Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




União Europeia: estratégia contra a criminalidade organizada


Foi anunciada a 14 do corrente, a Estratégia da Comissão Europeia de luta contra a criminalidade organizada [2021-2025]. O documento pode ser encontrado aqui. A iniciativa enquadra-se na Estratégia para a União da Segurança [2020-2025] que foi divulgado 24 de Julho de 2020 e a que se pode aceder aqui.

De acordo com a nota pública divulgada, a nova estratégia visa:
 
-» Reforçar a cooperação policial e judiciária: Uma vez que 65 % dos grupos criminosos ativos na UE são compostos por diferentes nacionalidades, o intercâmbio de informações entre as autoridades policiais e judiciárias de toda a UE é fundamental para combater eficazmente a criminalidade organizada. 

A Comissão alargará, modernizará e reforçará o financiamento da Plataforma Multidisciplinar Europeia contra as Ameaças Criminosas (EMPACT), estrutura que, desde 2010, reúne todas as autoridades nacionais e europeias que identificam e combatem coletivamente as ameaças de criminalidade prioritárias. A Comissão irá propor uma atualização do quadro jurídico de Prüm para o intercâmbio de informações sobre ADN, impressões digitais e matrículas de veículos. A fim de garantir uma melhor cooperação policial em toda a UE, no quadro de um conjunto de normas modernas, a Comissão proporá a adoção de um Código de Cooperação Policial da UE, que simplificará a atual miscelânea de instrumentos da União e acordos de cooperação multilaterais. A consecução do objetivo de 2023 de tornar interoperáveis os sistemas de informação para a gestão da segurança, das fronteiras e da migração ajudará as autoridades policiais a detetar e a combater melhor a fraude de identidade, frequentemente utilizada pelos criminosos. Por último, para combater melhor as redes criminosas que operam a nível internacional, a Comissão propõe hoje igualmente iniciar a negociação de um acordo de cooperação com a Interpol.

-» Apoiar investigações mais eficazes para desmantelar as estruturas de criminalidade organizada, centrando-se em crimes prioritários e específicos: Para desmantelar as estruturas de criminalidade organizada importa intensificar a cooperação a nível da UE. 

Para garantir uma resposta eficaz a formas específicas de criminalidade, a Comissão proporá a revisão das regras da UE contra a criminalidade ambiental e criará um conjunto de instrumentos da UE contra a contrafação, em especial de produtos médicos. Apresentará ainda medidas para combater o comércio ilícito de bens culturais. A Comissão apresenta hoje igualmente uma estratégia dedicada à luta contra o tráfico de seres humanos.

-» Garantir que o crime não compensa: Mais de 60 % das redes criminosas ativas na UE estão envolvidas em corrupção e mais de 80 % das mesmas utilizam negócios legítimos como fachada para as suas atividades, sendo apenas confiscado 1 % dos bens de origem criminosa. Combater o financiamento do crime é fundamental para descobrir, punir e dissuadir a criminalidade. 

A Comissão irá propor a revisão das normas da UE sobre o confisco de lucros de origem criminosa, desenvolver as normas da UE contra o branqueamento de capitais, promover o lançamento rápido de investigações financeiras e analisar as normas em vigor no domínio da luta contra a corrupção. Tal contribuirá igualmente para evitar a infiltração na economia legal.

-» Adequar os serviços policiais e judiciários à era digital: Os criminosos comunicam entre si e cometem crimes através da Internet, deixando vestígios digitais. Uma vez que 80 % dos crimes têm uma componente digital, os serviços policiais e judiciários necessitam de ter acesso rápido aos indícios e provas digitais. Necessitam igualmente de dispor de tecnologias modernas e de ferramentas e competências que lhes permitam acompanhar a evolução do modus operandi dos criminosos. 

A Comissão irá analisar e delinear possíveis abordagens de conservação de dados, indicando o caminho a seguir para se ter acesso lícito e direcionado a informações cifradas, no contexto de investigações criminais e ações penais que protejam igualmente a segurança e a confidencialidade das comunicações. A Comissão irá também envidar esforços, em conjunto com as agências da UE competentes, para dotar as autoridades nacionais dos instrumentos, conhecimentos e competências operacionais necessários às investigações digitais.

A 12 de Abril foi apresentado o Relatório Europol sobre ameaças graves e organizadas à União Europeia, que pode ser lido aqui na sua versão em português.

Os velhos demónios


Às vezes tudo começa com o encontro num alfarrabista de um discreto opúsculo, arrumado, entretanto, numa estante e reencontrado por mero acaso, a trazermos a noção de como tudo é relativo no plano da coerência das ideias e quão frágeis são as noções que temos sobre as correlações com que simplificamos a vida, nomeadamente da ligação das pessoas ao que supomos serem as suas ideais

A noção, por exemplo, de que a defesa estrénua do princípio da legalidade incriminatória é património quase genético do pensamento democrático e liberal e nenhum ser que desse espírito se reclame ousou alguma vez pensar a sua derrogação e quem passe para a História como um demo-liberal não pode ter tido outro ideário, cede ao revermos as suas breves folhas e com elas, morre a ingénua ilusão.

Adelino da Palma Carlos (1905-1992), o primeiro-ministro da democracia, após o 25 de Abril, advogado que defendeu figuras relevantes da oposição ao salazarismo como o general Norton de Matos e mandatário que foi da candidatura deste à Presidência da República, advogado também do advogado Vasco da Gama Fernandes, e do matemático Bento de Jesus Caraça, é o mesmo que, em 1937, apresentaria relatório ao 2º Congresso da Academia de Direito Internacional, e nesta sua comunicação, não hesitaria em pôr em causa o princípio saído da Revolução Francesa nullum elictum nulla poena sine lege.

Aquilo que ainda hoje é pressuposto de uma concepção racionalista do Direito Penal, baluarte e limite ao arbítrio e garantia de proporocionalidade, foi para ele considerado então incompatível com «uma boa defesa social».

Seguindo em torno da sua linha argumentativa e relevando sobretudo tempo histórico em que se pronunciou tudo parece estranho e, sobretudo problemático.

Logo, a legislação que lhe serve de modelo, como o Código Penal soviético de 1922, que expressamente cita, ao prever a incriminação por analogia e a rectroactividade penal [artigos 6º e 16º] e ao definir, numa lógica de tipologia aberta [artigo 1º], como crime toda a acção ou omissão dirigida contra a estrutura do Estado soviético ou lesiva da ordem jurídica criada pelo regime dos trabalhadores e dos camponeses para a era da transição rumo ao comunismo.

Mais ainda, o aplauso que abertamente exprime ao o projecto de radicalização daquele sistema jurídico-penal estalinista, firmado por Nikolai Krylenko, Comissário do Povo para a Justiça e Procurador-Geral da URSS, para quem a criminalização não deveria conhecer limites que a determinassem, antes ser confiada à casuística que valorasse a perigosidade do agente, o móbil do crime e a sua classe social. Krylenko, diga-se, que viria a ser, aliás, uma das vítimas das purgas do regime do terroe vermelho, preso pelo NKVD e condenado à pena de morte em 1949, após um julgamento que durou vinte minutos.

Depois, a lógica da atribuição de poderes discricionários aos juízes em matéria penal, citando expressamente e com concordância aberta o estabelecido na lei penal italiana de então, o artigo 132º do Código Penal, afinal, o Código de Alfredo Rocco aprovado em 1930 em pleno fascismo, segundo o qual: «Nei limiti fissati dalla legge, il giudice applica la pena discrezionale; esso deve indicare i motivi che giustificano l'uso di tale potere discrezionale . Nell'aumento o nella diminuzione della pena non si possono oltrepassare i limiti stabiliti per ciascuna specie di pena, salvi i casi espressamente determinati dalla legge.».

