Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Escusa de juiz

Diz a Relação de Évora em acórdão de 05.06.12 [relatora Ana Brito, texto integral aqui]: «O Senhor Juiz de Direito formulou o anterior pedido de escusa, invocando as disposições conjugadas dos artigos 43°, n. 1, 2 e 3, 44° e 45°, todos do Código de Processo Penal, por “na sequência da uma sua anterior intervenção naquele mesmo processo, o indivíduo que nele figura como arguido o ter responsabilizado por consequências decorrentes de greve de fome que diz ter feito e contra si ter apresentado queixa junto de diversas entidades, nomeadamente o Conselho Superior da Magistratura”.
No caso, não percebemos em que termos pode ser imputada ao Senhor Juiz a responsabilidade por uma greve de fome cuja iniciativa será sempre voluntária, do próprio autor da greve, nem em que termos dessa imputação poderá perigar o juízo sobre a imparcialidade do julgador, à luz do critério do homem médio.
Como bem nota Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado, 2009, pág. 153), “os motivos de suspeição são menos nítidos do que as causas de impedimento, podendo ser, por isso, fraudulentamente invocados para afastar o juiz”.
Bastaria, para tanto, e por exemplo, a participação de factos artificiais, não verdadeiros ou irrelevantes, ao C.S.M., colocando-se nas mãos dos sujeitos processuais o afastamento e, logo, a escolha de juiz.
Ora, sobre esta circunstância cremos manter toda a actualidade o acórdão do STJ de 5.12.1990 (CJ 1990, 5, 20, Tavares Santos) – “Não constitui só por si fundamento de recusa de juiz em processo penal o simples facto de o requerente ter apresentado queixa contra ele no Conselho Superior da Magistratura (…) A aceitar-se a pretensão, criar-se-ia um precedente grave de que poderia lançar mão aquele que, em tribunal, pretendesse afastar um juiz da sua causa. Bastaria que, apercebendo-se de que o julgamento não estava a ser-lhe favorável, dirigisse qualquer queixa ao C.S.M.. Ora é evidente que a suspeição é uma figura séria para poder ser usada por razões inconfessadas”.
É certo que “as aparências são, neste contexto, inteiramente de considerar”, importando também aferir se a situação em causa “pode ser entendida, pelo lado externo das aparências dignas de tutela, como potenciadora de um espaço de dúvida quanto à existência de riscos para a apreensão objectiva da imparcialidade” (STJ 13 de Abril de 2005, Henriques Gaspar).
Mas nem a situação apreciada no anterior incidente de escusa é automaticamente transponível para o caso em apreciação, nem o senhor Juiz aqui invoca ou adita motivos graves e sérios que permitam suspeitar da sua imparcialidade ou gerar essa desconfiança por parte da comunidade em geral de acordo com o critério do homem médio.
E como também tem sido dito, “os incómodos que o juiz poderá sentir em tal situação mais não são que os ónus de ser juiz” (Decisão nº4/2007 do Presidente do TRP, de 17-09-2007). Sendo ainda certo que “o afastamento do juiz (natural) do processo só pode ser determinado por razões mais fortes do que aquelas que o princípio do juiz natural visa salvaguardar, que se relacionam com a independência, mas também com a imparcialidade do tribunal” (STJ de 23-09-2009, Maia Costa).».
Percebe-se a lógica: o sistema julga que se fragilizaria tendo um critério mais lato em matéria de escusas, porque abriria a porta à permissividade das recusas.

O assoreamento crminal

O assoreamento da sociedade civil pelo Direito Criminal vai gerando a sobrecarga dos tribunais. À falta de melhor método para implementar as suas prescrições, o legislador edita sempre umas normas a criminalizar a conduta dos que forem prevaricadores com penas pesadas na sua aparência abstracta, julgando que assim serve a prevenção geral e mostra aos eleitores que, em matéria punitiva, o Poder leva a sua missão a sério. Vistas depois - mas quase ninguém vê - as penas concretas aplicadas pelos tribunais, chega-se à conclusão de a realidade desmente a dosimetria abstracta. 
Que tudo isso contribua, como seu efeito directo, para a sobrecarga da Justiaç Penal, é patente. Que tudo isso tenha efeito nas erradicação das condutas, é mais do que duvidoso.
Uma coisa é certa: o Direito Penal, contra o que se ensina nas escolas de Direito, de há muito que deixou de ser a ultima ratio na censura legal às condutas. A sua banalização está em vias de o tornar inoperante. Doem mais as coimas que o legislador prevê tanta vez entre mínimos ridículos e máximos absurdos.
O fenómeno não é português. Leia-se o que se passa na Alemanha, aqui, País que é um farol hipnótico de muito do nosso pensamento jurídico.

