Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Justiça negociada

No sentido de que se trata de uma justiça «negociada» e não passível de ser «imposta», a Relação do Porto no seu acórdão de 20.06.12 [relator Joaquim Gomes, texto integral aqui] entendeu que:

«I - O actual Código de Processo Penal introduziu no seu artigo 281º o instituto de suspensão provisória do processo, que se insere no que vulgarmente se designa por justiça penal negociada, partindo-se de um postulado de consenso das respectivas partes, assente em ponderações e finalidades de realização de uma justiça restaurativa, quando estejam conexas lesões de natureza civil [Ac. T. R. Porto de 2012/Mar/21];
II – Sendo essência do mesmo o acordo, não pode ser imposto, seja por quem for, designadamente o arguido, o assistente, os demandantes, o Ministério Público e o muito menos o juiz;
III - Isto significa que em nenhum momento o tribunal pode catalisar a suspensão provisória do processo e muito menos impor essa reacção hetero-compositiva ao Ministério Público».
Fundamentando a conclusão descreve a lógica do instituto:

«O Código de Processo Penal ao disciplinar o regime do processo sumário estipula no seu artigo 391.º, que “Em processo sumário só é admissível recurso da sentença ou do despacho que puser termo ao processo”.
Como se pode constatar o recurso do arguido nesta parte não incide sobre a sentença, mas sobre um despacho que foi proferido no início da audiência de julgamento, pelo que o mesmo não é admissível.
Mas mesmo que o fosse também este recurso seria manifestamente improcedente, pelas razões que se passam a indicar.
O actual Código de Processo Penal introduziu no seu artigo 281.º o instituto de suspensão provisória do processo, tendo o mesmo no seu proémio e actualmente a seguinte redacção:
“Se o crime for punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, se se verificarem os seguintes pressupostos:”
Tal instituto insere-se naquilo que actualmente e vulgarmente se designa por justiça penal negociada, partindo-se de um postulado de consenso das respectivas partes, assente em ponderações e finalidades de realização de uma justiça restaurativa, quando estejam conexas lesões de natureza civil [Ac. T. R. Porto de 2012/Mar./21][1].
Estes propósitos político-criminais de privatização do direito e processo penais, que nos tem aproximado do modelo norte americano de “plea bargaining”, surgiram ancorados e catalisados pela Organização das Nações Unidas (ONU), através das Regras Mínimas sobre as medidas não privativas da liberdade, também conhecidas como Regras de Tóquio, aprovadas pela sua Assembleia Geral através da Resolução 45/110, de 14 de Dezembro 1990, sendo de destacar o seu ponto 5.1[2],
Também o Conselho de Ministros do Conselho da Europa na sua Recomendação R (87) 18, de 1987/Set./17 deixou as suas directrizes para simplificação e agilização do processo penal, aproximando-se do modelo “guilty plea” norte-americano.
Tal teve desde logo reflexos ao nível do direito comparado, com destaque para o “Codice di Procedura Penale” italiano de 1988, onde se consagrou o “Giudizio abbreviato” e o “Patteggiamento” [438.º a 448.º] e também para a “Ley de Enjuiciamento Criminal” espanhola, através de um procedimento preliminar ou posterior de “reconocimiento de los hechos” [779.1-5.ª, 801., 655, 781, 784.2, II, 787.1, 800.2, 801, 787, 801.1].
O Código de Processo Penal alemão (StPO) passou igualmente a contemplar as hipóteses de acordo (Verstädignung) [§§ 153, 1, 2, 407 e ss.], enquanto o Código Penal alemão (StGB) introduziu a possibilidade de conciliação através de mecanismos de justiça restaurativa que podem conduzir à atenuação da pena ou mesmo à sua isenção [§ 46a].
O nosso ordenamento jurídico com o Código de Processo Penal de 1987 passou também a conhecer o instituto de suspensão provisória do processo (281.º, 282.º), a par do processo abreviado (391.º-A a 391.º-E) e do processo sumaríssimo (392.º a 398.º), que foram parcialmente revistos com a Lei n.º 48/2007, de 29/Ago..
Por sua vez, o Código Penal veio a consagrar autênticos mecanismos de justiça restaurativa (206.º, n.º 1; 218.º, n.º 4) – foi ainda introduzido o instituto de mediação penal através da Lei n.º 21/2007, que seguiu a Decisão Quadro n.º 2001/220/JAI do Conselho, de 15/Mar.
Como se pode dar conta desta breve leitura de referências que suportou a introdução de mecanismos de justiça penal negociada ou da sua privatização, a essência dos mesmos é o acordo, pelo que nenhum dos mesmos pode ser imposto, seja por quem for, designadamente o arguido, o assistente, os demandantes, o Ministério Público e muito menos o juiz.
Por outro lado, na sequência da filosofia implementadora desta justiça penal negociada e tendo presente que o Ministério Público é o titular do exercício da acção penal (219.º, n.º 1 Constituição; 48.º C. P. Penal), a opção pelo instituto de suspensão provisória do processo reside essencialmente no direito potestativo daquela magistratura em accionar o mesmo, ainda que sob o impulso prévio do arguido ou do assistente.
Isto significa que em nenhum momento o tribunal pode catalisar a suspensão provisória do processo e muito menos impor essa reacção hetero-compositiva ao Ministério Público.
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1] Acessível em www.dgsi.pt e que seguiremos de perto, reproduzindo alguns dos seus excertos.
[2] “5.1. Cuando así proceda y sea compatible con el ordenamiento jurídico, la policía, la fiscalía u otros organismos que se ocupen de casos penales deberán estar facultados para retirar los cargos contra el delincuente si consideran que la protección de la sociedad, la prevención del delito o la promoción del respeto a la ley y los derechos de las víctimas no exigen llevar adelante el caso. A efectos de decidir si corresponde el retiro de los cargos o la institución de actuaciones, en cada ordenamiento jurídico se formulará una serie de criterios bien definidos.»