Lendo hoje esse breve opúsculo, tudo nos reconduz a uma linha de pensamento que, reorganizado embora na sua aparência, vai formando uma certa mentalidade, alienada das suas raízes históricas, até pela incultura grassante, vai firmando terreno no campo do Direito Criminal e seus agentes e essa a  segunda desconcertante sensação: é a noção de que o Direito Penal tem de se demitir da sua função redutora de repressão do crime pretérito para assumir o papel preventivo do crime futuro, não punir quia peccatum est para aplicar sanções ut ne peccatur; é a recuperação da analogia incriminatória, ainda que travestida pela noção de interpretação extensiva e, ao limite, o carácter meramente exemplificativo do catálogo de crimes enunciados na lei penal; enfim, o conceito da indeterminação da duração da pena, a juntar-se às medidas destinadas a enfrentar já não o delito em si, mas a perigosidade do delinquente independentemente do que tenha cometido.

Às vezes tudo começa com um velho alfarrábio. Os que supõem que os princípios da escola clássica em que se formaram e pela qual combateram, jogando a liberdade própria em nome da liberdade dos outros, que se desencantem: os novos tempos trazem os velhos demónios, para um novo Inferno. A lógica securitária, nascida do caos, tem aqui as suas raízes.


MDE sem garantia de retorno

 


O tema da finalidade e âmbito do mandado de detenção europeu [regulado na Lei n.º 65/2003,  de 23 de Agosto (texto aqui), foi configurado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.03.2021 [proferido no processo n.º 34/21.1YREVR, relator Renato Barroso, texto integral aqui].

Elucidativo, explicita o respectivo sumário:

«1 - O objectivo de um MDE destinado à entrega do requerido para procedimento criminal não é, ao contrário do que às vezes se supõe, a mera transferência de pessoas para interrogatório na qualidade de suspeitos, pois para este efeito outras medidas existem em alternativa, como a decisão europeia de investigação, que pode ser utilizada para obter provas provenientes de outro Estado-Membro e que abrange qualquer medida de investigação, incluindo o mero interrogatório do suspeito no âmbito de um procedimento criminal no qual ainda não foi deduzida a acusação, o qual pode até ser feito através de videoconferência, a fim de determinar se deve, ou não, ser emitido, posteriormente, um MDE tendo em vista o julgamento.

«2 - O caso de um MDE em que se solicita a entrega do requerido para procedimento criminal é algo de diferente, abrangendo, também, a fase de julgamento, pois implica, necessariamente, que a sua devolução ao Estado de que é natural ou residente, apenas aconteça após a sua audição em julgamento, se a tal houver lugar, pois não se concebe que este corra à sua revelia, assim se justificando que a execução do respectivo mandado possa ficar dependente da prestação da dita garantia por parte do Estado emitente, nos termos do artº 13º, al. b), da L. 65/2003 de 23/8.

«3 - Tratando-se a norma em causa de um direito de protecção dos nacionais ou residentes do Estado de execução, a verdade é que, como resulta linearmente do seu texto, a mesma não é de aplicação automática, estando apenas reservada para situações em que, ponderadas as circunstâncias do caso concreto, as reais e concretas ligações familiares sociais, laborais e comunitárias da pessoa procurada ao Estado de execução, se conclua que os laços entre ambos são fortes o bastante que justifique a aplicação da norma em causa, no sentido de ser assegurado, perante o Estado emitente, que aquela será devolvido ao Estado de execução, assim que termine a intervenção judiciária daquele.»

O cerne do decidido no caso teve a ver com a prestação daquela aludida garantia [que também decorre do nº3 do Artº 5 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI [texto aqui], ou seja aquela segundo a qual:

«b) Quando a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente no Estado membro da execução, a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada no Estado membro de emissão.»

Ora para fundamentar a sua conclusão, considerou-se no referido acórdão:

-» primeiro, a distinção entre a entrega para procedimento criminal face à mera transferência para interrogatório como suspeito, porquanto [cito] «[...] para este efeito outras medidas existem em alternativa, como a decisão europeia de investigação, que pode ser utilizada para obter provas provenientes de outro Estado-Membro e que abrange qualquer medida de investigação, incluindo o mero interrogatório do suspeito no âmbito de um procedimento criminal no qual ainda não foi deduzida a acusação, o qual pode até ser feito através de videoconferência, a fim de determinar se deve, ou não, ser emitido, posteriormente, um MDE tendo em vista o julgamento.»;

-» depois, que não se trata de entrega automática [referindo-se neste sentido o Acórdão do STJ, de 20/06/12, proc. 445/12.3YRLSB.S], antes sujeita a uma avaliação de substância nomeadamente aquela que releva para o efeito de obtenção da aludida garantia e assim: «Tratando-se a norma em causa de um direito de protecção dos nacionais ou residentes do Estado de execução, a verdade é que, como resulta linearmente do seu texto, a mesma não é de aplicação automática, estando apenas reservada para situações em que, ponderadas as circunstâncias do caso concreto, as reais e concretas ligações familiares sociais, laborais e comunitárias da pessoa procurada ao Estado de execução, se conclua que os laços entre ambos são fortes o bastante que justifique a aplicação da norma em causa, no sentido de ser assegurado, perante o Estado emitente, que aquela será devolvido ao Estado de execução, assim que termine a intervenção judiciária daquele. (Cfr., neste sentido, Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Grande Secção, de 17/07/08, Proc. C-66/08)».

Ora, no caso, o sentido do decidido decorreu de uma circunstância factual aferida sem mais indagação, e que este passo do acórdão sumariou:

«[...] nos autos, nada mais se sabe do arguido, a não ser que o mesmo é português e tem residência em Portugal, o mesmo é dizer, como muito bem assinala o MP junto deste Tribunal na sua resposta à oposição deduzida “…não vem aportado nem documento nenhum facto que permita fundadamente concluir pela verificação daquele indispensável grau de integração social, isto é, não está demonstrada nem documentada nenhuma circunstância relevante que evidencie a ligação com aquela profundidade, da pessoa procurada, o oponente, ao Estado de execução e que, por isso mesmo, seja suscetível de conduzir à exigência de prestação da garantia de que a este será devolvido, para cumprimento da pena ou medida de segurança privativas da liberdade, como condição de entrega às autoridades do Estado de emissão.…
A nacionalidade e a residência, só por si e sem mais, não permite, sem outros elementos que demonstrem a centralidade da vida profissional, social e familiar do oponente em Portugal, concluir pela verificação daquele indispensável grau de integração social, e por isso mesmo, conduzir à exigência da prestação da garantia de que a este Estado de execução será devolvido, para cumprimento da pena ou medida de segurança privativas da liberdade, como condição de entrega às autoridades do Estado de emissão do MDE.»

