Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Segredo de justiça na era da net

A lógica é que a defesa do segredo de Justiça face à curiosidade profissional da Comunicação Social perde sentido hoje em que, na era da Internet, aquela não é a única forma de difusão de informação. E então opta-se: o segredo de justiça do inquérito criminal passa a durar trinta dias, durante os quais qualquer revelação em detrimento do mesmo, passa a ter fundamento moral para ser severamente punida. 
Tal orientação política será consagrada em Espanha no quadro da revisão da lei processual penal, a Ley de Enjuiciamento Criminal. Ver aqui.

Cansado do segredo de Polichinello



Já não dá para se levarem certas coisas a sério. Só mesmo esperando por um outro mundo neste País.
Lê-se: «O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) aconselhou, esta terça-feira, o Procurador-Geral da República (PGR) a agir criminalmente contra quem viola o segredo de justiça, caso conheça factos, ou então a abster-se de “manchar o nome” de terceiros.».
E lê-se: «A violação do segredo de justiça em Portugal é "usual" e "sem réus", em que todos são culpados e ninguém está inocente, disse , na Cidade da Praia, o Procurador-Geral da República português, Pinto Monteiro».
Já não dá. O cansaço é muito. Acreditem. Cansaço do ridículo de ver pior do que tudo quanto é segredo de justiça escarrapachado nos jornais. Cansado também e sobretudo de ver aquelas coisas que pela Justiça passam, pé ante pé, fazendo os jornais de conta que não aconteceram. É esse o mais infame segredo. O da conivência. Os escândalos de uns encobrem o silêncio sobre os outros.

A disciplina dos Advogados nas mãos do MP?

Que o Governo, através da ministra da Justiça, que é Advogada, esteja a pensar atribuir a regulação disciplinar dos Advogados ao Ministério Público, como corre por aí, é facto em que pura e simplesmente não acredito. Razão: há coisas em que é melhor não acreditar. Porque, a serem verdade, abrem a porta a que a luta pelo Direito tenha de passar a ser feita sem ser através do Direito.

Legitimidade para ser assistente

«Para decidir da legitimidade para intervir como assistente, a aferição do interesse protegido é feita através dos factos denunciados na participação e no requerimento para abertura da instrução e não pela prova resultante do inquérito», decidiu a Relação de Coimbra no seu Acórdão de 23.05.12 [relator Luís Ramos, texto integral aqui].

Ouvido "em alta voz"

Matéria problemática em que se joga a intimidade da vida privada,o sigilo das comunicações e a prova por testemunho indirecto a do valor probatório do que se escutou em "alta voz". A Relação de Évora no seu Acórdão de 12.06.12 [relatora Ana Brito, texto integral aqui] determinou que «1. A prova por depoimento de testemunha que escutou conversação telefónica por intermédio de sistema alta-voz não é, em princípio, prova livre, podendo cair nas proibições de prova; mas uma conclusão definitiva exige o conhecimento e apreciação dos contornos totais do acontecido, que se apresentam como imprescindíveis à decisão sobre a licitude desta prova.».
Trata-se, como o reconhece o aresto, de matéria em que não tem havido unanimidade de entendimento.
«Assim, no acórdão do TRC de 28-10-2008 (Vasques Osório) decidiu-se que “o depoimento prestado por uma testemunha, sobre factos jurídico-penalmente relevantes e obtidos através da função de “alta voz”, quando efectuado sem o conhecimento e o consentimento do emissor de voz, é uma intromissão em telecomunicações e deve ser taxado como prova nula”. E no acórdão TRP 26-05-2004 (Borges Martins) considerou-se que “a prova testemunhal que se limita a reproduzir a conversa telefónica havida entre o arguido e a ofendida, com o consentimento desta, não é nula por não constituir uma intromissão nas telecomunicações”.
O Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se no acórdão de 07-02-2001 (rel. Leonardo Dias, sumariado em www.pgdl.pt ) no sentido de que “o acesso ao conteúdo de uma comunicação telefónica com recurso a um meio técnico de audição, como é o alta-voz, integra o conceito jurídico-penal de intromissão (objectiva) em telecomunicações do art. 194.º, n.º 2, do CP. Logo, é seguro que preenche o referido tipo legal de crime a conduta de quem se intromete voluntária e intencionalmente no conteúdo de comunicações telefónicas, mediante recurso a um alta-voz, com tomada de conhecimento, do mesmo modo voluntária e intencionalmente, desse conteúdo. Ao abrigo das disposições contidas nos arts. 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º, n.º 3, do CPP, os depoimentos prestados, na qualidade de testemunha, por quem se intromete, na referida forma, no conteúdo de comunicações telefónicas, na parte em que se reportam a esse mesmo conteúdo, são provas nulas”. Esta decisão contou com o voto de vencido de Leal-Henriques, no sentido de que, no caso concreto, “não se reuniam os requisitos de aplicação do art. 194º, nº2 do Código Penal e 126º, nº 3 do Código de Processo Penal”, para o que considerou relevante “a compreensão e apreensão das condições e do circunstancialismo que rodearam os factos concretos” que fundamentam a conclusão expressa no voto no sentido da licitude do aproveitamento da prova em causa.
Este voto de vencido mostra a importância da definição prévia dos contornos totais factuais da prova em crise, para a decisão definitiva sobre a sua legalidade.
Por tudo, concluímos que a prova em causa não é, sem mais, prova livre; que também não é necessariamente, sempre e sem excepção, prova proibida; que uma decisão definitiva sobre a sua admissibilidade pressupõe o conhecimento dos factos que rodearam o acesso à conversação telefónica.»

