos em causa neste tipo de criminalidade [«afastada de um essência axiológica culturalmente consolidada»] e a sua distância relativamente a qualquer «referência individual imediata», valorando o mero «perigo da conduta face à lesão efectiva do bem jurídico» o que «levanta dúvidas sobre a legitimidade da intervenção penal» [e neste domínio chama à colação os denominados «delitos cumulativos», que enfrentam o risco de generalização de uma conduta, modalidade dos crimes de perigo abstracto, que aqui teriam expressão, no caso dos crimes fiscais e contra o mercado de valores mobiliários];

-» o tema da legitimidade para a constituição de assistente [por ampliação do quadro conceptual da noção de ofendido], concluindo que haverá casos nos quais «não obstante a natureza colectiva do interesse protegido pela incriminação, se deve admitir que a empresa pode aceder ao estatuto de sujeito processual», citando ser, em sua opinião, o caso dos crimes societários [artigos 509º a 529º do Código Penal];

-» a matéria da responsabilidade criminal pelo produto [no caso da produção e da distribuição] e que ao dano individual sucede a multiplicação do dano por um elevado número de consumidores e é, assim, um «dano duplamente anónimo», assunto relativamente ao qual, não só sublinha a existência de lacunas de previsão no Direito em vigor [concretamente ante a conjugação dos artigos 282º e 24º do Decreto-Lei n.º 28/84, apresentando proposta de redacção para um Direito a constituir];

-» e, enfim, em breve apontamento, uma nota quanto «às dificuldades dogmáticas para estabelecer a autoria e a participação nos crimes cometidos através de uma organização».