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Entre a já significativa literatura sobre o tema, interessante o seguinte estudo sobre o caso português, visto na óptica de um jurista brasileiros [ver aqui]

Insuficiência do inquérito


 É conhecida a orientação jurisprudencial no sentido de restringir o alcance das invalidades previstas na lei processual penal. É neste contesto que se integra o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.03.2021 [proferido no processo n.º 167/18.1T9STS.P, texto integral aqui], relator Horácio Correia Pinto] quando sentenciou a propósito do que tem por incompetência do juiz de instrução criminal para avaliar a suficiência do inquérito, determinando que:

 «I – A omissão de diligências em inquérito, ainda que legalmente obrigatórias, não configura a nulidade insanável de falta de promoção do processo pelo Ministério Público, prevista no artigo 119.º, b), do Código de Processo Penal

«II – A nulidade, dependente de arguição, de insuficiência do inquérito, prevista no artigo 120.º, n.º 2, d), do Código de Processo Penal, requer interpretação restritiva, cingindo-se à falta de interrogatório do denunciado, pois as restantes diligências estão no âmbito da autonomia do Ministério Público, não podendo ser ordenadas pelo Juiz de Instrução e podendo a omissão de alguma diligência no inquérito ser suprida na fase de instrução.»

No caso, o Ministério Público arquivara um inquérito omitindo diligências que o tribunal a quo considerou relevantes para a descoberta da verdade.

Na sua fundamentação, o aresto afastou e bem a eventualidade de o vício invocado se relacionar com a sua ausência de promoção por parte do Ministério Público e a propósito enunciou situações que integrariam a mesma, ao considerar, e é interessante rememorá-las: 

«[...] o MP tem apenas de assegurar os meios de prova necessários (artº 267 do CPP) para a realização das finalidades previstas no artº 262 nº 1 do CPP. Efectivamente, exceptuando aquelas declarações, nenhum outro acto de inquérito foi praticado, apesar de requerido. Não excluímos a ausência de indícios suficientes para a verificação de crime, desde que esta manifestação assente em diligências concretas e irrefutáveis. Julgamos contudo que não é apropriado falar de falta de promoção do processo nos termos do artº 119 alª b) do CPP. Esta invalidade plena não foi prevista para omissão de diligências ou não prática de actos legalmente obrigatórios (artº 120 nº 2 alª d) do CPP). Aquela nulidade absoluta refere-se a casos muito mais graves como por exemplo: omissão de despacho final de encerramento de inquérito - não pronúncia sobre a totalidade do objecto do inquérito – Acórdão do TRP de 08/03/2017 in Processo nº 97/12.0GAVFR.P1, relatado pelo Desembargador Manuel Soares. Situação idêntica foi decidida no Acórdão de Jurisprudência do STJ de 16 de Dezembro de 1999: integra a nulidade insanável da alª b) do artº 1119 do CPP a adesão posterior do MP à acusação deduzida pelo assistente relativa a crimes de natureza pública e semi-pública, fora do caso previsto no artº 284 nº 1 do mesmo diploma legal – O MP tinha notificado o assistente, para deduzir acusação num crime de natureza semi-pública, sem que tivesse encerrado o inquérito com adequado despacho. O mesmo se diga da situação prevista no Acórdão do TRC, de 06/11/2003 in Processo nº 310/12.4T3AND-A.C1. Relator: Maria Pilar de Oliveira – ter sido declarada aberta a instrução sem ter sido realizado inquérito. Ainda o Acórdão do TRG, de 12/07/2016 in Processo nº 679/14.6GCBRG-B.G1. Relator João Lee Ferreira – omissão absoluta de pronúncia sobre crime semi-público denunciado pelo ofendido.»

Reconduzindo o tema à sua correcta configuração, a de insuficiência do inquérito [nulidade relativa prevista no artigo 120º, n.º 2, d) do CPP], o acórdão considerou, porém, estar subtraída ao poder judicial o conhecimento da mesma. Eis o que ali se escreve a este propósito: 

«É evidente que as identificadas diligências não foram praticadas mas, não podemos olvidar que os autos já estão sob controlo jurisdicional, em sede de instrução. Como também não podemos afirmar que a audição dos denunciados é obrigatória, uma vez que o MP disse claramente no despacho de arquivamento que os factos indiciados não são susceptíveis de configurar a prática de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido nos termos do artº 360 do CP. Esta é uma competência do MP que tem completa autonomia durante o inquérito (artº 221 da CRP e Estatuto do MP – Lei nº 47/86 de 15 de Outubro) para exercer a acção penal de acordo com as suas atribuições – princípio da autonomia - o que decorre da estrutura acusatória do processo estabelecida no artº 32 nº 5 da CRP.
Não basta declarar nulidades, mais do que uma intervenção formal, impõem-se aferir dos efeitos desta medida para lá do disposto no artº 122 do CPP. O caso flagrante de nulidade insanável, como a falta essencial de promoção ou de inquérito, impõe-se ao MP com a consequente obediência à decisão judicial, sindicância que muitas das vezes é reparada por intervenção hierárquica. O dever de conhecer estas anomalias é oficioso e deve ser declarado em qualquer fase do procedimento, salvo as que forem cominadas em outras disposições legais. O Tribunal a quo na defesa do despacho recorrido vem dizer (fls. 890 do translado) que uma vez considerada procedente (nulidade insanável), prejudica a finalidade da instrução aludida no artº 266 nº 1 do CPP, bem como a utilidade do debate instrutório. Além de já termos arredado esta nulidade, com fundamentação esforçada, urge interpretar o corpo do artº 119 do CPP. O termo oficiosamente não suscita dificuldades mas o mesmo não se pode dizer da expressão qualquer fase do procedimento.
Compete ao JIC proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste código (artº 17 do CPP). Praticar determinados actos durante o inquérito (artºs 268 e 269 do CPP) e durante a instrução (artºs 286 a 310 do CPP).
A interpretação, qualquer fase do procedimento significa que o JIC intervém em momentos previstos no CPP. O JIC foi chamado a intervir para decidir uma instrução requerida pelos denunciados, onde além do mérito, o magistrado tem o dever legal de se pronunciar sobre a regularidade da instância, designadamente apreciar as nulidades. A Lei 59/98 de 25 de Agosto introduziu o disposto no artº nº3 do artº 308 do CPP: no despacho proferido no nº 1 – despacho de pronúncia ou não pronúncia – o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer. O JIC pode entender que não deve avançar para a apreciação de mérito – se nada obstar ao conhecimento do mérito da causa – contudo sempre decidirá se deve pronunciar ou não pronunciar. Já deixamos devidamente esclarecido que não resulta dos autos que o inquérito enferme de nulidade insanável, porém há uma clara insuficiência de diligências importantes para a descoberta da verdade material. Esta nulidade está devidamente invocada no RAI e pode ser sanada com a realização das requeridas diligências ou, até, ser alvo de interpretação distinta: não há interrogatório por não se vislumbrar crime, ficando desta sorte as restantes diligências prejudicadas. Lembramos que este Tribunal Superior não pode dar ordens ao MP para a prática de actos não obrigatórios, pelo que a falível discussão sobre a insuficiência de inquérito pode terminar com a prática de actos inúteis.
Com esta excursão pretendemos dizer liminarmente que não há nulidade insanável por falta de promoção do processo e que a alegada nulidade por insuficiência de inquérito requer interpretação restritiva de que o denunciado tem sempre de ser ouvido. As restantes diligências estão no âmbito das atribuições do MP.
A finalidade da instrução constitui um instrumento de controlo jurisdicional para aferir da decisão de acusar ou arquivar, tomada no fim do inquérito. O juiz pratica todos os actos necessários à realização das finalidades previstas no artº 286 nº 1 do CPP. A instrução é um puro instrumento de controlo, posto a cargo de um juiz, a ter lugar após fase processual especificamente destinada à investigação criminal – A Nova Face da Instrução – Nuno Brandão - Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 3/2008, páginas 227/255.
O Tribunal a quo tem de declarar aberta a instrução, tomar posição sobre o RAI e considerar, eventualmente, os actos a praticar, seguindo-se o debate instrutório e consequente decisão. Recordamos o teor do artº 308 nº 3 do CPP – no despacho de pronúncia ou não pronúncia o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que possa conhecer.»



