Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




O novo artigo 340º do CPP

Quando a reforma foi anunciada a crítica surgiu. Mas o Governo insistiu e a ideia passou na Assembleia da República, a alteração do artigo 340º do CPP.
Na sua versão originária este preceito era uma válvula de escape em prol da verdade, através da atribuição ao juiz de poderes oficiosos de investigação. Agora ficou reduzida a um alçapão.
De acordo com a nova redacção, saída da 20ª alteração ao Código de Processo Penal [Lei n.º 20/2013, de 21.02],os requerimentos de prova são indeferidos se for notório que «as provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, exceto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa».
Na aparência trata-se de um preceito moralizador, visando pôr termo ao abuso das provas requeridas fora do tempo próprio, trazendo para o processo a surpresa e, desta forma, a desigualdade de armas. Nessa dimensão nada a dizer.
Só que há uma outra.
A novidade parte do pressuposto de que em todos os processos existe uma adequada defesa técnica. Ora isso nem sempre sucede, muitas vezes a defesa nomeadamente é assegurada por quem não tem preparação suficiente para a função. Assim, a correcta contestação, a congruente elaboração dos requerimentos de prova deixam por vezes muito a desejar e é no momento da audiência que surge, inevitável, a impor-se como absolutamente indispensável, a necessidade de produzir prova que não foi até então considerada. E aí o poder corrector do juiz impõe-se para que a causa seja bem decidida e a verdade se alcance.
Em casos como este o artigo 340º era uma norma garantística, que beneficiava sobretudo o pior assistido, quantas vezes o de mais fracos recursos económicos para poder beneficiar de defesa não oficiosa.
Pode dizer-se que a parte final do preceito agora alterado é garantia suficiente de que os poderes judiciais oficiosos subsistem para a prossecução daqueles valores da descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Em parte assim pareceria ser se esse segmento da norma não estivesse redigido como excepção. Desta forma, na sua formulação, a regra passa a ser o convite ao indeferimento à prova que teve já o seu tempo processual para ser indicada, na acusação e ma contestação. E imagina-se certas mentalidades avessas a delongas judicativas a encontrarem aqui arrimo fácil para a rejeição da prova porque intempestiva. 
Além disso, o legislador, ao ter reportado àqueles dois momentos processuais os tempos inexoráveis de indicação das provas - com preclusão da sua menção em momento posterior - parece ter esquecido que se manteve a possibilidade de alteração do rol de testemunhas, por força do artigo 316º do Código nesta parte não modificado.
E assim, o que o artigo 340º agora diz é uma incongruência: as provas não são admitidas se poderiam ter sido indicadas na acusação e na contestação com a possibilidade de serem indicadas, porém, em momento posterior àqueles dois momentos, o que o artigo 316º clausula e aquele artigo não ressalva.
É o que sucede quando se emitem leis avulsas sobre Códigos que têm a sua lógica. Altera-se um preceito esquecendo-se os outros que são o que conferem a plenitude e a suposta harmonia do ordenamento jurídico.


Peculato do acessível


Determinou a Relação de Coimbra no seu recente acórdão de 23.01.13 [proferido no processo n.º 214/11.8PCCBR, texto integral aqui] que «O segmento “acessível em razão das suas funções” referido no n.º 1, do art.º 375º, do C. Penal, que se reporta ao tipo legal de crime de “Peculato”, exige uma especial relação de poder ou de domínio ou de controlo/supervisão sobre a coisa que o agente detém em razão das suas específicas funções e que vem a postergar com abuso ou infidelidade das específicas funções, ao apropriar-se, para si ou para terceiro, dessa mesma coisa - não sendo suficiente apenas a simples acessibilidade física em relação à coisa de que se apropria.»

Li-o com atenção, a este controverso acórdão, porque estou a rever, para o fazer publicar no próximo mês, um estudo jurídico sobre este tipo de crime, o de peculato, o primeiro de uma série regular de monografias sobre os crimes com relevo patrimonial. 

A rota farpela do Estado


Sob a ameaça de os meter na cadeia, o Estado torna cada cidadão um recebedor de impostos, no caso do IVA e do IRS: retêm-nos com a obrigação de os entregar ao Fisco. Quem presta um trabalho cobra IVA a quem o prestou e paga IRS por tê-lo prestado. Idem quem vende o que seja.
Agora, sob a ameaça de multa, o Estado torna cada cidadão fiscal das obrigações tributárias dos comerciantes, punindo-os se não lhes exigirem facturas.
Em vez de pagar aos funcionários, o Estado corta-lhes o vencimento e despede-os. Em contrapartida, usando o Direito Penal como forma de pressão, o Estado privatiza o serviço fiscal pela pior forma, a mais desproporcionada, a mais atentatória dos princípios constitucionais.
Até aqui os tribunais, que terão de ser o braço armado do sistema, têm estado calados e sobretudo quietos. Até ao dia em que o primeiro tribunal levantar a mão para a acabar com este expediente que degrada o cidadão no cobrador de fraque, a rota farpela do Estado.

