Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Direito Premial: não à revolução!


Em declarações públicas proferidas ontem, a ministra da Justiça, Francisca van Dunem, clarificou o sentido político pretendido pelo Governo em matéria de Direito Premial. Citando as suas declarações: «Não tem nada a ver com criar nada de novo ou revolucionário, tem apenas a ver com a identificação de algumas áreas de estrangulamento que precisam de alguma afinação e com a sua intervenção cirúrgica nessas áreas para melhorar a capacidade de resposta do ponto de vista da prevenção e repressão criminal” da criminalidade económico-financeira, explicou Francisca Van Dunem, afastando a ideia de que haverá uma mudança completa de paradigma neste domínio.
Trata-se, pois, por um lado, de uma lógica de alargamento, por estar em causa a criminalidade económico-financeira, por outro, uma lógica restritiva, porquanto se afastam os modelos de ampliação através dos quais alguns sectores pretendiam, à conta do tema, alterações significativas no modelo vigente. 
Facto é que, para além desta asserção geral, nada de específico fica definido como ponto de partida para a revisão do sistema, nem sequer um compromisso com a filosofia da pena negociada que a então PGA defendeu como critério para a Procuradoria Distrital de Lisboa. E assim, creio que qualquer discurso sobre o tema só pode ser consequente em face de propostas concretas que surjam do grupo de trabalho que está criado para o assunto, pois até lá o risco de estarmos ante mera especulação. 
Não pode, porém, esquecer-se, que a Assembleia da República tem poderes legislativos exclusivos na matéria e, assim, não é de excluir que surjam, a partir do hemiciclo, propostas que não se conformem com a via reduzida do pensamento governativo.

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Foto Miguel Lopes/LUSA

Assembleia da República: iniciativas


Mais uma proposta de lei baixou à 1ª CACDLG e outros projectos de lei estão ali registados.

Em matéria de propostas de lei, eis a que refiro:

[2/XIV]: Procede à transposição da Diretiva Delegada (UE) 2019/369 da Comissão, de 13 de dezembro de 2018, a fim de incluir novas substâncias psicoativas na definição de droga, introduzindo a vigésima quarta alteração ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas

Quanto a projectos de lei, actualizando a lista que tinha publicado, com relevo directo para o tema deste blog:

[143/XIV, CDS-PP]: Assegura formação obrigatória aos magistrados em matéria de Convenção dos Direitos da Criança (4.ª alteração à Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro)

[144/XIV, CH]: Agravação das molduras penais privativas de liberdade para as condutas que configurem os crimes de abuso sexual de crianças, abuso sexual de menores dependentes e actos sexuais com adolescentes e criação da pena acessória de castração química

Crimes contra a honra: actualidade e interacção social

Interpretação actualista dos conceitos jurídicos em função da interacção social em matéria de crimes contra a honra, por ponderação dos critérios de aferição da tipicidade vertidos em um estudo jurídico tida como referência na matéria, o ensaio de José Beleza dos Santos, publicado em 1959 sobre os crimes de difamação e injúria.

É este o este interessante passo do Acórdão da Relação de Lisboa de 04.12.2019 [proferido no processo n.º 4477/14.9TDLSB-3, relatora Adelina Barradas de Carvalho, texto integral aqui] onde é configurada a questão da actualidade como critério de validação interpretativa:

«O estudo de Beleza dos Santos citado pelo tribunal a quo (“Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e injúria”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 92.º) é uma reflexão importante sobre os crimes contra a honra, tem resistido à erosão do tempo mas data de 1959 .
Mas o estudo data de 1959 e o crime em causa , tendo em conta uma série de factores perdeu alguma carga em certos pontos ganhando-a noutros. Ou seja, o crime de injúrias é um crime cultural, as palavras têm a força que os movimentos culturais e sociais assim como os contextos em que são proferidas, lhes dão.
Hans Welzel chama a esse factor de influência e modificação, interação social. E sofreu o desgaste imposto pela compatibilização do bem jurídico que tutela com outras liberdades que, entretanto, se foram afirmando e sedimentando (como seja a liberdade de expressão). Hans Welzel desenvolveu uma teoria limitadora do Direito, estabelecendo obstáculos à utilização arbitrária do sistema penal através de elementos retirado do mundo fático. Na lógica deste jurista e filósofo, que se deparou com as atrocidades de um Estado punitivo e dominador ao extremo cometendo mesmo atrocidades, o Direito está intimamente associado à realidade de modo que factualidade e norma se correlacionam.
Na verdade o Direito é algo de vivo e tem de se adaptar ás alterações, evoluções e mesmo involuções do dia a dia das vivências e condições humanas. Não queremos com isto dizer que a Honra vale menos hoje do que valia em 1959. Queremos dizer que se o conceito de honra se redimensionou ganhando peso em situações , noutras situações a noção de que não foi atingida é clara.»

Contraordenações e alçapões


O sistema legal em matéria de ilícito de mera ordenação social carece de duas definições essenciais: uma, uma lei-quadro a partir da qual todos os regimes específicos, e tantos são, se sujeitem para evitar a completa disparidade de soluções que encontramos, amiúde sem qualquer razão substancial de diferenciação; outra, um regime geral que seja o mais extenso e completo possível e assim não sujeite, como até aqui, a normação contraordenacional viver em função do que se achar ser ou não lacuna a integrar pelo regime do processo penal e os interessados a sofrerem as funestas consequências da incerteza. É que, por não ser assim, e vivendo como se vive, tudo é uma floresta de enganos, por vezes para as entidades impugnantes e - às vezes sucede - para as próprias autoridades administrativas. O Acórdão da Relação de Lisboa de 03.12.2019 [proferido no processo n.º 68/19.6TNLSB.L1-5, relator Luís Gominho] é disso bom exemplo, ao ter de resolver o problema da admissibilidade do envio de uma peça processual por uma autoridade administrativa por meio de correio electrónico, sem assinatura do seu autor e a possibilidade de tal ser causa de rejeição. Uma Justiça insegura fruto de um Direito incerto.


