Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




O racionalmente justificável

Quando comecei a minha vida profissional havia o hábito - de duvidoso gosto e equívoco propósito - de as leiloeiras espalharem pelas secretarias judiciais e até pelos gabinetes dos juízes calendários e outros "regalos" que tinham o condão de imaginar uma justiça em dia e sobretudo lembrar o nome da empresa obsequiante. 
O que talvez fosse hoje interessante era espalhar pelos tribunais, talvez como poster a afixar nas paredes, espécie de lembrete perpétuo, o seguinte excerto de um Acórdão do STJ de 17.01.11 [relator Armindo Monteiro] que o blog Cum Grano Salis - em boa hora agora retomando vigor - editou, aqui:

«1 - O exame probatório traduz-se na análise em globo das provas, a respectiva crítica, a forma de inteligenciar, intuir, racionalizar e conceber, para formular, a final, um juízo definitivo, na meta de um processo justo, que assegure todos os direitos de defesa, como vem proclamado pelo art.º 32.º, n.º 1, da CRP.
2 - A motivação das decisões judiciais é um autêntico momento de verdade do perfil do juiz, que deve situar-se à margem de qualquer blindagem, no dizer de Perfecto Andrés Ibañez, in Jueces y Ponderacion Argumentativa, pág. 73.
3 - A fundamentação decisória, nos termos do art.º 374.º, n.º 2, do CPP, está desenhada na lei para, pelo enunciar os pontos de facto provados e não provados, como de uma súmula dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, o julgador explicitar o processo lógico e psicológico da sua decisão, excluindo da motivação o que não é passível de justificação racional, movendo-se unicamente no âmbito do racionalmente justificável»

Intercepções e processo penal

Não são apenas as escutas telefónicas, mas as intromissões nos faxes, no correio electrónico. A violação da privacidade das comunicações - mesmo dos advogados - passou a ser forma fácil de investigação. O que está defendido pela porta blindada do segredo profissional tem acesso pela janela da intercepção. Tem, pois interesse esta obra de Rita Castanheira Neves, de que se cita o texto de apresentação, editada pela Coimbra Editora:

«Esta obra tem como mote traçar a natureza e o regime jurídico das intercepções no correio electrónico enquanto meio de obtenção de prova em processo penal. A confusa e conceptualmente desvirtuada redacção conferida ao artigo 189.º do Código de Processo Penal encontra se, assim, na pretensão original de explorar e ultrapassar as dificuldades prático jurídicas sentidas pelo intérprete da norma, bem como de assimilar e sistematizar os abusos na intromissão da privacidade e a violação do segredo das comunicações que a mesma permite. Para alcançar tal compreensão, faz-se uma primeira aproximação ao âmbito das comunicações electrónicas no direito processual penal, convocando, para o efeito, os desígnios constitucionais que se projectam como garantia da privacidade, ínsita a qualquer comunicação privada, bem como da palavra, da salvaguarda da inviolabilidade das comunicações e da autodeterminação informacional, de modo a aferir do alcance de cada uma das esferas de protecção implicadas».

More geometrico

Paulo Ferreira da Cunha é um daqueles pensadores de que nunca se aproveitou o suficiente, pela invulgaridade, o atípico, o surpreendente modo de ver. Guardo os primeiros livros e o remorso de ter lido pouco. Esta noite li-o no "As Artes entre as Letras", um jornal cultural que se edita no Porto e de que é colaborador. Escrevia, tristonho, sobre o abaixamento do nível universitário, a «infatilização da Universidade», a «liofilização dos cursos». E de passagem aludia aos «burocratas da coacção», e pela palavra fui transportado ao mundo daqueles para quem o Direito é uma técnica e a Justiça um reflexo condicionado, quantos fruto dos que tornaram aquele Ciência para que não pudesse ser Arte, formação profissional para não ser Universidade e geraram esta tão desapegada como inumana Justiça.
O rancor enfrenta o ódio que se defende como se comoção apenas fosse e revolta. A uma aritmética ilusória que os manuais ensinam segue-se uma álgebra de incógnitas que é a equação em que se torna o acto de julgar. 
É um mundo em que os sentimentos só entram quando silenciosos e encontram, more geometrico um lugar possível, diminuto. Morto o homem fica a função. Objectivada. Ilusoriamente racional. É um mundo em que o riso e as lágrimas valem como sintoma, raramente como pretexto, por vezes como argumento.