Escutas telefónicas a advogados

Há notícias que passam despercebidas, discussões a que se não dá relevo. Vivemos no mundo dos remoques e dos apartes, em que o essencial das questões foge ao conhecimento dos interessados. O que abre a porta aos factos consumados.Ou sou eu quem anda muito distraído.
Ao ver o site do Ministério da Justiça dei conta de que se discute a nível da Comissão Europeia uma proposta de directiva sobre a assistência por Advogado. E que no âmbito da discussão o ministro da Justiça de opôs a que fosse consagrada a possibilidade de escuta telefónica das conversas entre os advogados e os seus constituintes por decisão do Ministério Público ou da polícia, mas apenas por acto judicial.

Cito da comunicação oficial que está aqui: «El ministro de Justicia se ha opuesto ante sus homólogos europeos a que las comunicaciones entre abogado y cliente puedan ser intervenidas por la Policía, Fiscalía u otras autoridades sin autorización judicial. Esta posibilidad, incluida en una directiva sobre asistencia letrada discutida hoy en Luxemburgo, no solo es contraria a lo que establece la ley en España sino que puede "incluso vulnerar derechos fundamentales", ha argumentado Alberto Ruiz-Gallardón.
El ministro ha condicionado su voto favorable a una declaración expresa de la Comisión Europea con la postura de España, en la que se compromete a solicitar que el Parlamento estudie la modificación del texto durante su tramitación en los próximos meses. Así, la Comisión ha suscrito que "el proyecto no garantiza la total protección de los derechos fundamentales en un proceso penal" y apoya la tesis española de que "cualquier intervención o merma de un derecho fundamental exija una autorización judicial". A esta declaración se ha sumado también la delegación italiana.» [audição da comunicação em registo audio aqui]

Quanto ao que tenha sido a intervenção de delegação portuguesa será interessante ir ver. Basta consultar.