É este o sumário do decidido [texto integral aqui, com desenvolvimentos que vale a pena considerar]:

«Ainda que se possa reconhecer a existência de uma fase administrativa e uma outra judicial no processo contra-ordenacional, a verdade é que um processo contra-ordenacional, embora tenha uma fase adminstrativa, não é um processo administrativo.
- Um recurso de “impugnação judicial” em processo contra-ordenacional, como tal definido por lei – artigo 59.º, n.º 1, do RGCO - não é um recurso administrativo, nem se lhe aplicam normas administrativas.
- Ao recurso de impugnação judicial do processo contra-ordenacional aplicam-se as normas do RGCO; em caso de lacuna neste aplicam-se as normas do C.P.P. (artigo 41.º do RGCO); em caso de lacuna deste, aplicam-se as normas do C.P.C. (artigo 4.º do C.P.P.)”.
- Em processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio electrónico, nos termos do disposto no artigo 150.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961, na redacção do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27.12, e na Portaria n.º 642/2004, de 16.06, aplicáveis conforme o disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal.
- Não pode deixar de exigir-se a assinatura ou autenticação dos documentos electrónicos remetidos a juízo, não por via do citius, sequer através de endereço de e-mail oficializado pela Ordem dos Advogados, mas por endereço particular de e-mail do Ex.mo Advogado remetente.
- Mas a remessa para a Autoridade administrativa por meio de correio electrónico simples, sem a assinatura do seu autor, não deve determinar como consequência, a rejeição pura e simples da impugnação apresentada, que seja tempestiva, sem que previamente seja concedida ao interessado a possibilidade do seu aperfeiçoamento, rejeição que a existir, sem tal prévio convite, viola o viola o direito ao recurso.
- Acresce que não existe norma legal a cominar a rejeição do recurso, enviado e recebido pela autoridade administrativa dentro do prazo, quando não esteja devidamente assinado pelo seu autor, vigorando neste domínio, um princípio de legalidade.
- Não deixando aquela omissão de traduzir uma irregularidade, entende-se que a mesma poderá ser reparada com um convite ao seu subscritor para, em prazo que se entenda conveniente, apresentar pessoalmente no Tribunal recorrido o original do recurso de impugnação por si enviado, devidamente assinado, ou então, também pessoalmente, ratificar o articulado primitivamente apresentado.»

Corrupção: um dos cinco pilares


Um dos cinco pilares da estratégia nacional contra a corrupção proposta pela associação Transparência de Integridade [ver a totalidade aqui] está a Justiça [os outros quatro são a política, a administração pública, a sociedade e o sector privado e os reguladores] e quanto a esta são as seguintes as propostas que visam, segundo a proponente «garantir a independência, capacitação e meios legais e materiais do sistema judicial para combater a corrupção, punindo os responsáveis e recuperando os ativos.»

«Propostas e medidas:

1.1 Criar um sistema robusto e eficaz de proteção dos denunciantes, em linha com a Diretiva Europeia recentemente acordada e com as melhores práticas internacionais, de modo a permitir a deteção mais atempada dos crimes e a recolha de denúncias mais fundamentadas e bem documentadas.

1.2 Criar uma agência anticorrupção especializada que reúna competências de investigação, prevenção (no âmbito do setor público e do setor privado), prossecução criminal e educação, como proposto nos arts. 6.º e 36.º da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. Absorvendo várias das competências atuais do Conselho de Prevenção da Corrupção, da Entidade de Contas e Financiamentos Políticos, do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, da Unidade Nacional de Combate à Corrupção e da recém-legislada Entidade para a Transparência, este novo organismo deve ser uma estrutura única de combate à corrupção, com todos os benefícios daí decorrentes, e dotada de meios técnicos e humanos através de garantias de autonomia administrativa e financeira, mediante a fixação do seu orçamento com base numa percentagem fixa do Orçamento de Estado para cada ano.

1.3 Criação de tribunais especializados, com competências específicas em crimes relacionados com corrupção, ao abrigo do art. 211.º da Constituição.

1.4 Reforço da transparência do sistema judicial, através da criação do website da Justiça Portuguesa, que recolha e agregue informações sobre a atividade das várias instituições envolvidas (Ministério Público, Tribunais, etc.) e que contenha, nomeadamente, os seguintes elementos:

a) Estatísticas mais detalhadas e atualizadas sobre o andamento de processos e da Justiça;
b) Disponibilização sistemática e organizada das decisões judiciais (acompanhadas da identificação dos arguidos/réus);
c) Disponibilização sistemática e organizada dos despachos finais de inquérito do Ministério Público;
d) Disponibilização das decisões de processos disciplinares sobre magistrados judiciais.

1.5 Melhoria dos mecanismos de prevenção, através de campanhas de sensibilização a potenciais denunciantes, da criação de gabinetes de intelligence, da análise integrada da informação recolhida sobre processos de corrupção e crimes conexos e do fomento da realização de averiguações preventivas dentro dos trâmites legais.