Julgar em ditadura-julgar em democracia

 


Curso de Direito Penal


O autor é professor convidado da cadeira de Direito Penal do Curso de Licenciatura em Direito na Universidade Europeia, função que cumula com a de juiz de Direito, tendo obra publicada no domínio do cibercrime.

O livro, publicado neste mês de Março de 2021, anuncia-se como tendo «um carácter essencialmente teórico», mas não deixando de «ter igualmente uma componente prática».

Trata-se de um tomo primeiro, dedicado às questões fundamentais da teoria geral do crime, o que faz pressupor um outro sobre o que se denomina o tema das consequência jurídicas do crime.

O elenco dos temas é o tradicional na matéria, embora sem sistemática que os aglutine de modo mais estruturado. Trata-se, no entanto, de obra de fácil leitura, pensada primacialmente para fins pedagógicos.

No âmbito das questões fundamentais (i) o conceito de Direito Penal (ii) a finalidade do Direito Penal e das medidas de segurança (iii) o conceito material de crime (iv) os princípios fundamentais do Direito Penal.

No domínio da Teoria do Direito Penal a obra abrange (i) o temas de interpretação e da integração da lei penal (ii) a aplicação temporal, espacial e pessoal.

Quanto à Teoria da Infracção Penal configuram-se (i) as questões fundamentais (ii) o tipo objectivo de ilícito (iii) a imputação objectivo do resultado (iv)o tipo subjectivo de ilícito nos crimes dolosos por acção (v) as questões fundamentais da ilicitude (vi) a legítima defesa (vii) o estado de necessidade justificante (viii) o conflito de deveres (ix) o consentimento do ofendido (x) outras causas de justificação (xii) a imputabilidade (xiii) a inexigibilidade (xiv) a punibilidade (xv) a tentativa (xvi) a comparticipação criminosa (xvii) os crimes negligentes (xviii) os crime omissivos (xix) o problema da unidade e pluralidade de infracções.

A obra está apoiada numa extensa bibliografia e num índice de remissão para alguns acórdãos que considera relevantes.

Branqueamento de capitais: conferência

 

Por gentileza do Conselho Regional de Faro da Ordem dos Advogados, é-me grato poder participar neste evento. A assistência pode ser alcançada a partir daqui.

Branqueamento de capitais: uma tese

 


O livro é uma tese de doutoramento, mas uma tese [em Ciências Sociais/Estudos Estratégicos, sustentada ante o ICSP da Universidade de Lisboa], escrita em estilo prático por quem tem experiência no terreno, porque inspector, inspector-chefe na Polícia Judiciária, na área do combate à corrupção e  posteriormente a isso na Direcção do Departamento de Investigação Criminal de Setúbal daquela Polícia onde desempenha actualmente a função de Director da Unidade de Informação Financeira.

Reconhecer-se-á, pois, na obra não apenas o fruto das leituras e reflexões que o autor evidenciou, não apenas no domínio jurídico, mas por igual no campo sociológico, da economia e da teoria das organizações, como, de modo dominante, o produto da sua experiência no terreno: é disso evidência o que escreve a propósito da offshores [que, fazendo-se eco de uma doutrina firmada nos sectores teoria como pertencentes do domínio do "terror financeiro"], ou o que apelida de «breves considerações sobre o lucro ou ganho financeiro».

Antecedida de uma capítulo dedicado à metodologia da investigação, a obra [publicada em 2020]  divide-se em três partes, culminando com um apêndice documental de fontes e pistas para aprofundamento.

A primeira é dedicada ao "Teatro de Operações", centrada, em primeiro lugar, na caracterização da sociedade de risco e sua natureza global, e perspectivada, de seguida, na lógica jurídica, quer quanto ao enunciado do conceito de branqueamento e sua origem, à rememoração do bem jurídico em causa, como no que se refere à revisitação das noções típicas neste domínio, nomeadamente da criminalidade organizada transnacional, território onde se situa hoje o núcleo essencial do problema.

Na segunda parte centra-se no Direito em acção, logo o que decorre das propostas oriundas da EUROPOL e também da própria NATO [entroncado o tema numa lógica securitária global] e de seguida o papel que desempenham as estruturas nacionais de informação e investigação, o DCIAP, a UIF/PJ, a própria PJ como entidade de investigação e o GRA.

A terceira parte está orientada à actuação estratégica, a dois níveis: a da actuação, de acordo com um modelo operativo que o autor sugere como o adaptado às novas circunstâncias e o enunciados dos checklist a ter em conta  na investigação e na prevenção porque indiciadores de situações de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.

Morte do assistente: efeitos


Decisão interessante, a resolver tema que a mesma considera polémica, a decorrente do Acórdão da Relação do Porto de 1301.2021 [proferido no processo n.º 345/18.3PASTS.P1, relator Borges Martins, texto integral aqui] quando consigna que a morte do assistente, que entretanto requerera instrução, não permite aos seus sucessores virem desistir da fase que aquele desencadeara.


Consta do sumário do aresto em causa: «A morte do/a assistente não extingue a instrução por ele/a requerida, mesmo que os seus sucessores indicados no artigo 113.º, n.º 2, do Código Penal pretendam essa extinção, não sendo aplicável analogicamente a esta situação o disposto nesse preceito.». 

Cita-se o artigo do Código Penal em causa para melhor compreensão do tema:

«Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertence às pessoas a seguir indicadas, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime:

a) Ao cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou à pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, aos descendentes e aos adoptados e aos ascendentes e aos adoptantes; e, na sua falta
b) Aos irmãos e seus descendentes.»

Questão que o acórdão abordou, pela lógica da legitimação processual, foi, pois, a de saber se morto o assistente a ele sucediam em termos de adquirirem o respectivo estatuto, os respectivos sucessores, rememorando, para fundamentar o seu raciocínio, o previsto no artigo 68º do Código de Processo Penal [quando admite os ofendidos a integrarem, com legitimidade, o estatuto de assistentes] para depois ponderar a possibilidade de se equiparar em efeitos o previsto no artigo 113º, n,º 2 do Código Penal quanto à morte do ofendido ao caso de morte do assistente.

