Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Uma lição de vida

Há quantos anos tenho o seu Tratado, comprado ainda em tempo de poucos recursos e imensas ambições.  Sete volumes, espessos, escritos em linguagem clara, fruto de uma vida dedicada ao ensino do Direito Criminal, redigida durante anos, iniciada em 1946 e prolongada até 1957, ano da sua publicação, sempre me impressionou, que a findar o último tomo, dele conste uma bibliografia dos seus escritos, lista imensa de livros, monografias e traduções. É que, tivesse sido Luis Jiménez de Asúa apenas o professor encerrado no seu gabinete de trabalho, cercado pela biblioteca e dividido entre o ensino e a teoria jurídica e eu compreenderia como teria sido possível aquele agigantado labor, a sua extensão, a sua profundidade.
Mas não. Se há vidas que são várias vidas, a dele é exemplo, vividas todas intensamente.
Nasce em 1889, em Madrid, foi trabalhador-estudante em virtude das dificuldades financeiras, pois ficou órfão bem jovem. Defende tese de doutoramento em 1913, tomando como tema, que será o início maior das suas reflexões, a questão do carácter determinado das penas, enfim o problema de saber se a sua duração pré-fixada é compatível com as finalidades que se propõem.
Ocorre a partir daí a sua formação no estrangeiro, em Paris, na Suiça e em Berlim, onde frequentou as aulas de Franz von Liszt. Tem de abandonar a Alemanha devido ao início da Primeira Guerra. 
É em 1915 que inicia a sua actividade docente especificamente universitária que se prolongou por toda uma vida.
As ideias políticas, que expressou em registo de intervenção cívica, haveriam de colidir, porém, com a História de Espanha, primeiro com o surgimento da ditadura nacionalista de Jose Antonio, Primo de Rivera, depois com a de Francisco Franco, tudo regimes ditatoriais incompatíveis com o seu pensamento liberal. 
Incansável viajante, desloca-se em 1923 à Argentina onde profere conferências que de ora em diante dissemina praticamente por toda da América Latina.  Em 1926 é desterrado para as Ilhas Chafarinas. 
Regressado a Madrid, após indulto Real, depara-se com a impossibilidade de continuar a ensinar e é na circunstância que de novo se translada para a Argentina, sua pátria de acolhimento e se desdobra em périplo incessante.
O advento da II República espanhola, em 1931 convoca-o para a política activa, o que aceita com relutância, mas é eleito deputado, sendo trabalho da Comissão a que presidiu a Constituição da República de então.
É durante o período da Guerra Civil que a sua militância se transforma claramente em acção pública. É nomeado Encarregado de Negócios na Checoslováquia, ponto nevrálgico para a criação de uma rede de espionagem e acção clandestina a favor da causa republicana, sendo ministro plenipotenciário a partir de 15 de Abril de 1937 e presidente da delegação espanhola à Sociedade das Nações.
Finda a guerra, vitorioso o franquismo, resta-lhe o exílio. Arranca então o momento mais criativo, o de sistematização do seu pensamento. No plano político assume a Presidência das Cortes no exílio, as únicas que reconhece como legítimas, saídas de sufrágio popular. Escreve incessantemente, desdobra-se em novas viagens, faz pedagogia em esforço sempre renovado.
É deste período a redacção do Tratado.
Falece em 16 de Novembro de 1970, após um enfarte cardíaco sofrido no ano antecedente.
Advogado durante período efémero defende socialista implicados na Revolução de Outubro de 1934.
Na sua obra, minuciosamente documentada, Enrique Roldán Cañizares traz-nos não apenas os passos do Mestre, mas a evolução das suas ideias. Asúa teve tempo de vida para ter coexistido com a Escola Clássica do Direito Penal, com o pensamento de Edmund Mezger e com o Hans Welzel, para citar três marcos miliários dessa evolução história da teoria jurídica sobre o crime e as penas. O fim da sua vida devolve-o ao encontro dos seus primeiro passos. 
Um trabalho assim sobre uma vida como esta exigiria muito mais do que este breve apontamento. Não me é possível por várias razões até porque, não fosse relevar a ignorância, ainda vou a um terço das 406 páginas. Não poderia, porém, deixar de vir aqui sinalizar, uma estridente alegria ante o livro e a nostalgia pelo que poderia ter feito da sua lição de vida. 