No pasa nada...

A ideia de que num Estado de Direito o Estado altera a sociedade através de leis, demonstra que na Justiça «no pasa nada». É que a folha oficial continua lacónica, sem nenhum diploma legal relevante, como se nada acontecesse e falo não só na área da Justiça. O Governo parece governar através da Administração Pública, ou seja gerir.
Claro que, ante a profusão legislativa com que governos antecedentes nos habituaram, em que tanto se legislava nada mudando, é caso para dizer «para tanto mal já basta assim».
Os que se movem nas esferas do poder dizem que «a senhora ministra está a pensar e a estudar». Admitamos que sim. E que há muito para estudar. 
Oxalá quando estiver tudo pensado a situação ainda esteja resolúvel. E não apenas no que releva para o contrato que firmámos com a "troika", porque há mais Portugal para além da dívida.

Anonimato de menores

Onde está na lei o direito dos menores ao anonimato nos processos penais? Uma coisa é certa: em Inglaterra os que forem levados a tribunal por causa dos recentes distúrbios perdem o direito à privacidade de que gozam naquele País. Lê-se aqui.
A protecção visa prevenir os efeitos estigmatizantes sobre os jovens delinquentes. 
É claro uma tutela que tem de ser compatibilizada com outras. O que é questionável é o argumento em prol da excepção: convencer o público de que uma abordagem mais dura a essa inesperada criminalidade de rua está em curso. 
Ou a prevenção geral, em caso de aflição, suplanta tudo ou aqueles "menores" perderam, com a sua conduta, a possibilidade de o serem.

A grande evasão: um filme de aventura

O princípio da oportunidade acusatória - pelo qual o Ministério Público escolhe aquilo que quer acusar e negoceia aquilo que quer resolver por acordo - tem traduções várias mesmo nos países que não o aceitam como regra. Nos crimes em que estão em causa incidências patrimoniais há atenção de aplicar o princípio «cuidar a dentada do cão com o pêlo do próprio cão» e fazer o infractor pagar com o que ganhou, lucrando zero, e carregá-lo, adicionalmente, com multas e indemnizações que o fazem arrepender-se de ter prevaricado e dissuadem outros de lhe seguir o exemplo. É a máxima chinesa, onde está a doença está a cura.
Em Portugal, segundo certas mentalidades, porém, a "cultura" reinante é a da hipertrofia do Estado, os valores públicos como se sagrados, os crimes contra o Estado como se de lesa-majestade fossem, os crimes fiscais como se atentados aos pilares e fundamentos da sociedade pudessem ser. 
A verdade jurisprudencial corrente é, sabemo-lo, outra, e aí estão os acórdãos a mostrá-lo quanto às penas efectivas aplicáveis e sobretudo as suspensões processuais mediante injunção de pagamento fiscal - do imposto devido e exigível e mesmo do tributo caducado, tudo amalgado segundo um princípio do «aproveitar agora que o contribuinte está sitiado» - a mostrar como é.
Vem isto a propósito de ter lido isto, aqui:
«Credit Suisse Group AG (CSGN), the Swiss bank facing possible U.S. indictment for aiding tax evasion, will likely settle with prosecutors by admitting wrongdoing and paying a penalty that may exceed $1 billion, tax lawyers said. Credit Suisse, the second-largest Swiss bank, has too much to lose by fighting the Justice Department and risking indictment, said lawyers not involved in the case. Prosecutors told the bank last month that it’s a target of a probe into its former cross-border banking services to U.S. customers. The lawyers expect Credit Suisse to reach an agreement like that of UBS AG (UBSN), which was charged in 2009 with aiding tax evasion by U.S. clients. UBS avoided prosecution by paying $780 million, admitting it fostered tax evasion, and giving the U.S. Internal Revenue Service data on more than 250 accounts. It later turned over data on another 4,450 accounts»

Estuprador, o marido "puzzolente"