* texto reproduzido do que hoje publiquei no blog de intervenção cívica A Revolta das Palavras.

O caminho pedregoso


Talvez ao sair da Faculdade eu já não tivesse do Direito a noção de que ele se exprimia more geometrico, como uma racionalidade de postulados demonstráveis, como uma escolástica de silogismos dedutíveis. Apenas o meu contacto com zonas crescentes do pensamento filosófico que então me povoavam o espírito e que me levaram a visitar a genialidade de Leibnitz e todos os outros que o antecederam, terminando então em Norbert Wiener, e a traduzir mesmo um capítulo do livro Giuscibernetica, macchine e modelli cibernetici nel Diritto do professor Mario G. Losano para uma antologia de textos sobre as novas epistemologias - a qual a PIDE entretanto apreendeu em ainda em fase de provas para revisão por suspeitar que poderia trazer o vírus da subversão, imagino porque alguns autores do livro viriam da "Cortina de Ferro" - apenas tudo isso me faziam supor que houvesse alguma homologia entre os modelos que a ciência do mundo físico estudava e aquilo de que o Direito tratava, uma possibilidade de extrapolar da lógica alética para a lógica deôntica, como imaginou o finlandês von Wright e eu aprendi, conhecendo-os, com o espanhol Miguel Sánchez-Mazas e o polaco Georges Kalinowsi.
Esse tempo passou. O que poderia ter sido um caminho, que me traria uma falsa pista intelectual, salvando o Direito do desprezo, mas talvez por troca com uma vida universitária, foi. Pelas minhas mãos, a incúria, a sorte da vida, sei lá.
Regressei à estrada por onde estão os marcos miliários romanos que mostram que o caminho do Direito se faz pelo solo pedregoso e pela heurística da tentativa e erro. Advogado, aprendi pela forma mais dura de se aprender, rasgando as mãos a abrir caminho onde caminho teria de haver.
Estou hoje convencido de que o apriori pesa muito em muitas mentes, o jurídico torna-se em pura legitimação para todas as possíveis soluções. Que a razão é apenas um modo.
Lembrei-me disso este começo de manhã, não por saudade desse tempo de vida acumulado mas por me perguntar se não haverá da decência da Justiça um modo pelo qual tudo se não resuma à retórica e à sofística da argumentação.

Começar de novo


A quantos me visitam com regularidade, na esperança defraudada de aqui encontrarem algo de novo e nas últimas largas semanas se defrontam com o vazio, peço compreensão.
Há momentos em que a vida nos concentra naquele mínimo que é a sobrevivência. No meu caso as circunstâncias fizeram com que tentasse não falhar no cumprimento dos deveres da minha profissão e pouco mais. A alma sensível, essa, espelhou-se, como um reflexo, num ou outro escrito, em outro lugar, em poética de nostalgia, mesmo assim incerta. O resto foi a mecânica do que estava feito e sua irrupção à luz do dia, em aparência de novidade, ilusão de criação.
Deveria ser o jurídico, eu sei, e nele o seu intrínseca humanismo, terra justa e recta do Homem para o Homem, que me deveria ter feito vir aqui, não ter deixado de vir aqui. Não foi, porém, assim.
A docência inesperada fez de mim um aprendiz de processualista. Estudei então para tentar ensinar. Talvez por isso a técnica e a forma tenham, nesse meu ser que se tornou improvisado professor, obnubilado a substância. Dezassete anos de docência, mais de quarenta de profissão nesta área foram-me inimizando em amargura e incompreensão.
No Direito Criminal, nos subterrâneos do seu pulsar, está a tragédia humana na sua máxima expressão, a latrina social no seu mais fétido odor, o universo de moribundos sem Lei e dos que se destroem destruindo, vítimas todos, culpados quantos. E, no entanto, é ali, essencialmente ali, que pulsam os sentimentos da maior nobreza e da maior baixeza, é ali que a sociedade trava com o indivíduo, através do Estado, a cruel batalha para que aquela viva e este consiga sobreviver. Está ali o amor e o desamor, a essência do que há.
No Processo Criminal, nesse porém, alberga-se, quantas vezes, como numa fria autópsia de cinismos, o modo de tornar esses humanos em corpos, essas misérias expiações, a batalha em técnica, a vida em pura função. Por ele, assim não haja o escrúpulo de o tornar serviço de uma essência, instrumento de valores, tudo se perverte ainda que em aparência de verdade.
Talvez, por isso, no campo onde tudo isto sucede, eu devesse ter sido outro ou devesse ter aprendido a ser outro. 
Tenho, arrastado há anos, progressivamente soterrado pelo entulho de legislação que se sucede, o que poderia ter sido um livro sobre essa ramo do Direito adjectivo. A última vez que juntei as folhas eram mil e quinhentas. 
Em bom rigor há que começar por rasgá-las. 
Há um dia em que o Homem dá conta ao espelho que se esqueceu da Humanidade, soterrado ele próprio no local onde o Direito os vai sepultando e às suas vítimas.
Encontrei-me hoje ali. Hei-de conseguir novos olhos e novos braços. Medíocres que sejam, permitir-me-ão escalar ao local onde o ser encontra a existência e com ela defrontar-me. Há na contrição intimidade. O mundo não é só subsistir.