O Advogado e o cidadão

Não há apenas a contemporaneidade, também aquilo que o tempo soterrou mas permite reflectir. Isso torna-se imperioso num tempo, como o que vivemos, em que às novas gerações falta consciência histórica e sobretudo vontade de compreenderem que aquilo que hoje está na lei, ou no sentir da jurisprudência, resulta de um sedimentar histórico até se chegar aqui ou, quantas vezes, de tumultuosa luta jurídica por um outro Direito.
Entre o muito que encontrei em alfarrabista, esta pequena separata do Doutor Adelino da Palma Carlos, breve alegação de recurso para a Relação de Lisboa, merece ser revisitada, como excursão a um Direito que foi para que ganhe sentido o Direito que está e a vida como hoje se vive.
Era tempo em que os advogados publicavam as suas peças processuais. O hábito decaiu porque se considerou que era uma forma indevida de publicidade. Olhando para o mundo actual, em que a incessante publicitação ocupa todo o espaço disponível, é irónico.
Era tempo em que as peças processuais eram publicadas com os nomes dos envolvidos e o mesmo sucedia quanto à jurisprudência, pois não se via então gravame à honra das pessoas nem lesão do seu direito à privacidade.
Era tempo em que a alegação era breve [esta tem 29 páginas em oitavo] e não careciam de conclusões.
No caso, a alegação responde a um recurso interposto pelo Ministério Público.
O caso envolvida um funcionário, que fora condenado pelo crime que então se chamava de suborno e estava tipificado no artigo 318º do Código Penal.
Ao tempo, a matéria de facto dada como provada pelo colectivo era definitiva «ainda que não corresponda à prova produzida, como, neste caso, infelizmente aconteceu, na opinião de quantos acompanharam o julgamento», refere o alegante.
O núcleo do argumento da alegação é que a norma incriminadora em causa exigia ao agente «fazer» um acto de suas funções » e no caso aquilo que era imputado ao alegante era, numa parte da condenação, ter-se abstido de fiscalizar [na outra já a conduta era comissiva na forma de inutilizar ou extraviar processos]. 
Para além disso [precisamente em função deste segundo segmento da condenação, a conduta positiva] alegava-se que a mesma estava prevista em outro preceito do Código Penal, o artigo 312º e não o referido artigo 318º sendo «inadmissível que se conceba a existência, no Código de duas normas punindo a mesma infracção».
Lendo o argumentário, não ficam por aqui os motivos de reflexão.
Curioso [face aos parâmetros actuais] é que se pudesse argumentar que «um empregado dos serviços de fiscalização corporativa, no caso da Intendência Geral dos Abastecimentos] não fosse funcionário público e que para fins penais essa distinção [que tinha colhimento no Decreto-Lei n.º 35809, de 16 de Agosto de 1946, por curiosidade ver aqui] relevasse [e assim o considerou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 1948, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, ano V, página 165]. Hoje, ante a noção amplíssima de funcionário público para efeitos criminais o argumento cairia por terra.
Igualmente interessante que outro tema da alegação haja sido o colocar em crise que, no caso, se tenha tratado de «acto de suas funções» [assim se referia o artigo incriminador em apreço] com fundamento na ideia que tal implicaria tratar-se de acto da competência legal do funcionário. ~
Em prol desta tese o ilustre professor de Direito mobiliza toda a sua erudição: desde a origem histórica do preceito [o Código Criminal «intentado pela Rainha D. Maria I, de Pascoal de Melo, aos Códigos Penais Francês de 1810 e Brasileiro de 1830 e o comentário do próprio Pascoal de Melo e de Levy Maria Jordão, os tratadistas franceses então em voga Chaveau & Hélie e Garraud, bem como o argumento histórico nacional, desde as Ordenações, das Afonsinas às Filipinas, o Direito Romano expresso na Lex Julia repetundarum, e, enfim, a opinião do alemão von Lizt].
Ciente da necessidade de reforçar a razão que tentava sustentar, Palma Carlos convoca por igual o Dicionário de Cândido de Figueiredo para o qual o «de», enquanto preposição, «exprime restricção da palavra que precede». Assim, o extravio de processos não seria acto «de» função.
No centro do tema, pressente-se, já está, porém, aquilo que viria a ditar a formulação actual da norma sobre corrupção. E, em honestidade intelectual, o alegante reconheco-o: «[...] há hoje quem sustente que na repressão do suborno deve punir-se não só a prática do acto da função, mas também a de todos os actos contrários aos deveres de função; e é possível que a defesa social justifique esta orientação, em face da onda de imoralidade que cobre o mundo».
Ao tempo, o alegante ainda poderia invocar, em lógica política, como o fez já na parte decisiva da sua peça processual: que o artigo 177º do Código Penal Francês era idêntico ao nosso mas quando «em França, como entre nós, a onda de corrupção alastrou, quando as liberdades individuais foram cerceadas e o livre direito de crítica ficou sufocado», então, o Governo de Vichy [de colaboracionismo ao invasor nazi] havia acrescentado em 16 de Março de 1943, ao mencionado artigo do Código Penal uma alínea que passara a abranger o caso de se tratar de acto que «ainda que fora das atribuições pessoais da pessoa corrompida, foi ou teria sido facilitado pela sua função ou pelo serviço que assegurava», modificação que seria mantida por Ordenança de 8 de Fevereiro de 1945, ainda a guerra não havia terminado.
Veja-se a honradez da conclusão. Fiel ao seu papel de advogado [o de defender o acusado de suborno] mas não abdicando da sua condição de cidadão, Adelino da Palma Carlos [professor de Direito, que era  então Bastonário da Ordem dos Advogados e viria a ser o primeiro-ministro da Democracia] escreve: «É mau o sistema? Decerto! Mas a culpa não é dos juízes; nem a deficiência da lei lhes dá o direito de passarem a criar direito, ou a punir, por preceito inaplicáveis que a lei não contempla».

Violência de género


Teve lugar na Ordem dos Advogados um encontro, promovido pela sua Comissão para a Igualdade de Género e Violência Doméstica, dedicado ao tema Violência de Género. A Comissão é presidida pela Advogada Isabel Cunha Gil e constituída pelas advogadas Leonor Chastre e Cláudia Amorim e pelo professor Henrique Salinas.

Tive intervenção no painel atinente à necessidade de alterar o sistema legal, e fi-lo não com um texto escrito mas com uma improvisação oral baseada em notas de orientação. Centrei-me na tutela penal, não sem mencionar que uma efectiva delimitação de uma área eficaz de protecção não se reconduz a tal espécie de defesa.