Arresto e perda de bens

Conjugue-se o arresto e o regime de perda previsto no Código Penal com o que resulta da Lei n.º 5/2002, a chamada perda "alargada". Trata-se da inversão dos conceitos fundamentais que julgávamos inderrogáveis no Estado de Direito. Já não é a criação de um ónus de prova a cargo do arguido em matéria penal, é o juiz forçado a condenar, no que afinal é uma sanção, quanto a factos que nem chega a julgar: a partir de um crime-pretexto, o Estado presume uma carreira criminosa, a origem ilícita do património, do próprio arguido ou de terceiro e a tudo lança mão, punitivamente. Tudo permite assim réditos para a Fazenda Nacional, através do confisco. Confisco que a própria Constituição de 1933, a da Ditadura Nacional, proibia, mas que hoje é conceito que passa, sem pudor, pela literatura jurídica sobre o tema. Em algum momento se terá seguramente suspendido a Constituição da República para isto se ter tornado possível. As bases da criminalização do enriquecimento ilícito, estão lançadas e já duram há dezassete anos. Eis o que procurei dizer, na passada sexta-feira, num evento organizado pela Delegação de Portimão da Ordem dos Advogados.


Á ideia de conferência subjaz a de conferir. É esse o propósito: conferir o meu pensamento com o vosso, para que se possa, em diálogo, convergir no possível. A presente comunicação corresponde a uma reflexão a que procedi expressamente para este evento. Trata-se, pois, peço para tal compreensão, de um primeiro contacto mais específico com este controverso tema. 

Indo aos conceitos, importa notar que o arresto, enquanto medida de garantia patrimonial no processo penal, não se confunde com a apreensão de bens, o qual é um modo de obter prova. Além disso, o arresto não visa necessariamente a perda de produtos, instrumentos e vantagens prevista no Código Penal, mas esta uma a inter-relação típica que se tem evidenciado na prática. Mas, e é este o foco da minha ponderação, trata-se, no que à perda de «instrumentos, produtos e vantagens» prevista no Código Penal respeita, de algo diverso do regime de perda de bens entronizada em 2002 e que se denomina de “perda alargada” ou “confisco alargado”. A interligação destas realidades é ainda mais estridente quando se considerar que o arresto é permitido e, por isso, a perda também, relativamente a bens de terceiro. 

É este o tema desta conferência. Uma prevenção liminar se exige: é impossível analisar aqui a densa e controversa problemática do regime da perda de bens, já amplamente ponderada em escritos de vários especialistas e pela jurisprudência, inclusivamente constitucional. 

O propósito a que me abalanço é circunscrito porque focado em algumas das zonas problemáticas sobre as quais entendo não ser demais reflectir, na esperança ténue de que ainda possa haver regressão nesta política legislativa agressiva e em nada dignificante para a Justiça. 

Quando se preparou Código de Processo Penal de 1987 concebeu-se o arresto como medida subsidiária, pois que não imediatamente aplicável, mas operacionalizável apenas por efeito da inexequibilidade de uma outra medida de garantia patrimonial, a caução, isto é, haveria lugar a arresto quando tivesse sido requerida caução e a mesma não fosse prestada. 

O instituto do arresto não tinha antecedente expresso no domínio do Código de Processo Penal de 1929, mas a questão era configurada em termos da literatura jurídica, admitindo-o, por exemplo Cavaleiro de Ferreira nas suas lições, aplicável enquanto acto por essência jurisdicional, por isso numa fase judicial do processo. 

Consagrado antes de 1987 com esta fisionomia, ficava excluída a possibilidade de ser requerido o arresto penal como medida de aplicação directa, ou seja, não tendo que accionar previamente a caução. 