Reforma do CPP (3): artigos 356º e 357º

O nosso sistema de Justiça Penal é baseado na desconfiança. Desconfia-se da objectividade do Ministério Público e, por isso, coloca-se um juiz a controlar a sua decisão de arquivar os processos, para que não ocorram o que o professor Emygdio da Silva - que além da Faculdade de Direito foi Director do Jardim Zoológico e escreveu um notável porque corajoso livro sobre a investigação criminal - chamava as possíveis «amnistias administrativas». 
Claro que se justifica aqui a judicialização porque de outro modo, havia o risco de os processos morrerem no segredo dos inquéritos quando, assim, ao menos pelo impulso dos ofendidos - havendo-os - podem ter uma hipótese de vingarem e levarem ao funcionamento da Justiça.
Mas o que hoje escrevo tem a ver com outra desconfiança, a que incide sobre a isenção da polícia, desconfiança que se torna em verdadeira suspeita quando a lei impõe que as declarações que forem prestadas ante ela não valham como prova em tribunal, salvo raríssimas excepções, valendo o consentimento ao uso.
Digo suspeita porque do que se trata é de pura e simplesmente inutilizar um meio de prova em nome de uma lógica que só pode radicar no preconceito, oriundo dos fantasmas da polícia política, de que poderão ter sido obtidas por meios musculadamente persuasivos. 
O sistema é caricato nos seus termos. Primeiro, porque essas declarações valem para o Ministério Público incriminar alguém, acusando-o, o que é grave e enxovalhante - mas aí as declarações valem por boas e úteis - valem para o juiz de instrução que, confirmando a acusação pública - sem recurso se a receber obedientemente - valide a sujeição de alguém a julgamento, porque então continuam a ser muito boas, mas  ante a audiência já não valem nada.
Ou melhor, dizendo a verdade toda neste mundo de hipocrisia velhaca: não valem para serem formalmente lidas em audiência; não valem para que um juiz, descuidado, consigne na sentença que se ateve a elas como prova, porque na verdade elas ali estão, incorporadas no processo, a orientar as perguntas do Ministério Público e dos advogados e só não são lidas pelo juiz que, num assomo de escrúpulo, nem passe os olhos por cima delas. Porque, no mais, há mil maneiras de sugerir em julgamento que a pessoa não disse no inquérito o que está a agora a dizer em julgamento, torneando a proibição legal por meio manhoso.
Como na nossa cultura preferimos invocar grandiloquentes valores, porque belos, para esconder comezinhas realidades, quando feias, proclama-se que é por causa e em nome do princípio da oralidade - só valem para a sentença as provas produzidas ou examinadas em audiência - que se afasta o valor probatório do que foi prestado ante a polícia, quando o que se quer dizer é que na verdade se desconsideram esses autos de polícia porque sobre esta radica a suspeita de os terem produzido de modo que só pode ser desconsiderado, inutilizando-os. E o cidadão nem pode dizer - sobre isto já disse quando fui à polícia isto ou aquilo e tinha na altura a memória mais fresca - porque vai ter de declinar tudo de novo, ainda que com a pior memória, ainda que já sugestionado pelo devir das coisas e muitas vezes pela projecção pública das mesmas.
É um sistema, em suma, que ordena à polícia que obtenha o melhor testemunho, porque o mais espontâneo, e depois o destrói em favor do pior testemunho, porque mais tardio.
Pergunta-se: com as modernas tecnologias não é possível gravar-se tudo o que se passou durante uma audição policial? É. É até possível filmar, embora quem for um dia à Cintura do Porto Interior, onde está o serviço de investigação criminal da PSP de Lisboa ver as condições de miséria - encurralados em cubículos - em que trabalham os polícias, talvez desconfie de que os meios financeiros para tal a existirem poderão estar antes aplicados ao serviço dos sumptuosos gastos de fachadas mediáticas que da Justiça dão a aparente imagem da sua eficácia.
Pois nem é essa ideia de valorar essas declarações policiais, desde que gravadas, o que consta do projecto de revisão do Código de Processo Penal.  O que se pretende é que valham as de que forem prestadas apenas ante o Ministério Público e juiz e mesmo assim quando «sejam documentadas através de registo áudio visual ou áudio, só sendo permitida a documentação por outra forma, quando aqueles meios não estiverem disponíveis». E, desde que esteja presente defensor. Quanto às prestadas ante polícia, devem ser registadas pelos mesmos meios tecnológicos mas... «sem susceptibilidade de posterior utilização em julgamento».
Claro que, estando tudo gravado por aqueles sofisticados meios, poderia prever-se o seu uso em julgamento, sujeito embora à apreciação judicial, com possibilidade de arguição de qualquer invalidade probatória decorrente de violência ou ameaça anterior ou contemporânea à respectiva produção ou de falsificação do registado. Sempre se contribuiria com aquela prova, por escrutinável que fosse e teria de o ser. Não! Nada como gastar dinheiro "para o boneco".
Continuaremos pois com os polícias a produzir autos para o Ministério Público, agora com gravações, para depois, em julgamento se fazer de conta que aquilo foi para nada. No meio, ficam os idiotas dos cidadãos que não percebem, os tristes dos polícias sérios que tentam ser fiéis ao que lhe dizem os declarantes, e aqueles que em julgamento, fiéis aos princípios, não utilizam aquilo que e lei proíbe que seja usado, colocando, porém, o fruto proibido ali mesmo, qual maçã bíblica da qual resultou a danação da Humanidade.
Tudo isto é absurdo. Ou eu já não me entendo nesta Terra.
 