Citando o excerto relevante:

«No caso que nos interessa, tal faculdade pode ser atribuída ao ofendido, considerado na sua veste de titular do interesse que a lei quis proteger com a incriminação – al. a).
Também aqui se concebe o lugar paralelo ao analisado supra, no caso de morte do ofendido - atribuição da possibilidade de se constituírem assistentes tanto o cônjuge como outros familiares próximos. Igualmente se o ofendido não tiver renunciado à queixa, entretanto – presumindo-se que já a apresentou previamente – al. c).
Só no caso de o ofendido ter morrido sem se ter constituído assistente tem lugar a aplicação desta norma – cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 16.ª edição, 2007.
Como escreveu José António Barreiros (Processo Penal-1, Almedina, 1981, pág. 504), a posição judiciária de assistente extingue-se com a morte do individuo que revestia tal estatuto. Nesse caso, a lei permite que que se habilitem as pessoas previstas no n.º 4 do art.º 4.º do DL n.º 35 007 – norma correspondente ao actual art.º 68.º,n.º 1, al. c) do CPP.
Na hipótese dos autos, vemos que a Assistente, entretanto falecida, requerera abertura de instrução. Os substitutos legais possíveis renunciaram a tal faculdade.
Determina o art.º 69.º, n.º2, do CPP que compete, em especial, ao assistente oferecer provas; e requerer as diligências que se afigurarem necessárias, deduzir acusação independente da do MP e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza; interpor recurso das decisões que o afectem.
A Assistente exerceu tais poderes que a lei lhe confere.
Entretanto, deixou de haver nos autos Assistente como sujeito processual capaz ou interessado em exercer tais poderes no futuro.
Mas, e no que diz respeito ao RAI anteriormente deduzido?
Este tinha sido judicialmente admitido; e tinha sido publicado despacho determinativo de inquirição de duas testemunhas no mesmo indicadas; e de realização subsequente e imediata do debate instrutório.
No âmbito do processo civil – sempre a ter em conta, dado o disposto no art.º 4.º do CPP – vigora o princípio da aquisição processual: Os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária (…). Quanto ao seu outro aspecto, o princípio traduz-se na comunidade das provas. Desta comunidade deriva que a parte não pode renunciar às suas provas, uma vez produzidas – embora delas possa desistir antes disso (arg. do art.º 571.º) resulta claramente do disposto no art.º 515.º. – cfr. arts. 465.º, 594.º,n.º 4 e 595.º, todos do NCPC, Manuel da Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 383.
No novo CPC determina o art.º 498.º, n.2 que a parte pode desistir a todo tempo da inquirição de testemunhas que tenha oferecido, sem prejuízo da possibilidade de inquirição oficiosa, nos termos do art.º 526.º.
Não existe norma equivalente no CPP e cremos que a aplicação da mesma no processo penal é pelo menos polémica, dado o princípio de demanda da verdade material que constitui a sua trave mestra.
No caso dos presentes autos, constata que a Assistente ofereceu prova de duas testemunhas; não tendo as mesmas ainda sido inquiridas.
Ora, o JIC, nos termos do disposto no art.º 291.º, n.º1 do CPP tem a possibilidade de indeferir a produção de depoimento de testemunhas que entenda inúteis para a finalidade da instrução – que é comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem de submeter ou não a causa a julgamento. Pode inclusivamente rejeitar a repetição de depoimentos já prestados em inquérito – n.º 3 do citado art.º 291.º do CPP.
Se designou data para a sua inquirição e imediata realização do debate instrutório, foi porque considerou o respectivo depoimento como à partida útil para a realização daquela finalidade.
Por outro lado, a não presença do Assistente não afecta a regularidade deste, conforme teor do art.º 297.º do CPP; recordando que tal debate e decisão instrutória não deixarão de reflectir sobre os pressupostos processuais, maxime, legitimidade para prossecução do procedimento criminal – questão não abordada pela decisão recorrida.»

Ora o tema tem, permito-me opinar, um outro ângulo de perspectiva, o qual conduzirá, no entanto, ao mesmo nó problemático: é que sendo discutível que ao assistente falecido possam suceder, na aquisição do estatuto respectivo, os seus sucessores [e aí os que estão indicados do citado n.º 2 do artigo 113º do Código Penal quanto ao caso da morte do ofendido], tendendo eu, numa primeira reflexão, a divergir da conclusão do aresto a que me refiro, já parece que, centrando-se a análise da matéria agora na questão da admissibilidade da desistência da instrução, o tema ganha outra dimensão e outra generalidade: é que, admitir-se que, tratando-se de fase facultativa, pode ocorrer desistência da mesma [ainda que possa ser questão saber se uma vez admitida tal fase não se torna irrecusável], tal faculdade, a ser pecúlio do assistente constituído, não haverá, creio, razão para ser negada a quem lhe suceder no estatuto [a admitir-se, e voltamos ao início, que a norma de habilitação para tal sucessão seja, em aplicação analógica, o citado artigo 113º, n.º 2 do Código Penal].


Recusa de juiz: um tema no limiar


É tema delicado, o da recusa de juiz. Move-se no limiar da luta por uma justiça que seja tida, generalizadamente, como imparcial e a assunção por alguns, de que se trata de ofensa pessoal àquele cujo critério é posto em causa. Tudo depende, também, reconheça-se, do modo como o tema é equacionado. Mas a formulação legal não ajuda à clareza.

Tem, por isso, interesse a leitura deste Acórdão da Relação de Guimarães de 11.01.2021 [proferido no processo n.º 2944/17.1T9BRG-B.G1, relatora Teresa Coimbra, texto integral aqui], de cujo sumário consta:


«1. Da lei processual penal ( art. 43 nº 1 do Código de Processo Penal) não se retira o que deve entender-se por “motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade de um juiz” capaz de justificar a recusa da sua intervenção num processo e o consequente afastamento do princípio do juiz natural, razão pela qual se impõe uma análise casuística dos motivos invocados de acordo com parâmetros objetivos ou subjetivos, na certeza de que quando a imparcialidade de um juiz ou a confiança da comunidade nessa imparcialidade são justificadamente postas em causa, o juiz deve ficar impedido de administrar a justiça.
«2. Quando um processo chega a julgamento o juiz já teve contacto com o processo e já proferiu diversas decisões que o levaram a ponderar sobre a eventual prática do crime (já recebeu a acusação ou a pronúncia, já recebeu a contestação, já ponderou sobre os meios de prova a produzir…), mas nenhuma destas decisões é suscetível de comprometer a imparcialidade do juízo a fazer perante a prova que venha a resultar do julgamento.
«3. De igual modo se o juiz do julgamento, anteriormente, em serviço de turno, teve contacto com o processo e ordenou a realização de busca domiciliária, tal intervenção, por si só, não é suscetível de pôr em causa a posição “equidistante, descomprometida e desprendida em relação ao objeto da causa e a todos os sujeitos processuais” que necessariamente terá de ter no julgamento, sob pena de alienar o mais importante património moral que possui e que é pressuposto fundante da dignidade das funções que exerce.»

Permito-me opinar, quanto às afirmações vertidas nos ponto 2 e 3: se concordo com a primeira delas, permito-me pôr em dúvida a segunda, configurando, diga-se, o tema em abstracto, porque, face ao caso, e lendo o teor do decidido, flui a noção de que o comprometimento da juiz em causa com os pressupostos probatórios da busca domiciliária que ordenou não terão ficado evidenciados e foi com esse fundamento que a Relação decidiu. 
É que, creio, não pode concluir-se que o envolvimento em uma diligência tão gravosa como uma busca domiciliária, não possa pressupor genericamente uma avaliação rigorosa da indiciação que esteja em causa. O mesmo vale, por maioria [se não por identidade -] de razão para a autorização de intercepções telefónicas ou a selecção do fruto das mesmas: aquele acto, tal como estes, não são, não podem ser, actos tabelares, de mero escrutínio de legalidade formal, antes actos decisórios que implicam um juízo sobre o substracto de possível indiciação daquele que irá ser depois julgado.
Trata-se, pois, de uma avaliação a efectuar de forma casuística, como ressalta da decisão.
Tema é - mas não é o que está em causa - saber se só haverá fundamentação para a recusa quando a dúvida sobre a imparcialidade se traduzir em actos processuais do recusando cujo sentido a possam evidenciar como motivo razoável, ou se a autoria objectiva de actos processuais prévios já pode implicar, em regime automático, a impossibilidade de julgar, em lógica de escusa, ou quando não actuada, de recusa.
Avançando uma opinião, creio ser de relevar que, ao ter clausulado como impedimento [no artigo 40º do CPP] essa impossibilidade de julgar [em audiência de primeira instância ou recurso, ainda que de revisão] quando da prática prévia dos actos processuais ali elencados de modo tipificado, o legislador traduziu a ideia de que, a participação em outros actos processuais não gera o automatismo do impedimento, e só casuisticamente a situação terá de ser avaliado como fonte de recusa; mas, ainda assim, fica esta questão irresoluta pois a letra da lei não clausula que, a juntar à participação em actos processuais que não os previstos no artigo 40º, mas que sejam actos aptos a gerar a formação de uma determinada convicção quanto ao mérito, ainda que indiciário do caso, ou à sua valia jurídica, haja que se somar, a demonstração exuberante em julgamento [ou recurso] de que o comprometimento existe e o juiz já tem, contra o seu distanciamento legalmente exigível, o apriori de uma ideia que formou quanto à matéria relativamente à qual tem de decidir.