Um centro de altas pressões, dos que geram furacões

Primeiro foi escândalo. «Crime, disse ela!», a comunicação social em peso com directos sobre buscas e detenções.
Depois foi notícia:  «O caso ia ser fonte de receita para o Estado». Os que tinham o dinheiro em porto seguro e estavam agora a descoberto correram a declarar o saldo, pagando 7,5% ao Fisco podendo mantê-lo onde estava. 
Agora vem o post-scriptum: como o negócio fiscal está a render o Estado esquece o "crime" e prolonga o prazo da amnistia para que, sob pressão, entrem mais uns quantos na Caixa do Tesouro para além dos 150 milhões. Vem tudo aqui.
No meio de tudo isto o Direito Penal faz de instrumento de pressão ao serviço da Fazenda Nacional. Um centro de altas pressões, como os que geram furacões
Escrevem os doutores de Coimbra que ele, o Direito Penal, tem carácter residual e fragmentário e que, no latim do estilo, é a "ultima ratio": visa a tutela de bens jurídicos primários, com acolhimento constitucional, é uma forma de exasperação da censurabilidade, que só actuará quando se esgotarem todos os demais meios adequados a prevenir ou a sentenciar a conduta. Etc. Vê-se, não vê?

Criminal compliance

É um lugar comum na actividade bancária, se bem que por vezes sem resultados à medida das expectativas. Este artigo [aqui] eleva o conceito à generalização: espécie de advocacia preventiva, a criminal compliance, é [e passo a citar] “um conjunto de mecanismos internos de gestão, implementados pelas empresas para detectar e prevenir condutas criminosas que venham a ocorrer dentro da corporação.”
Pressupõe isenção, competência, independência. Levada a sério paga quanto custa, evitando problemas.
Num mundo em que o Direito Criminal se tornou em Direito Penal e este, na área económica um sub-sector do Direito Fiscal, talvez seja interessante repensar tudo: a começar por saber se o Estado criminaliza para ganhar rendimentos ou para que não se percam valores.

Segredo de justiça na era da net

A lógica é que a defesa do segredo de Justiça face à curiosidade profissional da Comunicação Social perde sentido hoje em que, na era da Internet, aquela não é a única forma de difusão de informação. E então opta-se: o segredo de justiça do inquérito criminal passa a durar trinta dias, durante os quais qualquer revelação em detrimento do mesmo, passa a ter fundamento moral para ser severamente punida. 
Tal orientação política será consagrada em Espanha no quadro da revisão da lei processual penal, a Ley de Enjuiciamento Criminal. Ver aqui.

Cansado do segredo de Polichinello



Já não dá para se levarem certas coisas a sério. Só mesmo esperando por um outro mundo neste País.
Lê-se: «O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) aconselhou, esta terça-feira, o Procurador-Geral da República (PGR) a agir criminalmente contra quem viola o segredo de justiça, caso conheça factos, ou então a abster-se de “manchar o nome” de terceiros.».
E lê-se: «A violação do segredo de justiça em Portugal é "usual" e "sem réus", em que todos são culpados e ninguém está inocente, disse , na Cidade da Praia, o Procurador-Geral da República português, Pinto Monteiro».
Já não dá. O cansaço é muito. Acreditem. Cansaço do ridículo de ver pior do que tudo quanto é segredo de justiça escarrapachado nos jornais. Cansado também e sobretudo de ver aquelas coisas que pela Justiça passam, pé ante pé, fazendo os jornais de conta que não aconteceram. É esse o mais infame segredo. O da conivência. Os escândalos de uns encobrem o silêncio sobre os outros.