Quando todos quantos escutam não são escuteiros

Quem são as pessoas que fazem oficialmente escutas telefónicas? De onde vêm? Para onde vão? Que garantia há quanto ao uso correcto ou quanto ao indiscreto abuso do que ouviram? Que tem a ver com intimidades, com interesses, com questões de Estado, com matérias referentes à vida pública e à vida privada? Perguntei um dia, continuo a perguntar. 
Disse um dia que o odioso regime político anterior não aceitou escutas telefónicas no processo penal comum. Acho que não chegaram a atrever-se a dizer-me que era porque não havia telefones. 
Perguntei o que disse e pergunto agora quanto às escutas não oficiais que existam: Quem são? Onde estão? Para onde vão?
De vez em quando temos uma surpresa, fruto do escândalo, de quantas nunca teremos notícia pelo que nunca se saberá.
Homenagem ao inocente "telefonista" anónimo a quem mandam fazer investigação criminal agarrado ao telefone a ouvir a vida alheia, dediquei este conto. Saiu num livro chamado Contos do Desaforo. É precisamente essa a questão, a do desaforo.

«Está, estou, sim, diz, todos os dias a mesma cantilena, os lugares-comuns do linguajar telefónico, todos os dias ouvir a partir das nove as chamadas nocturnas, em diferido, todos os dias estar atento às chamadas em tempo real, tempo real que palavra estranha, como se houvesse um tempo irreal, todos os dias o viver à escuta das conversas alheias, que raio de emprego que um homem tem, sim filha, diz, agora não posso, já ligo, a família que ligava também, nos piores momentos, a mulher, a filha, esses a quem não podia ouvir por não ter tempo, todo o seu tempo era para ouvir os outros, os telefonemas dos outros, conhecia-os a todos como se lhes tivesse visto a cara, o tom de voz, a alegria e a tristeza que exprimiam ao falar, nas coisas grandes dos negócios e nas coisas miúdas das suas vidas privadas, mas quem é escutado pela policia não tem vida privada, perde-se tudo, o recato, o pudor, a reserva, quem escuta torna-se obsceno e indecente, viciado na vida alheia, cúmplice passivo em todas as porcarias, fornica quando os outros se rebolam no contar da fornicação, sim, está lá, filha, amor, querida, que noite ontem, sim não houve problemas, que nisso somos todos iguais em possibilidades e em desejos, numa só coisa há que ser indiferente e alheio a lágrimas e tristezas, que um polícia tem de se distanciar e sobretudo desconfiar, não há piegas entre os bandidos e todos os escutados são potenciais bandidos e no entanto, ao fim de um dia, de dois dias, de semanas inteiras à volta dos outros um homem perde a vida própria, será isto às tantas uma doença, chega-se de manhã a arder de curiosidade sobre o que se terá passado durante a noite, fazem-se prognósticos sobre o que será dito na próxima chamada, pensa-se, pensa-se pelos outros não vais ser tão parvo que caias nesta arara e ouve-se que afinal caiu, um polícia ganha desprezo pelos estúpidos mesmo quando são vítimas, um certo apreço orgulhoso pela vitória dos aldrabões, cuidado com a bófia que o telefone deve estar sob escuta, mas mesmo assim falam, falam, contam e voltam a contar tudo ao pormenor e combinam mesmo sabendo que a polícia escuta, e dizem palavrões, porque todos dizemos palavrões e ficamos feios quando nos ouvimos