Palavras de José António Barreiros quando da atribuição àquele da Medalha de Ouro da Ordem dos Advogados, a 14 de Junho de 2018
«Com pudor aceitei a honra de poder proferir estas palavras. A vida permitiu-me estar no momento em que a minha Ordem congratula duas figuras nacionais que mais respeito, uma delas o Senhor General António Ramalho Eanes, a quem a gratidão da Pátria não estará nunca à medida da dívida que a Nação para com ele contraiu, pela sua acção militar e política e pela excelência do seu exemplo moral, esteio em tempo de crise. Sem si, meu General, a democracia não teria resistido, consigo a honradez e a decência teriam tanta dificuldade em encontrarem referência que reconfortassem. Em júbilo está a minha alma, por estar consigo, nesta nossa casa.
Uso da palavra para, em aclamação, nos felicitarmos, Senhor Doutor Manuel da Costa Andrade, ao ser-lhe hoje imposta, a Medalha de Ouro da Ordem dos Advogados, «galardão atribuído a entidades ou a individualidades que tenham contribuído relevantemente, pela sua acção e mérito, para a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, identificando–se com os ideais da justiça, da defesa do acesso ao direito e construção do Estado de direito, ideais que norteiam a acção da Ordem dos Advogados»
Enobrece-se a Ordem dos Advogados neste gesto de reconhecimento, simultaneamente de agradecimento.
Reconhecemo-nos, todos, na sua obra, a qual tem formado gerações de alunos, impressionante obra escrita, esclarecimento e momento de reflexão, ensinamento permanente ela é, pela profundidade e actualidade.
Os seus leitores seguem-no fielmente e assim estão consigo em permanência na linha da frente da actualidade jurídica, em tópicos tão diversos quanto os dos do Direito Penal Económico, logo ainda no conturbado ano de 1975, ainda então na configuração dos crimes de colarinho branco, um ano depois a ensaiar-se na criminologia, no tema da vítima, no surgente Direito das Contraordenações, no problema do consentimento e do acordo, no Direito Penal médico, sempre temas pioneiros, sempre assuntos sobre os quais teria de ter - e teve - ousadia intelectual, coragem cívica, resiliência moral, porque, não se tratando de mera teorização, ao escrever, correu o risco de se expor no combate pelas ideias. Não desertou, não se refugiou no conforto da hermenêutica, não quis o benefício da mera lição magistral. E tem prosseguido sem abrandar o ritmo, inesgotável energia.
Mas não só no domínio do Direito Penal substantivo, onde as questões já são fracturantes, sim também no Direito Processual Penal, sempre enfrentando assuntos polémicos, as intercepções nas comunicações, as proibições de prova, liberdade de imprensa, a tutela da vida privada e da imagem, tanto, tanto mais, sempre onde está em causa a defesa do espírito constitucional contra a letra da lei, onde os direitos do cidadão carecem de defesa ante a comunidade e face aos poderes públicos e privados, para que nenhuma colectividade oprima o indivíduo, nenhuma cidadania suprima a pessoa, nenhum Direito haja fora do que for justo.
Para si, o Direito Penal é, escreveu-o, «o santo e a senha idiossincráticos de um pensamento e de uma acção penais que não vêem razões para, em definitivo, desesperar do Homem». Assim, continuo, nos anos de chumbo que se aproximam, engrossem as fileiras dos que, do mesmo modo, pensam e por isso agem, militantes por um futuro em que a liberdade se preserve, em que não retorne o desprezo pela criatura, em que não triunfem os burocratas da repressão, robotizando a justiça em prol da sua estatística pessoal de produtividade, gerando leis em nome da sua ilusão de sociedade, suprimindo o que seria justo em nome do que parece eficaz.
Textos límpidos os seus, surgidos de um caudal impressionante de referências, jurídicas, filosóficas, sociológicas, a situar o Direito no domínio da Cultura, a reconduzi-lo aos ingentes problemas sociais, ao situá-lo na sua dimensão humana. Escritos em que se joga o seu carácter e a sua personalidade, a sua cosmovisão.
Muitos, logo na década de oitenta, deixou-os na revista da nossa Ordem, prestigiando-a.
O Senhor Doutor Manuel da Costa Andrade chegou ao Direito vindo da Filosofia, estudos que interrompeu para cumprir em 1966 serviço militar. E é então que traça o que viria a ser o rumo definitivo da sua vida, inscrevendo-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Terminara o Liceu em Bragança com o mérito do melhor aluno do país. Inscrevera-se então no primeiro ano do curso de Filosofia da Faculdade de Letras.
A sua magnífica inteligência colocou-a ao serviço dos que no Direito nos revemos. Discípulo de Eduardo Correia, honrou quem o ensinou levando mais longe a lição que dele recebera.
Professor universitário toda a vida, por breve tempo deputado à Constituinte e deputado em subsequentes legislaturas, colaborador essencial em inúmeros projectos legislativos, do Código Penal de 1982 ao de Processo Penal de 1987, no texto inicial da Constituição, em duas revisões subsequentes, hoje Presidente do Tribunal Constitucional, lugar que, segundo as suas palavras «não cuidei, não procurei, não esperei, menos ainda solicitei».
Professor sempre e de tal modo professor que – palavras suas - «desde a sua contratação como Assistente (1973), vem assumindo ininterruptamente o trabalho docente, não gozando de qualquer período de dispensa, nomeadamente por ocasião da preparação da dissertação de doutoramento ou posteriormente, a título de “licença sabática”, que nunca requereu.»
Pela sua obra se evidencia a sua pessoa. Obra de humildade num tempo de exibição. Nela não se descortina a arrogância da afirmação autoritária, antes a firmeza da convicção formada em constante interrogação. Em tantos dos seus escritos está presente o caminho das pedras da construção, da monografia ao livro, da anotação ao comentário.
Os pareceres que escreveu e os que firmou reconhecem-se como expressão de pensamento prévio, há nisso a honradez de ir ao concreto na sequência do que concluíra em abstracto.
Num dos seus momentos de reflexão aludiu ao seu saber e à sua «esperança de saber», excelente frase porquanto enuncia a pessoa de quem falamos na incessante caminhada noturna, a fé no que trará o amanhecer.
Há em si, permita-me esta nota pessoal, o equilíbrio entre a serenidade, a discrição e o espírito empreendedor. A intranquilidade fazedora tornou-se contenção e dignidade.
O lugar que hoje ocupa no Tribunal Constitucional suscitar-lhe-á, estamos disso certos, sério problema de consciência, o da necessidade de uma jurisprudência que, mantendo o Tribunal na sua função excepcional de defesa da Lei Fundamental, não seja, pelo formalismo processualista, uma jurisprudência restritivamente defensiva, por inúmeros que sejam os recursos, os recorrentes a tentarem encontrar ali a instância de impugnação ordinária que lhes foi subtraída por um sistema que à justiça ponderada preferiu a celeridade processual.
O desafio, respeitamo-lo, agora é outro: o dos limites da função, o peso institucional do cargo, e o que em si sedimentou toda uma vida de combate pelo Direito.
Não é, pois, fim de carreira, sim, a continuação da mesma, em outro lugar, por outros meios.
Meu Bastonário
Entendeu Vossa Excelência que seria a minha voz aquela que pudesse aqui expressar o acto da atribuição desta medalha. Faço-o, qual arauto, com um único sentido, o de que a mim se juntem, em aclamação, todos quantos somos testemunhas deste acto de gratidão. Muito obrigado!»