Era, esta a redacção do artigo 228º, n.º 1 do Código de Processo Penal: 

«Se o arguido ou o civilmente responsável não prestarem a caução económica que lhes tiver sido imposta, pode o juiz, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, decretar arresto, nos termos da lei do processo civil.» 

O sistema, convenha-se hoje em balanço crítico, era limitado e pouco apto a gerar os efeitos conservatórios patrimoniais eficazes, até porque aquele contra quem poderia ser actuado o arresto, prevenido que ficava desde logo quanto à sua eventualidade, ante um pedido de caução, tinha tempo para fazer escoar o seu património para zonas mais seguras, ou por ocultação do mesmo, ou por transmissão simulada da sua titularidade para a esfera de terceiro de confiança. 

E logo aqui se alcança a relação típica do arresto com bens de terceiro, bens que o terceiro haja obtido ao arrestando ou por alienação real ou simulada. 

E assim, pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto o sistema do arresto comum foi alterado para o perfil que dele hoje conhecemos, a da possibilidade de tal medida ser requerida imediata e directamente, sem prévia tentativa de obtenção de caução. 

É esta, pois, a redacção actual do referido artigo 228º do Código de Processo Penal: 

«Para garantia das quantias referidas no artigo anterior [pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime ou ainda da perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondente], a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial.» 

Assim reconfigurado, o arresto não tem ficado imune, porém, a dificuldades de aplicação, as quais decorrem de dificuldades na interpretação de um sistema legal que pretendeu ser claro, sobretudo quando [e estamos a antecipar se configurar o arresto para o instituto da perda alargada de bens, como se explicitará a seguir]. 

Vejamos algumas dessas matérias, não perdendo de vista o tema que propus. 

A primeira questão consiste em saber se o arresto apenas pode ser decretado contra o arguido, o que a lei resolve, ao aditar, em formulação embora indirecta, a figura do responsável civil como sujeito processual cujo património pode ser arrestado. 

E se digo em formulação indirecta é porque a figura do responsável civil, enquanto sujeito passivo de arresto, vem indicada num dos números do citado artigo 228º, o n.º 5 do Código de Processo Penal, a propósito da revogação desta medida de garantia patrimonial, onde ali se prevê: 

«O arresto é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente responsável [eis a previsão] prestem a caução económica imposta.» 

Diga-se que, em bom rigor, esta técnica legislativa não é feliz, pois abre a porta a uma interpretação – que nem se poderia considerar muito especiosa - , segundo a qual estando arrestados bens do arguido, o arresto seria revogado quando, não ele, mas o responsável meramente civil, prestasse caução; para afastar este modo de entender, teria sido preferível que a lei clausulasse que o arresto seria revogado quando o arrestado [arguido ou responsável civil] prestasse caução de valor equivalente ao do património sob arresto que a um deles pertencesse. 

Sem dúvida assim aplicável ao arguido e ao responsável meramente civil, outras dúvidas se podem suscitar ainda no que se refere ao âmbito subjectivo de aplicação desta medida de garantia cautelar. 

A primeira é se o arresto pressupõe a prévia constituição de arguido, ou se poderá ser aplicado contra aquele que não o seja sequer, nem venha a ser arguido. 

O problema é estritamente jurídico e decorre de o Código de Processo Penal, em normativo aplicável também às medidas de coacção, ter uma previsão específica que pode dar origem a problemas de interpretação. 

Vejamos, pois, alguns desses temas controversos, fazendo um breve recuo para contextualização. 

Primeiro, tal como o arresto em processo civil, o arresto em processo penal exige a demonstração do receio de perda da garantia patrimonial, com a especificidade de, tendo sido previamente fixada e não prestada caução, o requerente fica então dispensado da prova desse receio [assim se transmutou a relevância da prévia inexequibilidade de caução em mera presunção do perigo efectivo de incumprimento das obrigações inerentes à condenação em justiça penal]. 