O reputado como pária


Acompanho aqui a jurisprudência. Para aprender. E pelos vistos para me surpreender. 
Um acórdão da Relação de Lisboa afirmou, a propósito de um caso de crime contra a honra, que «não será assim qualquer tentativa de ridicularizar ou de ostracizar que pode abalar a reputação de quem a tem». E com este fundamento arquivou o caso.
Reduzindo ao absurdo, quer dizer que chamar ladrão ao gatuno dá a este o direito de clamar por justiça para defender a sua honra e ter os tribunais do seu lado; já quando se chama gatuno a quem é sério este corre o risco de ver virar-se contra si a seriedade!
Ou seja, quem tem reputação tem algo que, julgando valioso, certos tribunais acham que não precisam necessariamente defender, porque ser coisa que vale por si e a tudo resiste. Basta desvalorizar o autor da imputação, rebaixando quem a produz e, assim, no fundo e no final da linha, aquele que é visado.
Ser reputado, é pois, em Portugal, um perigo! Fica-se a mercê de tudo. É-se um pária sem direitos.

Abundância de direitos...

O tema promete porque o título provoca. Trata-se da alegada «abundância de direitos» em tempo de crise. Oradores, Cunha Rodrigues e Teresa Pizarro Beleza.
O evento tem lugar na Livraria Almedina, ao Saldanha, dia 22, pelas 18:00. Organiza o Instituto Europeu.
Onde encontrarão os oradores a abundância? E, sobretudo, quem detém os frutos da ubérrima colheita?

O Homem, esse animal...

A correlação direitos dos Homens/direitos dos animais, que está na ordem do dia a propósito de um cão que mordeu gente, foi tema no Brasil, nos anos de chumbo, a propósito das desumanas condições carcerárias.
Pleiteou-a o corajoso advogado Heráclito Sobral Pinto que, mau grado ser católico fervoroso, não hesitou defender no foro o comunista Carlos Prestes.
Na defesa de um outro comunista preso, não hesitou em impetrar a providência excepcional do habeas corpus com o argumento de que o humano não poderia ser tratado em condições mais cruéis do que um cavalo. Fundava-se em sentença que condenara um brasileiro pela morte de um animal e no regime legal decorrente do Decreto n.º 24645, o qual defendia os animais de maus tratos.
Palavras da petição: «Num País que se rege por uma tal legislação, que os magistrados timbram em aplicar, para, deste modo, resguardarem os próprios animais irracionais dos maus-tratos até de seus donos, não é possível que Harry Berger permaneça, como até agora, meses e meses a fio, com a anuência do Tribunal de Segurança Nacional, dentro de um socavão de escada.».
Era aí, precisamente, num sovacão de escada. «Naquele início de 1937, Berger não era nem sombra do homenzarrão de 1,90 m. Encarcerado em uma cela sem luz, improvisada em um socavão de escada do prédio da Polícia Federal, no Rio de Janeiro, não conseguia ficar em pé naquele diminuto espaço, com pé-direito de 60 cm. Mal movia as articulações. Dormia sobre pedras. Estava sem banho há um ano, sem cortar os cabelos e a barba.» [todo o caso aqui]

O sonho americano


Fica como arquivo a crónica publicada na edição on line do jornal Público. Texto original aqui.