a tê-los dito, já para não falar nas concordâncias do português, o a gente vamos mas se calhar é assim que se diz, ainda hei-de ver no prontuário, mas um polícia tem lá tempo para ir ao prontuário, e depois quando transcrever, horas e horas a martelar teclas, auscultadores no ouvido, que estupidez esta, raios me partam se não me mudam de secção, quando se transcreve põe-se tudo como foi dito, meias palavras inclusive e pontapés na gramática, que estes gajos falam mal para burro e eu se calhar não falo melhor mas não me escuto, quem escuta de si ouve, já dizia a minha mãezinha, a minha mãezinha teria vergonha de saber que o filho vive disto, paga a prestação da casa e a escola dos filhos a ouvir a vida alheia, eu que levei duas chapadas em miúdo por ter sido apanhado a escutar às portas, mas falavam de mim, parecia-me ao menos, a voz irada do meu pai, o deixa-o lá da minha mãe, e agora isto, isto todos os dias, muito fala esta gente, devem ter umas contas caladas de telefone ao fim do mês, hoje é dia para estar particularmente atento, vai haver uma grande operação, vim mais cedo mesmo, mas o telefone ainda não tocou, devem estar todos a dormir, que esta malta tem mais sorte que eu, para não falar no que ganham e nem têm que escutar a vida alheia, nem têm de estar apertados para ir à retrete no meio de uma conversa importante, aperta as pernas que não a podes perder agora, tenho toda a investigação no terreno à espera e logo agora esta dor de barriga, malditos salmonetes, telefone, o meu, telemóvel sim, diz, não, talvez mais logo, não, não sei a que horas saio, espera aí, eu não me esqueci, ó pá, nem todos têm a tua vida não é, e se me esquecesse vê lá morriam, não, mas agora não podia, não podia mais, estes gajos não ligam devem ter mudado de telefone, não chefe até agora nada, não filha não é para ti, estou a falar com quem, com quem haveria de estar, estou no serviço não é, e ainda por cima um serviço em que não se pode dizer nem sequer à mulher o que se faz, não é por segurança é por vergonha, e por segurança também, talvez, que elas são curiosas e querem saber e tu és parvo, não estás a ver o que eles queriam, armam-se em polícias mulheres de polícias, e agora aqui estou, já disse porcaria de vida, quero que me mudem de serviço, isto nem é nada, estou farto de ouvir, ouvir em casa, ouvir os chefes, ouvir os que falam, as meias-palavras, isto só pode ser código, as pessoas nunca dizem o que pensam e quando falam é tudo em meias tintas, negócios a meias, não há ninguém que me substitua, é só por um momento, a equipa no terreno desde a madrugada, o telefone não toca, reina um silêncio estranho, da próxima vez preocupo-me menos, quando o meu pai me morreu telefonaram-me estava ele já morto, vou aproveitar os pontos para comprar um telemóvel para a minha filha, já houve um tempo em que os telefones eram vermelhos e quadrados, a vinte e cinco tostões, havia um no Monte Carlo ao Saldanha, foi desse que te telefonei a primeira vez querida, vamos logo ao cinema, e fomos e desde aí não mais houve nem cinema nem querida, só o chegar sempre tarde, sempre cansado, sempre farto, sempre contigo ao telefone, eterna faladora, que terão as mulheres para tanto falarem, que se terá dado na minha vida para ter tanto que ouvir. 