Aqui fica [para a eventualidade de interessar] um apontamento sucinto do que disse.

reduzir [em termos de violência de género] o tema ao binário homem/mulher é, ante a situação contemporânea, redutor [haja em vistas casos, que se disseminam de violência sobre seres humanos a qual decorre unicamente da exposição pública pelos mesmos do que entendem ser a sua identidade sexual e o modo de a exteriorizar, o que desencadeia nos agressores estados psicológicos de repúdio e de violência];

este alargamento que no presente momento histórico e em Portugal é a questão do feminino que é a prevalente, evidenciando os números que a violência de género vitimiza de modo significativo as mulheres [e por decorrência as crianças, no caso de se exercer no domínio da relação de casamento ou união de facto ou no quadro da parentalidade];

para o rigor dos conceitos importa distinguir face às categorizações hoje adquiridas (i) sexo, que é biológico e original (ii) orientação sexual [hetero homo, bi, assexual ou pansexual] (iii) género [categoria atinente à identidade sexual sentida pelo próprio, situação por essência mutável];

no que se refere à violência, importa relevar as seguintes situações (i) física (ii) psicológica/emocional (iii) sexual (iv) reprodutiva [imposição de uma escolha quanto à existência de filhos] (iv) parental [relativa ao exercício da parentalidade] (v) verbal (vi) por representação [nomeadamente nos media e publicidade] (vii) económica [restrição à capacidade de produção e ganho ou à percepção dos proventos respectivos];

quanto aos territórios em que se exerce a mesma poderá ser (i) no quadro do casamento ou de uma união de facto (ii) no namoro (iii) doméstica em geral [em situações de partilha de espaço habitacional] (iv) laboral [no quadro do exercício profissional] 

a nível legislativo substantivo é discutível (i) se importa modificar os tipos legais de protecção de modo a alargar a tutela a estas situações ou (ii) se será mais adequada a formulação de um corpo normativo estruturado e coerente que a todas se refira, clausulando as especificidades que houver que relevar;

ainda a nível legislativo substantivo importa considerar quais os valores que carecem de protecção legal e integram assim a noção de bem jurídico relevante, nomeadamente (i) a vida e integridade física (ii) a integridade moral (iii) a liberdade de autodeterminação (iv) a dignidade da pessoa humana (v) a coesão social (vi) o património;

finalmente a nível legislativo processual, importa editar normas respeitantes (i) à prova [modo de recolha, protecção da prova] (ii) aos meios de intervenção processual [estatuto de assistente da vítima ou de associações representativas credenciadas] (iii) ao acesso à justiça (iv) às medidas coactivas e de monitorização (v) ao ressarcimento e reintegração da vítima (vi) à prevenção efectiva da reincidência.

Comissão Europeia & Estado de Direito

[Segundo comunicado oficial hoje difundido] a Comissão Europeia lança um processo de reflexão sobre o Estado de direito na União Europeia a fim de definir eventuais medidas futuras.

Eis a notícia:

«A comunicação hoje apresentada faz o balanço dos instrumentos disponíveis para fiscalizar, avaliar e proteger o Estado de direito na União. Analisa igualmente a experiência dos últimos anos, a fim de aprofundar o debate europeu sobre a forma de reforçar o Estado de direito. A experiência já adquirida, em particular, aponta para a necessidade de uma melhor promoção do Estado de direito, da prevenção atempada de riscos de violação e de formular uma resposta eficaz aos problemas que possam ocorrer neste domínio na União.

O primeiro vice-presidente da Comissão, Frans Timmermans, declarou: «A capacidade da União para defender o Estado de direito é essencial, agora mais do que nunca. Em primeiro lugar porque se trata de uma questão de valores fundamentais, uma questão de saber “quem somos”. Em segundo lugar, porque o funcionamento da UE no seu conjunto depende do Estado de direito em todos os Estados-Membros. Chegou o momento de refletir em conjunto com todas as instituições, os Estados-Membros, as diferentes autoridades e as partes interessadas sobre a forma de defender e reforçar o Estado de direito na União.»

Nos últimos anos, o Estado de direito na Europa tem sido sujeito a uma pressão cada vez maior. Os debates mantidos na União, assim como a nível internacional e da sociedade civil, demonstram que existem preocupações concretas comuns. Tornou-se evidente que é preciso envidar mais esforços para defender, reforçar e fazer respeitar o Estado de direito em toda a União. Com base nos debates em curso e na experiência já adquirida, a comunicação hoje publicada visa dar início a esse processo, estabelecendo pistas de reflexão para a ação futura.