Fica, porém, em aberto a necessidade de demonstração do fumus bonis iuris, da aparência convincente do direito que pela medida cautelar se pretende fazer valer? Seguramente não, dir-se-á, apenas porque, ante a especificidade de se estar face uma providência a requerer num processo penal em tramitação, no processo estará precisamente, ainda que em sede indiciária [enquanto em inquérito] a evidência factual desse mesmo direito, pressupondo-se [ressalve-se] que a averiguação tenha chegado a reunir o suficiente no que a tais necessários indícios probatórios respeita. 

Mas, eis o tema em forma de pergunta, estará precludida a eventualidade de se requerer arresto antes da existência de procedimento criminal, como antecedente do mesmo e precisamente na lógica de acautelar o cumprimento do que do processo venha a resultar, sobretudo porque, ante o regime da publicidade-regra do próprio inquérito, pode bem suceder que, conhecedor da existência de um processo criminal, o visado titular dos bens de cujo arresto se trate, os subtraia a qualquer providência conservatória tipo arresto que possa surgir? 

A resposta que, hesitante embora, proponho como hipótese para discussão é: não há preclusão do direito, podendo o requerente solicitá-lo no foro civil, avançando ali com a factualidade que depois vertera na notícia de infracção penal. 

Mas [há sempre um “mas” nas questões jurídicas a embaraçar os raciocínios] estando o requerente deste arresto civil, adstrito, por via das regras processuais civis, a propor a acção principal de que o referido arresto, enquanto medida cautelar, é instrumento, sob pena de caducidade da providência, no prazo de trinta dias após a notificação do trânsito em julgado da decisão judicial que a tiver decretado [artigo 373º do Código de Processo Civil em vigor, artigo 389º do antecedente], pergunto, como aplicar este regime ao processo criminal por via da aplicação subsidiária deste código, já que, no domínio da lei adjectiva penal haja lacuna quanto à previsão da situação? 

A valer esta sugestão, requerida a providência e decretada no foro civil, a propositura da acção principal que impediria a sua caducidade e lhe garantiria a vigência, seria precisamente a resultante de uma subsequente denúncia criminal. 

Não resolver assim o problema [afinal por via do reconhecimento de lacuna e não de vontade legislativa de não admitir a situação, ou seja através do artigo 4º do Código de Processo Penal] será abrir a porta ao desguarnecimento de tutela efectiva a situações nas quais que o perigo de perda de garantia patrimonial pode estar iminente, e as delongas de um procedimento criminal [da notícia da infracção ao momento do inquérito em que haja elementos indiciários seguros da aparência do direito a tutelar] darão tempo suficiente para a ocultação dos bens arrestáveis. 

Resolver como sugiro é, porém, tenho disso consciência, gerar um problema por forma duplamente problemática: porque não há norma jurídica que permita essa exportação do procedimento cautelar civil para o processo penal [já não só como mera prova, mas como decisão a produzir efeitos no que se refere ao decidido em termos da providência] e talvez por uma questão de cultura judiciária, a de separação mental entre os critérios e a competência do foro civil e o mundo processual penal. 

E, no entanto, recorrendo ao ensino de Cavaleiro de Ferreira, nele encontro uma linha de pensamento que abre espaço de legitimação para esta perspectiva. É que, separando o arresto das apreensões, e abrindo como tema a possibilidade deste no domínio processual penal, o referido professor, recorre ao princípio da adesão da acção civil indemnizatória em processo penal, e a propósito escreve: 

«Na verdade, os processos preventivos ou conservatórios devem ser apensados ao processo da acção principal, logo que seja proposta, e se a acção tiver sido intentada noutro tribunal, para este dever ser remetido o processo […]; a partir da apensação só o juiz da acção principal é competente para os termos subsequentes. 

«Ora o tribunal competente para a acção civil principal de indemnização por perdas e danos emergentes de factos criminosos é o tribunal penal; poderá assim entender-se que o arresto para garantia daquela responsabilidade é também da competência do juiz penal.» 

Fica o tema enunciado e aberto em termos de solução possível. 

Equacionado o primeiro tema, equacionarei o seguinte, já acima esboçado, o qual significa saber se o arresto pode ser decretado quanto a terceiro que não seja arguido, em rigor não haja sido ainda constituído a arguido ou não venha sequer a sê-lo, isto independentemente de poder ser sujeito ou participante no processo, por exemplo como testemunha. 