A floresta de silvas

Reduzido a uma técnica, transformado numa profissão, vergado a ter de cumprir formulários, trabalhado no contra-relógio da ameaça do prazo cominatório, torna-se o Direito naquilo que não é: uma função pública arrasadora da alma.
Houve tempos em que, ligado que estive à docência, dei comigo a perguntar-me se estava a ministrar ensino universitário ou formação profissional. Eram tempos em que, se para explicar um determinado preceito da lei me atrevia a recordar a sua origem histórica, logo a atenção do auditório se perdia, para logo regressar, assim eu regressasse à comezinha leitura da norma por outras palavras mais simples e vulgares.
Estariam a antecipar um tempo de regresso em que à funcionalização se juntaria a sobre-simplificação.  O argumento de autoridade - com o consequente desvalor inconsciente de quem o usa - faria o resto. É o tempo das fórmulas crassas como «na esteira de», a abrirem via para a desnecessidade de outra fundamentação que não seja o magister dixit ou - agora que se vive a época do desprezo pelos professores por causa da desvalorização dos pareceres, obra quantas vezes de suas mãos - o curia dixit.
Lembrei-me disto ao ter lido um breve estudo do António Braz Teixeira acerca da reacção ao positivismo nos estudos jurídicos. Cita nele o Professor Manuel Paulo Merêa, que faleceu em 1976. Historiador do Direito, tenho dele alguns [infelizmente poucos] livros, nomeadamente um sobre o Direito Visigótico.
Historiador do Direito, mas também seu filósofo, foi autor de uma análise do que chamou uma filosofia «eminentemente humana para o Direito», de pendor «acentuadamente anti-intelectualista, que via no homem, ao lado da inteligência e da razão, um fundo infinitamente rico de sentimentos, de instintos, de tendências, de necessidades, de aspirações, intraduzíveis por vezes em ideias claras e definidas justamente porque são irredutíveis à inteligência raciocinante.»
Estou na fase em que sinto a urgência em tirar o Curso de Direito. Não aquele que me trouxe até aqui, mas um outro, em que regressaria ao princípio, dando por írrito e nulo tudo quanto vivi e começando de novo, para usar a frase de Leonardo Coimbra que é uma proclamação estupenda de vida nova.
Talvez assim eu consiga encontrar onde se perdeu na floresta de silvas do Direito o Humano, que era o seu natural destinatário, a sua justa medida, o autor das leis e o primeiro a obrigar-se por elas.

P. S. Vivo, aliás, na ânsia de reencontrar-me com o que gosto e tentar ler tudo sobre isso mesmo. Amanhã vou ver se encontro o texto que acima cito, o qual data de 1913. Foi publicado pela Imprensa Nacional mais recentemente. Começo por ali e vou adiante.