Vias possíveis para o futuro

A defesa, o reforço e o respeito do Estado de direito na União são da responsabilidade comum das instituições da UE e de todos os Estados-Membros. A Comissão já utilizou uma vasta gama de instrumentos para fiscalizar, avaliar e responder às preocupações relativas ao Estado de direito nos Estados-Membros, incluindo o enquadramento do Estado de direito da UE, o procedimento previsto no artigo 7.º, n.º 1, do Tratado da União Europeia, os processos de infração, bem como o Semestre Europeu, o Painel de Avaliação da Justiça na UE ou o Mecanismo de Cooperação e de Verificação. Com base na experiência já adquirida com estes instrumentos, a Comissão definiu hoje três pilares suscetíveis de contribuir para uma aplicação mais efetiva do Estado de direito na União:

· Melhor promoção: as normas do Estado de direito e a jurisprudência neste domínio nem sempre são suficientemente divulgadas a nível nacional. Para resolver este problema, devem ser envidados esforços no sentido de promover melhor as normas do Estado de direito e a jurisprudência a nível nacional. Poderão ser alcançados resultados mediante atividades de comunicação destinadas ao público, abordagens comuns da UE que ajudem a reforçar uma cultura do Estado de direito em todas as instituições e profissões, o empenho contínuo do Conselho da Europa e a participação da sociedade civil a nível regional e local.

· Prevenção atempada: Embora a responsabilidade primordial de garantir o respeito pelo Estado de direito a nível nacional incumba aos Estados-Membros, a UE pode prestar um apoio importante para reforçar a resiliência dos principais sistemas e instituições. A cooperação e o diálogo permanentes poderão contribuir para uma maior compreensão da situação e da evolução do Estado de direito nos Estados-Membros e para resolver rapidamente eventuais problemas que ocorram neste domínio.

· Resposta adaptada: A heterogeneidade dos problemas em matéria de Estado de direito requer uma diversidade de respostas eficazes. A Comissão continuará a assegurar a correta aplicação da legislação da UE através de processos de infração. Também pode ser adequado adotar abordagens diferentes em áreas específicas, como sucede com a proposta da Comissão relativa à proteção dos interesses financeiros da UE. Além disso, o atual enquadramento do Estado de direito poderá ser aperfeiçoado, contemplando a informação atempada e o apoio do Parlamento Europeu e do Conselho, bem como um calendário claro para a duração dos diálogos.

Próximas etapas

A Comissão convida agora o Parlamento Europeu, o Conselho Europeu e o Conselho, bem como os Estados-Membros e as partes interessadas, incluindo as redes judiciárias e a sociedade civil, a refletirem sobre as questões suscitadas na comunicação e a contribuírem com ideias concretas para reforçar futuramente os instrumentos existentes em matéria de Estado de direito.

Com base neste processo de reflexão e nos debates em curso, a Comissão tenciona apresentar as suas próprias conclusões e propostas em junho de 2019.

Contexto

O Estado de direito é um dos valores comuns em que a União Europeia assenta, tendo sido adotado por todos os Estados-Membros e consagrado no artigo 2.º do Tratado da União Europeia. É igualmente essencial para o funcionamento da UE no seu conjunto, por exemplo no que diz respeito ao mercado interno, à cooperação no domínio da justiça e dos assuntos internos, e para garantir que os juízes nacionais, que também são «juízes da UE», podem exercer o seu papel para fazer cumprir o direito da UE e interagir adequadamente com o Tribunal de Justiça da UE no âmbito de pedidos de decisão a título prejudicial. Por força dos Tratados, incumbe à Comissão Europeia, juntamente com as outras instituições e os Estados‑Membros, garantir o Estado de direito enquanto valor fundamental da União e assegurar o respeito da legislação, dos valores e dos princípios da UE.