Trata-se de um tema com sério relevo prático. 

Como primeiro enfoque, note-se que, nos termos do artigo 192º, n.º 2 do Código de Processo Penal, a aplicação de uma medida de garantia patrimonial [no caso o arresto, mas o princípio vale igualmente para a outra, a caução] depende da prévia constituição do visado como arguido, isso com duas excepções, uma de cunho estritamente cautelar, outra de cunho prático, ambas ressalvadas naquele preceito. 

Consiste a primeira excepção em poder haver arresto contra quem não haja sido previamente constituído como arguido, se a investidura em tal estatuto [a processar-se como se sabe nos termos do artigo 58º do Código de Processo Penal] puser «em sério risco» [note-se a adjectivação] a finalidade ou a eficácia da medida. É o que está salvaguardado no n.º 3 do citado artigo 192º do Código de Processo Penal, preceito que impõe, porém, que a constituição como arguido se efectue, por despacho judicial, em momento imediatamente posterior ao decretar da providência, em caso algum excedente as setenta e duas horas. 

De acordo com a segunda excepção, ressalvada agora no n.º 5 do mesmo artigo, a não constituição prévia como arguido do arrestando é possível, a ter-se revelado comprovadamente impossível efectuá-la, por o visado estar ausente em parte incerta e se terem frustrado as tentativas de localizar o seu paradeiro, o que terá de resultar de despacho judicial fundamentado. 

Vistos os termos equacionados quanto à correlação decretamento de arresto/constituição como arguido, surge o problema: poderá ser decretado arresto contra não arguido ou responsável civil, nomeadamente em caso de ocultação de património arrestável, concretamente património que o arguido ou o responsável civil hajam dissimulado junto de um terceiro, isto independentemente de o fazerem através de branqueamento de capitais? 

Em rigor, não se tratando de património da titularidade do arguido ou do responsável civil, mas património que hajam alienado, por acto negocial cuja invalidade não esteja decretada, pode ser decretado arresto quanto a esse património, ou seja, contra estes seus novos titulares não arguidos no processo penal? 

Do ponto de vista dos princípios gerais, parece fazer sentido que o sistema de justiça não fique desguarnecido ante uma situação em que a garantia que o arresto supõe seja defraudada através de uma manobra pela qual o arguido ou o responsável civil ocultem os bens em causa nomeadamente dissimulando-os na esfera de titularidade de uma pessoa de confiança, amiúde com uma cláusula de reversão para as suas pessoas, mas em qualquer caso continuando a ser, ele arguido ou ele responsável civil, os beneficiários efectivos do bens em causa. 

Do ponto de vista da segurança jurídica, dos legítimos direitos de terceiros, e do respeito pelas situações negociais cuja invalidade não haja sido decretada, a resposta terá de ser, porém, outra. 

E assim, num primeiro registo, até haver uma decisão judicial transitada que, ao estilo da impugnação pauliana, faça reverter para a esfera patrimonial do arrestando o acervo que este haja alienado para terceiro [a título oneroso ou gratuito, por forma simulada ou não], aqueles bens seriam intangíveis do ponto de vista do arresto. 

A impugnação pauliana, como se sabe, pressupõe [conforme o artigo 610º do Código Civil] a verificação cumulativa de um crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, acto doloso visando impedir a satisfação do direito do futuro credor e resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade. 

Isto até porque importa relevar que as transmissões posteriores a favor de terceiros ou a constituição por terceiros de direitos sob os bens em causa está protegida quando não tiver ficada evidenciada a má fé nesses actos [artigo 613º do Código Civil]. 

Por ser assim é que o n.º 4 do artigo 228º do Código de Processo Penal prevê que «em caso de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados, pode o juiz remeter a decisão para tribunal civil «mantendo-se entretanto o arresto decretado» e sem que fique evidenciado qual o critério a seguir para a devolução de competência na matéria. 