Escusa de juiz

Diz a Relação de Évora em acórdão de 05.06.12 [relatora Ana Brito, texto integral aqui]: «O Senhor Juiz de Direito formulou o anterior pedido de escusa, invocando as disposições conjugadas dos artigos 43°, n. 1, 2 e 3, 44° e 45°, todos do Código de Processo Penal, por “na sequência da uma sua anterior intervenção naquele mesmo processo, o indivíduo que nele figura como arguido o ter responsabilizado por consequências decorrentes de greve de fome que diz ter feito e contra si ter apresentado queixa junto de diversas entidades, nomeadamente o Conselho Superior da Magistratura”.
No caso, não percebemos em que termos pode ser imputada ao Senhor Juiz a responsabilidade por uma greve de fome cuja iniciativa será sempre voluntária, do próprio autor da greve, nem em que termos dessa imputação poderá perigar o juízo sobre a imparcialidade do julgador, à luz do critério do homem médio.
Como bem nota Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado, 2009, pág. 153), “os motivos de suspeição são menos nítidos do que as causas de impedimento, podendo ser, por isso, fraudulentamente invocados para afastar o juiz”.
Bastaria, para tanto, e por exemplo, a participação de factos artificiais, não verdadeiros ou irrelevantes, ao C.S.M., colocando-se nas mãos dos sujeitos processuais o afastamento e, logo, a escolha de juiz.
Ora, sobre esta circunstância cremos manter toda a actualidade o acórdão do STJ de 5.12.1990 (CJ 1990, 5, 20, Tavares Santos) – “Não constitui só por si fundamento de recusa de juiz em processo penal o simples facto de o requerente ter apresentado queixa contra ele no Conselho Superior da Magistratura (…) A aceitar-se a pretensão, criar-se-ia um precedente grave de que poderia lançar mão aquele que, em tribunal, pretendesse afastar um juiz da sua causa. Bastaria que, apercebendo-se de que o julgamento não estava a ser-lhe favorável, dirigisse qualquer queixa ao C.S.M.. Ora é evidente que a suspeição é uma figura séria para poder ser usada por razões inconfessadas”.
É certo que “as aparências são, neste contexto, inteiramente de considerar”, importando também aferir se a situação em causa “pode ser entendida, pelo lado externo das aparências dignas de tutela, como potenciadora de um espaço de dúvida quanto à existência de riscos para a apreensão objectiva da imparcialidade” (STJ 13 de Abril de 2005, Henriques Gaspar).
Mas nem a situação apreciada no anterior incidente de escusa é automaticamente transponível para o caso em apreciação, nem o senhor Juiz aqui invoca ou adita motivos graves e sérios que permitam suspeitar da sua imparcialidade ou gerar essa desconfiança por parte da comunidade em geral de acordo com o critério do homem médio.
E como também tem sido dito, “os incómodos que o juiz poderá sentir em tal situação mais não são que os ónus de ser juiz” (Decisão nº4/2007 do Presidente do TRP, de 17-09-2007). Sendo ainda certo que “o afastamento do juiz (natural) do processo só pode ser determinado por razões mais fortes do que aquelas que o princípio do juiz natural visa salvaguardar, que se relacionam com a independência, mas também com a imparcialidade do tribunal” (STJ de 23-09-2009, Maia Costa).».
Percebe-se a lógica: o sistema julga que se fragilizaria tendo um critério mais lato em matéria de escusas, porque abriria a porta à permissividade das recusas.

O assoreamento crminal

O assoreamento da sociedade civil pelo Direito Criminal vai gerando a sobrecarga dos tribunais. À falta de melhor método para implementar as suas prescrições, o legislador edita sempre umas normas a criminalizar a conduta dos que forem prevaricadores com penas pesadas na sua aparência abstracta, julgando que assim serve a prevenção geral e mostra aos eleitores que, em matéria punitiva, o Poder leva a sua missão a sério. Vistas depois - mas quase ninguém vê - as penas concretas aplicadas pelos tribunais, chega-se à conclusão de a realidade desmente a dosimetria abstracta. 
Que tudo isso contribua, como seu efeito directo, para a sobrecarga da Justiaç Penal, é patente. Que tudo isso tenha efeito nas erradicação das condutas, é mais do que duvidoso.
Uma coisa é certa: o Direito Penal, contra o que se ensina nas escolas de Direito, de há muito que deixou de ser a ultima ratio na censura legal às condutas. A sua banalização está em vias de o tornar inoperante. Doem mais as coimas que o legislador prevê tanta vez entre mínimos ridículos e máximos absurdos.
O fenómeno não é português. Leia-se o que se passa na Alemanha, aqui, País que é um farol hipnótico de muito do nosso pensamento jurídico.

Escutas telefónicas a advogados

Há notícias que passam despercebidas, discussões a que se não dá relevo. Vivemos no mundo dos remoques e dos apartes, em que o essencial das questões foge ao conhecimento dos interessados. O que abre a porta aos factos consumados.Ou sou eu quem anda muito distraído.
Ao ver o site do Ministério da Justiça dei conta de que se discute a nível da Comissão Europeia uma proposta de directiva sobre a assistência por Advogado. E que no âmbito da discussão o ministro da Justiça de opôs a que fosse consagrada a possibilidade de escuta telefónica das conversas entre os advogados e os seus constituintes por decisão do Ministério Público ou da polícia, mas apenas por acto judicial.