Para que haja Justiça, inexista o facto!

 


É uma leitura inocente e, no entanto, ilustrativa. A conferência é singela, o tema daria hoje azo a um turbilhão de comentários. Apenas o foro em que foi lida, a solene Academia das Ciências, lhe empresta uma certa áurea. Só que não só de grandeza ou grandiloquència é feita a vida, antes no inesperado e breve se surpreende o digno e notável..

Pedro Pitta foi várias vezes Bastonário da Ordem dos Advogados, de 1957 a 1971. Democrata, Homem de Cultura, a ele se deve a posição de antítese ao regime político que então nos governou contra o qual a Ordem dos Advogados se bateu, sabendo resistir e elevar a sua voz face à perseguição a que tantos advogados foram sujeitos.

Chegou-me seu este breve livrito, de trinta e oito páginas em oitavo, pelas mãos daquele a quem já chamo «o meu alfarrabista», o que me abre crédito de cem euros, que vou repondo em pontual conta-corrente, tendo de ser eu a perguntar se já esgotei já o plafond com o meu vício pelas velharias, pois a sua elegância quase o embaraça de lembrar-mo.

E entre velharias e a partir delas que o conferencista encontrou o seu tema, velho e gasto farrapo de jornal francês, que lhe embrulhara uns livros que nem chegou ler, sim o remanescente do periódico onde se deteve na notícia que lhe daria azo à prelecção, lida a 23 de Janeiro de 1930.

Narrava então o jornal uma insignificante notícia, a do caso de dois faroleiros, exaustos pela vigília a que se sujeitavam, em quartos sucessivos de sentinela, por dias e noites de tempestade, já no limite febril do esgotamento e da renúncia, mas porfiando em manterem-se no seu posto, para que as embarcações que ali arrostavam, atiradas pelo turbilhão marítimo,  tivessem, pela luz do farol e pelo ronco da sereia, o sinal salvífico que as poupariam ao naufrágio e nele a perda de vidas humanas e das fazendas com que iam carregadas.

Mestre na escrita, Pitta centra-nos na cena como se estivéssemos no hediondo lugar. 

E surge então, insidiosa, a trama trágica, ditada pelo sortilégio da má fortuna, o ciúme de um deles, fruto da descoberta no bolso do seu companheiro, de uma carta íntima que dava razão à suspeita de que era com ele que se consumava o adultério já pressentido de sua mulher.

Com o ciúme, eis a ideia do homicídio, passional no momento em que ideia irrompe, mas adiada esta, minado o espírito do assassino entre o desejo aguilhoante de o perpetrar, e a consciência de que deveria manter vivo aquele que, fosse morto, impossibilitado estaria de o render nos turnos de vigia, e deixaria o farol desamparado e com isso barcos, mercadorias e sobretudos vidas humanas entregues à sua sorte e funesta esta se adivinhava.

Adiada a consumação da morte, foi ela infligida precisamente no momento em que, acalmado o mar, chegava a guarnição que asseguraria a rendição dos dois. Morte testemunhada, o homicida a entregar-se voluntariamente à prisão; esta sua opção impedira-o de cometer um crime que, realizado tivesse sido no momento em que o pensou. passaria oculto pela história possível de que o companheiro desparecera, sim, mas tragado pelas ondas do mar revoltoso, versão que o encobriria e lhe traria a falsa inocência.

Jurista, Pedro Goes Pitta, centrando o seu auditório ante o caso, encara o tema de que fez conferência: no sistema do Código Penal de 1886, afinal nesta parte o que já ere desde 1852, a premeditação no homicídio - e era este um caso insofismável com essa natureza, formado que fora o desígnio criminoso com antecedência superior a vinte e quatro horas - agravava necessariamente a responsabilidade criminal, impedindo a sua atenuação, privando os juízes de aplicarem esta por causa do valor imperativo da agravação.

E eis a luta entre o ditame da lei e o que dita o coração: defrontando-se entre estas antinomias, o rigor legal e a compreensão humana do caso, o conferencista convoca argumentos em favor da ideia, que faz sua, da possibilidade de a atenuação, que no caso tinha por devida, poder ter o seu lugar. 

Socorre-se, incerto, do então artigo 40º do Código Penal quando este previa que as circunstâncias, indicadas como agravantes deixavam de o ser «quando a lei expressamente o declarar, ou as circunstâncias e natureza especial do crime indicarem que não devem agravar e devem atenuar a responsabilidade dos agentes em que concorram». 

Mas sabe que «alguns escritores da especialidade de muitos julgadores» consideravam que tal favor não se aplicaria à premeditação e honradamente reconhece-o, não ocultando o que desmente a tese que patrocina. 

Discorda, porém. E clama, em revolta. É este o ponto tocante da sua contenda, intelectual e emotiva, ante a Lei. 

Esgrimindo, advogado, face a um caso hipotético, que o acaso de um resto de jornal lhe trouxera, Pedro Pitta resiste, e virando-se ao que a regra da tipicidade traria em desfavor, clama, no anseio de Justiça: «não pode haver normas inflexíveis, sobretudo em matéria penal; definições, não são de admitir quando se trata de circunstâncias absolutamente variáveis, diversas de indivíduo para indivíduo, e que são influenciadas por tantas e tão diferentes causas».

Desamparado ante a sua própria inteligência, ciente que não advogará contra ela, e perde a razão quando a razão não lhe trouxer íntima convicção do fundamento do que argumenta, irrompe, em desespero: e se «há casos em que as circunstâncias que rodeiam o acto praticado o justificam, se não à face da lei, ao menos ante a consciência dos homens», este homicídio adiado em nome dos valores de outras vidas que o criminoso quis fossem salvas, teria de encontrar homens que impedissem a agravação pela ineludível premeditação. 

Fossem, pois, esses homens juízes ou jurados,  que, ao abrigo do poder de julgar o facto, impedissem a aplicação da lei, dando como não provada a premeditação, que assim ficaria sem aplicação ao caso.

Voz irada, voz dos sentimentos, voz da revolta: «[...] a minha revolta crescia, crescia sempre, contra essas normas legais quasi inflexíveis, que não apreciam em matéria criminal cada caso em si próprio, com as características que o revestem, o precedem e o seguem, e que apenas encontram correcção na consciência dos julgadores e na liberdade que a si próprios avaramente se reservam e muito bem».

Lê-se e um frémito de emoção irrompe, tantos anos depois.. 


