Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




A regra da fila de táxis

Não é apenas quando a advocacia se torna indústria que a relação advogado/cliente se altera; é também quando a advocacia se irmana com a política e os advogados a só aceitarem casos que os deixem bem colocados ante a opinião pública e o mercado.
Tudo isto merece uma reflexão aprofundada e não apenas um apontamento.
Em Inglaterra o tema está definido através da regra da cab rank rule, que se pode traduzir como "a regra da fila dos táxis", termo sugestivo que esclarece do que se trata: tal como o táxi que, estando na fila, não pode recusar o passageiro que lhe surja, também o advogado não pode recusar o cliente que o procure alegando simpatia ou antipatia pelo caso.
O princípio tem um fundamento: a não existir tal regra os envolvidos em casos com os quais a opinião pública antipatiza não encontrariam quem os defendesse. Mas o princípio vai contra outro fundamento, o carácter liberal da profissão de advogado. Onde encontrar o ponto de equilíbrio numa sociedade em que a juntar à indústria há o predomínio das relações públicas? 

Obtemperando a ânsia de clareza


Foi aditado ao Código de Processo Civil um princípio geral segundo o qual «O tribunal deve, em todos os seus atos, e em particular nas citações, notificações e outras comunicações dirigidas diretamente às partes e a outras pessoas singulares e coletivas, utilizar preferencialmente linguagem simples e clara». É o artigo 9º-A decorrente do Decreto-Lei n.º 97/2019, que creio nada obsta antes tudo impõe se aplique a outros ramos do Direito incluindo o processual penal.

É interessante a iniciativa como acto generoso de boa vontade, sobretudo em contexto eleitoral, mas não resiste a uma reflexão. 

Primeiro, salta à vista que na própria página electrónica onde está publicado o diploma legal que tal novidade traz está prevista uma ligação para a explicação resumida do mesmo em linguagem clara [o que se tornou, aliás, obrigatório para a legislação publicada]. Mas, eis o bizarro, essa menção à versão da lei em linguagem clara tem aposta a prevenção de que é «sem valor legal». Ou seja a lei que impõe aos tribunais comunicarem em linguagem clara é a mesma que nos surge em resumo que não tem valor legal. 

Dir-se-á que o que não tem valor legal é o ser resumo e não o tratar-se de linguagem clara: mas a ser assim qual o interesse do resumo ante um sistema jurídico em que a ignorância da lei não aproveita ao cidadão? Se a lei presume a sua incognoscibilidade ante o seu tecnicismo [e isso esvazia a moralidade da presunção do conhecimento e a natureza não eximente da ignorância] e, por isso, obriga o resumo para que o cidadão conheça, então que conhecimento relevante é esse que é desprovido de valor legal?

Descontando esta nota meramente irónica, fica uma outra: sendo o Direito uma realidade técnica, será que a linguagem clara dispensa, por substituição, aqueles conceitos? Ou melhor dizendo, haverá forma de os reduzir à almejada clareza? Comunicar que fica "citado" e não "notificado" pode dizer-se em linguagem clara? Que a notificação a um prazo acresce uma "dilação" é possível dizê-lo em linguagem clara? Que o notificado deve constituir "mandatário" é claro que tenha de ser advogado ou solicitador? Que deve comparecer para prestar "termo de identidade e residência" ou ser constituído como arguido"?.

E já agora, uma vez que uma sentença e inúmeros despachos são actos que devem ser notificado directamente às "partes", pergunto se dos mesmos não podem constar termos como «litispendência», «efeito cominatório», «prazo peremptório», «vinculação temática», e outros que tais, para já falar em «obtemperar», «hermenêutica», «densificação axiológica» ou palavras em latim [«nemo tenetur se ipsum accusare»] ou alemão ]«Ordnungswidrigkeitengesetz»]?

E não se diga que a clareza é exigida para a notificação que não para o notificado: é que pensar assim é esvaziar por completo o sentido daquela forma de comunicação, tornando claro o envelope e obscuro o que nele se contém.

Suponho que a norma nova traduz um sentimento, oxalá se traduza em algo de útil. Sobretudo quando estamos ante um Direito que é de tal modo pouco claro que são nosso quotidiano as interpretações divergentes dos conceitos jurídicos, e prolifera uma literatura jurídica intragavelmente obscura que se tornou moda e título de mais valia intelectual.

Parecer e acção

Indo ao ponto e fazendo-o agora que não há problema pendente em cujo desfecho pareça que eu esteja a querer intervir.
À Procuradoria Geral da República cabe, nos termos da lei «dirigir, coordenar e fiscalizar a actividade do Ministério Público e emitir as directivas, ordens e instruções a que deve obedecer a actuação dos magistrados do Ministério Público no exercício das respectivas funções»; e cabe-lhe também «emitir parecer nos casos de consulta previstos na lei e a solicitação do Presidente da Assembleia da República ou do Governo».
Há também os auditores jurídicos os quais exercem funções de consulta e apoio jurídicos a solicitação do Presidente da Assembleia da República, dos membros do Governo ou dos Ministros da República junto dos quais funcionem.
Ora decorre da lei que os titulares do Ministério Público não podem recusar o que decorrer de «directivas, ordens e instruções emitidas pelo Procurador-Geral da República, salvo com fundamento em ilegalidade.»
Ora quando o Governo ou o Presidente da Assembleia da República têm dúvidas sobre a ilicitude uma conduta optam por obter parecer à Procuradoria Geral significa isso que a liberdade de apreciação dos factos por parte de cada um dos procuradores que seja no terreno competente para os apreciar fica desde logo condicionada pelo que decorra do parecer vindo da alta instância que é a Procuradoria-Geral?
Dir-se-à que tecnicamente não fica. Retirando o tecnicamente, permito-me deixar a pergunta.
E já agora, a não haver lógica de condicionamento, que razão há para que o Governo, que está dotado de juristas próprios e os contrata no exterior com prodigalidade e tem, como disse, o concurso dos auditores jurídicos, tendo dúvidas de legalidade e de licitude quanto a condutas que, a serem ilícitas até podem integrar a prática de crime, não esclarecer a dúvida por aqueles meios e ir directo à Procuradoria Geral da República?