Cito da comunicação oficial que está aqui: «El ministro de Justicia se ha opuesto ante sus homólogos europeos a que las comunicaciones entre abogado y cliente puedan ser intervenidas por la Policía, Fiscalía u otras autoridades sin autorización judicial. Esta posibilidad, incluida en una directiva sobre asistencia letrada discutida hoy en Luxemburgo, no solo es contraria a lo que establece la ley en España sino que puede "incluso vulnerar derechos fundamentales", ha argumentado Alberto Ruiz-Gallardón.
El ministro ha condicionado su voto favorable a una declaración expresa de la Comisión Europea con la postura de España, en la que se compromete a solicitar que el Parlamento estudie la modificación del texto durante su tramitación en los próximos meses. Así, la Comisión ha suscrito que "el proyecto no garantiza la total protección de los derechos fundamentales en un proceso penal" y apoya la tesis española de que "cualquier intervención o merma de un derecho fundamental exija una autorización judicial". A esta declaración se ha sumado también la delegación italiana.» [audição da comunicação em registo audio aqui]

Quanto ao que tenha sido a intervenção de delegação portuguesa será interessante ir ver. Basta consultar.

Reforma do CPP (3): artigos 356º e 357º

O nosso sistema de Justiça Penal é baseado na desconfiança. Desconfia-se da objectividade do Ministério Público e, por isso, coloca-se um juiz a controlar a sua decisão de arquivar os processos, para que não ocorram o que o professor Emygdio da Silva - que além da Faculdade de Direito foi Director do Jardim Zoológico e escreveu um notável porque corajoso livro sobre a investigação criminal - chamava as possíveis «amnistias administrativas». 
Claro que se justifica aqui a judicialização porque de outro modo, havia o risco de os processos morrerem no segredo dos inquéritos quando, assim, ao menos pelo impulso dos ofendidos - havendo-os - podem ter uma hipótese de vingarem e levarem ao funcionamento da Justiça.
Mas o que hoje escrevo tem a ver com outra desconfiança, a que incide sobre a isenção da polícia, desconfiança que se torna em verdadeira suspeita quando a lei impõe que as declarações que forem prestadas ante ela não valham como prova em tribunal, salvo raríssimas excepções, valendo o consentimento ao uso.
Digo suspeita porque do que se trata é de pura e simplesmente inutilizar um meio de prova em nome de uma lógica que só pode radicar no preconceito, oriundo dos fantasmas da polícia política, de que poderão ter sido obtidas por meios musculadamente persuasivos. 
O sistema é caricato nos seus termos. Primeiro, porque essas declarações valem para o Ministério Público incriminar alguém, acusando-o, o que é grave e enxovalhante - mas aí as declarações valem por boas e úteis - valem para o juiz de instrução que, confirmando a acusação pública - sem recurso se a receber obedientemente - valide a sujeição de alguém a julgamento, porque então continuam a ser muito boas, mas  ante a audiência já não valem nada.
Ou melhor, dizendo a verdade toda neste mundo de hipocrisia velhaca: não valem para serem formalmente lidas em audiência; não valem para que um juiz, descuidado, consigne na sentença que se ateve a elas como prova, porque na verdade elas ali estão, incorporadas no processo, a orientar as perguntas do Ministério Público e dos advogados e só não são lidas pelo juiz que, num assomo de escrúpulo, nem passe os olhos por cima delas. Porque, no mais, há mil maneiras de sugerir em julgamento que a pessoa não disse no inquérito o que está a agora a dizer em julgamento, torneando a proibição legal por meio manhoso.
Como na nossa cultura preferimos invocar grandiloquentes valores, porque belos, para esconder comezinhas realidades, quando feias, proclama-se que é por causa e em nome do princípio da oralidade - só valem para a sentença as provas produzidas ou examinadas em audiência - que se afasta o valor probatório do que foi prestado ante a polícia, quando o que se quer dizer é que na verdade se desconsideram esses autos de polícia porque sobre esta radica a suspeita de os terem produzido de modo que só pode ser desconsiderado, inutilizando-os. E o cidadão nem pode dizer - sobre isto já disse quando fui à polícia isto ou aquilo e tinha na altura a memória mais fresca - porque vai ter de declinar tudo de novo, ainda que com a pior memória, ainda que já sugestionado pelo devir das coisas e muitas vezes pela projecção pública das mesmas.
É um sistema, em suma, que ordena à polícia que obtenha o melhor testemunho, porque o mais espontâneo, e depois o destrói em favor do pior testemunho, porque mais tardio.
Pergunta-se: com as modernas tecnologias não é possível gravar-se tudo o que se passou durante uma audição policial? É. É até possível filmar, embora quem for um dia à Cintura do Porto Interior, onde está o serviço de investigação criminal da PSP de Lisboa ver as condições de miséria - encurralados em cubículos - em que trabalham os polícias, talvez desconfie de que os meios financeiros para tal a existirem poderão estar antes aplicados ao serviço dos sumptuosos gastos de fachadas mediáticas que da Justiça dão a aparente imagem da sua eficácia.
Pois nem é essa ideia de valorar essas declarações policiais, desde que gravadas, o que consta do projecto de revisão do Código de Processo Penal.  O que se pretende é que valham as de que forem prestadas apenas ante o Ministério Público e juiz e mesmo assim quando «sejam documentadas através de registo áudio visual ou áudio, só sendo permitida a documentação por outra forma, quando aqueles meios não estiverem disponíveis». E, desde que esteja presente defensor. Quanto às prestadas ante polícia, devem ser registadas pelos mesmos meios tecnológicos mas... «sem susceptibilidade de posterior utilização em julgamento».
Claro que, estando tudo gravado por aqueles sofisticados meios, poderia prever-se o seu uso em julgamento, sujeito embora à apreciação judicial, com possibilidade de arguição de qualquer invalidade probatória decorrente de violência ou ameaça anterior ou contemporânea à respectiva produção ou de falsificação do registado. Sempre se contribuiria com aquela prova, por escrutinável que fosse e teria de o ser. Não! Nada como gastar dinheiro "para o boneco".
Continuaremos pois com os polícias a produzir autos para o Ministério Público, agora com gravações, para depois, em julgamento se fazer de conta que aquilo foi para nada. No meio, ficam os idiotas dos cidadãos que não percebem, os tristes dos polícias sérios que tentam ser fiéis ao que lhe dizem os declarantes, e aqueles que em julgamento, fiéis aos princípios, não utilizam aquilo que e lei proíbe que seja usado, colocando, porém, o fruto proibido ali mesmo, qual maçã bíblica da qual resultou a danação da Humanidade.
Tudo isto é absurdo. Ou eu já não me entendo nesta Terra.
 