A Comissão dispõe de uma vasta gama de instrumentos para fiscalizar, avaliar e responder adequadamente aos problemas em matéria de Estado de direito nos Estados-Membros, incluindo, os processos de infração, o Semestre Europeu, o Painel de Avaliação da Justiça na UE ou o Mecanismo de Cooperação e de Verificação. Em 11 de março de 2014, a Comissão Europeia adotou um novo quadro normativo para enfrentar as ameaças sistémicas ao Estado de direito em qualquer dos Estados-Membros da UE. Esse quadro criou um instrumento que permite à Comissão iniciar um diálogo com o Estado-Membro em causa, a fim de prevenir o agravamento de ameaças sistémicas ao Estado de direito. O instrumento mais emblemático, ainda que excecional, para defender o Estado de direito é o procedimento previsto no artigo 7.º do TUE, que permite à UE agir em caso de violação grave do Estado de direito num Estado-Membro. Até à data, esse procedimento só foi desencadeado em dois casos concretos: em dezembro de 2017, no caso da Polónia (pela Comissão) e em setembro de 2018, no caso da Hungria (pelo Parlamento Europeu).»

Brasil: réditos da delação premiada

Cito do portal da Procuradoria-Geral do Brasil, citando declarações da Procuradora-Geral Raquel Dodge [texto integral aqui]:

«A maior parte (70,8%) dos investigados que firmaram acordo de colaboração premiada com a Procuradoria-Geral da República (PGR), e que foram homologados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), é empresário. Os políticos, por outro lado, representam apenas 2,3% do total. Juntos, os 216 colaboradores se comprometeram a pagar cerca de R$ 1,3 bilhão em multas extrapenais (R$ 1.284.292.753,67). Os dados foram extraídos do Sistema de Monitoramento de Colaborações (Simco), desenvolvido pela PGR. A ferramenta, que já está em operação, permitirá o acompanhamento integral dos acordos, além de fornecer alertas aos investigadores em relação a providências que devem ser tomadas em cada procedimento. O principal propósito é garantir a efetividade das colaborações com o cumprimento integral das cláusulas do acordo tanto as de natureza patrimonial quanto as referentes às chamadas penas corporais (de prisão).»

[...]

«Desde a homologação do primeiro acordo pelo STF, em 2014, foram recuperados aproximadamente R$ 1 bilhão: R$ 741.942.085,27 em multas e R$ 243.130.743,81 em perdimentos. Deste total, pouco mais de R$ 300 milhões (R$ 305.454.629,17) já foram destinados, ou seja, retornaram aos órgãos públicos lesados conforme decisão do relator do acordo. A diferença dos valores segue depositada em conta judicial na Caixa Econômica Federal e, segundo explicou a secretária da Função Penal Originária no STF, Raquel Branquinho, o objetivo é agilizar a destinação dos valores com as devidas correções. “A partir do conhecimento rápido de que um pagamento foi feito pelo colaborador, podemos providenciar o repasse no menor tempo possível garantindo o cumprimento da colaboração”, completou Raquel Dodge.
Ainda em relação aos dados patrimoniais das colaborações, o sistema aponta que, neste momento, as parcelas de multas vencidas e ainda não pagas pelos colaboradores representam 7,3%. A PGR está cobrando R$ 94.580.883,92 de 25 inadimplentes. Já os compromissos que ainda não venceram ultrapassa R$ 450 milhões (R$ 450.757.285,13). Em relação ao perdimento, a previsão é que devem ser devolvidos aos cofres públicos nacionais R$ 193.953.485,08, além de 1 milhão de libras e US$ 125.662.967,70.»

Pagar, publicar, propagandear!

Houve tempos em que se solicitavam artigos jurídicos e estava fora de questão serem pagos. Houve tempos em que publicar um artigo jurídico era honra e acto de coragem intelectual, expondo-se o autor à severidade dos seus leitores.
Hoje esse mundo não morreu, mas há um outro, florescente, a gerar negócio, com banca montada no mundo editorial internacional.
Há aí hoje um tempo em que se paga para publicar um artigo jurídico. Há hoje um tempo em que, ao publicar-se um artigo jurídico que se pagou, se abre a porta para vir à praça pública proclamar ser o seu autor.
Fica com isso a ideia de que o escrevente é de tal modo prestigiado entre os seus pares que teve a honra de ter coluna aberta naquele periódico, ideia difusa porque, neste mundo torrencial de informação, imensos  acreditam em quase nada e quase todos desconfiam de que o dourado esconda latão. E tudo se dissolve na indiferença.
Recebo inúmeros emails a anunciar-me como eleito para que escreva em publicações internacionais com aura e cara de muito prestígio. Anunciam que serei lido entre a elite dos que contam e, sobretudo, aumentarei os meus ganhos financeiros com a profissão ao ser lido e tido. E dizem mesmo qual é o preço, com ou sem fotografia, incluindo ou não o meu currículo. 
É tudo um mundo do faz de conta. A ânsia concorrencial abre a porta ao negócio. Há os que têm o minuto de glória da newsletter que anuncia o feito, para gáudio próprio e ferro na concorrência que, para não ficar no pelotão, faz o mesmo, fingindo que acredita.