1.6 Descriminalização da difamação, na medida em que constitui um obstáculo efetivo à denúncia de casos de corrupção.»

Um modo esquisito de ser

Vem a caminho o primeiro tomo do Comentário Judiciário do Código de Processo Penal e senti que poderia ser momento de entrar na análise do segundo volume, que está publicado desde 2018. O problema das obras que não surgem pelo início é, no entanto, esse mesmo, aguardarmos ansiosamente que surja o seu começo, para não dizer o seu termo, porque a relação entre os preceitos da lei implica que não se possa interpretar um sem que outro encontre também expressão do entendimento sobre ele sufragado. 
Para além disso, um Código anotado por vários autores não pode ser referido sem menção a cada uma das anotações, no caso as de António Gama, António Latas, João Conde Correia, José Mouraz Lopes, Luís Lemos Triunfante, Maria do Carmo Silva Dias, Paulo Dá Mesquita, Pedro Soares de Albergaria e Tiago Caiado Milheiro. Se em uma obra universitária pode haver convergência de orientação dentro da diversidade da opinião, aqui o expectável é que cada anotador traduza o seu pensamento próprio sobre o tema relativamente ao qual escreve, por não haver uma "escola" de pensamento que assim se exprima.
A obra em causa é necessariamente útil, enriquecendo quanto possa ajudar a compreender o ponto de situação do Código de 1987 na fase actual sujeito que foi às sucessivas modificações que, em alguma parte, o tornaram um outro Código.
Muito poderia dizer sobre o anotado no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, mas neste momento em que escrevo pondero se deverei levar o arrojo a este parágrafo que, tudo pensado, assim segue: nele,  nem um só dos escritos que publiquei sobre processo penal, de monografias [e dezenas foram] a livros [e dois até hoje, um deles em dois volumes e já sobre o novo Código] mereceram menção na aliás extensa biografia. Vale isto como critério de julgamento sobre a valia de quanto escrevi? Não me cabe a mim dizê-lo, pois sou o pior crítico do que tenho escrito, ao sentir estar sempre aquém do que podia, e mais aquém ainda do que devia. Mas fosse para repudiar quanto tenho escrito, ao menos talvez uma referência tivesse sido possível, não para os outros que são merecedores de autores de mais valia, porventura, afinal, para mim próprio que remoo a ideia de regressar com mais pontualidade à escrita, isso na ilusão, ingénua como todas as ilusões, de que possa dar com isso algum contributo aos demais. 
Desanimarei ante o silêncio? Não. Porfiarei. É um modo esquisito de ser.

Conselho de Ministros de 05.12.2019

O Conselho de Ministros desta quinta-feira, dia 5, aprovou, segundo o comunicado oficial [com menção de relevo para este blog] o seguinte:

-» Plano Nacional de Gestão Integrada dos Fogos Rurais (PNGIFR), que ficará hoje disponível para consulta pública.

Segundo o comunicado «o Plano, que abrange o período 2020-2030, identifica o contexto e designa as orientações e os objetivos estratégicos para uma abordagem integrada ao problema, definindo as responsabilidades das entidades públicas e privadas envolvidas, desde o planeamento até ao pós-evento. Este documento utilizou como base de trabalho os relatórios produzidos pelas duas Comissões Técnicas Independentes, constituídas pela Assembleia da República na sequência dos incêndios de 2017.»


-» Na dependência directa da Ministra da Justiça, um grupo de trabalho para a definição de uma estratégia nacional, global e integrada de combate à corrupção, que compreenda os momentos da prevenção e da repressão, e que envolva a participação de diferentes entidades e profissionais.

De acordo com o comunicado «o grupo de trabalho terá por finalidade desenvolver os objetivos do programa do Governo de, designadamente, instituir um relatório nacional anticorrupção, avaliar a permeabilidade das leis aos riscos de fraude, diminuir as complexidades legais e a carga burocrática, obrigar as entidades administrativas a aderir a um código de conduta ou a adotar códigos de conduta próprios, dotar algumas entidades administrativas de um departamento de controlo interno que assegure a transparência e imparcialidade dos procedimentos e decisões, melhorar os processos de contratação pública, reforçar a transparência das contas dos partidos políticos, e obrigar as médias e grandes empresas a disporem de planos de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas.


-» Proposta de lei que introduz medidas de harmonização e simplificação que visam melhorar o funcionamento do sistema do IVA no comércio intracomunitário, transpondo as Diretivas (UE) n.ºs 2018/1910 e 2019/475.

Procede-se, assim [segundo o comunicado ], «à alteração do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias (RITI), assim como do Código do IVA, no sentido de incluir o município italiano de Campione d'Italia e as águas italianas do lago de Lugano no território aduaneiro da União Europeia.»


Matéria de facto nos recursos penais: uma conferência



Hesitei se o deveria aprimorar antes da publicação, mas manda a coerência que o texto desta minha intervenção surja tal como foi lido na conferência sobre Direitos Fundamentais no Processo Penal, que teve lugar no passado dia 21 de Novembro no Salão Nobre da Academia das Ciências, organizada pelo Supremo Tribunal de Justiça e em que me foi dada a honra de participar com o tema recurso: impugnação da matéria de facto, vícios da decisão e in dubio pro reo. 


Há momentos em que urge regredir no tempo para, através do passado, tentar o conforto de compreender o presente,  com risco de terminarmos, porventura, ante aquilo em que o mesmo se tornou, num sentimento frustrante de desilusão. Eis o trajecto que me proponho fazer.
Os que trabalharam sob  sistema do Código de Processo Penal de 1929, ou o estudaram depois de ter terminado a sua vigência, lembram que os recursos penais corriam nele sob a forma de agravo; aqueles que têm presente o que se consagrou na versão inicial do Código de Processo Penal de 1987, recordar-se-ão que, de modo claro, a Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de Setembro, que viabilizou a aprovação de tal diploma, estatuía que ao tribunal da relação era atribuída competência para conhecer «em apelação» dos recursos interpostos de decisões interlocutórias e finais do juiz singular e de decisões interlocutórias emitidas pelo tribunal colectivo» [n.º 72].
Não se tratava então de mera mudança de etiquetas na designação da espécie de recursos, sim, implantar uma outra filosofia, segundo a qual nos recursos haveria de privilegiar-se o mérito das questões e não apenas os temas do procedimento.
Ora, conferindo o que mostra a prática dos tribunais e a mentalidade que se formou em matéria do tema, conclui-se que a lógica subjacente ao princípio da apelação entrou em necrose e subiste hoje com escassa projecção: é, de facto, sentimento de quem pratica nos tribunais, que as questões processuais têm mais probabilidade de serem acolhidas em recurso do que a discussão substancial dos factos provados e não provados, pois quanto a estas, entre a lei e a jurisprudência, foram-se acumulando entolhos a essa possibilidade.
O tempo histórico correu, pois, no sentido do desaparecimento da apelação penal, não só como palavra, mas como realidade jurídica, pois ela sumiu do sistema processual como termo e como ideia.
E, no entanto, o Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira, no seu Curso de Processo Penal, [impresso em 1986], concluía:

«[…] a apelação é o recurso que verdadeiramente constitui um segundo julgamento; substitui, ao juízo da 1ª instância, um novo juízo, em matéria de facto e de direito, de 2ª instância».