O processo que cria o facto

 


O livro chegou há semanas. O autor, Filippo Sgubbi, morreu em Julho deste ano. Tenho estado a lê-lo, aquela leitura lenta, porque se pensa enquanto se lê. O que pareciam apenas 88 páginas expandiu-se ante o que elas contêm.

E nele encontro a ideia que a vida vai formando e que tantos livros de texto iludem: a de que frequentemente  não é o processo que vai em busca da realidade, tal como o historiador tenta reconstituir o passado, mas é pelo processo que se forma o que se assume como a realidade e como verdade prática passa a ser.

Mais: assume-se, melhor, assume a acusação pública, ao recortar na complexidade da vida e pelo processo, não a materialidade relevante para a norma incriminadora que possa estar em causa, mas as ocorrências e apenas essas que confiram consistência ao teorema prévio que se queira fazer valer:  trata-se não da demonstração de uma eventualidade, sim da legitimação de um apriori.

Mais ainda: traz-se ao poder judicial, sob a forma de acusação, não da realidade o todo, mas dela a parte construída, a qual será doravante a única cognoscível, submete-se a juízes, que se supõem independentes na decisão, a dependência de só julgarem o que lhes é submetido a julgamento: o silogismo judicial fica sofismado ante o construtivismo da premissa menor, como já seria discutível ante a incerteza interpretativa da premissa maior, a volubilidade jurisprudencial ajudando.

Através da miscigenação com os media, torna-se assim aquilo que é suposto ser uma "hipótese de trabalho", como se dizia ser a acusação pública, no veredicto que verdadeiramente conta, estigmatizante para o suspeito, que nem acusado ainda seja, aquele que, como seus efeitos colaterais, abre a oportunidade para o sujeitar à "morte civil", o cerco ao seu património, a privação da sua liberdade, assim haja juiz que seja complacente ante essa verosimilhança dita indiciária.

Que a sentença final venha a decretar tudo isso insubsistente, conta amiúde pouco, pois mesmo  absolvição chega, ao limite, a ser irrelevante; o sistema atinge pela sua desesperante duração e pela álea das suas decisões, um tal ponto tal de degradação social e anímica das pessoas que estas, enfim, na recta final do julgamento estão dispostas a aceitar o que seja, assim se libertem da opressão a que foram sujeitas.

Dir-se-á, como é costume dizer-se, que nem sempre é deste modo  e exagero ao criar a noção de que é maioritariamente assim. É o costume quando se analisa uma tendência; fica-se à mercê dos que, em nome das excepções, se envergonham da regra, por honradamente nela se não reverem.

DGPJ: notícias relevantes


A acompanhar, necessariamente, a actividade deste Departamento. Os elementos que se encontram no seu site [ver  aqui] são da maior utilidade. A newsletter que divulga vai já no número 3.

Processo contraordenacional: simplificação, mas não tanta!


O sério problema do processo contraordenacional decorre da conjunção de vários factores: primeiro, o carácter aberto da remissão feita no Regime Geral, para o processo criminal, a qual se presta ao arbítrio se ser feita ou não funcionar consoante o propósito decisório almejado, assim se expandido ou retraindo o que é tido por ser Direito Constitucional aplicado; depois a existência daquele Regime Geral que é desmentido por particularidades dos vários regimes privativos de cada regulador, regimes específicos que são, aliás, para ajudar à confusão e com ela à incerteza, diversos entre si; enfim, o carácter dito flexível dessa espécie de procedimento, que fazia sentido quando se tratava de encontrar alternativa adjectiva às contravenções e transgressões penais mas se torna perigosa e atentatória de direitos fundamentais quando falamos de uma forma, assim dúctil, qual jurisdição graciosa, de aplicar coimas de milhões de euros.

De saudar, pois, que haja Tribunal, como o da Relação de Coimbra, que no seu Acórdão de 11 de Novembro [proferido no processo n.º 351/19.0T8MBR.C1, relatora Maria José Nogueira, texto integral aqui] barrou caminho ao que seria uma ofensa a um dos princípios basilares da conformação do objecto do objecto do processo em função da totalidade dos elementos do tipo de proibição, ao não conter a decisão administrativa a menção ao título subjectivo da imputação.

Citando do esclarecedor sumário que uma pormenorizada fundamentação desenvolve:

«I – A natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjectivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência.

«II – Tal omissão, constituindo violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 58.º do RGCOC, determina, por aplicação da al. a) do n.º 1 do art. 379.º do CPP, ex vi do art. 41.º do primeiro dos referidos diplomas, a nulidade da decisão administrativa.

«III – Não estando descrito na decisão administrativa o elemento subjectivo, impõe-se, por falta de tipicidade, a absolvição do arguido.»

Funcionário demandado civilmente por crime: foro competente


O tema é mais geral do que se colhe do sumário do Acórdão da Relação de Guimarães de 9 de Novembro [proferido processo n.º 179/16.0T9VNF.G1, relatora Cândida Martinho, texto integral aqui], porquanto é da competência do tribunal criminal, em detrimento da jurisdição administrativa, para conhecer, na lógica do princípio da adesão, pedido civil indemnizatório formulado contra quem responda criminalmente por actos praticado no exercício de funções públicas

Fazendo prevalecer a regra geral, o aresto enuncia-o por esta forma: «Vem sendo pacificamente aceite na doutrina e jurisprudência que o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem de ter como causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido se encontra acusado ou pronunciado, no processo em que é formulado o pedido (Germano Marques da Silva, in Direito Processual Penal Português, Vol. I, Universidade Católica Portuguesa, 2013, pág. 136, Acs. do STJ de 10/12/2008, proc. 08P3638, de 15/03/2012, proc. 870/07.1GTABF.E1.S1, de 29/03/2012, proc. 18/10.5GBTNV e de 28/05/2015, proc. 2647/06.2TAGMR.G1.S1, todos acessíveis in www.dgsi.pt

E o afastamento do foro administrativo decorre desta asserção, que, porquanto esclarecedora, nos permitimos citar in extenso: «a simples presença simples presença de uma ou mais pessoas singulares em juízo (ou seja, de pessoas não coletivas de direito público) não determina a competência material deste Tribunal, pois que, nos termos do artigo 10.º, n.º 7, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o litisconsórcio voluntário passivo abrange as relações emergentes de responsabilidade solidária ou conjunta extracontratual ou contratual das entidades públicas e/ou de particulares, resultando deste último normativo a possibilidade de acionamento de entes públicos e de outros interessados (ainda que particulares, ou seja, mesmo que não sejam concessionários ou agentes administrativos), desde que a relação material controvertida lhes diga igualmente respeito, isto é, se o âmbito da sua previsão e estatuição envolver o litisconsórcio voluntário passivo emergente de responsabilidade solidária ou conjunta extracontratual ou contratual da entidade pública e de uma entidade particular (AROSO DE ALMEIDA/CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2005, págs. 80 a 82).Destarte, pese embora os demandados não sejam pessoas coletivas de direito público, certo é que a presença de um réu com tal qualidade é o bastante para julgar como competentes os Tribunais Administrativos para o conhecimento da questão (cfr., neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Março de 2009, processo nº 488/05.3TBCDR.P1, relator Sousa Lameira, in www.dgsi.pt).»

Código da Actividade Bancária: consulta pública

 


Segundo informa o Banco de Portugal [ver aqui] foi alargado para 18 de Dezembro o prazo para a consulta pública do Código da Actividade Bancária. 

