Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Revista do Ministério Público, 159


Dirigida por Rui Cardoso, com notável regularidade a Revista do Ministério Público prossegue o seu ritmo de publicação. Está disponível o n.º 169, cujo sumário assim se divulga:

ESTUDOS & REFLEXÕES
9 | Poderes da hierarquia do Ministério Público em matéria penal à luz do novo Estatuto
Euclides Dâmaso Simões  [PDF]
23 | Intervenção hierárquica no processo penal no novo Estatuto do Ministério Público – primeiras notas para a revisitação da questão
Rui Cardoso [PDF]
43 | O novo Estatuto do Ministério Público:
O fim da função de representação do Estado pelo MP (?): Killing me softly with this song… with these (legal) words…
Ricardo Pedro [PDF]
61 | Control, evaluación y cali cación en el modelo portugués del Ministerio Fiscal Igualdad, merito y competencia ¿Por quién, cómo y con qué objetivos se evalúa el desempeño de los magistrados del Ministerio Fiscal Portugués?
José P. Ribeiro de Albuquerque [PDF]
111 | Levamos a sério as penas de substituição? Algumas propostas de iure condendo
André Lamas Leite [PDF]
155 | Sem apelo nem agravo – Sobre o direito ao recurso em matéria de facto em caso de primeira condenação em segunda instância
Helena Morão [PDF]
169 |  Princípio da presunção de vitimização e princípio da presunção de inocência
Um combate de titãs?
Análise do problema à luz dos ordenamentos jurídicos de Portugal e de Macau
Teresa Lancry A. S. Robalo [PDF]
197 | Protecção de dados e big data – Os desafios líquidos do pós-panoptismo
Maria Leonor Teixeira [PDF]

PRÁTICA JUDICIÁRIA

249 | Artigo 188.o, n.o 8, do Código de Processo Penal – confiança dos suportes técnicos de todas as conversações ou comunicações interceptadas e registadas?
Susana Figueiredo [PDF]
267 | Crime de gravações e fotografia as ilícitas:
consentimento presumido e oposição expressa à captação de som e imagem de reunião ordinária de órgão deliberativo autárquico
Pedro do Carmo [PDF]
280 | Resumos : Abstracts [PDF]

Erro judiciário: responsabilidade civil do Estado

O Centro de Investigação de Direito Público do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas publicou no último número da sua revista on line @Pública [n.º 6, Abril de 2019], um artigo sobre a responsabilidade civil do Estado por erro judiciário da autoria de Hugo Aparício, da Universidade Católica..
É este o sumário do artigo em questão: «O presente artigo dedica-se à análise da responsabilidade civil do Estado por erro judiciário e os seus respetivos condicionalismos/pressupostos previstos no artigo 13.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas. Alvo de um exame pormenorizado será o pressuposto processual específico para a efetivação da responsabilidade por erro judiciário previsto no n.º 2 do artigo 13.º, com o intuito de se inteligir o seu mérito e a sua validade face ao ordenamento jurídico português.»
Para o texto integral, clicar aqui.

Assembleia da República: iniciativas

Desde 9 de Novembro e com relevância para a área criminal apenas se registou a apresentação de um projecto de lei, subscrito pelo grupo parlamentar do PSD relativo ao lobbying, matéria sobre a qual o CDS-PP já havia submetido uma iniciativa. Em matéria de propostas de lei até agora nenhuma.

[73/XIV, PSD]: Regulamentação do lobbying [ver a do CDS-PP aqui]

Brasil: execução provisória de sentença


Eis, para que a discussão ganhe rigor jurídico, as notas oficiais do Supremo Tribunal Federal brasileiro sobre o tema da proibição da execução provisória de sentença penal não transitada em julgado. De acordo com dados públicos a mesma beneficia cerca de cinco mil reclusos.


SUMÁRIO


Plenário
Execução provisória da pena e trânsito em julgado
1ª Turma
Cabimento de mandado de segurança contra ato judicial e tempestividade de recurso
Sistema de recolhimento de imposto e princípio da isonomia
Clipping das Sessões Virtuais


PLENÁRIO


DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Execução provisória da pena e trânsito em julgado 

O Plenário iniciou julgamento conjunto de ações declaratórias (ADCs) em que se discute a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal (CPP) (1).

A Procuradoria-Geral da República, em manifestações apresentadas nos autos, requereu, como preliminar, o não conhecimentos das ações. Sustentou a perda do objeto diante do precedente formado no julgamento do ARE 964.246 (Tema 925 da repercussão geral) e a ausência dos pressupostos materiais necessários ao overrruling do aludido precedente.

O ministro Marco Aurélio (relator) julgou procedentes os pedidos formulados nas ações para assentar a constitucionalidade do referido dispositivo legal e, como consequência, determinou a suspensão de execução provisória de pena cuja decisão a encerrá-la ainda não tenha transitado em julgado. Desse modo, determinou a libertação daqueles que tenham sido presos, ante exame de apelação, reservando-se o recolhimento aos casos verdadeiramente enquadráveis no art. 312 do CPP (2). Além disso, julgou procedente o pleito sucessivo, formulado na ADC 43, no sentido de poderem ser implementadas, analogicamente ao previsto no art. 319 do CPP (3), medidas alternativas à custódia quanto a acusado cujo título condenatório não tenha alcançado a preclusão maior.

Os ministros Rosa Weber e Ricardo Lewandowski acompanharam o relator.

O ministro Marco Aurélio afirmou que as ADCs 43, 44 e 54 versam o reconhecimento da constitucionalidade do art. 283 do CPP, no que condiciona o início do cumprimento da pena ao trânsito em julgado do título condenatório, tendo em vista o figurino do art. 5º, LVII, da Constituição Federal (CF) (4).

Assim, de acordo com o referido preceito constitucional, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. A literalidade do preceito não deixa margem a dúvidas: a culpa é pressuposto da sanção, e a constatação ocorre apenas com a preclusão maior.

O dispositivo não abre campo a controvérsias semânticas. A CF consagrou a excepcionalidade da custódia no sistema penal brasileiro, sobretudo no tocante à supressão da liberdade anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória. A regra é apurar para, em virtude de título judicial condenatório precluso na via da recorribilidade, prender, em execução da pena, que não admite a forma provisória.

A exceção corre à conta de situações individualizadas nas quais se possa concluir pela aplicação do art. 312 do CPP e, portanto, pelo cabimento da prisão preventiva.

O abandono do sentido unívoco do texto constitucional gera perplexidades, observada a situação veiculada: pretende-se a declaração de constitucionalidade de preceito que reproduz o texto da CF.

Ao editar o dispositivo em jogo, o Poder Legislativo, por meio da Lei 12.403/2011, limitou-se a concretizar, no campo do processo, garantia explícita da CF, adequando-se à óptica então assentada pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do HC 84.078, julgado em 5 de fevereiro de 2009, segundo a qual “a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar”.

Também não merece prosperar a distinção entre as situações de inocência e não culpa. A execução da pena fixada por meio da sentença condenatória pressupõe a configuração do crime, ou seja, a verificação da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Assim, o implemento da sanção não deve ocorrer enquanto não assentada a prática do delito. Raciocínio em sentido contrário implica negar os avanços do constitucionalismo próprio ao Estado Democrático de Direito.