Mas é relevante sobretudo nesta matéria do arresto criminal dos bens transmitidos a terceiro, o estatuído no artigo 392º, n.º 2 do Código de Processo Civil [a aplicar no domínio do processo penal precisamente por força da remissão directa para aquele ordenamento processual civil efectuada pelo n.º 1 do artigo 228º do Código de Processo Penal] quando nele se determina, tal como no n.º 2 do artigo 407º do Código seu antecedente: 

«Sendo o arresto requerido contra o adquirente de bens do devedor, o requerente, se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, deduz ainda os factos que tornem provável a procedência da impugnação.» 

Esta previsão abre efectivamente a porta, em caso de transmissão de bens a terceiro, ao arresto respectivo desde que, ou haja sido accionada a impugnação da transmissão àquele ou, não o tendo sido, se o requerente desse arresto a bens de terceiro convencer o juiz de que tal impugnação é provável. 

Como o evidenciou o Acórdão da Relação de Coimbra de 2 de Novembro de 2005 [proferido ainda no domínio do Código de Processo Civil anterior, mas estabelecendo entendimento válido face ao actual porquanto existe identidade material das normas]: 

«Perante estas circunstâncias os requisitos a preencher no arresto dependem do facto de se encontrar ou não pendente a acção de impugnação pauliana. Assim, se tal acção tiver sido instaurada, bastará a alegação e prova dos factos relativos à probabilidade do crédito (e ao justo receio de perda da garantia), destinando-se o arresto dos bens a dar eficácia à decisão que eventualmente venha a ser proferida; se a acção de impugnação pauliana não tiver sido ainda instaurada, exige-se ainda complementarmente a alegação e prova sumária dos pressupostos da impugnação, como factor de credibilidade e de seriedade da pretensão, tanto mais que vai intervir na esfera pública de terceiros, porventura alheios à esfera creditícia de onde emerge o direito». 

Ou seja, e em suma, no caso de transmissibilidade impugnável de bens arrestáveis, o arresto penal pode incidir sobre esses bens, pois tratar-se de conceder meio cautelar que permita eficácia ao exercício do direito de impugnação. É o velho princípio segundo o qual a cada direito corresponde uma acção apta a possibilitar o seu exercício. 

E, enfim, equacionado o problema do arresto de bens transmitidos a terceiro, tal como se suscita no Direito Processual Penal comum, haverá que revisitar-se o tema agora em face do arresto nos termos da legislação sobre perda de bens. 

É que, para além daqueles referidos arrestos, outro existe, decorrente da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, a qual determina no seu artigo 7º, em termos de perda de bens a favor do Estado, a perda das vantagens ilícitas supostamente obtidas pelo arguido, supostamente porque com base numa presunção, já que, segundo o mencionado preceito, «presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.» 

Trata-se de figura que tem dado azo às mais acerbas críticas pelo contorno invasivo das medidas que permite, pelo carácter ambíguo dos seus conceitos e pela ruptura que significa com os princípios gerais de Direito que balizavam a nossa justiça criminal. 

Não é aqui a ocasião e detalhar o que está em causa, mas, em breve registo, eis alguns dos nós problemáticos de tal instituto: 

-» primeiro, a natureza da figura, que claramente assume natureza sancionatória e materialmente punitiva, e que se distancia da perda de «instrumentos, produtos e vantagens» já prevista no Código Penal, pois tem, como se dirá, um âmbito de incidência bem mais amplo [de «perda alargada» fala o legislador], ao atingir não só vantagens presumidas de um crime, mas bens resultantes de uma «provável actividade criminosa», ou seja, de uma suposta «carreira criminosa», como refere a Exposição de Motivos do diploma que o introduziu no nosso Direito; 

-» segundo, a demonstração probatória da incongruência patrimonial cuja prova negativa ser colocada, não como dever do Ministério Público, mas sim a cargo do arguido, em inversão do princípio da inexistência quanto a este sujeito de ónus probatório penal e isto quando se trata, afinal, de demonstrar a origem lícita e não criminosa dos bens e rendimentos presumidamente excessivos ou, afinal é dizer, da sua natureza não criminosa, ou [sendo incisivo] da prova de facto negativo [a sintomaticamente chamada “prova diabólica”] da inexistência de actividade criminosa que haja gerado tal vantagem que o legislador, afinal, presume; 