 
P.S.1. Claro que já ouvi dizer que se valessem em audiência os autos policiais haveria não só contaminação da prova boa pela prova má, mas também haveria alguns juízes que, para simplificar e acelerar, perguntariam aos declarantes se confirmavam ou não aquela prova e, obtido o sim, passariam adiante. É evidente que num cenário em que temos dos actores esta ideia moral só pode ser um filme de terror!
P.S.2.  Questões curiosas: na fórmula prevista para a alínea b) do n.º 1 do artigo 357 [uso de declarações de arguido] não se prevê a necessidade de estarem consignadas em auto ou registadas, ao contrário do que se prevê para o n.º 3 do artigo 356º. Porquê? No n.º 2 do artigo 357 prevê-se que «as declarações anteriormente prestadas pelo arguido e lidas em audiência estão sujeitas à livre apreciação da prova nos termos do artigo 127º». Porquê? A demais prova não o está também?

O Reino da Dinamarca

Acabou o tempo do silêncio, o tempo da reserva, o tempo da discrição. Acabou o tempo do espírito de corpo, da solidariedade institucional. Diz o respectivo Estatuto que o Ministério Público é uma magistratura unitária. Nunca entendi bem o que quer dizer o termo. Não quer seguramente dizer que é uma magistratura unida. 
Nunca a diferença entre o Ministério Público e a Procuradoria-Geral da República foi tão patente. Nesta convergeria aquele se não estivessem todos em divergência.
O problema que tudo isto coloca não é a vantagem das verdades que se vão sabendo entre as mentiras cujo desmentido convence. Nem o desprestígio. O problema já é a penosa situação e ridícula em que ficam os que dos valores antigos da contenção guardam ainda o recato. Entre idiotas porque silenciosos e encobridores porque não intervenientes, leve o Diabo a escolha.
Confesso que já nem me dou ao trabalho de ler ou ouvir. Nem ler os que comentam ante o dito e o visto. 
A suspeita, essa, converteu-se numa certeza: tal como na cena IV do I Acto do Hamlet de Shakespeare «algo está podre no reino da Dinamarca».

A Cultura e a função

Ninguém se deve esgotar na profissão. Mas os que no Direito vivem e de todos eles aqueles que directamente na Justiça se aplicam tudo devem fazer para que a Justiça os não esgote. Deve impor-se um sentimento de vergonha quando se deixa de ir ao cinema, quando já não se lê um livro, quando em matéria de televisão se prefere a soporífera. Quando dos jornais se compram os da banalidade factual feita "notícia".
A sociedade organizada, com a sua minúcia exploradora, esgota no indivíduo a vertente criadora: robotiza-o pela rotina, secundariza-o, funcionalizando-o. Além disso, torna-o executante ainda que dourando-o de executivo, para que perca da originalidade a capacidade de ser criativo. Enfim, tudo massifica e assim nivela, e esgota, esfalfando, os que assim submete à aniquilação, prelúdio da rendição.
Que em cada acto em que um humano encontre na Justiça alguém trajado para uma função ali esteja, com todo o catálogo de cicatrizes da luta, convicções na formação do ser e angústias no convívio com a existência, um Homem e nele toda a História da Humanidade.
É pela Cultura que a Ciência se torna Arte. E o Direito não é mais do que apenas isso. As arrogâncias em contrário são a ideologia do autoritarismo mecanicista da máquina de punir e dos funcionários da coacção.

A "mollis lex"