 
P.S.1. Claro que já ouvi dizer que se valessem em audiência os autos policiais haveria não só contaminação da prova boa pela prova má, mas também haveria alguns juízes que, para simplificar e acelerar, perguntariam aos declarantes se confirmavam ou não aquela prova e, obtido o sim, passariam adiante. É evidente que num cenário em que temos dos actores esta ideia moral só pode ser um filme de terror!
P.S.2.  Questões curiosas: na fórmula prevista para a alínea b) do n.º 1 do artigo 357 [uso de declarações de arguido] não se prevê a necessidade de estarem consignadas em auto ou registadas, ao contrário do que se prevê para o n.º 3 do artigo 356º. Porquê? No n.º 2 do artigo 357 prevê-se que «as declarações anteriormente prestadas pelo arguido e lidas em audiência estão sujeitas à livre apreciação da prova nos termos do artigo 127º». Porquê? A demais prova não o está também?

O Reino da Dinamarca

Acabou o tempo do silêncio, o tempo da reserva, o tempo da discrição. Acabou o tempo do espírito de corpo, da solidariedade institucional. Diz o respectivo Estatuto que o Ministério Público é uma magistratura unitária. Nunca entendi bem o que quer dizer o termo. Não quer seguramente dizer que é uma magistratura unida. 
Nunca a diferença entre o Ministério Público e a Procuradoria-Geral da República foi tão patente. Nesta convergeria aquele se não estivessem todos em divergência.
O problema que tudo isto coloca não é a vantagem das verdades que se vão sabendo entre as mentiras cujo desmentido convence. Nem o desprestígio. O problema já é a penosa situação e ridícula em que ficam os que dos valores antigos da contenção guardam ainda o recato. Entre idiotas porque silenciosos e encobridores porque não intervenientes, leve o Diabo a escolha.
Confesso que já nem me dou ao trabalho de ler ou ouvir. Nem ler os que comentam ante o dito e o visto. 
A suspeita, essa, converteu-se numa certeza: tal como na cena IV do I Acto do Hamlet de Shakespeare «algo está podre no reino da Dinamarca».