O princípio da não culpabilidade é garantia vinculada, pela CF, à preclusão, de modo que a constitucionalidade do art. 283 do CPP não comporta questionamentos. O preceito consiste em reprodução de cláusula pétrea cujo núcleo essencial nem mesmo o poder constituinte derivado está autorizado a restringir.

A determinação constitucional não surge desprovida de fundamento. Coloca-se o trânsito em julgado como marco seguro para a severa limitação da liberdade, ante a possibilidade de reversão ou atenuação da condenação nas instâncias superiores.

Em cenário de profundo desrespeito ao princípio da não culpabilidade, sobretudo quando autorizada normativamente a prisão cautelar, não cabe antecipar, com contornos definitivos – execução da pena –, a supressão da liberdade. Deve-se buscar a solução consagrada pelo legislador nos arts. 312 e 319 do CPP, em consonância com a CF e ante outra garantia maior – a do inciso LXVI do art. 5º: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.

Uma vez realinhada a sistemática da prisão à literalidade do art. 5º, LVII, da CF – no que direciona a apurar para, em virtude de título judicial condenatório precluso na via da recorribilidade, prender, em execução da pena –, surge inviável, no plano da lógica, acolher o requerimento formalizado, em caráter sucessivo, nas ADCs 43 e 54, concernente ao condicionamento da execução provisória da pena ao julgamento do recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), como se esse tribunal fosse um “Supremo Tribunal de Justiça”, nivelado ao verdadeiro e único Supremo.

A ministra Rosa Weber esclareceu que, diante do indeferimento das medidas cautelares nessas ações declaratórias e da tese fixada em repercussão geral segundo a qual a execução antecipada da pena não compromete a presunção de inocência, adotou, em momento anterior, o entendimento majoritário da Corte. Entendimento este mantido em processo de feição subjetiva, como no caso de habeas corpus. Porém, ao se julgar o mérito das ADCs, processo de índole objetiva, explicou estar apta a reapreciar o tema de fundo.

Asseverou que o 5º, LVII, da CF, além de princípio, representa também regra específica e expressamente veiculada pelo constituinte – a fixar, objetivamente, o trânsito julgado como termo final da presunção de inocência, o momento em que passa a ser possível impor ao acusado os efeitos da atribuição da culpa.

Para a ministra, o texto do art. 283 do CPP guarda higidez frente à ordem objetiva de princípios, valores e regras inscritos na Carta constitucional de 1988.

A Constituição de 1988 não assegura uma presunção de inocência meramente principiológica. Ainda que não o esgote, ela delimita o âmbito semântico do conceito legal de culpa, para fins de condenação criminal, na ordem jurídica por ela estabelecida. E o faz ao afirmar categoricamente que a culpa supõe o trânsito em julgado.

Considerada a conformação específica dada pela Constituição brasileira ao princípio da presunção de inocência – qual seja, a de assegurá-la até o trânsito em julgado ou a irrecorribilidade do título condenatório –, não se justifica qualquer tentativa de assimilação da ordem jurídica pátria a razões de direito comparado em relação a ordenamentos jurídicos que, por mais merecedores de admiração que sejam, não contemplam figura normativa-constitucional análoga.

De outra parte, ainda que se pretendesse relativizar a densidade normativa do art. 5º, LVII, da CF, despindo-o da sua literalidade, não seria possível identificar, no art. 283 do CPP, qualquer ofensa a este ou a qualquer outro preceito constitucional.

Em face de ato normativo editado pelo Poder Legislativo com exegese plenamente compatível com o parâmetro constitucional de controle, a tônica do exame de constitucionalidade deve ser a deferência da jurisdição constitucional à interpretação empreendida pelo ente legislativo.

Não cabe ao Poder Judiciário, no exercício do controle jurisdicional da exegese conferida pelo Legislador a uma garantia constitucional, simplesmente substituí-la pela sua própria interpretação da Constituição.

O direito processual penal tem como norte a maior das garantias constitucionais, que é a observância, na tutela constitucional da liberdade, do devido processo legal. A Constituição assegura, expressamente, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Uma vez adotado, pelo legislador infraconstitucional, marco normativo que, longe de a ela se contrapor, visa assegurar a máxima efetividade da garantia constitucional da presunção de inocência e guarda absoluta consonância com a Lei Fundamental, não pode o intérprete da norma constitucional ceifar-lhe o potencial humanizador.

Embora fortes razões de índole social, ética e cultural amparem seriamente a necessidade de que sejam buscados desenhos institucionais e mecanismos jurídico-processuais cada vez mais aptos a responder, com eficiência, à exigência civilizatória que é o debelamento da impunidade, não há como, do ponto de vista normativo-constitucional vigente – cuja observância irrestrita também traduz em si mesma uma exigência civilizatória –, afastar a higidez de preceito que institui garantia, em favor do direito de defesa e da garantia da presunção de inocência, plenamente assimilável ao texto magno.

O ministro Ricardo Lewandowski pontuou que a presunção de inocência integra a cláusula pétrea alusiva aos direitos e garantias individuais que representa a mais importante das salvaguardas do cidadão.

Segundo o ministro, é vedado, até mesmo aos deputados e senadores, ainda que no exercício do poder constituinte derivado do qual são investidos, extinguir ou minimizar a presunção de inocência, plasmada na Constituição de 1988, porquanto foi concebida como um antídoto contra a volta de regimes ditatoriais. Com maior razão não é dado aos juízes fazê-lo por meio da estreita via da interpretação, eis que esbarrariam nos intransponíveis obstáculos das cláusulas pétreas, verdadeiros pilares das instituições democráticas.

Pontuou que não se mostra possível superar a taxatividade do inciso LVII do art. 5° da CF, salvo em situações de cautelaridade, por tratar-se de comando constitucional absolutamente imperativo, categórico, com relação ao qual não cabe qualquer tergiversação. Ademais, o texto do dispositivo constitucional, além de ser claríssimo, jamais poderia ser objeto de uma inflexão jurisprudencial para interpretá-lo in malam partem, ou seja, em prejuízo dos acusados em geral.

Por fim, não custa recordar que o art. 30 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, elaborada sob os auspícios da Organização das Nações Unidas e subscrita pelo Brasil, de observância obrigatória por todos os Estados que a assinaram, consagrou o princípio da proibição do retrocesso em matéria de direitos e garantias fundamentais, plenamente aplicável à espécie.

Em divergência, os ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso e Luiz Fux julgaram parcialmente procedentes os pedidos formulados nas ações declaratórias, para dar interpretação conforme a Constituição Federal ao art. 283 do CPP. Admitiram a execução da pena após decisão em segundo grau de jurisdição, ainda que sujeita a recurso especial ou extraordinário.

O ministro Alexandre de Moraes, inicialmente, enfatizou que os mecanismos da jurisdição constitucional brasileira de garantia dos precedentes e de garantia da segurança jurídica não se aplicam à espécie. Há a previsão de impossibilidade de novo julgamento, de nova ação direta, ou de nova ADPF em relação à mesma lei, assim como a impossibilidade de ações rescisórias dos julgamentos de controle concentrado. A hipótese dos autos não trata de nenhum desses casos. É a primeira vez que o Plenário do STF analisa a matéria em sede de controle abstrato. A questão preliminar levantada pela PGR se confunde com o próprio mérito das ações.