Nove anos de reclusão, que a Cassação reduziu para dois, a pena aplicada a um pastor que forçava a mulher a sujeitar-se a relações sexuais contra vontade. O motivo de recusa era que o próprio não cuidava do mínimo de higiene corporal e os actos eram praticados no próprio local onde ele exercia pastorícia. Crime: estupro.
Citando: «Commette violenza sessuale il marito "puzzolente" che impone alla moglie rapporti sessuali senza rispettare la richiesta della donna di farsi prima una bella doccia. È questo il punto di vista della Cassazione (sentenza 30364/11) che ha chiesto ed ottenuto il nuovo rinvio a giudizio nei confronti di un pastore siciliano restio all’uso del sapone e solito a fare sesso con la moglie appena rientrato dal pascolo delle pecore, senza provvedere a farsi almeno una rapida toeletta preliminare».Notícia aqui.

A teoria do conflito irreal

Eu sei, por ter tentado aprender e ter tentado ensinar que o problema do concurso de crimes e de normas é dos mais intrincados do Direito Penal. É verdade. Mas a tentativa de mostrar que o concurso aparente não traduz um conflito real pode dar azo a um momento irreal. Se o Direito e seus problemas fossem assim tão simples e tudo fosse apenas um modo de dizer por outras palavras!
É bom estar em férias e poder sorrir...

O menor denominador comum

Vistas com mais minúcia, decomposto o raciocínio que lhes está subjacente, muitas decisões jurisprudenciais e quanta literatura jurídica - aquilo a que [de novo a recorrência teológica] se chama "doutrina" - são manifestações puras de voluntarismo infundamentado e autoridade não convincente. As excepções notam-se.
Voluntarismo, porque afirmam e decidem, dizendo que ante o problema é esta a solução, sem que, primeiro, problematizando a questão, verifiquem da sua correcta configuração, e depois se ocupem da adequação do modo de enunciar os problemas que cabe resolver. São diktats emanados de quem sente poder sem ter interiorizado que há, em anterioridade a esse poder, o dever. E no caso o dever é o de convencer. E na Justiça o convencimento do outro só pode resultar da força do eu. De outro modo um qualquer maquinismo faria as vezes, fazendo de conta. Ora não há convencimento sem fundamentação. E não há fundamentação sem argumentação em que o ser de quem decide se jogue todo, na plenitude do seu intelecto e do seu afecto pela vida, no acto de ter decidido. De outro modo entre um copista e um amanuense a coisa resolver-se-ia.
E aqui entra a questão da autoridade: o fundamento do decidido passou a ser, em cada vez mais vezes, o previamente pensado por outrem. É a lógica da citação, com o seu caudal de fórmulas tão ocas quanto seguidistas do estilo do «na esteira de», ou o «conforme já doutamente» e quejandas, quantas vezes mais não sendo do que a abdicação do pensar o pensado. A ideia inqualificável da «jurisprudência maioritária» ou da «doutrina dominante» passou a entrar nas formas de fundamentação jurídica, como se na interpretação da norma a questão fosse a votos, triunfando quem mais espingardas tivesse do seu lado, ainda que irrazoáveis, o triunfo da força sobre a razão! E, no entanto, se mais vezes se voltasse sobre os mesmos passos, menos vezes se percorreriam caminhos erróneos.
Claro que há em tudo isto equívocos, aporias,  incertezas.
Logo uma que decorre de se dar como igual o que nem sempre é sequer idêntico. Os que se viciaram na erudição jurídica comparatista nem se perguntam, quantas vezes na exibição de leituras que traduzem nos seus escritos, se o que imputam a certo e quantas vezes ignoto autor [germânico de preferência] tem sustentação em igual norma, igual sistema, igual contexto, em suma, igual ordenamento. Vale o mesmo para quantos em "copy paste" que a informática hoje permite, transcrevem como adequado, por ser o mesmo exemplo, o que, pensado em função do caso, se mostraria exemplarmente impertinente.
Mas não só. Logo outra fragilidade existe ao supor-se que a segurança jurídica impõe que o já decidido decidido esteja e que essa lógica do caso julgado passe dos factos para o Direito, abrindo a porta - por comodidade claro e celeridade - às decisões sumárias por semelhança, injustas até, mas despachadas.
Há em tudo isto uma falha grave, imposta por uma deficiência séria.
A falha grave é que à individualização humana do caso e à interiorização mental do problema - a primeira por respeito à dignidade de quem é julgado a segunda por respeito à dignidade de quem julga - segue-se hoje em dia uma lógica de massificação, nivelamento e padronização que torna toda a riqueza da vida sub iudice em categorias redutíveis ao menor denominador comum. A justiça do caso passou a ser uma espécie de atendimento personalizado para uns poucos, tudo o mais enfileirado na mesma lógica com que se resolvem as filas de espera no Serviço Nacional de Saúde. A pergunta se é possível fazer-se melhor.
A deficiência séria é que, se não fosse assim, o sistema funcional incumbido de julgar soçobraria ante a massa crítica de casos no qual se move. E não é só a quantidade de vida que se reduz à quantidade de processos e a quantidade de decisões a que se reduz a tarefa do sistema e avaliação de quem o serve. À tirania da estatística irmana-se a tirania da forma. A processualite passou a ser uma patologia grave dos fígados do sistema jurídico. Um destes dias se falará aqui disso mesmo.