A disciplina dos Advogados nas mãos do MP?

Que o Governo, através da ministra da Justiça, que é Advogada, esteja a pensar atribuir a regulação disciplinar dos Advogados ao Ministério Público, como corre por aí, é facto em que pura e simplesmente não acredito. Razão: há coisas em que é melhor não acreditar. Porque, a serem verdade, abrem a porta a que a luta pelo Direito tenha de passar a ser feita sem ser através do Direito.

Legitimidade para ser assistente

«Para decidir da legitimidade para intervir como assistente, a aferição do interesse protegido é feita através dos factos denunciados na participação e no requerimento para abertura da instrução e não pela prova resultante do inquérito», decidiu a Relação de Coimbra no seu Acórdão de 23.05.12 [relator Luís Ramos, texto integral aqui].

Ouvido "em alta voz"

Matéria problemática em que se joga a intimidade da vida privada,o sigilo das comunicações e a prova por testemunho indirecto a do valor probatório do que se escutou em "alta voz". A Relação de Évora no seu Acórdão de 12.06.12 [relatora Ana Brito, texto integral aqui] determinou que «1. A prova por depoimento de testemunha que escutou conversação telefónica por intermédio de sistema alta-voz não é, em princípio, prova livre, podendo cair nas proibições de prova; mas uma conclusão definitiva exige o conhecimento e apreciação dos contornos totais do acontecido, que se apresentam como imprescindíveis à decisão sobre a licitude desta prova.».
Trata-se, como o reconhece o aresto, de matéria em que não tem havido unanimidade de entendimento.
«Assim, no acórdão do TRC de 28-10-2008 (Vasques Osório) decidiu-se que “o depoimento prestado por uma testemunha, sobre factos jurídico-penalmente relevantes e obtidos através da função de “alta voz”, quando efectuado sem o conhecimento e o consentimento do emissor de voz, é uma intromissão em telecomunicações e deve ser taxado como prova nula”. E no acórdão TRP 26-05-2004 (Borges Martins) considerou-se que “a prova testemunhal que se limita a reproduzir a conversa telefónica havida entre o arguido e a ofendida, com o consentimento desta, não é nula por não constituir uma intromissão nas telecomunicações”.
O Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se no acórdão de 07-02-2001 (rel. Leonardo Dias, sumariado em www.pgdl.pt ) no sentido de que “o acesso ao conteúdo de uma comunicação telefónica com recurso a um meio técnico de audição, como é o alta-voz, integra o conceito jurídico-penal de intromissão (objectiva) em telecomunicações do art. 194.º, n.º 2, do CP. Logo, é seguro que preenche o referido tipo legal de crime a conduta de quem se intromete voluntária e intencionalmente no conteúdo de comunicações telefónicas, mediante recurso a um alta-voz, com tomada de conhecimento, do mesmo modo voluntária e intencionalmente, desse conteúdo. Ao abrigo das disposições contidas nos arts. 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º, n.º 3, do CPP, os depoimentos prestados, na qualidade de testemunha, por quem se intromete, na referida forma, no conteúdo de comunicações telefónicas, na parte em que se reportam a esse mesmo conteúdo, são provas nulas”. Esta decisão contou com o voto de vencido de Leal-Henriques, no sentido de que, no caso concreto, “não se reuniam os requisitos de aplicação do art. 194º, nº2 do Código Penal e 126º, nº 3 do Código de Processo Penal”, para o que considerou relevante “a compreensão e apreensão das condições e do circunstancialismo que rodearam os factos concretos” que fundamentam a conclusão expressa no voto no sentido da licitude do aproveitamento da prova em causa.
Este voto de vencido mostra a importância da definição prévia dos contornos totais factuais da prova em crise, para a decisão definitiva sobre a sua legalidade.
Por tudo, concluímos que a prova em causa não é, sem mais, prova livre; que também não é necessariamente, sempre e sem excepção, prova proibida; que uma decisão definitiva sobre a sua admissibilidade pressupõe o conhecimento dos factos que rodearam o acesso à conversação telefónica.»