-» terceiro, ainda seguindo o mesmo registo, porque se trata de presumidas vantagens emergentes de uma presumida actividade criminosa, esta não tem de estar verificada processualmente na forma de prévia condenação [já nem digo transitada em julgado] por qualquer crime, pois do que se trata é, a partir do pretexto da condenação em um dos crimes do catálogo previsto na lei n-º 5/2002, o legislador extrair um passado criminoso presumido que haja presuntivamente gerado a fortuna ilícita que quer para os cofres do Estado, e isto indo ao ponto de essa presunção ir tão longe quanto implicar como sua consequência que tal presumida actividade possa nem ter ocorrido pela prática reiterada de crimes que sejam os do catálogo onde se localiza o [chamemos-lhe assim], “crime-pretexto”; 

-» quarto, porque de confisco se trata afinal, o que irresistivelmente exige que lembremos que na Constituição autoritária do Estado Novo, saído da Ditadura Nacional, promulgada em 1933 era garantia do cidadão o não haver confisco de bens [artigo 8º, n.º 12º], isto sem excepção permitida à lei ordinária; 

-» quinto, porque este regime é, afinal, uma retroacção punitiva quanto a crimes meramente presumidos relativamente aos quais [a haver verosimilhança na sua existência] as autoridades judiciárias e os órgãos de polícia criminal terão falhado e só agora, estendem o braço punitivo do Estado pela via indirecta de uma sanção pecuniária que é a sua perda para a Fazenda Nacional; 

-» sexto, porque a presunção da ilicitude do património, é ela própria extensa, porquanto não engloba apenas o património emergente do “crime-pretexto”, mas afinal todo o património da pessoa, que assim é considerado, na sua totalidade, presuntivamente ilícito, e é aqui que de verdadeiro confisco se trata, pois, como efeito deste sistema, quem não apresentar prova da origem do património, a partir de um crime em que seja condenado, arrisca-se a ficar sem todo ele, assim a liquidação feita pelo Ministério Público quanto às presumidas vantagens seja de um tal valor; 

-» sétimo, porque ainda neste registo, nem se diga que essa presunção de ilicitude na origem de todo o património do agente decorre de o “crime-pretexto” se enquadrar, também ele presumidamente, numa actividade criminosa organizada, ou seja, fruto de uma estrutura apta a gerar rendimentos ilícitos, porquanto, conferindo o catálogo de “crimes-pretexto” [que está enunciado logo no artigo 1º do diploma], verificamos que apenas em relação a três deles [os das alíneas p) a r) do n.º 1] se manda aplicar a lei a “crimes-pretexto” praticados «de forma organizada», sendo esses crimes os de lenocínio, contrabando e tráfico e viciação de veículos furtados, pelo que em relação a todos os demais, o requisito de crime organizado é dispensado; 

-» oitavo, porque a própria isenção e dignidade do juiz do processo fica posta em crise ao coonestar, por decisão sua afinal, a sanção que a perda alargada materializa, a qual assenta na presunção de actividade criminosa que ele juiz não julgou pois lhe é apresentada como mera presunção, ou mais grave ainda dito assim, o juiz que condenar pelo “crime-pretexto” condena também pelos crimes presumidos para que enriquecida fique a Caixa do Tesouro à conta de uma violência judicial. 

E muito mais se diria, sempre numa lógica nada abonatória para esta figura. 

Ora para se operacionalizar a referida perda destas vantagens presuntivas, o n.º 1 do artigo 10º dessa lei especial determina que «é decretado arresto de bens do arguido», ou seja, numa forma injuntiva nem sequer parece deixar margem à avaliação de tal medida de cunho cautelar. 

Não fora o número seguinte introduzir alguma restricção a esta fórmula agressiva pareceria que estaríamos até ante um arresto automático ou necessariamente obrigatório. 