Na sequência, esclareceu que, nos 31 anos de vigência da CF, o posicionamento no sentido da possibilidade da execução do acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação foi majoritário por 24 anos, inclusive com a edição dos Enunciados 716 (5) e 717 (6) da Súmula do STF. A exigência de trânsito em julgado prevaleceu de 2009 a 2016. Após esse período, retornou-se ao entendimento anterior.

Segundo o ministro, é possível o cumprimento da pena depois da condenação em segundo grau, ainda que sujeita a recurso especial ou extraordinário, que não possuem efeito suspensivo. Isso não desrespeita ou compromete o princípio da presunção de inocência. O Estado deve comprovar a culpabilidade do indivíduo, constitucionalmente presumido inocente. O princípio limita a atividade legislativa, é critério condicionador das interpretações das normas vigentes e de tratamento extraprocessual em todos os aspectos e implica na obrigatoriedade de o ônus da prova ser sempre do acusador.

A condicionante constitucional ao trânsito em julgado – previsão expressa no art. 5º, LVII – demanda a análise de sua razão de existência, finalidade e extensão, para que seja viável, no exercício da interpretação constitucional, realizar a delimitação de seu âmbito normativo em face dos demais princípios constitucionais penais e processuais penais, em especial os da efetividade da tutela judicial, do juízo natural, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. A interligação e a complementaridade entre todos eles, no exercício da persecução penal, são ínsitas ao Estado Democrático de Direito. A interpretação constitucional deverá superar aparentes contradições entre os citados princípios, mediante a adequação proporcional do âmbito de alcance de cada um deles, de maneira harmônica e que prestigie o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido pelo legislador, para fins de persecução penal e atividade do Estado. Esse esquema garante aos juízes e tribunais de segundo grau competência para analisar o conjunto probatório e decidir o mérito das ações penais.

A primeira e a segunda instância são escalonamentos em todos os ramos especializados ou na Justiça comum de cognição plena, de conhecimento de toda a produção probatória. Correspondem ao juízo natural para o exame da culpabilidade ou não do acusado. Logo, não se pode afastar a efetividade da tutela judicial dada por eles, juízes naturais da causa penal de cognição plena.

Ademais, não se pode inverter a lógica do sistema, de maneira a transformar os tribunais de segundo grau em tribunais de passagem e Cortes que não tem competência constitucional para a plena análise do mérito em instâncias finais de julgamentos penais. Eventuais nulidades, questões constitucionais ou de interpretação de lei federal, são a exceção, senão o legislador constituinte teria proporcionado a análise plena do mérito pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou pelo STF. No caso de eventuais exceções, sempre haverá a possibilidade de concessão de habeas corpus e de tutelas cautelares para o recurso especial ou extraordinário. Há mecanismos estabelecidos pelo sistema constitucional.

A decisão de segundo grau é colegiada, do juízo natural, escrita, fundamentada. Reconhece a materialidade e a autoria de modo muito mais amplo do que a decisão de primeiro grau de prisão temporária ou preventiva. Ignorar a possibilidade de execução do ato decisório dado perante o juízo natural de mérito do Poder Judiciário, com a observância do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório e o absoluto respeito às exigências básicas decorrentes do princípio da presunção de inocência, é enfraquecer as instâncias ordinárias do Poder.

O juízo de consistência do órgão colegiado afasta, no tocante à possibilidade de prisão, a presunção de inocência e autoriza a execução da pena. Portanto, as exigências decorrentes da previsão constitucional do princípio da presunção de inocência não são desrespeitadas, desde que a decisão condenatória de segundo grau observe todos os princípios constitucionais interligados. Ou seja, o juízo de culpabilidade do acusado deve ser firmado com absoluta independência pelo juízo natural, com valoração de provas obtidas mediante o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. Em dupla instância ou em instância colegiada na situação de foro por prerrogativa, mediante decisão devidamente motivada com o consequente esgotamento legal da possibilidade recursal de cognição plena e da análise fática probatória e jurídica integral, em respeito ao princípio da tutela penal efetiva.

Outrossim, nem a Convenção Americana de Direitos Humanos, nem a Convenção Europeia dos Direitos do Homem condicionam o cumprimento da pena ao trânsito em julgado. Ambas determinam que a culpabilidade do acusado tenha sido comprovada pelos tribunais competentes, respeitados os demais princípios. Não há exigência normativa a coibir essa interpretação.

O ministro Roberto Barroso assinalou que, no caso em julgamento, não se trata de atribuir sentidos a textos normativos de significado único e unívoco. Fins sociais e bem comum são parâmetros que devem reger a atividade interpretativa. Há mais de um sentido possível da norma. A ideia de que há uma única exegese possível não tem amparo na CF.

Segundo o ministro, com a mudança de jurisprudência em 2009, os impactos dramaticamente negativos ao Direito brasileiro foram: o poderoso incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios; o reforço à seletividade do sistema, pois a defensoria não litiga dessa forma e as pessoas pobres não têm recursos financeiros para pagar recursos judiciais indefinidamente; e o mais absoluto descrédito trazido ao sistema de justiça junto à sociedade pela demora na punição e frequentes prescrições, a gerar uma realidade de impunidade.

Com a possibilidade de execução da pena depois da condenação em segundo grau, o índice de encarceramento no Brasil diminuiu consoante dados oficiais. Inclusive o percentual médio de prisões provisórias caiu. A população carcerária aumentou em sua menor proporção histórica desde que o STF retomou sua jurisprudência tradicional. Igualmente, a jurisprudência impulsionou a solução de crimes de colarinho branco e incentivou a colaboração premiada pela probabilidade ou possibilidade real da punição.

A seu ver, o requisito para se decretar prisão no Direito brasileiro não é o trânsito em julgado, é a ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. A regra que a CF quis estabelecer é a da reserva de jurisdição. Apenas o magistrado pode mandar prender. Tanto assim é que o sistema admite prisões processuais, preventiva e temporária, para fins de extradição, expulsão e deportação, todas sem exigir trânsito em julgado. Muitas sem a exigência até mesmo de decisão de primeiro grau. Parte do problema das prisões provisórias é a ineficiência do sistema, que é agravada pela impossibilidade de execução da pena depois do segundo grau.

A presunção de não culpabilidade ou de inocência é princípio constitucional. Se fosse regra, não seria possível prender provisoriamente. Regras são comandos definitivos: ou se cumprem ou se descumprem. Princípios são fins públicos, estados ideais, que são cumpridos na maior medida possível. Logo, é um princípio que é ponderado com outros valores constitucionais. Além da presunção da inocência, há o interesse da sociedade na persecução penal e num sistema minimamente efetivo. Sistema que existe para proteger direitos fundamentais de todos: a vida, a integridade física, a liberdade, a propriedade, a probidade das pessoas de maneira geral. Há direitos fundamentais dos acusados e de outras pessoas.