São tempos estes da cultura "intervalar", para retomar a frase de Fidelino de Figueiredo, o relativismo entre um mundo que foi e um mundo que ainda não nasceu.
Terei de voltar a deixar aqui as minhas notas de leitura às propostas de reforma do Código de Processo Penal. Assim regresse a paciência, encontrado tempo. Mais aquelas do que este.
O importante não é, porém, no meu modo de ver, exprimir o que penso sobre este ou aquele instituto do processo, sim o que observo sobre a cultura processual.
Por um lado, o desprezo de uns quanto aos meios processuais, diabolizados os que os usam como se vis abusadores, anafados pelo "excesso de garantismo", culpados de entorpecerem, dilatoriamente a acção da Justiça, de gerarem dolosamente a impunidade, todos assim misturados, com os reais chicaneiros, os verdadeiros litigantes de má fé, eles os que querem apenas que se cumpram as regras do jogo enquanto não acabarem com elas, e tudo isto amalgamado, em vergonhosa contradição moral, com a complacência com os mesmos expedientes processuais, com a mesma gestão do facto através do processo, a mesma subrogação da lei substantiva pela lei adjectiva que deveria ser seu instrumento e se torna em seu sucedâneo quando isso convém aos que a censuravam, quando os fins justificam afinal os meios, assim lhes toque ao resultado que querem atingir pela delonga, a gestão do tempo prescricional, o surdo arquivamento. 
É a ideia, mais do que pressentida, percebida, mesmo pelo leigo e pelo plebeu, de que "ao menos do processo não se livra", e quanto à prisão "pelo menos a preventiva caiu-lhe nos costados", aquele e esta a serem o feito intercalar em vez do que se sabe não se poderá no final fazer: o meio ser o resultado.
Por outro, a doce sabor que tantos encontram nas formas dúcteis, na maleabilidade dos actos, no arranjo do processo ao sabor do momento, no consenso modelador arranjado entre os participantes no caso, organizando-se "à maneira", que a ideia de a lei impor a forma processual prévia, tal como exige que a lei incriminadora seja a pretérita, passou a moda defunta porque inútil, inviabilizando o negócio processual, o expediente oportuno, o reino do Senhor do Bom Despacho.
Enfim, é o regresso do processo penal como processo de jurisdição voluntária: afeiçoável ao que for a conveniência do caso.
É pois essa a cultura "intervalar", entre o tempo em que se respeitava a lei e o tempo em que a lei se ajusta. Do dura lex passou-se ao fantástico tempo da mollis lex.

Apreciação da prova, na TV

É já amanhã. O Centro de Estudos Judiciários promove um colóquio sobre "A apreciação dos meios de prova e fundamentação da matéria de facto" tendo como objectivo a discussão das questões atinentes à admissão dos meios de prova, da sua articulação, bem como a análise do processo de valoração e de apreciação crítica das provas e da sua exteriorização na fundamentação da decisão de facto.». A particularidade é que pode vê-lo em directo na TV Justiça, como se anuncia aqui.

A queixa da Segunda-Feira

Institutos que vigoram há mais de cem anos colocam, pelos vistos, ainda questões de indefinição jurisprudencial. A capacidade de espanto diminui.
Outro dia demos conta do Acórdão de uniformização de jurisprudência pelo qual se consignou que o prazo de direito de queixa termina às vinte e quatro horas do dia do seu termo.
Esta madrugada li um Acórdão da Relação de Évora de 29.05.12 [relator Sénio Alves, texto integral aqui], segundo o qual o dito prazo, a terminar a um sábado, passa para a segunda-feira seguinte.
Claro que o direito de queixa, dir-se-à, pode ser exercido em qualquer esquadra de polícia e estas estarão abertas em regime de continuidade; mas o queixoso pode optar por querer apresentar a sua queixa nos serviços do Ministério Público que estão sujeitos ao horário das secretarias judiciais.
Daí que o aresto tenha considerado que o problema existe e o haja resolvido no sentido referido.