Eis o que se tornou evanescente do universo da Justiça criminal, a ideia de que o recurso é essencialmente um novo exame, uma revisão do visto, uma segunda oportunidade de avaliação do decidido em todos os ângulos em que ocorreu decisão recorrida: hoje o recurso tornou-se uma pálida imagem dessa noção.
Tudo isso surgiu de um progressivo gotejar histórico que foi sedimentando. O Código de Processo Penal tentou criar um modelo com isso fracturante, mas estava à vista que não teria futuro. A História explica porquê.
Admitiam-na, à apelação penal, as Ordenações. Mas em 1892, uma Lei, de 15 de Setembro, determinava já que as apelações e as revistas eram julgadas como agravos.
Era o ponto sintomático da desvalorização das nomenclaturas, miscigenando-as todas, desvalorizando assim cada uma. Citando Alves de Sá, coevo do que se passava:

«Assisto aterrorizado desde 1892 a esta confusão tumultuosa em que caiu o foro nesta matéria».

Ao chegar-se do Código de Processo Penal de 1929 já o conceito de apelação penal tinha sido, entretanto, varrido da terminologia da lei adjectiva criminal e encontrávamos apenas um princípio, que nos acompanhou a todos quantos, como é o meu caso, tivemos esse código como companhia profissional - já retalhado, acrescentado, parcialmente revogado e derrogado - segundo o qual - e eis o seu artigo 649º:

«Os recursos em processo penal serão interpostos, processados e julgados como os agravos      de petição em matéria cível, salvas as disposições em contrário deste código».

Não era esta, a que citamos, uma simples norma jurídica sobre tramitação, era, sim, um normativo sobre a natureza das coisas em matéria de recursos, a dar-lhes uma semântica e sobretudo uma direcção interpretativa em via reduzida: dizia-se «agravo» para que ficasse entendido que não se queria dizer «apelação». E dizia-se, aliás, «agravo de petição» categoria jurídica que havia, aliás, já caído em desuso.
É que natureza do agravo era determinada sobre a incidência do seu objecto, a circunstância de recair sobre tema processual, que não sobre o mérito da causa, afastando assim o território natural da apelação.
No enunciado da lei subsidiária, e como tal aplicável em regime de integração, determinava já o Código de Processo Civil de então [o de 1876] que:

«[…] das decisões de que não pode apelar-se e que excedam a alçada do juiz compete agravo».

E quanto ao critério pelo qual se encontravam os casos de que cabia apelação, resumia-o o Professor Alberto dos Reis, no seu livro Breve Estudo sobre a Reforma do Processo Civil e Comercial ao escrever que o legislador havia reservado a apelação «para as sentenças que conhecem do mérito ou do fundo da causa, compreendendo-se na palavra causa certos e determinados incidentes».
Em suma, o desaparecimento a partir de 1929  da categoria das apelações penais significou como única ilação possível, uma indicação legislativa no sentido da incognoscibilidade tendencial do mérito das causas penais. Era, assim, a restrição dos recursos no que se refere à sindicabilidade efectiva das causas penais julgadas em primeira instância.
É que esse Código de Processo Penal de 1929 havia determinado, no seu artigo 665º, que:

«As Relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem em primeira instância e nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1ª instância, e conhecerão só de direito, nos recursos interpostos das decisões finais nos tribunais colectivos e das proferidas em processos em que intervenha o júri (…)» [salvo o caso de anulação da decisão do júri em caso específico].

Quer dizer: o mérito da causa, a partir da reforma processual penal de 1929, e em função daquele citado preceito, passou a ser matéria cognoscível pela Relação apenas quando a decisão recorrida fosse oriunda de juiz singular, desde que não se prescindisse de recurso, caso em que [artigo 532º]:

«[…] escrever-se-ão resumidamente na acta da audiência as respostas do réu, os depoimentos das testemunhas e as declarações dos ofendidos e outras pessoas que devam prestá-las».

Estava consagrada, com força de lei, a intangibilidade das decisões do colectivo sobre o mérito da causa, o fim da apelação penal nas causas relevantes, as que eram julgadas em processo de querela, puníveis com penas mais graves.
O sistema, na sua natureza imanente, já era suficientemente explícito, mas uma vertente prática do mesmo demonstraria a sua verdadeira essência e sobretudo os propósitos que animavam os seus autores.
Assim, como o clarificou um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1932, mesmo depois da alteração do CPP em 1931 «[…] os depoimentos das testemunhas perante o tribunal colectivo não são escritos».
Era impossível a Relação sindicar a prova produzida em audiência devido à ausência de registo da mesma. Assim, a substância, os factos, uma vez adquiridos em primeira instância, fixados estavam, pois não havia hipótese de o tribunal de recurso achar modo de  pôr em crise.
Mas o refinamento agravante do sistema ainda estaria para vir.
Em 1934, um Assento de 29 de Junho enunciaria uma jurisprudência que, de acordo com o sistema de então, valia como lei, e assim obrigatória, segundo a qual a alteração pelas Relações das decisões dos colectivos só poderiam ocorrer:

«[…] em face dos elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada em julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos».

Como explicaria o Conselheiro Maia Gonçalves, usando linguagem mais clara para traduzir esta formulação esfíngica, em nota ao artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929:

«[…] em face do Assento de 29 de Junho de 1934, a competência das Relações em matéria de facto, nos processos julgados pelo tribunal colectivo, é muito restrita, só lhes sendo lícito alterar as decisões da primeira instância quando do processo constem todos os elementos de prova que lhes serviram de base ou quando se trate de factos plenamente provados por meio de documentos autênticos. Qualquer elemento de prova produzido perante o colectivo impede que as Relações alterem as respostas aos quesitos».