É no n.º 2 que encontramos alguma ordem e critério para esta situação, por sua natureza já nos limites do razoável [ou dir-se-á para além dos limites], pois aí se clausula: 

«A todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação [da pressuposta e referida desconformidade patrimonial], quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa.» 

Só que, numa remissão duplamente disparatada, o n.º 3 do artigo 10º da referida Lei, estabelece que o arresto, é decretado: 

«[…] independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime.» 

O disparate é duplo, como disse, primeiro porque o artigo 227º do Código de Processo Penal se refere à caução económica e não ao arresto penal; segundo porque, tratando-se de um arresto especial referente a «actividade criminosa», para o caso de «condenação pela prática de crime», a previsão parece redundante. 

Mas, se esta segunda faceta ainda pode ser aceite, podendo dar-se ao legislador o benefício de ter pretendido circunscrever este arresto especial a casos em que haja mais do que meros indícios de crime e tenha de haver «fortes indícios» da prática de crimes, já a primeira bem poderia ter sido evitada. 

O que o legislador quis dizer – e quase que com pudor obnubilou através da remissão para um artigo incongruente – é que este arresto especial dispensa a demonstração do fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias «de pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime» [é isso quanto consta no n.º 1 do artigo 227º para onde se remete]. 

Ou seja, este arresto penal especial, havendo fortes indícios da prática de crime, pode ser decretado [ante a fórmula do nº 1 do artigo até quase diria «é decretado»] sem que haja que evidenciar, porque, também aqui implicitamente se presume, que as garantias em causa estão em perigo. 

Tudo visto, é precisamente quanto a este tipo de situação especial que é possível decretar arresto indiscriminado quando a bens de terceiros, porquanto até esses podem ser objecto do regime especial de perda previsto naquela lei. 

Incindido sobre vantagens [presumidas], nos termos do artigo 7º são passíveis de perda os bens que integrem o património do arguido, sendo que por tal se entende [nos termos do n.º 2 de tal preceito] o conjunto de bens: 

«a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente; 

«b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido; 

«c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.» 

E mais ainda, são passíveis de perda e por isso de arresto, conforme esta lei, os juros, lucros e outros benefícios obtidos com os bens em causa: 

«[…] que estejam nas condições do artigo 111º do Código Penal.» 

Ora dispõe o citado artigo 111º: 

«1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada. 

«2 - Ainda que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a terceiro, é decretada a perda quando: 

a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios; 

b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou 

c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida. 

«[…].» 

Como conjugar este enredo de remissões? 

De facto, o Código Penal já prevê a perda de «instrumentos, produtos e vantagens» de terceiros, mas pressupõe uma relação do terceiro com o agente do crime, ou por concurso para a prática do ilícito, ou por conhecimento do modo ilícito da aquisição ou da finalidade escapatória da transmissão; na Lei n.º 5/2002 do que se trata, em termos de perda e destarte de arresto, é de bens transmitidos a terceiros «a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido» e sem que se explicite o conceito de «contraprestação irrisória» e abrando-se assim, também aqui, a porta ao arbítrio. 

Isto para além de, em relação ao arguido, serem passíveis de perda e assim de arresto os bens que estejam na sua titularidade, «ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente» e os bens «recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.» 

Em suma, a interconexão do arresto com a perda alargada acaba consagrada no artigo 12º da Lei n.º 5/2012, que vimos acompanhando, porquanto aí se prevê que, em caso de condenação o arguido e não havendo caução prestada, pode livrar os bens arrestados [leia-se, incluindo os de terceiro] pagando o valor que o Ministério Público tiver liquidado como correspondendo à presumida incongruência patrimonial, presumidamente oriunda de actividade criminosa e não apenas do crime-pretexto que deu abertura a tudo isso. 

O que significa que há lugar a uma condenação alargada em valor pecuniário, através do instrumento do arresto de bens, espécie de sentença sem julgamento. 

Se isto é constitucional é seguramente porque se suspendeu a Constituição, em estado de sítio jurídico-penal. 

Tenho dito.