Não foi mais do que o sonho de uma noite de Verão, o de que o modelo americano de Justiça se poderia transpor para Portugal. A operação foi bem organizada mas o poder político não arriscou. Danos colaterais: ficaram evidentes as fragilidades do sistema.
As condições pareciam propícias.
Primeiro, Pinto Monteiro chegava ao fim do seu consulado como Procurador-Geral da República ante a ideia de que o Ministério Público eram bolsas autónomas de poder e não uma hierarquia organizada sob a regência do Palácio de Palmela.
O PGR vivia sob a suspeita permanente de que os processos de “certas e determinadas pessoas” corriam sob a sua alçada. Exigia-se, pois, a fiscalização democrática da Justiça pela participação popular, uma justiça pelo povo e para o povo.
Depois, a lentidão dos processos fazia constante notícia nos jornais, estava no auge a campanha de que os poderosos conseguiam através do expediente processual retardar a Lei, salvando-se dela. Reclamava-se, por isso, a celeridade e a eficácia, os critérios de excelência eram os que o senhor Henry Ford impôs nas suas fábricas de automóveis.
O admirável mundo novo tinha então o seu tempo histórico.
Politicamente, a esquerda judiciária tinha tido a sua oportunidade na geração antecedente, guindada ao sindicalismo e mesmo à função de modo a prosseguir com ela, até no foro, a luta de classes por outros meios. Tinham sido os tempos da gestão processual por critérios de selectividade, a criminalização retumbante de uns em detrimento de outros, a prescrição como modo de agraciamento do incómodo, a estigmatização de certas classes, de certas pessoas, de determinadas organizações.
Agora, supostamente mortas as ideologias, rendidos os seus radicais antecessores, os soixante-huitards das barricadas, às prebendas do capitalismo financeiro e às alcatifas do poder eurocrático, surgia a nova vaga da tecnocracia intelectual, misto de pragmatismo moral e de funcionalismo estatutário, para quem a Justiça era em breve uma forma de resolver processos com rapidez já que, afinal, anos de cultura inspectiva fazia com que a estatística contasse decisivamente para a promoção e, por essa forma, uma engenharia social, tal como a sanitária.
O “sonho americano” teve, então a sua janela de oportunidade. Foi título da revista Sub Judice na primavera de 1998, cantando então loas às virtudes do Supremo Tribunal enquanto órgão de poder na Federação dos Estados Unidos da América.
Seria o 2011 que traria, enfim, a possibilidade de se ir mais longe. De Coimbra o professor Figueiredo Dias emprestaria a sua indiscutível autoridade académica a uma ideia discutível: a da justiça negociada na forma dos acordos sobre a sentença penal, transacionada, em regime paritário, entre o acusador público o acusado e seu defensor e com envolvimento do próprio juiz a quem caberia julgar o caso. Com uma precisão científica a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, em mudança de direcção, traria a ideia como bandeira programática para o campo da discussão.
Que resultou? No plano legal, nada, porque a Constituição impede esta justiça da combina e da transacção, permitindo embora que o consenso opere nos casos em que já foi consagrado por lei no domínio do Código de Processo Penal.
Mostraram-se, isso foi, as fissuras do edifício judiciário: ante a inacção do PGR, houve Procuradorias Distritais que emitiram orientações que viabilizam o sistema, outras omitiram conhecê-lo. Há, pois tribunais em que sim e tribunais em que não.

À espera da hora...

Os tribunais reabriram hoje sem que eu tenha notado propriamente que chegaram a encerrar. Eu e, afinal, todos os que estamos sujeitos a prazos ou às necessidades da vida.
A reabertura é, na sua total verdade, um dos eufemismos que caracterizam o sistema. Há quem possa tirar uns dias de ausência, as exigências do trabalho podem diminuir, mas fica-se por aí.
O que renasce sempre é a expectativa de que algo vai mudar. Aqui há uns meses parece que a sorte do País, a possibilidade de haver investimento privado na economia, uma das exigências mesmo da troika que nos governa eram a celeridade processual e o que se chamou o mapa judiciário.
Os meses volveram, entre discursos e especulações estamos rigorosamente na mesma.
Talvez se legisle por aí sobre o processo civil, havendo já quem vaticine a confusão, ou sobre a nova geografia judiciária, não faltando os que antecipam o custo que vai ter e os bloqueios que vai gerar. Nas "férias" da Pàscoa cá estaremos todos para assitir.
A Boa-Hora, por exemplo, continua sem se saber para quê. Nem porquê. E assim sucessivamente. Estamos todos sempre à espera da hora...