Entre teses alternativas razoáveis, se uma acelera a tramitação do processo e a outra retarda indefinidamente, há vetor constitucional a apontar a direção. Ademais, após a condenação em segundo grau, já não há mais dúvida sobre autoria e materialidade. Não é possível produzir provas depois. Se não há mais dúvida, é mandamento de ordem pública que se dê cumprimento à decisão.

Como fundamento infraconstitucional para a prisão, há a garantia da ordem pública. Demais disso, se o dispositivo questionado não impede a prisão nem antes da sentença de primeiro grau, não há motivo para proibi-la depois de assentada a culpa por decisão de segundo grau. Conciliado com a inexistência de efeito suspensivo, disposta no art. 637 do CPP, pode-se naturalmente executar a decisão.

O ministro Roberto Barroso afirmou que não há sentido em se protelar o processo por muitos anos em face de uma porcentagem ínfima de reforma no STJ e no STF. O Brasil vive uma epidemia de violência e de corrupção. Num mundo globalizado, nenhum país pode ser uma ilha, menos ainda de impunidade. As sociedades capitalistas vivem da segurança jurídica, da confiança nas instituições e nos atores públicos e privados.

O ministro Luiz Fux asseverou que a presunção de inocência admite prova em contrário. A presunção é mitigada à medida que o processo tramita. Há uma gradação. Os tribunais superiores não admitem reexame de fatos e provas.

Para o ministro, há várias mitigações à energia que se quer emprestar ao trânsito em julgado. A Lei da Ficha Limpa, por exemplo, considera inelegíveis os condenados por diversos crimes graves a partir do julgamento do tribunal, independentemente do trânsito em julgado. A norma foi declarada constitucional pelo STF.

A presunção de não culpabilidade não impede que, mesmo antes do trânsito em julgado, a condenação criminal surta efeitos severos. A concepção da possibilidade de execução da condenação após segunda instância e antes do trânsito em julgado é contemplada em vários instrumentos internacionais a que o Brasil se submete.

Existem diversos recursos para eventualmente remediar o índice diminuto de erros judiciários, de supostos vícios das condenações. A execução depois da segunda instância é legítima. O STF analisará questões constitucionais e o STJ infraconstitucionais, e não autoria e materialidade.

A seu ver, há contradictio in terminis em se afirmar que a execução somente pode ser iniciada após o trânsito em julgado em face da presunção de inocência e, ao mesmo tempo, que pode haver prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão provisória, que se permite a progressão de regime antes do trânsito em julgado nos termos dos Enunciados 716 e 717 do STF.

Ademais, para a criação da cultura de precedentes, é preciso introjetar as ideias que norteiam os precedentes judiciais. O precedente evita erro judiciário, favorece a autocomposição e a previsibilidade. O entendimento que admite a execução antes do trânsito em julgado é salutar e evita a impunidade. No ponto, o ministro concluiu que o STF não está legitimado a promover a alteração da jurisprudência, à míngua da existência de razões suficientemente robustas para tanto. Uma viragem jurisprudencial a essa altura trará danos incomensuráveis ao país e à sociedade brasileira.

Por seu turno, o ministro Edson Fachin julgou os pedidos improcedentes. Enfatizou que o direito previsto no inciso LVII do art. 5º assegura a todos os acusados a prerrogativa de não produzir provas contra si mesmo, impõe à acusação o ônus de provar a denúncia e convencer o magistrado para além da dúvida razoável da procedência da imputação. A presunção de inocência transforma o acusado em sujeito processual e lhe garante uma série de direitos.

Observou que o cerne do argumento dos requerentes é o de que a culpabilidade seria um juízo de valoração sobre o injusto penal, uma das categorias elementares do conceito analítico de crime. Logo, para eles, haveria um sentido material mais amplo que o tratamento processual do acusado.

Segundo o ministro, essa interpretação é contrária à CF. Não faz sentido exigir-se a extensão da atividade persecutória do Estado também aos tribunais superiores, mesmo após o julgamento condenatório proferido em grau de apelação, uma vez que não há efeito suspensivo nos recursos extraordinário e especial e, de modo mais relevante, é limitado o efeito devolutivo desses recursos.

A inexistência de efeito suspensivo não decorre de texto expresso de lei, embora texto exista, mas do próprio cabimento dos recursos. Do ponto de vista da dogmática constitucional, a razão desta compreensão é que a CF estipula as hipóteses de admissibilidade do recurso extraordinário (art. 102, III) e do recurso especial (art. 105, III). O reexame das provas é vedado, não com fundamento em súmula, mas porque os recursos se destinam exclusivamente a examinar questão de direito. A CF prevê limitado âmbito de análise para os mencionados recursos, o que impossibilita o reconhecimento de efeito suspensivo automático.

A seu ver, não há sistema jurídico que sobreviva a uma presunção geral de inconstitucionalidade. Presumir efeito automático suspensivo desses dois recursos é presumir, por definição, que todas as regras aplicadas pelos juízes são, por exemplo, inconstitucionais ou contrárias à lei federal. Em última análise, a inexistência de efeito suspensivo automático decorre do alto valor simbólico que a declaração de inconstitucionalidade ou invalidade de lei representa no ordenamento.

Sustentar que toda e qualquer prisão somente pode ter o cumprimento iniciado quando o último recurso tenha sido examinado é inviável. Ainda que o texto constitucional brasileiro seja único na experiência comparada, a eficácia do ato legislativo não pode se subordinar à apreciação conclusiva da Corte mais alta de um país. As garantias que se amoldam à presunção de inocência estão plenamente vigentes e perduram até o trânsito em julgado. Entretanto, a presunção de inocência não afasta a presunção da constitucionalidade nem a vigência das leis.

Tampouco o legislador pode retirar a presunção de constitucionalidade e de vigência das leis, que fundamentam o juízo condenatório, sob pena de usurpação da competência constitucional dos tribunais superiores e de ofensa à supremacia da lei. A literalidade do dispositivo adversado cede a sua manifesta inconstitucionalidade.

Portanto, a interpretação que dá eficácia à sentença condenatória tão logo confirmada em segundo grau de jurisdição, salvo atribuição expressa de efeito suspensivo ao recurso cabível, é consentânea com a razão constitucional da própria existência dos recursos às instâncias extraordinária e especial.

Em seguida, o julgamento foi suspenso.

(1) CPP: “Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
(2) CPP: “Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.”
(3) CPP: “Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; IX – monitoração eletrônica.”
(4) CF: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”
(5) Enunciados 716 da Súmula do STF: “Admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.”
(6) Enunciados 717 da Súmula do STF: “Não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial.”

ADC 43/DF, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 23 e 24.10.2019. (ADC-43)
ADC 44/DF, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 23 e 24.10.2019. (ADC-44)
ADC 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 23 e 24.10.2019. (ADC-54)

Branqueamento de capitais e actos próprios de advogados

«Começo com uma pergunta: o título deste texto sugere que, circunscrevendo-se o advogado à prática de actos próprios da profissão, tal como a lei os define, estará defendido da suspeita de poder actuar no quadro de situações de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo e, como tal, protegido pelo, assim intransponível, segredo profissional? A resposta terá de ser sim, se, tendo em conta o âmbito material daquela legislação, atentarmos no que está definido na lei como sendo os actos próprios, afinal exclusivos, dos advogados, tal como os enunciam os artigos 5º e 6º da Lei 49/2004, de 24 de Agosto, que nos permitimos citar:

«5 - Sem prejuízo do disposto nas leis de processo, são actos próprios dos advogados e dos solicitadores:

a) O exercício do mandato forense;

b) A consulta jurídica.