Reforma do CPP (2): artigo 194º

Estou totalmente de acordo com a alteração ao Código de Processo Penal segundo a qual o juiz pode aplicar medida de coacção diversa, ainda que mais grave, quanto à sua natureza, «medida ou modalidade de execução» do que aquela outra proposta pelo Ministério Público quando se tratar de avaliar perigos superiores aos da pura perturbação do inquérito.
Primeiro, em nome do princípio, para mim basilar, do primado do judicial em matérias jurisdicional. A medida de coação é, pela sua natureza, um acto intrínseca e materialmente jurisdicional, porque pressupõe o ditar o Direito sobre uma controvérsia entre a liberdade e a segurança, entre os direitos do arguido e os poderes do Ministério Público. Só um juiz a pode decidir na totalidade do espectro do que há para decidir, sem limitações.
Segundo, e em relação directa com o que acabo de dizer, em nome da regra, para mim fundamental, da independência do poder judicial, que não pode ser o mero chancelar da legalidade de substâncias definidas pelo Ministério Público. Quando ouvi em tempos da boca de um juiz, referindo-se ao Ministério Público e precisamente em matéria de prisão preventiva, o «eles é que sabem se querem investigar com eles presos ou livres, a mim só me cabe controlar a legalidade e já me chega», confesso que a repugnância intelectual daquele «só» me feriu a sensibilidade, como se de auto-mutilação se tratasse, ademais vinda da boca de quem deveria assumir a postura de titular de um órgão de soberania e não de um simples oficial de chancelaria, de serviço à apostilha da legalidade formal.
E não se diga que em nome do princípio da vinculação temática o Ministério Público, porque delimita o objecto do processo com a sua acusação impede o juiz de condenar fora daquele quadro factual e jurídico que o titular da acusação pública desenhou e é do mesmo que se trata aqui, em minoria de razão. É que a dita vinculação temática - pelo qual a partir daquela acusação os poderes de conhecimento e de decisão e os limites do caso julgado judicial são os atinentes àquele objecto proposto ao tribunal - não limita o poder jurisdicional final, porque, se ao limite, o tribunal entender que a realidade é outra que conduza a crime diverso - ou seja, a haver alteração substancial - fica livre de ordenar a remessa do caso para inquérito para que esse mais seja conhecido pela Justiça. É a liberdade constitucional de não se sujeitar ao menos que não aceita que dá ao tribunal o poder constitucional de forçar o conhecimento do mais que lhe foi submetido para julgar. Ante isso, fará o Ministério Público o que entender, inclusivamente arquivar esse plus ultra, mas assumirá a responsabilidade pelos seus actos e pelas suas omissões [a seu tempo me referirei ao que esteja a acontecer em matéria de interpretação e consequente aplicação do n.º 2 do artigo 359º do CPP].
Terceiro, porque, ante a tendência que vejo desenhar-se em certas hostes do Ministério Público de entrarem no jogo da Justiça negociada, que haja juízes em Berlim que possam pôr ordem onde se exige Lei e não conveniência, autoridade e não combina. Ora só o sistema proposto evita que a medida coactiva corra o risco de recair sob a suspeita de que é uma forma de transaccionar interesses ao invés de cumprir a Lei.
Pode dizer-se que não se atribuiu a juiz a totalidade do poder pois este fica limitado à medida coactiva proposta pelo Ministério Público quando o argumento para a sua aplicação for a perturbação do inquérito e não o perigo de fuga ou fuga efectiva ou o receio de continuação ou de alteração da tranquilidade pública. Mas penso que esse pecúlio de reserva tem uma razão racional compatível com o núcleo essencial das atribuições do Ministério Público: aí e só aí está ele em condições únicas para propor a justa e adequada medida para proteger a prova do inquérito que conduz.
Enfim, prevê-se [para o n.º 8 desse preceito] que «o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição do recurso».
É de aplaudir também, pois que assim se garante um controlo eficaz do decidido, uma possibilidade efectiva de recurso e uma decisão em segunda instância com conhecimento de causa. 
Mas para se tratar de medida totalmente eficaz seria necessário ocorrerem duas circunstâncias, que não vejo previstas na proposta. Primeiro, que o requerimento de medida de coacção - nomeadamente quanto ablativa da liberdade - fosse articulado e fundamentado com elementos de prova dos autos que indiciassem os pressupostos gerais e específicos da medida proposta para que pudesse haver real controlo do pedido. Segundo, que tudo isso fosse feito constar de um apenso próprio, que seria o que subiria em recurso, permitindo salvaguardar os demais elementos dos autos que o Ministério pretendesse manter sob segredo de justiça, a vigorar. Em suma: a medida coactiva teria sido proposta, contraditada e decidida com base naquilo e seria sobre aquilo que o tribunal de recurso decidiria, acabando com o deprimente «como consta abundantemente dos autos», cabendo ao arguido adivinhar onde estaria essa cornucópia de abundância.
Propus isso mesmo num modestíssimo estudo com o qual contribui para o livro de homenagem ao Doutor Figueiredo Dias. Digo-o não por falsa modéstia mas porque tenho consciência de que poderia ter feito melhor, assim a minha vida intelectual não fosse devorada pela hidra voraz dos deveres da profissão de que faço ganha-pão.

P. S. Em pormenor, olhando para a nova redacção que o Ministério da Justiça propõe para o artigo 194º há redundância pois o previsto para o n.º 3 já resultava a contrario do n.º 2.