O labirinto da perplexidade

Talvez tenha sido uma manifestação do kantismo filosófico que expulsou do Código Civil de Seabra o homem - e só ele poderia ser sujeito de direitos e obrigações - e esse acto de homízio que abriu as portas para a entrada em cena daquela inumana personagem que dá por nome de "sujeito", a qual, ao lado do "facto", do "objecto" e da "garantia", e com eles igualado como se coisa idêntica e de igual peso, integra, já sem corpo nem cheiro, os elementos essenciais da chamada "relação jurídica".
Seja qual for o pensamento que ditou tal mudança, certo é que, nesse genocídio construtivista radicou a génese de um Direito tecnicamente estruturado na dispensabilidade do humano. Faltava o resto: a ilusão de que o jurídico é ciência e não Arte e com ela a construção de sistemáticas lógico-dedutivos auto-apelidados, em recorrência vocabular teológica, de dogmática. A caucionar como se teoria fosse o que não escapa a ser uma retórica legitimada.
Parecem e talvez o sejam, migalhas insignificantes estas matutinas reflexões minhas. Mas marcam um caminho mental feito de labirintos em que a vida se perdeu, entre caminhadas pelo real da experiência sofrida e excursões pelo ideal da literatura estudada.
De uma coisa estou certo. Entre a massificação da litigação em que o Direito se torna regulamento diário para ainda poder ser norma e as exemplaridades mediáticas em que se torna casuística para tentar ser moral, a Justiça, ante o cilindro compressor do seu quotidiano funcional, deixou de ter tempo para tragédias existenciais. E são essas que povoam, como sombras de remorsos, os seus corredores, corroem de aflição as folhas áridas dos seus processos e gritam nas entrelinhas da linguagem formulária do processado.
Feito função, tornado técnica, imaginada engenharia para a erradicação de patologias da sociedade, o Direito perdeu no seu horizonte diário o concreto humano e a pessoa que o habita e passou a desembaraçar-se da multidão de indivíduos e sua cidadania. É luxo, excepção e favor o aprimoramento e o adensamento, pois não há tempo. 
E, no entanto, quantos tratados de douta e ramificada reflexão se não escrevem sobre um maiúsculo Direito fantasiado pelas cátedras como problematicidade cósmica, quando a vida, no formigueiro da sua nevrose, o tem de admitir como pura questão a resolver no acto do dia, passando-se adiante para o dia seguinte.
Lembrei-me disto ao ter visto romperem lágrimas num acto processual. E ante a sua irrelevância, surgiu, inexorável e por todos consentida, a continuação do que haveria para fazer, como num doloroso acto de dentista ou no pesaroso ritual funerário. Mas já sem dor, diga-se, porque nos tornámos profissionais da forma para que seja ela o resultado que substitua o conteúdo. E eis aqui uma outra porta para o labirinto da perplexidade. Voltarei. A desumanização surge quando não há lugar já para o homem por não haver tempo para o humano. A existência passou a ser uma estatística, a plenitude uma probabilidade.