Branqueamento de capitais: dia negro para a lista negra

O facto passou despercebido: a rejeição unânime pelos ministros da Justiça e do Interior da União Europeia do que seria a nova lista negra de países não cooperantes em matéria de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, a qual vinha proposta pela Comissão Europeia. 
Mais do que a rejeição, significativos são dois factos: a acusação apontada à Comissão de não ter sido transparente no processo e a fissura que parece existir quanto a esta matéria num momento particularmente sensível do processo. Ver a notícia oficial aqui.
Numa declaração pública, o Conselho justifica a sua decisão argumentando que «não pode apoiar a atual proposta, que não teve por base um processo transparente e resiliente que incentive ativamente os países afetados a tomar medidas decisivas e que respeite simultaneamente o seu direito a serem ouvidos». [ver o texto integral aqui]
A actual lista abrange 16 jurisdições, a proposta visava chegar ao número de 23 [ver o seu texto aqui], o que passava pela inclusão da Arábia Saudita, o Panamá, e quatro territórios norte-americanos [Samoa, USA Virgin Islands, Puerto Rico e Guam], para além do Afganistão, Bahamas, Coreia do Norte, Etiópia, Ghana, Irão, Iraque, Líbia, Bigéria, Paquistão, Sri Lanka, Síria, Trinidad e Tobago, Tunísia e Iémen.
A Comissão terá agora de propor um novo projeto de lista de países terceiros de risco elevado para dar resposta às preocupações dos Estados-Membros.

Direito Penal e a prova dos nove: o exemplo americano

A ideia de que o Direito Penal obedece a critérios de lógica e de aritmética é uma das funestas ilusões dos que saem das Faculdades de Direito e entram na vida prática. É tanto menos assim desde a entrada em vigor do Código Penal de 1982, com o espectro diversificado no âmbito da dosimetria penal abstracta e com a ampla possibilidade de atenuação especial e de penas alternativas, o que tem levado à disseminação das penas suspensas, ou seja ao fosso entre as penas previstas na lei e as efectivamente decretadas e entre estas e as efectivamente sofridas.
Num tempo em que grassa uma hipnótica fixação nas soluções oriundas do Direito norte-americano, um facto relevante ocorreu esta semana no âmbito da proporcionalidade das penas.
Existem, como se sabe, no Direito Criminal Federal norte-americano as denominadas Guidelines, que são critérios orientadores para a aplicação de penas, após o veredicto sobre a culpa. Podem ser consultadas aqui. São balizas dentro das quais o julgador deverá agir ao sentenciar. Este ano está em aberto a possibilidade da sua revisão [ver aqui]. Criam a ilusão de ordem, organização, racionalidade, método, proporcionalidade e igualdade.
Há inclusivamente já um portal que oferece uma estimativa de cálculo da pena expectável [ver aqui], Um espaço de reflexão e de sistematização de dados sobre as mesmas pode ser encontrada aqui.
A polémica surgiu, porém, depois de um juiz federal [United States District Court in Alexandria, Va.] ter condenado Paul Manafort [director de campanha do actual Presidente] a 47 meses de prisão por oito crimes que fraude fiscal e bancária, quando, de acordo com a referidas Guidelines ao caso caberia uma pena entre 19 a 24 anos de prisão, tal como vinha proposto pela acusação pública [ver aqui], na sequência da acusação contra ele deduzida [ver aqui].
Segundo o juiz, seguir as referidas Guidelines resultaria numa condenação excessiva.
Conclusão: nem toda a aritmética resiste à prova dos nove.