Quando todos quantos escutam não são escuteiros

Quem são as pessoas que fazem oficialmente escutas telefónicas? De onde vêm? Para onde vão? Que garantia há quanto ao uso correcto ou quanto ao indiscreto abuso do que ouviram? Que tem a ver com intimidades, com interesses, com questões de Estado, com matérias referentes à vida pública e à vida privada? Perguntei um dia, continuo a perguntar. 
Disse um dia que o odioso regime político anterior não aceitou escutas telefónicas no processo penal comum. Acho que não chegaram a atrever-se a dizer-me que era porque não havia telefones. 
Perguntei o que disse e pergunto agora quanto às escutas não oficiais que existam: Quem são? Onde estão? Para onde vão?
De vez em quando temos uma surpresa, fruto do escândalo, de quantas nunca teremos notícia pelo que nunca se saberá.
Homenagem ao inocente "telefonista" anónimo a quem mandam fazer investigação criminal agarrado ao telefone a ouvir a vida alheia, dediquei este conto. Saiu num livro chamado Contos do Desaforo. É precisamente essa a questão, a do desaforo.

«Está, estou, sim, diz, todos os dias a mesma cantilena, os lugares-comuns do linguajar telefónico, todos os dias ouvir a partir das nove as chamadas nocturnas, em diferido, todos os dias estar atento às chamadas em tempo real, tempo real que palavra estranha, como se houvesse um tempo irreal, todos os dias o viver à escuta das conversas alheias, que raio de emprego que um homem tem, sim filha, diz, agora não posso, já ligo, a família que ligava também, nos piores momentos, a mulher, a filha, esses a quem não podia ouvir por não ter tempo, todo o seu tempo era para ouvir os outros, os telefonemas dos outros, conhecia-os a todos como se lhes tivesse visto a cara, o tom de voz, a alegria e a tristeza que exprimiam ao falar, nas coisas grandes dos negócios e nas coisas miúdas das suas vidas privadas, mas quem é escutado pela policia não tem vida privada, perde-se tudo, o recato, o pudor, a reserva, quem escuta torna-se obsceno e indecente, viciado na vida alheia, cúmplice passivo em todas as porcarias, fornica quando os outros se rebolam no contar da fornicação, sim, está lá, filha, amor, querida, que noite ontem, sim não houve problemas, que nisso somos todos iguais em possibilidades e em desejos, numa só coisa há que ser indiferente e alheio a lágrimas e tristezas, que um polícia tem de se distanciar e sobretudo desconfiar, não há piegas entre os bandidos e todos os escutados são potenciais bandidos e no entanto, ao fim de um dia, de dois dias, de semanas inteiras à volta dos outros um homem perde a vida própria, será isto às tantas uma doença, chega-se de manhã a arder de curiosidade sobre o que se terá passado durante a noite, fazem-se prognósticos sobre o que será dito na próxima chamada, pensa-se, pensa-se pelos outros não vais ser tão parvo que caias nesta arara e ouve-se que afinal caiu, um polícia ganha desprezo pelos estúpidos mesmo quando são vítimas, um certo apreço orgulhoso pela vitória dos aldrabões, cuidado com a bófia que o telefone deve estar sob escuta, mas mesmo assim falam, falam, contam e voltam a contar tudo ao pormenor e combinam mesmo sabendo que a polícia escuta, e dizem palavrões, porque todos dizemos palavrões e ficamos feios quando nos ouvimos a tê-los dito, já para não falar nas concordâncias do português, o a gente vamos mas se calhar é assim que se diz, ainda hei-de ver no prontuário, mas um polícia tem lá tempo para ir ao prontuário, e depois quando transcrever, horas e horas a martelar teclas, auscultadores no ouvido, que estupidez esta, raios me partam se não me mudam de secção, quando se transcreve põe-se tudo como foi dito, meias palavras inclusive e pontapés na gramática, que estes gajos falam mal para burro e eu se calhar não falo melhor mas não me escuto, quem escuta de si ouve, já dizia a minha mãezinha, a minha mãezinha teria vergonha de saber que o filho vive disto, paga a prestação da casa e a escola dos filhos a ouvir a vida alheia, eu que levei duas chapadas em miúdo por ter sido apanhado a escutar às portas, mas falavam de mim, parecia-me ao menos, a voz irada do meu pai, o deixa-o lá da minha mãe, e agora isto, isto todos os dias, muito fala esta gente, devem ter umas contas caladas de telefone ao fim do mês, hoje é dia para estar particularmente atento, vai haver uma grande operação, vim mais cedo mesmo, mas o telefone ainda não tocou, devem estar todos a dormir, que esta malta tem mais sorte que eu, para não falar no que ganham e nem têm que escutar a vida alheia, nem têm de estar apertados para ir à retrete no meio de uma conversa importante, aperta as pernas que não a podes perder agora, tenho toda a investigação no terreno à espera e logo agora esta dor de barriga, malditos salmonetes, telefone, o meu, telemóvel sim, diz, não, talvez mais logo, não, não sei a que horas saio, espera aí, eu não me esqueci, ó pá, nem todos têm a tua vida não é, e se me esquecesse vê lá morriam, não, mas agora não podia, não podia mais, estes gajos não ligam devem ter mudado de telefone, não chefe até agora nada, não filha não é para ti, estou a falar com quem, com quem haveria de estar, estou no serviço não é, e ainda por cima um serviço em que não se pode dizer nem sequer à mulher o que se faz, não é por segurança é por vergonha, e por segurança também, talvez, que elas são curiosas e querem saber e tu és parvo, não estás a ver o que eles queriam, armam-se em polícias mulheres de polícias, e agora aqui estou, já disse porcaria de vida, quero que me mudem de serviço, isto nem é nada, estou farto de ouvir, ouvir em casa, ouvir os chefes, ouvir os que falam, as meias-palavras, isto só pode ser código, as pessoas nunca dizem o que pensam e quando falam é tudo em meias tintas, negócios a meias, não há ninguém que me substitua, é só por um momento, a equipa no terreno desde a madrugada, o telefone não toca, reina um silêncio estranho, da próxima vez preocupo-me menos, quando o meu pai me morreu telefonaram-me estava ele já morto, vou aproveitar os pontos para comprar um telemóvel para a minha filha, já houve um tempo em que os telefones eram vermelhos e quadrados, a vinte e cinco tostões, havia um no Monte Carlo ao Saldanha, foi desse que te telefonei a primeira vez querida, vamos logo ao cinema, e fomos e desde aí não mais houve nem cinema nem querida, só o chegar sempre tarde, sempre cansado, sempre farto, sempre contigo ao telefone, eterna faladora, que terão as mulheres para tanto falarem, que se terá dado na minha vida para ter tanto que ouvir. 