Era, em suma, o que se popularizou como a «ditadura dos colectivos» em matéria de facto, sistema do qual decorria que o julgamento ante juiz singular era paradoxalmente mais garantístico em termos de recursos do que o ocorrido diante tribunal colectivo, por admitir aquele o seu reexame, com efectivos meios, em sede recurso quanto às questão de facto, a conhecer pelas Relações.
Como o resumiam Borges de Araújo e Gomes da Costa - compilando as lições proferidas pelo professor Manuel Cavaleiro de Ferreira de 1940:

«[…] as Relações só tomam conhecimento da matéria de direito, pelo menos nos processos de querela [a julgar pelo colectivo], pois quando o tribunal colectivo é chamado a julgar a prova não é escrita».

Eram tempos difíceis esses, os da intangibilidade do veredicto de facto nos casos penais graves, tempos de chumbo em que, já agora será interessante lembrar, vingava lei que permitia o entendimento segundo o qual:

«[…] em recurso penal, embora só interposto pelo réu, pode o tribunal agravar a pena» [Assento do STJ de 4 de Maio de 1950].

É que esquecem porventura os mais novos ou os menos estudiosos, a proibição da reformatio in peius - no que significa de impedimento de agravação da pena em caso de recurso interposto pelo arguido - só foi lei a partir de 1969 [com a alteração do artigo 667º do Código de Processo Penal de 1929 pela Lei nº 2139, de 14 de Março, sendo primeiro-ministro o professor Marcelo Caetano].
Os colectivos recebiam da lei o benefício da intangibilidade das suas decisões sobre os factos, tal como a mesma havia sido concedida na matéria ao julgamento pelo júri.
A inapelabilidade do julgamento da matéria de facto surgira em Portugal com a introdução do júri, figura que fomos importar ao modelo estrangeiro, sem tradições entre nós e que faleceria de morte natural pela década de quarenta do século vinte, para ser ressuscitado em 1975, tendo vindo a viver desde então, embora recomposto, hiatos de sobrevivência sem grande esperança de prestígio e sobretudo com duvidosos resultados em termos de acerto, expediente apenas quando a acusação pública não se quer comprometer com certos processos cuja responsabilidade é assim alijada nos jurados, pseudo-representantes do povo, afinal apenas cidadãos mobilizados por sorteio para intervirem no julgamento penal e sua sentença.
É com o júri que mingua a apelação penal. Mas - e cito de novo o professor Cavaleiro de Ferreira no seu texto pedagógico, agora de 1986:

«[…] posteriormente, e já neste século, com a criação dos tribunais colectivos que substituíram o júri, insinuou-se sub-repticiamente a ideia de que o tribunal colectivo devia herdar não só a competência em matéria de facto do júri, mas de igual modo a presunção de infalibilidade. Foi um erro que as circunstâncias em que se processaram as sucessivas reformas processuais tornaram possível».

Morta a apelação criminal, implantado o sistema do agravo penal, estava aberta a porta para a infabilidade dos tribunais colectivos em matéria de facto.
Havia, no entanto, urge reconhecer, uma lógica imanente ao sistema da inapelabilidade dos acórdão do tribunal colectivo e do tribunal de júri: a sua colegialidade e com ela a noção de que uma pluralidade de pessoas haviam, após atenta observação e por deliberação, convergido no elenco do provado e do não provado: ora, antecipando o que se dirá adiante, hoje esse privilégio de infalibilidade foi estendido aos tribunais singulares pois as restrições que existem ao conhecimento da matéria de facto estendem-se também a eles.
Foi neste ambiente que se chegou ao Código de Processo Penal de 1987 e com ele à ânsia de reforma, ingénuo, conclui-se hoje.
Dele decorreram várias ideias discursivamente novas e candidatas esperançadas a terem futuro. O problema foi a pragmática do sistema e a cultura que o caracterizava e se formara antecedentemente, as quais lhes neutralizaram, logo no ovo, a ambição de perdurabilidade.
Enunciemo-las para que o pessimismo realista, de que faço aliás cultura e mundivisão, o possam demonstrar.
Em primeiro lugar, verteu o legislador em lei a ideia liberal de que todas as espécies de recurso, mesmo os atinentes à temática meramente jurídica - e inclusivamente aqueles outros em que os poderes cognitivos do tribunal fossem, circunscritos à matéria de Direito - admitiam [artigo 410º, n.º 2 do CPP] a hipótese de serem conhecidas certas questões, afinal factuais - tarifadas em três casos paradigmáticos - (i) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (ii) contradição insanável na fundamentação (iii) erro notório na apreciação da prova, ou isto é, tudo matérias em que está em causa a factualidade adquirida na primeira instância.
Ou seja, expressamente pretendeu o legislador que se consagrasse um sistema pelo qual, mesmo ante tribunais que por lei limitam o seu conhecimento a temas de Direito, sempre a ponderação da factualidade tinha de ser relevada, em termos de se prosseguir Justiça, naqueles casos em que, ou o Direito não pudesse ser convocado por insuficiência dos factos provados, ou a explicitação dos achados de facto fosse entre si contraditória ou, enfim, se estivesse ante erro notório na apreciação da prova.
A consagração deste conceito não se alcançaria, porém, sem resistência, porquanto certa jurisprudência cedo se encarregou de determinar que tal possibilidade de alargamento dos poderes cognitivos - digamos, do Supremo Tribunal de Justiça - não poderia ser suscitada como tema de recurso, mas apenas ser operada oficiosamente pelo tribunal de recurso ao conhecer o tema jurídico em causa, o que transpunha para a discricionariedade do tribunal o que se previra ser um direito dos recorrentes.
Esta limitação - que a lei no seu enunciado expresso não previa - o da cognoscibilidade apenas ex officio, viria obviamente a reduzir o alcance daquilo que era o primitivo escopo do legislador.
Para além disso, a interpretação do conceito de «erro notório» na apreciação da prova foi de tal modo tornada exigente, que se tornou de quase impossível invocação, reduzido aos casos em que a ostensividade do erro fosse gritante, quase igual ao erro grosseiro, de insólita aparição em avaliações judiciais da prova, quase incompatível com a pessoa de um magistrado.
Para além disso, com o Código de Processo Penal de 1987, retornou para a lei processual penal a categoria conceptual da «apelação», quando a Lei da autorização legislativa da qual emergiu o novo Código consagrou [Lei nº 43/86, de 26 de Setembro, artigo 2º, n.º 2, ponto 72] que ocorreria no novo Código a:

«atribuição ao tribunal da relação de competência para conhecer, em apelação, dos recursos interpostos de decisões interlocutórias e finais do juiz singular e de decisões interlocutórias emitidas pelo tribunal colectiva, e para, em certos casos, renovar a prova, caso não reenvie o processo para o tribunal colectivo» [itálico meu].