«6 - São ainda actos próprios dos advogados e dos solicitadores os seguintes:

a) A elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais;

b) A negociação tendente à cobrança de créditos;

c) O exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários.»

Mas o que o título desta minha intervenção tenta também sugerir é uma breve reflexão sobre duas dinâmicas que a contemporaneidade tem trazido ao tema: a evolução da profissão de advogado e a evolução da legislação europeia de combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, as quais se encontram em fase de colisão, com desvalor da posição dos advogados.

Vejamos a primeira dessas dinâmicas, atinente à advocacia.

No que se refere às pessoas e entidades que actuam na advocacia, esta é actualmente uma realidade plural e se há necessidades que se colocam como prioritárias a quem venha a vencer eleições, e assumir, assim, responsabilidades a nível do executivo da Ordem, uma delas é a de efectivar um inquérito que permita saber quem somos, afinal, pois o último inquérito feito à classe data dos anos 60 do século vinte; de outro modo há o risco de os discursos sobre a advocacia serem só sobre uma certa advocacia ou, ao limite, sobre nenhuma advocacia concreta.

Assim, por um lado, a advocacia tornou-se uma indústria de prestação de serviços, estruturada em forma societária, com filosofia empresarial capitalista, colhendo os seus réditos pelo critério da aferição horária [o time sheetI] e sujeita, como qualquer empresa, ao rating do chamado PPP [profit per partner, lucro por sócio] ou, num segundo critério de avaliação da rentabilidade da mão de obra ao PPL [profit per lawyer, lucro por advogado].

Que este modelo organizacional tenha futuro, que ele corresponda ao mais adequado para as necessidades dos clientes ou dos advogados não sócios que integram o sistema, que ela garanta de modo eficaz a tutela do segredo profissional, tudo isso está em discussão, mas não integra o tema desta minha comunicação, sendo que a realidade a que assistimos é a da sua transformação qualitativa no sentido da concentração das grandes sociedades, à custa da fusão de outras sociedades de menor dimensão.

E neste aspecto, diga-se de passagem, as exigências da legislação sobre a prevenção do branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo e bem assim a outra sobre protecção de dados, com tudo quanto reclama de meios organizacionais e humanos, e custos, para uma conformidade na matéria, ajudam à concentração, porquanto, ao limite, só os grandes escritórios estão apetrechados com os meios humanos e tecnológicos para cumprir as determinações normativas correspondentes. Trata-se de uma transposição para esta nossa profissão do que se está a passar com o sistema bancário e das entidades financeiras.

Por outro lado, existe, e com larguíssima expressão, uma advocacia de base individual ou organizada em pequenas unidades, por vezes societárias, outras vezes de mera partilha de encargos, aquilo a que, retomando um termo do mercado de venda a retalho, se denominam as boutiques de advocacia. Num país como o nosso são uma realidade numericamente expressiva e não apenas fora de Lisboa e Porto.

Para estes escritórios, muitos vivendo no limiar da sobrevivência, as exigências de compliance do determinado a nível de prevenção do branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo, por um lado, e da protecção de dados, por outro, implica despesas para as quais não têm meios financeiros suficientes, nem capacidade de os repercutir, como custos, nos honorários que praticam.

Mas não é só na dimensão da forma de exercício da profissão que se tem assistido a uma evolução da advocacia: é também o que se passa quanto ao domínio material das realidades da vida sobre a qual ela incide.

Tempo vai em que a actuação forense era a matriz caraterística e definidora da advocacia, em que a “alma da toga” qualificava o ser-se advogados, e tempo vai em que tudo quanto fosse trabalho com natureza jurídica só poderia ser efectuado por advogados ou, numa outra vertente, por solicitadores.

Aquilo a que assistimos é ao assenhoreamento pelas consultoras e outras entidades similares, das tarefas ainda há pouco desempenhadas por advogados.

Trata-se, aliás, de uma tendência internacional, não sendo por acaso que a projecção das mesmas em Portugal tem como ponta de lança sociedades que à sua natureza como consultoras juntam também – em lógica amiúde de conflito de interesses – a função de auditoras.

A somar a esta evolução acresce a legislação europeia sobre a concorrência, a qual começa a enfrentar – e em breve a destruir – o núcleo protector dos denominados actos próprios e como tal específicos e assim privativos de advogados, circunscrevendo-o a limites mínimos que, não sendo os da advocacia forense, não ultrapassam em muito esse apertado sector, tudo em nome de uma política do que se entende serem práticas restritivas da concorrência.

Sendo este o panorama na advocacia, vejamos agora, sempre de modo esquemático, o que se passa em matéria de legislação visando a prevenção do branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo.

A primeira tendência que descortinamos é a exasperação legislativa, quer em termos de quantidade de normativos, quer de exigências colocadas ao mercado.

A segunda, tem a ver com o foco nos advogados que se assumiu nos últimos anos com incidência a partir de 2005.

Data desse ano a Directiva europeia que, abrangendo os notários e os membros de outras profissões jurídicas independentes, incluiu os advogados no âmbito dos obrigados ao cumprimento das normas legais vigentes na matéria, com exclusão da consultoria jurídica, nisso abrangendo «as informações obtidas antes, durante ou após um processo judicial ou aquando da apreciação da situação jurídica do cliente».

Eis o que decorre do ponto 20 do referido instrumento normativo:

«Enquanto membros independentes de profissões que prestam consulta jurídica legalmente reconhecidas e controladas, tais como os advogados, estiverem a determinar a situação jurídica de clientes ou a representá-los em juízo, não seria adequado impor-lhes, ao abrigo da presente directiva, a obrigação de comunicarem, em relação a essas actividades, suspeitas relativas a operações de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo. Devem estar isentas de qualquer obrigação de comunicação as informações obtidas antes, durante ou após um processo judicial ou aquando da apreciação da situação jurídica do cliente. Por conseguinte, a consultoria jurídica continua a estar sujeita à obrigação de segredo profissional, salvo se o consultor jurídico participar em actividades de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, se prestar consulta jurídica para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo ou se o advogado estiver ciente de que o cliente solicita os seus serviços para esses efeitos.»

Mas mais, a evidenciar que o território da advocacia era foco e tema privilegiado de acção no domínio da prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, já nessa Directiva se previa um acompanhamento do que se passasse no sector, como decorre do artigo 42º da mesma:

«Até 15 de Dezembro de 2009 e, posteriormente, pelo menos de três em três anos, a Comissão deve elaborar um relatório sobre a execução da presente directiva e apresentá-lo ao Parlamento Europeu e ao Conselho. No primeiro destes relatórios, a Comissão deve incluir um exame específico do tratamento dado aos advogados e outros membros de profissões jurídicas independentes.»

Claramente a tónica dessa legislação europeia tem vindo progressivamente a assentar no carácter meramente relativo do segredo profissional de advogado enquanto instrumento de tutela dos valores de ordem pública que são inerentes à profissão e garantia, assim, do Estado de Direito, com salvaguarda, apesar disso, da zona da consultoria jurídico naquele sentido amplo que se referiu.