A floresta de silvas

Reduzido a uma técnica, transformado numa profissão, vergado a ter de cumprir formulários, trabalhado no contra-relógio da ameaça do prazo cominatório, torna-se o Direito naquilo que não é: uma função pública arrasadora da alma.
Houve tempos em que, ligado que estive à docência, dei comigo a perguntar-me se estava a ministrar ensino universitário ou formação profissional. Eram tempos em que, se para explicar um determinado preceito da lei me atrevia a recordar a sua origem histórica, logo a atenção do auditório se perdia, para logo regressar, assim eu regressasse à comezinha leitura da norma por outras palavras mais simples e vulgares.
Estariam a antecipar um tempo de regresso em que à funcionalização se juntaria a sobre-simplificação.  O argumento de autoridade - com o consequente desvalor inconsciente de quem o usa - faria o resto. É o tempo das fórmulas crassas como «na esteira de», a abrirem via para a desnecessidade de outra fundamentação que não seja o magister dixit ou - agora que se vive a época do desprezo pelos professores por causa da desvalorização dos pareceres, obra quantas vezes de suas mãos - o curia dixit.
Lembrei-me disto ao ter lido um breve estudo do António Braz Teixeira acerca da reacção ao positivismo nos estudos jurídicos. Cita nele o Professor Manuel Paulo Merêa, que faleceu em 1976. Historiador do Direito, tenho dele alguns [infelizmente poucos] livros, nomeadamente um sobre o Direito Visigótico.
Historiador do Direito, mas também seu filósofo, foi autor de uma análise do que chamou uma filosofia «eminentemente humana para o Direito», de pendor «acentuadamente anti-intelectualista, que via no homem, ao lado da inteligência e da razão, um fundo infinitamente rico de sentimentos, de instintos, de tendências, de necessidades, de aspirações, intraduzíveis por vezes em ideias claras e definidas justamente porque são irredutíveis à inteligência raciocinante.»
Estou na fase em que sinto a urgência em tirar o Curso de Direito. Não aquele que me trouxe até aqui, mas um outro, em que regressaria ao princípio, dando por írrito e nulo tudo quanto vivi e começando de novo, para usar a frase de Leonardo Coimbra que é uma proclamação estupenda de vida nova.
Talvez assim eu consiga encontrar onde se perdeu na floresta de silvas do Direito o Humano, que era o seu natural destinatário, a sua justa medida, o autor das leis e o primeiro a obrigar-se por elas.

P. S. Vivo, aliás, na ânsia de reencontrar-me com o que gosto e tentar ler tudo sobre isso mesmo. Amanhã vou ver se encontro o texto que acima cito, o qual data de 1913. Foi publicado pela Imprensa Nacional mais recentemente. Começo por ali e vou adiante.