Mas feito o balanço ao escopo e âmbito das audiências nos tribunais superiores e ao modo como funcionam, nomeadamente no que respeita a essa «máxima oralidade» e essa proclamada «apelação», conclui-se que tais novidades acabaram por entrar numa tal caducidade por não uso, que o legislador teve, misericordioso, de torná-las opcionais, donde  aparição raríssima para possível desaparecimento, também aqui pelo não uso.
Em terceiro lugar, como acabamos de ver, tentou-se, com este novo Código de Processo Penal, a consagração de um sistema de renovação da prova [artigo 430º, pelo qual a segunda instância, mais do que um tribunal de rescisão, funcionaria como um tribunal de segundo julgamento, até porque ocorreria também [ponto 71, do preceito citado], a:

«[…] consagração, para todas as espécies de recurso ordinário, interposto da decisão final, da garantia do contraditório […]».

Tratava-se de pôr em marcha uma ideia que o preâmbulo do Código, ingénuo porque confiante, assim exprimia:

«Com o mesmo propósito de emprestar ao recurso maior consistência, procura contrariar-se a tendência para fazer dele um labor meramente rotineiro executado sobre papéis, convertendo-o num conhecimento autêntico de problemas e conflitos reais, mediatizado pela intervenção real de pessoas. Por isso se submetem os recursos ao princípio geral - aliás jurídico-constitucionalmente imposto! - da estrutura acusatória, com a consequente exigência de uma audiência onde seja respeitada a máxima da oralidade».

Ora considerando o número de vezes em que ocorreu até hoje a renovação da prova - a meu conhecer nunca [durante a conferência tive conhecimento de dois casos] - viu-se em que medida tal novidade se tornou candidata à morte anunciada logo no acto de nascer.
A renovação da prova tornou-se, pois, previsão não praticada, porquanto impraticável.
Paulo Pinto de Albuquerque diz, aliás, com ironia, quea disposição que a prevê é «a menos compreendida em todo o Código», dado o «equívoco em que tem estado enredada».
O Supremo Tribunal de Justiça, num seu Acórdão de 21.01.04, havia delineado, aliás, já um critério que a tornaria excepcional:

«[…] a renovação da prova só será de decretar quando não seja possível aferir-se da sua correcção a partir da prova já produzida».

E a atentar na configuração do que a nível jurisprudencial se entende por renovação da prova, logo dali se conclui que nunca ela ocorrerá, pois é considerada como algo apenas circunscrito ao caso de ocorrência de algum dos vícios do artigo 410º, n.º 2 do Código de Processo Penal e relativo à mesma prova já produzida e não a uma outra prova que não aquela.
Acórdãos como um da Relação de Lisboa, esse então, proferido a 21.12.00, acharam modo de obviar à sua efectivação, aniquilando o valor semântico do conceito de renovação, este ao determinar:

«[…] quando a prova esteja documentada, a sua renovação não é admissível, sob qualquer fundamento».

Ora, como o recurso sobre a matéria de facto pressupõe a documentação da prova, o mesmo é dizer, ante tal entendimento, que nunca há lugar à renovação da prova, pois há sempre documentação que a tanto obsta.

Faltava decidir a opção de fundo entre os dois sistemas admissíveis de recurso: o recurso por substituição e o recurso por cassação: o Código de Processo Penal sonhou a praticabilidade do primeiro, mas acabou por ter de se render ao triunfo do segundo, o sonho legislativo fruto de princípios, a realidade produto da prática, o legislador a querer amarrar a perna à jurisprudência, esta a libertar-se do laço do legislador.
Através da lógica da substituição, o tribunal de recurso profere ele próprio a decisão que deveria ter sido a emitida pelo tribunal recorrido; pelo segundo, o da cassação, o tribunal de recurso limita-se a anular a decisão prolatada pelo tribunal do qual se recorre, reenviando o processo a este para que profira nova decisão ou efective, se for o caso, novo julgamento.
Ora na mecânica prática das coisas, o sistema revogatório é mais tentador, pois menos exigente de esforço e assim triunfaria.
Enfim, a lei de autorização legislativa dera indicação segura [n.º 72] de que o reenvio só ocorreria, nos recursos para a Relação, quando se não verificasse a renovação da prova; ora, uma vez que a renovação da prova passou a ser uma não existência, tudo se transformou, em matéria de recursos de mérito para a Relação, num sistema de anulação e reenvio.
Neste panorama de realismo desolador, bem tentou a reforma do Código de Processo Penal de 1998 [por alteração ao seu artigo 431º] uma viragem de rumo, com abertura controlada à modificabilidade pelo tribunal da Relação do veredicto de facto constante da decisão recorrida, isso a suceder em três casos.
Em primeiro lugar, e em aparente inovação, «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base», fórmula aparentemente liberal, mas que redunda, afinal, numa revivescência do espírito do Assento de 1934, acima visto, que a jurisprudência redutoramente logo aplicou, considerando tratar-se de circunstância excepcional.
Em segundo lugar, reiterando-se que isso ocorre no caso de ter havido impugnação da prova, com o cumprimento, nas conclusões da motivação do recurso, de ónus de indicação não só dos pontos de facto tidos por incorrectamente julgados, menção a qual o facto probando que pretende fazer triunfar em substituição do provado ou não provado e bem como indicação do lugar onde a prova se encontra registada nos suportes magnéticos áudio em que esteja gravada a produzida oralmente.
O alcance desta inovação ficou, porém, à mercê da interpretação que acabou por se formar quanto às exigências da motivação de recurso e respectivas conclusões, o que se tornou uma floresta de incertezas e caminhos perigosos para os recorrentes, ao que já voltaremos.
Enfim, insistência na ilusão funesta, em terceiro lugar, «se tiver havido renovação da prova», invocação, afinal, ousemos dizê-lo de um nado morto.
Ora na verdade, por via destas delimitações, a questão do recurso da matéria de facto, a partir da reforma em 1998, passou a ser, no imediato, o triunfo não só da arte de escrita, em que se privilegiam formalidades narrativas sobre substâncias, em que a probabilidade de se acertar no modo de configurar o recurso e sobretudo as suas conclusões, raramente ocorre, com a consequente rejeição do mesmo.
Logo na origem tudo anunciava o que aí viria, um sistema com pouca sorte.
O legislador havia pensado um sistema pelo qual em primeira instância se faria recurso a meios de registo da prova que iam, ao limite aos videográficos, para que, numa expressão que se popularizou, o tribunal de recurso pudesse captar não só quanto fora dito mas igualmente o modo como fora dito e assim a imediação fosse viável ante a total oralidade, dois princípios reitores do sistema de justiça recursória: era a ilusão tecnológica de que a prova seria reponderada.
Breve tempo durou a fantasia em torno da novidade, pois jurisprudência logo surgiu a determinar que, gravando-se embora, todo o dito teria de ser transcrito, assim se pondo em causa, desde logo, a espontaneidade do discurso oral, reduzido em expressividade, face ao copiado para o registo escrito.
Foi depois o tema de saber a quem incumbiria o encargo da transcrição, se ao sempre anémico erário público para fins de Justiça ou se aos sujeitos privados, aquela primeiro alternativa tida por inviável por falta de verba para tanto, esta outra indesejada por suspeição de que tais sujeitos transcrevessem sem fidedignidade a prova que lhes interessava.
O tema acabou por implicar uma definição em sede de fixação de jurisprudência pelo Assento n.º 2/2003, de 16 de Janeiro, segundo o qual:

«Sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal.»

Só em 2007, com a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto se pôs termo a tal «ónus» do tribunal [como impropriamente lhe chamava alguma jurisprudência] e o tribunal passou a ficar adstrito apenas à entrega de cópia dos suportes das gravações áudio, sem que isso implicasse inconstitucionalidade material da norma respectiva [ nova redacção conferida ao n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal], como foi decidido pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 473/2007.
Faltava o critério que se firmou na jurisprudência quanto à exasperação da exigência na formulação das conclusões que, devendo ser breves por imposição da lei, não poderiam conter tudo aquilo que a mesma lei exigia: não só os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados [o que já de per si pode ser longo] como as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida [o que pode tornar muitíssimo mais longo] sobretudo quando, por imposição a mesma lei, estando a prova gravada [e em regra está] por referência ao consignado na acta com indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, o que tudo junto alonga ainda mais o que era suposto ser breve e pode ser [e tem sido] rejeitado se o não for.
Candidatos a estarem sempre mal redigidos, os recursos sobre a matéria de facto tornaram-se candidatos a serem rejeitados. Isto sem ponderar quanto se legislou depois em matéria de rejeição sumária, matando à nascença o que se entenderia não ter viabilidade de vida.
Tudo isto marca o destino que tem, no presente, o exame em recurso da matéria de facto: não é, afinal, um recurso do já julgado apenas do modo como foi julgado: da substância ao procedimento, da apelação ao gravo, afinal.
Citando este explícito Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Maio de 2007 [relator Simas Santos]:

«Como vem entendendo, sem discrepância, este Supremo Tribunal de Justiça, o recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados […].»