A Cultura e a função

Ninguém se deve esgotar na profissão. Mas os que no Direito vivem e de todos eles aqueles que directamente na Justiça se aplicam tudo devem fazer para que a Justiça os não esgote. Deve impor-se um sentimento de vergonha quando se deixa de ir ao cinema, quando já não se lê um livro, quando em matéria de televisão se prefere a soporífera. Quando dos jornais se compram os da banalidade factual feita "notícia".
A sociedade organizada, com a sua minúcia exploradora, esgota no indivíduo a vertente criadora: robotiza-o pela rotina, secundariza-o, funcionalizando-o. Além disso, torna-o executante ainda que dourando-o de executivo, para que perca da originalidade a capacidade de ser criativo. Enfim, tudo massifica e assim nivela, e esgota, esfalfando, os que assim submete à aniquilação, prelúdio da rendição.
Que em cada acto em que um humano encontre na Justiça alguém trajado para uma função ali esteja, com todo o catálogo de cicatrizes da luta, convicções na formação do ser e angústias no convívio com a existência, um Homem e nele toda a História da Humanidade.
É pela Cultura que a Ciência se torna Arte. E o Direito não é mais do que apenas isso. As arrogâncias em contrário são a ideologia do autoritarismo mecanicista da máquina de punir e dos funcionários da coacção.

A "mollis lex"

São tempos estes da cultura "intervalar", para retomar a frase de Fidelino de Figueiredo, o relativismo entre um mundo que foi e um mundo que ainda não nasceu.
Terei de voltar a deixar aqui as minhas notas de leitura às propostas de reforma do Código de Processo Penal. Assim regresse a paciência, encontrado tempo. Mais aquelas do que este.
O importante não é, porém, no meu modo de ver, exprimir o que penso sobre este ou aquele instituto do processo, sim o que observo sobre a cultura processual.
Por um lado, o desprezo de uns quanto aos meios processuais, diabolizados os que os usam como se vis abusadores, anafados pelo "excesso de garantismo", culpados de entorpecerem, dilatoriamente a acção da Justiça, de gerarem dolosamente a impunidade, todos assim misturados, com os reais chicaneiros, os verdadeiros litigantes de má fé, eles os que querem apenas que se cumpram as regras do jogo enquanto não acabarem com elas, e tudo isto amalgamado, em vergonhosa contradição moral, com a complacência com os mesmos expedientes processuais, com a mesma gestão do facto através do processo, a mesma subrogação da lei substantiva pela lei adjectiva que deveria ser seu instrumento e se torna em seu sucedâneo quando isso convém aos que a censuravam, quando os fins justificam afinal os meios, assim lhes toque ao resultado que querem atingir pela delonga, a gestão do tempo prescricional, o surdo arquivamento. 
É a ideia, mais do que pressentida, percebida, mesmo pelo leigo e pelo plebeu, de que "ao menos do processo não se livra", e quanto à prisão "pelo menos a preventiva caiu-lhe nos costados", aquele e esta a serem o feito intercalar em vez do que se sabe não se poderá no final fazer: o meio ser o resultado.
Por outro, a doce sabor que tantos encontram nas formas dúcteis, na maleabilidade dos actos, no arranjo do processo ao sabor do momento, no consenso modelador arranjado entre os participantes no caso, organizando-se "à maneira", que a ideia de a lei impor a forma processual prévia, tal como exige que a lei incriminadora seja a pretérita, passou a moda defunta porque inútil, inviabilizando o negócio processual, o expediente oportuno, o reino do Senhor do Bom Despacho.
Enfim, é o regresso do processo penal como processo de jurisdição voluntária: afeiçoável ao que for a conveniência do caso.
É pois essa a cultura "intervalar", entre o tempo em que se respeitava a lei e o tempo em que a lei se ajusta. Do dura lex passou-se ao fantástico tempo da mollis lex.