Os tempos são, pois, de agravamento da situação dos advogados.

Se olharmos para as Directivas que em 2017 foram transpostas para lei em Portugal sobre branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, e concretamente, se cotejarmos a referida Lei, verificamos que, se é verdade que o segredo profissional dos advogados está previsto no preâmbulo da mesma, a verdade é que nos normativos da mesma vinga a quase ausência de previsão que o torne limite às exigências de compliance, antes muitas delas estão delineadas como se tal segredo dos advogados não existisse sequer.

Veja-se, porquanto elucidativo, o artigo 56º dessa Lei n.º 83/2017, que efectuou a transposição das penúltimas Directivas comunitárias:

«1 - As entidades obrigadas [no caso também os advogados] disponibilizam todas as informações, todos os documentos e os demais elementos necessários ao integral cumprimento dos deveres enumerados nos artigos 43.º, 45.º, 47.º e 53.º [afinal os deveres essenciais na matéria], ainda que sujeitos a qualquer dever de segredo, imposto por via legislativa, regulamentar ou contratual.

«2 - A disponibilização de boa-fé, pelas entidades obrigadas, das informações, dos documentos e dos demais elementos referidos no número anterior não constitui violação de qualquer dever de segredo imposto por via legislativa, regulamentar ou contratual, nem implica responsabilidade de qualquer tipo, mesmo quando se verifique um desconhecimento da concreta atividade criminosa ou esta não tenha efetivamente ocorrido.»

Ante isto, permitam-nos que se deixe desde já claro que, quanto consta do texto em discussão pública do projecto de Regulamento da Ordem dos Advogados sobre branqueamento de capitais naquilo que se refere à possível tutela do segredo profissional dos advogados, resulta de uma capacidade compreensiva por parte do DCIAP – entidade incumbida por lei de garantir a tutela na matéria – compreensão que decorreu da percepção que, em contacto com a nossa Ordem, tiveram de que não poderia prevalecer uma interpretação legislativa que se baseava na mera hermenêutica da letra da lei sem valorar na devida forma, o segredo dos advogados.

E assim, permito-me fazer notar os relevantes momentos nesse projecto de Regulamento em que, precisamente em resultado desse diálogo construtivo, se prevêm pelo menos duas normas regulamentares, gizadas face a uma interpretação teleológica das Directivas comunitárias, segundo as quais ocorre:

-» uma clara definição dos actos que não exigem o cumprimento dos deveres legalmente previstos em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, concretamente:

«a) Actos de consulta jurídica ou de emissão de pareceres;

«b) Actos de patrocínio forense e de representação judiciária, independentemente da jurisdição onde se pratiquem ou devam ser praticados os atos processuais, incluindo em comissões ou tribunais arbitrais;

«c) Informação obtida do cliente ou de terceiro visando a práticas dos atos referidos nas alíneas antecedentes, antes, durante ou após a intervenção em processo mediante representação judiciária ou patrocínio forense.»

-» a previsão expressa de que o Bastonário, sujeito a deveres de confidencialidade, se responsabiliza pela concordância prática entre o dever de comunicação pelos advogados e o dever de segredo profissional, responsabilização essa que exonera os advogados que hajam efetuado a comunicação devida nos termos legais;

Tal interpretação teleológica, que não derrogatória, estriba-se no previsto nos considerandos (9) e (39) da Diretiva (UE) n.º 2015/849, onde consta:

«A consultoria jurídica deverá continuar a estar sujeita à obrigação de segredo profissional, salvo se o membro de profissão jurídica independente participar em atividades de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, se prestar consulta jurídica para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo ou se o membro de profissão jurídica independente estiver ciente de que o cliente solicita os seus serviços para esses efeitos»; «Em conformidade com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, um sistema de notificação em primeira instância a um organismo de autorregulação constitui uma salvaguarda importante de proteção dos direitos fundamentais no que diz respeito às obrigações de comunicação aplicáveis aos Advogados. Os Estados membros deverão providenciar os meios e a forma de garantir a proteção do segredo profissional, da confidencialidade e da privacidade».

Facto é, porém, ser patente que a legislação europeia sobre a prevenção do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo visa directamente sectores em que estão em causa actos que podem ser praticados por advogados que não sejam os que integram aquele núcleo acima referido dos actos próprios, seja privativos da advocacia.

Ora nesta vertente os advogados se não são postos em causa enquanto profissão, acabam por sê-lo no que se refere aos actos que [ainda] são considerados da profissão porque dela não excluídos.

Assim, não protegidos directamente no que à garantia do segredo respeita, e visados indirectamente pelos actos sobre as quais a lei incide, e que podem também ser por si praticados, os advogados encontram-se actualmente num contexto difícil no qual toda a protecção que possam encontrar por parte da sua Ordem é de maximizar.

É que, chegados a este ponto, e sendo realistas, a manter-se esta tendência, os próximos anos vão trazer ao segredo profissional dos advogados o mesmo declínio a que se assiste no que ao segredo bancário respeita e digamos, dos segredos em geral.

Nesta dimensão, atentemos no que se passa em matéria de fomento à delação mesmo em detrimento de obrigações contratuais de sigilo nomeadamente pelas regras de non disclosure de informações que possam ser considerados segredos de negócio ou segredos de indústria.

Ora é aqui que me permiti inserir o tema de reflexão que o título sugere.

De todo o exposto, creio ser perceptível estarmos a assistir a um cruzamento contraditório de situações:

-» por um lado, a uma redução dos actos próprios de advogados, abrindo a porta à concorrência quanto a eles, por profissionais que não exercem advocacia, pelo que a razão da aplicação da legislação sobre branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo encontra neste alargamento subjectivo uma fonte acrescida de legitimação: não se trata já de proteger advogados e apenas advogados mas sim enfrentar actos que podem, não necessariamente, ser actos de advogados;

-» por outro, uma desconsideração ostensiva da valia do segredo profissional no quadro da desconsideração dos segredos em geral.

A ser tudo isto assim que se espera da Ordem dos Advogados, eis a questão?

Primeiro, que potenciando tudo quanto sejam iniciativas legislativas, crie uma zona de defeso dos interesses legítimos dos advogados, concretamente quanto ao livre exercício da profissão no quadro de uma livre concorrência, de modo a salvaguardar os actos para os quais se exija mais do que preparação técnica, habilitação certificada e disciplina deontológica.

Segundo que, a nível deontológico, leve a cabo uma prática não complacente com atentados aos interesses dos cidadãos e aos interesses de ordem pública que se encontram confiados a advogados, devolvendo à classe o prestígio e a probidade que retire pretexto a intromissões externas que vêm estribadas sob razão de suspeita sobre a advocacia em geral a partir de condutas de alguns advogados em particular.

Terceiro, que não ceda, agora especificamente em sede de prevenção de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, quanto a ser, não apenas a entidade interlocutora entre o DCIAP e os advogados, como a entidade que efectua, em exclusivo, a compatibilização do dever legal de informação pelos advogados quanto a casos em que ocorra fundada suspeita daqueles crimes com o dever, também ele legal, de sigilo profissional.»