Claro que, visto sob este ângulo restritivo, não se trata, afinal, de uma verdadeira reapreciação da matéria de facto, mas apenas de uma análise da razoabilidade do modo como foi apreciada tal matéria, o que é totalmente distinto e está muito longe do que tem sido pensado desde 1987.
Tudo isto está viabilizado pelo Tribunal Constitucional, o qual entende que a garantia constitucional de reexame da matéria de facto não implica necessariamente um novo  julgamento da matéria de facto, podendo o tribunal de recurso limitar-se a verificar se existiu algum erro de julgamento.
 Aqui chegados, eis a recta final desta minha intervenção.
Assinalaram-me como tema o problema dos reflexos deste sistema no que se refere aos direitos de defesa, mas permitam-me que transmita uma sensação de incómodo em abordar esta perspectiva da questão.
Era outrora ponto de honra que um advogado assumisse, por natureza, o tema dos direitos fundamentais, nomeadamente os da defesa. Uma profunda mutação cultural intimida hoje quando se entra por esse ângulo, pois impera actualmente a diabolização do proclamado excesso de garantismo, que logo é invocado sempre contra quem pretenda fazer valer, em nome da presunção de inocência, o direito ao um processo justo através do esgotamento legítimo das vias de recurso, em nome da defesa.
Uma ostensiva  pressão psicológica é também hoje exercida através dos media sobre alguns dos que pretendem fazer apelo aos meios processuais ao seu dispor; assim se argua uma nulidade de um processo com anos de inquérito e eis em cima do autor de tal proeza a fama deprimente de visar, ele agora, o entorpecimento da justiça, o triunfo da criminalidade.
Vivemos hoje uma época em que, para além disso, a jurisdicionalização é tida como atentatória da eficácia, em que a celeridade processual e a estatística do número de decisões é critério universal da boa justiça.
Mais: vivemos um mundo em que uma defesa penal consequente, uma perícia que seja contraditória, enfim o direito aos recursos, são apodados privilégio de abastados, os que podem suportar os elevados custos de advogados, capazes de os conceber como demora pelo diferimento do trânsito e caminho até à prescrição.
Neste contexto, direi que do que se trata, pois, não é dos reflexos que o descrito sistema possa ter no domínio dos direitos de defesa, até porque a jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional já relativizou, e de modo expressivo, a garantia do direito ao recurso que a Constituição considera, no n.º 1 do seu artigo 32º, como ínsita ao direito de defesa.
O que está em causa é, outrossim, a questão da descoberta da verdade judiciária e sobre isto termino.
Numa lógica objectiva e sistémica, a impugnação é instrumento de segurança, apto a gerar uma confirmação do decidido e também garantia de independência para quem julga, pois, por um lado, sabe que julgará em penúltima decisão, por outro, porque não deve obediência hierárquica à jurisprudência firmada em tribunais superiores, antes respeito à doutrina que deles dimane e se possa aceitar.
Para além disso, o recurso é direito a um melhor exame do decidido, o qual é concedido, como garantia constitucional expressa, a quem é afectado pela decisão, isto por se supor que uma deliberação em ulterior instância por colégios de três juízes é mais apta a uma ponderação mais apropriada do que estiver em causa.
Ora um sistema legal que reduziu os colectivos de recurso de três juízes a dois, pois o presidente só intervém em caso de empate [artigo 419º, n.º 2 do Código de Processo Penal], é apto a reduzir a pluralidade que é suposta exigir-se para uma ponderação multifacetada dos temas.
Um sistema legal que já ofereceu de si a pior da sua imagem que é admitir que, inerte o presidente, o relator seja o dono da decisão [eis a expressão que correu] em termos de o segundo membro do colectivo poder assinar sem ter de ler mais do que o decidido, é a mais límpida evidência de que estamos reduzidos à mera singularização, o colectivo passado de três a dois e de dois a um.
Um sistema legal em que, podendo ter ocorrido erro na primeira instância, cerceia as vias de recurso a casos cada vez mais apertados de irrecorribilidade, abre a possibilidade da irremediabilidade desse erro.
Um sistema legal em que, inexistindo renovação da prova, sendo de conhecimento oficioso os vícios da decisão que estão previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, e o conhecimento das questões de prova exijam, sine qua non, o cumprimento exasperante de ónus de redacção das conclusões de recurso, é um modelo que definitivamente restringe o direito ao recurso a uma mera expectativa de se poder efectivamente recorrer.
Tudo isto some-se aos casos em que o recurso está vedado por imposição da lei: aqueles em que há uma pronúncia conforme à acusação do Ministério Público, o referente às indeferidas diligências de instrução, e tantos mais, em que a dosimetria da condenação não o permite quanto às penas parcelares.
Vedando-se o recurso, cerceando-o com dificuldades de formulário, privilegiando-se a revogação sobre a substituição, mais do que atentar-se contra a defesa, põe-se em causa a busca da verdade.
E se não vejamos quanto à verdade, na forma de uma pergunta: em quantos casos em que, tendo havido, por via da anulação, repetição do julgamento, não se obteve neste afinal uma outra versão dos factos, quando não mesmo uma outra história, diversa da que resultou do antecedente julgamento?
Do ponto de vista gnoseológico, o sistema de recursos deveria permitir, reexaminando o julgado, uma melhor, uma mais rigorosa e mais exacta reconstituição do real, como se numa epistemologia genética, o conhecer se alcançasse pela reiteração da observação.
Infelizmente não é este o balanço que se extrai.
No que se refere aos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça penso que esta expressão extraída de um Acórdão deste Tribunal proferida a 31 de Outubro do corrente [relator Nuno Gomes da Silva] traduz do que se trata:

«A ideia que atravessa o sistema na parte dos recursos é a de que o STJ é um tribunal de “fim de linha” – passe a expressão em benefício da clarificação da ideia – cuja competência no tocante aos recursos ordinários está reservada para situações sobre a apreciação do mérito, a justiça da condenação – e mesmo assim com constrições várias – ou em que o acto decisório ponha termo definitivo ao processo, que encerre a relação jurídica entre os sujeitos processuais, seja por razões de natureza adjectiva, seja por razões de natureza substantiva. Por isso se lhe atribui a função de tribunal de revista, como inequivocamente ressalta do art. 434º, do CPP.»

Assim sendo, e vista a limitação colocada ao juízo sobre o mérito nos recursos em ulterior instância, a juntar a esta configuração da competência do Supremo Tribunal de Justiça, não será de estranhar a pressão que existe sobre os recursos de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional.
Termino agora, enfim.
Fiz parte da Comissão de cujo labor saiu o Projecto que se transformou no Código de Processo Penal de 1987. O que vi pretender-se com esse Código ficou acima expresso. Aquilo em que tudo se tornou é de todos conhecido e aflora nesta minha intervenção.
Encontro-me, pois, com as palavras do presidente dessa Comissão, Jorge Figueiredo Dias quando, sob o título Por onde vai o processo penal português, afirmou ante o facto de a revisão constitucional ter aditado ao n.º 1 do artigo 32º da Lei Fundamenta, além das garantias de defesa, a expressão «incluindo o recurso»:

«Isto significa que o direito a um recurso é manifestação jurídico-constitucionalmente vinculante de um direito, liberdade e garantia de defesa. Ela não pode ser posta em causa em hipótese alguma, mesmo sob a alegação de que se verifica in concreto uma qualquer outra garantia de defesa sucedânea legalmente admissível. Sempre que, num concreto caso judicial de qualquer espécie, a lei denegue ao arguido condenado o direito a um recurso, a lei é materialmente inconstitucional e não pode como tal ser aplicada».

Ora esse vedar o direito a um recurso pode resultar de lei que o impeça; mas pode também decorrer de exigências de entendimento processual que o torne afinal inviável. Eis quanto procurei demonstrar.
Mas num sistema em que a prisão preventiva é amiúde, por antecipação, a prisão, a sujeição a processo, em miscigenação com a comunicação social, a condenação, em que afinal o mal do processo se substituiu, em retroacção, ao mal da pena, em que o processo em si passou a ser a realidade relevante no domínio jurlídico-criminal, espanta que, em matéria de recursos, a justiça cuide mais do procedimento que levou à decisão do que, afinal, do próprio decidido? Não, não espanta.

A partir daqui, estando em dúvida o bom Direito, talvez um preceito moral nos salve a má consciência: não julgues os outros como não gostarias que te julgassem a ti. Assim seja lei e jurisprudência, assim encontraremos mais justiça.