Troika Laundromat

Está na ordem do dia, a nível internacional, a discussão sobre a vantagem de se configurar um sistema europeu centralizado no combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.
A questão surgiu ante um relatório, oriundo OCCRP [The Organized Crime and Corruption Report, link aqui] sobre o alegado envolvimento de bancos europeus num esquema de branqueamento referido com a Troika Laundromat, citado e ampliado depois por agências de notícias prestigiadas como a Bloomberg ou a Reuters e disseminadas por artigos na restante imprensa.
Segundo um ponto de vista, tal contaminação decorreria da ausência de policiamento centralizado europeu na matéria, o qual está actualmente confiado às autoridades e à legislação de cada um dos vinte e oito países que integram a União Europeia e que, com ritmos diferenciados, vão efectuando a transposição das Directivas Europeias. Em alguns casos com atraso, como o ilustrou o caso do Luxemburgo.
Complementarmente, uma política no sentido de agravar ainda mas a penalização dos bancos encontrados em contravenção das regras, cada vez mais apertadas, em matéria de branqueamento de capitais começa a ganhar corpo, desconsiderando o argumento de que fragilidade do sistema bancário mundial poderia ser agravada pelo incremento exponencial de multas que, sobretudo determinadas pelas autoridades norte-americanas, têm sido a ser aplicadas.
Novos tempos se adivinham na matéria.

Luxemburgo: branqueamento de capitais


Entrou em vigor a 1 de Março no Luxemburgo a Lei de 13 de Janeiro [aprovada a 13 de Janeiro e regulamentada a 15 de Fevereiro, ver a versão oficial da lei aqui e do regulamento aqui], que procede à transposição da 4ª Directiva europeia em matéria de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. Aguarda-se a aprovação de um normativo que regule o registo central de beneficiários efectivos [actualmente ainda em projecto, n.º 7216B, ver aqui].
O Luxemburgo era, na Europa, um dos países mais criticados ante a circunstância do seu atraso na adequação às normas europeias na matéria.

AdC e controlo judicial

A Autoridade da Concorrência ao divulgar o relatório de actividades do ano transacto [ver aqui] fez saber em matéria de controlo judicial ter ocorrido um «acréscimo significativo de litigância no seguimento do reforço do enforcement, com taxa de sucesso de cerca de 95%, referentes principalmente a questões de natureza processual com impacto substantivo, que refletem consolidação de checks and balances de robustez jurídica desde uma fase inicial da investigação e ao longo de todo o processo da AdC. Estabilizaram-se entendimentos relativamente a buscas, apreensão e tratamento de prova, prova e processo digital, acesso ao processo, confidencialidades, desentranhamento, efeitos de recurso e direitos de defesa.»
Se a percentagem revela sucesso das decisões administrativas, importaria, para melhor análise, conhecer com mais detalhe a que situações a mesma se refere, nomeadamente qual a proporção das decisões de méritos sobre as estritamente processuais.
Um dos pontos em que há controvérsia jurídica no que ao ilícito contraordenacional respeita é precisamente o que se refere ao real conhecimento, pelo Tribunal da Regulação, da matéria de facto das questões jurídicas especializadas que se suscitam, isto para que não fique a ideia de que os factos adquiridos pelos reguladores ariscam-se a ser, em sede de impugnação, pela sua complexidade, intocados pelo Tribunal e as questões jurídicas, pelo seu tecnicismo, também.

A estética como critério de competência jurisdicional

Este blog tem andado indevidamente ao sabor dos intervalos que a profissão permite. Poderia ser fruto de uma equipa; não é, sou. Poderia eu ter a vida melhor organizada, repartindo o tempo entre os deveres e as apetências; não tenho, aqueles devoram o espaço destas. Poderia a minha má consciência gerar o efeito propulsor de vir aqui dar melhor imagem de mim; não gera, porque pago o preço do  mal que de mim possam pensar.
Enfim, uma única razão me leva a periodicamente fazer a jura de que serei regular, pontual, previsível: a ideia de que a vida pode ser ordenada e não é, por isso cruzo os dedos quando juro.
Além do mais, dou ao pouco tempo que sobra aquele mínimo horizonte sem o qual o confinamento torna o ser humano um robot; desdobro-me em várias vivências e assim iludo o que pode ser uma vida integralmente realizada.
Volto aqui, ainda em intervalo.
Razões de vida tornaram-me, ainda que por pouco tempo, próximo de Afonso Lopes Vieira. Foi advogado e sobretudo poeta.
Segundo um apontamento que li durante este fim de semana, da autoria de Alfredo Gândara, Vieira terá vestido a toga uma só vez ou se mais, não muitas mais. Desta feita para defender Hipólito Raposo quando este foi julgado no Tribunal Militar se Santa Clara, creio que pelo envolvimento na conspiração monárquica de 1919 e ali condenado a uma pena de prisão no Forte de São Julião da Barra. 