* imagem: lavadeiras de Caneças

Conferência no STJ: 21 de Novembro

A Conferência Direitos Fundamentais no Processo Penal, que tem lugar a 21 de novembro, quinta-feira, na Academia das Ciências de Lisboa, insere-se no âmbito dos Colóquios do Supremo Tribunal de Justiça, e com inscrições abertas até 14 de novembro através de email coloquio.penal@stj.pt.

A parte da manhã será dedicada à Valoração da Prova e Fundamentação da Sentença e a parte da tarde divide-se em duas sessões, A relevância do comportamento do arguido e a problemática da colaboração premiada e o Direito da União Europeia: as implicações do princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais.

Concorrência e acesso a dispositivos electrónicos


O anteprojecto de uma Directiva Europeia permite à Autoridade da Concorrência ter acesso a qualquer dispositivo tecnológico, incluindo smartphones, tablets ou servidores em cloud, para apreender prova relacionada com ilícitos de concorrência. Ver o anteprojecto e documentação complementar aqui.

Eis o que resulta do comunicado público da Autoridade da Concorrência difundido a 25 de Outubro do corrente e que se cita para melhor compreensão:

«O anteprojeto de transposição da Diretiva ECN + prevê expressamente que a Autoridade da Concorrência (AdC) aceda a qualquer dispositivo tecnológico, incluindo smartphones, tablets ou servidores em cloud, para apreender prova relacionada com ilícitos de concorrência.

Este anteprojeto, que a AdC coloca hoje em consulta pública até 26 de dezembro, destina-se a transpor para o quadro jurídico português a Diretiva 2019/01/EU do Parlamento Europeu e do Conselho.

A Diretiva, conhecida como “ECN +”, atribui às autoridades da concorrência dos Estados-Membros competências reforçadas para aplicarem as regras de concorrência europeias de forma mais eficaz e garantir o bom funcionamento do mercado interno.

Para tal, os Estados-Membros devem assegurar que as autoridades de concorrência dispõem das garantias de independência, dos meios e das competências de investigação e decisão necessárias, nomeadamente em matéria de aplicação de coimas.

Além da adaptação ao ambiente digital, a Diretiva preconiza uma maior facilidade em cobrar coimas a empresas sem presença física em Portugal e vem ainda clarificar a possibilidade de imputação às sociedades-mãe da responsabilidade por violação de regras de concorrência por parte das subsidiárias, ao adotar para esse efeito o conceito de empresa da jurisprudência europeia, ou seja, o de grupo económico.

A Diretiva “ECN+” foi publicada a 14 de janeiro de 2019 e deverá ser transposta para o direito nacional até 4 de fevereiro de 2021.

A AdC entende que um processo de transposição aberto, transparente e participado contribuirá para uma proposta legislativa de maior qualidade e, em consequência, para a publicação de um diploma que contribua de forma efetiva para uma mais ampla e eficaz promoção e defesa da concorrência em Portugal.

Além da presente consulta pública, a AdC constituiu um grupo de trabalho externo para acompanhamento dos trabalhos e organizou um workshop consultivo sobre o tema, com a participação de representantes de variados quadrantes da sociedade.

A aplicação das regras europeias da concorrência é assegurada pelas autoridades nacionais de concorrência dos Estados-Membros em paralelo com a Comissão Europeia, nos termos do Regulamento (CE) n.º 1/2003 do Conselho.

No entanto, por vezes o direito nacional compromete a capacidade das autoridades de concorrência aplicarem de forma eficaz regras europeias da concorrência bem como o direito nacional da concorrência em paralelo com aquelas regras. Com efeito, nas jurisdições onde a eficácia do direito da concorrência é inferior, por exemplo atentas as dificuldades registadas pelas autoridades de concorrência na recolha de elementos de prova ou na aplicação célere de sanções dissuasoras, tende a criar-se uma perceção de impunidade que afeta particularmente os consumidores e empresas desses Estados-Membros.

Todos os interessados devem enviar as suas observações escritas até 26 de dezembro, para o endereço eletrónico consultapublica@concorrencia.pt, indicando a referência “Consulta Pública sobre o anteprojeto de diploma de transposição da Diretiva ECN+” ou para o endereço postal: Av. de Berna, 19, 1050-037, com a mesma referência.»

Assembleia da República: iniciativas

Iniciada a legislatura, começam a somar-se as iniciativas legislativas. Eis, de entre os 59 projectos de lei, as que, até ao dia hoje, estão divulgadas e têm relevo na área jurídico-penal [clicando no texto a azul vai-se directo ao portal do Parlamento e ao texto respectivo].

[52/XIV, PAN]: Privilegia o modelo de residência alternada sempre que tal corresponda ao superior interesse da criança, excepcionando-se o decretamento deste regime aos casos de abuso infantil, negligência e violência doméstica.

[30/XIV, CDS-PP]: Regulamenta a atividade de representação profissional de interesses (“LOBBYING”)

[28/XIV, CDS-PP]: Agravamento da moldura penal para crimes, praticados com violência, nas escolas e suas imediações ou contra a comunidade escolar (50.ª alteração ao Código Penal)

8/XIV, [PCP]: Aprova o estatuto da condição policial

[4/XIV, BE]: Define e regula as condições em que a antecipação da morte, por decisão da própria pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e que se encontra em sofrimento duradouro e insuportável, não é punível

Direito e Segredo


Cito da apresentação feita pelo ICJP [Instituto de Ciências Jurídico Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa] : «O presente livro é dedicado ao estudo dos segredos no Direito e reúne parte significativa dos textos correspondentes às intervenções na conferência sobre o tema realizada na Faculdade de Direito de Lisboa em 19 de fevereiro de 2019. O tema apresenta relevância e modernidade evidentes. No entanto, não tem merecido tratamento sistemático bastante, os seus conceitos e regimes são movediços e as suas estruturas de compreensão não estão suficientemente sedimentadas. Sobressai igualmente o facto de cruzar várias disciplinas jurídicas, manifestando- se sob várias formas e com diferente valor jurídico nas esferas do Direito Público e do Direito Privado. 
Deve sublinhar- se a sua importância na realização do Estado de Direito. A delimitação das realidades passíveis de segredo releva no plano da limitação jurídica do poder, da salvaguarda da atuação visível e responsiva dos poderes públicos e da proteção dos direitos de liberdade (desde logo, da liberdade de expressão e de informação), da reserva da autonomia privada e da proibição da discriminação. (...)» [edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2019]

Justiça. programa do Governo

Foi apresentado, debatido e aprovado nos dias 30 e 31 de Outubro o Programa do XXII Governo Constitucional. Cita-se o que está previsto para a área da Justiça. Não que tudo quanto se prevê se realize e também não que tudo quanto se realize siga o previsto, pois há as circunstâncias, entre as da política, a dos meios e das contigências. Com esta reserva aqui fica o que está na perspectiva governamental.

Tornar a Justiça mais próxima dos cidadãos, mais eficiente, moderna e acessível 

Uma Justiça ao serviço dos direitos dos cidadãos e do desenvolvimento económico-social tem de ser, em primeiro lugar, eficiente. Eficiência exige celeridade das decisões e um modelo de funcionamento simplificado, que permita a todos os cidadãos aceder à Justiça em condições de igualdade. A morosidade e a complexidade processuais, bem como o atual sistema de custas processuais são um obstáculo à plena realização dos direitos e também um entrave ao desenvolvimento económico. É vital implementar soluções modernas, simples e eficientes. Com este objetivo, o Governo irá: 

• Implementar um sistema de apoio judiciário mais efetivo, apto a abranger aqueles que efetivamente dele necessitam e que, simultaneamente, assegure uma boa gestão dos recursos públicos, com garantia da qualidade dos profissionais que prestam esse serviço, fomentando a sua formação contínua e a troca de experiências entre si;

• Reduzir as situações em que as custas processuais importam valores excessivos, nos casos em que não exista alternativa à composição de um litígio;

• Melhorar a formação inicial e a formação contínua dos magistrados, de forma desconcentrada e descentralizada e com especial enfoque na matéria da violência doméstica, dos direitos fundamentais, do direito europeu e da gestão processual;

• Garantir que o sistema de Justiça assegura respostas muito rápidas, a custos reduzidos, acrescentando competências aos julgados de paz e maximizando o recursos aos sistemas de resolução alternativa de litígios;

• Desenvolver novos mecanismos de simplificação e agilização processual nos vários tipos de processo, designadamente através da revisão de intervenções processuais e da modificação de procedimentos e práticas processuais que não resultem da lei, pese embora signifiquem passos processuais acrescidos resultantes da prática judiciária;

• Aumentar a capacidade de resposta da jurisdição administrativa e tributária, tirando pleno partido das possibilidades de gestão e agilização processual, designadamente quanto a processos de massas;

• Criar mecanismos mais céleres em matéria de urbanismo e proteção do ambiente;

• Manter um esforço permanente de informatização dos processos judiciais, incluindo nos tribunais superiores, continuando a evoluir na desmaterialização da relação entre o tribunal e outras entidades públicas, e assegurando a gestão pública e unificada do sistema CITIUS;

• Assegurar a citação eletrónica de todas as entidades administrativas e a progressiva citação eletrónica das pessoas coletivas, eliminando a citação em papel;

• Melhorar os indicadores de gestão do sistema de justiça de modo a ter informação de gestão de qualidade disponível para os gestores do sistema, bem como mecanismos de alerta precoce para situações de congestionamento dos tribunais;

• Fomentar a introdução nos processos cíveis de soluções de constatação de factos por peritos ou técnicos, por forma a evitar o recurso excessivo à prova testemunhal ou a peritagens;

• Reforçar significativamente, até ao final da legislatura, o número de julgados de paz, em parceria com as autarquias locais, entidades intermunicipais e outras entidades públicas, alargando as suas competências e criando também julgados de paz especializados, a funcionar de forma desmaterializada, designadamente em questões de regulação do poder paternal, condomínio e vizinhança;

• Reforçar os sistemas de mediação públicos e o acesso à mediação, designadamente familiar e laboral;

• Reforçar a ação dos centros de arbitragem institucionalizados para a resolução de conflitos administrativos enquanto forma de descongestionar os tribunais administrativos e fiscais e de proporcionar acesso à justiça para situações que, de outra forma, não teriam tutela jurisdicional efetiva;

• Assegurar os investimentos necessários ao robustecimento tecnológico com vista ao reforço da qualidade e a celeridade do serviço prestado nos registos públicos, quer nos serviços presenciais, quer nos serviços desmaterializados, apostando na simplificação de procedimentos, em balcões únicos e serviços online.

Aumentar a transparência e o escrutínio na administração da justiça 

A administração da justiça é um serviço público que integra o cerne do Estado de Direito Democrático. Por isso, a justiça – nas suas várias dimensões e, em especial, no que se refere ao seu funcionamento e resultados – deve atuar de forma transparente e ser plenamente escrutinável pelos cidadãos. Neste âmbito, o Governo irá:

• Assegurar aos cidadãos, de dois em dois anos, um compromisso público quantificado quanto ao tempo médio de decisão processual, por tipo de processo e por tribunal;

• Criar bases de dados, acessíveis por todos os cidadãos, que incluam também informação estruturada relativa aos conteúdos das decisões (não apenas a decisão em si, mas o sentido das decisões em termos estatísticos: por ex., percentagem de casos em que são aplicadas sanções acessórias), números de processos distribuídos por tipo de processo por tribunal, tempo médio das decisões em cada tribunal em função da natureza do processo, etc.;

• Reforço das competências de gestão processual nos tribunais, enquanto condição necessária para garantir a prestação aos cidadãos de um serviço de justiça atempado e sem desperdício de recursos;

• Simplificar a comunicação entre tribunais e outras entidades públicas, bem como a comunicação direta com os cidadãos, aproveitando as comunicações obrigatórias para dar informação sobre a tramitação processual em causa, eventuais custos associados e alternativas de resolução;

• Assegurar que as citações, notificações, mandados ou intimações dirigidas a particulares utilizam sempre linguagem clara e facilmente percetível por todos os cidadãos.


Criar condições para a melhoria da qualidade e eficácia das decisões judiciais 

As decisões judiciais têm uma legitimidade própria, que lhes é conferida pela Constituição e pela lei. Contudo, e sendo essa legitimidade indiscutível, têm de ser criadas todas as condições – legais, materiais e outras – para as tornar efetivas, melhorar o processo de decisão e aumentar a aceitação das sentenças pela comunidade, designadamente em setores como a justiça penal, de família e laboral. Para o efeito, o Governo irá: 

• Aumentar os modelos alternativos ao cumprimento de pena privativa da liberdade em estabelecimento prisional, em especial para condenados aos quais se recomende uma especial atenção do ponto de vista social, de saúde ou familiar;

• Reforçar a resposta e o apoio oferecido às vítimas de crimes, em parceria com entidades públicas e privadas, e melhorar o funcionamento da Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes;

• Investir na requalificação e modernização das infraestruturas prisionais e de reinserção social, bem como no acesso a cuidados de saúde da população reclusa, designadamente ao nível da saúde mental;

• Melhorar o sistema de registo criminal, garantindo a conexão entre bases de dados públicas (ex. registo criminal de pessoas condenadas por crimes de abuso sexual de menor e serviços que implicam contactos com crianças e jovens), clarificando as respetivas consequências em articulação com o sistema de execução de penas;

• Criar um corpo de assessores especializados para os tribunais e investir na sua formação inicial e contínua, a funcionar de forma centralizada, designadamente em matérias cuja complexidade técnica aconselha a existência de um apoio ao juiz;

• Garantir adequada formação inicial e contínua aos oficiais de justiça, com reforço da capacitação e valorização das respetivas competências;

• Agilizar o tempo de resposta em matéria de perícias forenses e demais serviços no âmbito da medicina legal;

• Permitir e incentivar a composição por acordo entre a vítima e o arguido, nos casos em que não existe outro interesse público relevante;

• Aumentar o leque de crimes em que é possível o ofendido desistir da queixa;

• Permitir a suspensão provisória do processo para um número mais alargado de crimes, desde que todas as partes estejam de acordo;

• Revisitar o conceito e a forma de quantificação dos danos não patrimoniais, no sentido de corresponderem a uma efetiva tutela da pessoa e da dignidade humana.