E, a propósito, faz hoje anos que Paiva Couceiro foi preso, ouvi esta tarde numa efeméride da Antena 2-Rádio. 
Defendendo, a 20 de Julho de 1920, aquele seu colega de profissão, ideólogo do movimento filosófico do Integralismo Lusitano, Afonso Lopes Vieira, ante o facto de o caso estar a ser ali julgado, no foro militar, usaria da ironia como argumento do discurso e, dirigindo-se ao presidente do tribunal, Encarnação Ribeiro, disse, a abrir as alegações orais: «Deixe-me V. Ex.ª dizer-lhe isto: eu e o meu constituinte temos gosto em que esta causa tenha sido trazida aqui... por um motivo estético, decorativo, pois este tribunal é muito mais artístico que o da Boa Hora».

De facto, o Palácio do Lavradio, onde a partir de 1875 se instalaria a justiça castrense, ladeando o Palácio de Sinel de Cordes, quando comparado com o convento da Boa Hora, que antes havia sido o Pátio das Comédias, suplanta-o sem discussão. Esteticamente, diga-se.

Constitucionalidade e geometria variável

É interessante ver o Tribunal Constitucional decidir através de fórmulas como «Não julga inconstitucional a interpretação extraída dos artigos 1.º, n.º 2, e 17.º-A, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, que aprova o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na sua versão anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, no sentido de que apenas se admite [... etc] isto quando reiteradas vezes os recorrentes viram os seus recursos liminarmente rechaçados porque, segundo o mesmo Tribunal, estavam a colocar-lhe questões sobre a constitucionalidade da interpretação de normas jurídicas quando o Tribunal apenas poderia conhecer da constitucionalidade das próprias normas na sua dimensão normativa concreta.
Se não há duas medidas nesta apertada geometria complexa pelo qual o recurso se torna um jogo de equilíbrio de planos que nunca coincidem, não sei o que pense. 
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O aresto citado, a título de exemplo, está aqui.

Bom Ano!

De algum modo na Justiça todos damos o nosso contributo. Precisamos uns dos outros, pelo que ninguém se deve considerar auto-suficiente. Assim não se insista na lógica adversarial, na culpabilização do outro, na desvalorização do que não seja eu, espírito de casta.
A Justiça é horizonte, que se tenta transpor para cada caso, que deve informar quanto se legisla, tudo o que se decide. Assim se tenha a inteligência de aceitar que muitas vezes se erra, mas que errar não seja inevitabilidade que legitime e inconsciência moral, o desinteresse profissional, o preconceito ideológico, o revanchismo social.
Sem compreender a História não se entende como se chegou aqui, nem como poderá vir a configurar-se o futuro que nos espera. Assim se tenha da História uma noção crítica e pedagógica, e não a de mera erudição ou microscópica monografia que do conjunto faça perder a perspectiva.
Sem ter uma ideia cosmopolita do que seja a Justiça dos outros não conseguiremos relativizar os nossos problemas nem achar pistas para a sua solução. Assim se não tenha do Direito Comparado a noção de que serve para perfilar soluções que nos são estrangeiras ou listas de autores como se a melhor ideia fosse a numericamente mais numerosa em apoiantes.
Enfim, aqui estamos em novo dia de trabalho, se bem que, na nebulosa que é a visão do nosso quotidiano, fique a ideia de que a noção de dia útil corresponde, e ainda bem, à de todos os dias, e neles haja que encontrar sempre a hora do lazer e do descanso, sem o que a profissão é burocracia entediante e desumanizadora. 
Bom Ano a todos. Numa diminuta medida está nas nossas mãos. Contribuamos, pois!


P. S. A imagem sou eu aos 25 advogados. Advogada então já há alguns anos e estudava enfim Direito para tentar que outros o estudassem, na Faculdade de Direito em Lisboa. Muito do que mudou não alterou. Felizmente.