Trata-se de substituir o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras – vigente desde 1993 e sucessivamente alterado, de acordo com o que decorre do Livro Branco sobre a regulação e supervisão do sector financeiro [ver aqui].

O anteprojecto pode ser consultado aqui e o índice respectivo aqui.

Os artigos 642º a 645º reportam-se à tutela penal e os artigos 646º a 690º ao ilícito contraordenacional, nisso incluindo as normas processuais.


PGR, Directiva 4/2020: a controversa hierarquia


É este o teor integral da Directiva n.º 4/2020 da Procuradora-Geral da República que tem suscitado polémica pública no que se refere ao exercício de poderes hierárquicos em processo penal, a qual se articula com o teor da Directiva 5/2014 [ver aqui] e revoga a Directiva 1/2020 [ver aqui]. A  áspera reacção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público pode ler-se aqui.




Diretiva n.º 4/2020


O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia caraterizada pela sua vinculação a critérios de legalidade e objetividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados do Ministério Público às diretivas, ordens e instruções previstas no seu Estatuto (artigos 219.º da Constituição da República Portuguesa e 3.º do Estatuto do Ministério Público (EMP), aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 29 de agosto).

Estruturando-se o Ministério Público, constitucional e estatutariamente, como uma magistratura hierarquizada, os magistrados que a integram são responsáveis e hierarquicamente subordinados, respondendo, nos termos da lei, pelo cumprimento dos seus deveres e pela observância das diretivas, ordens e instruções que receberem.

A autonomia e a hierarquia do Ministério Público, de natureza funcional, a par com a responsabilidade dos seus magistrados, constituem garantia constitucional da promoção da igualdade de todos os cidadãos perante a lei e, simultaneamente, da unidade, eficiência e celeridade da sua atuação.

Decorre do quadro constitucional, legal e estatuário que o exercício dos poderes hierárquicos assenta em intervenção de natureza diretiva delimitada no seu âmbito e conteúdo pelo Estatuto do Ministério Público e pelas leis do processo.

A clarificação da intervenção hierárquica em processo penal que decorre do novo Estatuto do Ministério Público mantém inalterado o quadro constitucional, legal e estatutário vigente do exercício dos poderes de direção pelo magistrado do Ministério Público hierarca, destacando dois planos distintos do exercício do poder de direção que, em todo o caso, não conflituam nem se anulam, antes se intersetam.

Por um lado, o exercício dos poderes de intervenção processual penal legalmente previstos implica a prática de atos processuais que produzem efeitos intraprocessuais relevantes, não podendo ser objeto de recusa as decisões proferidas por via hierárquica nos termos da lei de processo [artigo 100.º, n.º 6, alínea a) do EMP].

Por outro, o exercício de poderes de direção, inelutavelmente sujeito a limites legal e estatutariamente consagrados que refletem a concordância prática entre a autonomia interna dos magistrados e o exercício daqueles poderes.

A autonomia interna dos magistrados do Ministério Público pressupõe tanto a vinculação aos critérios de objetividade e de legalidade, como a sujeição às diretivas, ordens e instruções dos superiores hierárquicos, balanceada pela salvaguarda da sua consciência jurídica, também esta condição essencial do exercício de funções e, consequentemente, da administração da justiça.

Numa tal conformação destaca-se, por um lado, o poder de os magistrados solicitarem ao superior hierárquico que a ordem ou instrução sejam emitidas por escrito, e o dever de o hierarca emitir a ordem por aquela forma quando se destine a produzir efeitos em processo determinado. Por outro lado, evidencia-se o exercício do dever de recusa de cumprimento de ordens ilegais e o poder de recusa com fundamento em grave violação da consciência jurídica do destinatário da resolução superior.

A emissão de um ato com eficácia diretiva e de aplicação direta a um determinado caso concreto não consubstancia a prática de ato de natureza processual em sentido próprio, tal como sustentado pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (cf. Pareceres n.os 33/2019 e 9/2020).

O ato processual consequente, praticado em obediência àquela ordem, configura um ato processual em sentido próprio porque produzido na prossecução do exercício da ação penal e com a devida consagração legal expressa nas leis adjetivas. Nesse sentido, tal despacho deve conter, na respetiva fundamentação, referência inequívoca à decisão hierárquica que o conforma.

O exercício dos poderes hierárquicos de supervisão e direção é sempre reduzido a escrito (n.º 1 do artigo 100.º do EMP), imposição legal que visa o controlo interno, desde logo pelo magistrado que recebe a ordem, como também o controlo externo, desde logo pelos sujeitos processuais.

Daí que, perante suspeita de ilegalidade do ato do hierarca - onde se incluem causas de incompetência ou de impedimento para a sua prática - terão os sujeitos processuais legítimo interesse em conhecer a ordem ou instrução que determinou a prática do ato processual pelo magistrado subordinado.

Como corolário dos princípios da legalidade e da transparência, bem como do direito a um processo justo e equitativo, toda a atuação funcional do Ministério Público no processo penal é suscetível de ser conhecida e sindicada por quem é parte legítima nos termos das normas legais de acesso aos processos.

As crescentes exigências do exercício da função e o princípio de unidade que carateriza esta magistratura hierarquizada vêm, tendencialmente, afastando a delimitação da autonomia interna na perspetiva de uma intervenção processual isolada.

Antes demonstram que o cumprimento dos instrumentos hierárquicos e a articulação próxima com o imediato hierarca são práticas que contribuem para o fortalecimento, a uniformidade e a elevada competência da sua atuação funcional de que a boa administração da justiça é credora.

Com o presente instrumento pretende-se uniformizar procedimentos no âmbito do exercício de poderes hierárquicos em processo penal e, pela sua especial relação com aquele exercício, introduzem-se orientações relativas ao exercício hierárquico do poder diretivo de avocação do inquérito. Por outro lado, clarifica-se o regime atinente às comunicações hierárquicas de determinadas realidades factuais objeto de investigação.

Serão pois enunciados princípios orientadores dos magistrados do Ministério Público no âmbito das relações hierárquicas, desde logo quanto ao cumprimento das regras estabelecidas nos instrumentos hierárquicos vigentes, e de, na avaliação que efetuem, em caso de dúvida, se articularem com o imediato superior hierárquico, atuação própria e salutar de uma magistratura una e hierarquizada.

Impõe-se, igualmente, enunciar princípios orientadores relativamente ao exercício dos poderes de direção que produzam efeitos em concretos processos e que não se traduzam em atos processuais em sentido próprio, de modo a garantir a transparência da sua emissão e a reação estatutariamente prevista do magistrado subordinado, enquanto garantia da sua autonomia.

Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.os 1 e 2, do artigo 11.º e na alínea b), do n.º 2, do artigo 19.º do Estatuto do Ministério Público, com fundamento nas considerações assinaladas, e cuja interpretação deve ser sustentada e observada por todos os magistrados do Ministério Público, determino o seguinte:

I - Exercício de poderes hierárquicos de direção

1 - No exercício dos poderes hierárquicos de direção, o imediato superior hierárquico emana ordens e instruções conformadoras da atuação dos seus subordinados, nos termos estabelecidos na Diretiva n.º 5/2014/PGR, de 19 de novembro.

2 - As ordens e instruções que se destinem a produzir efeitos num determinado processo, e que não constituam atos processuais em sentido próprio, são sempre reduzidas a escrito e registadas pelo hierarca que as emana em dossiê de preparação e acompanhamento, já instaurado ou a instaurar.

3 - O dossiê a que se refere o ponto anterior é transmitido ao magistrado a quem as ordens ou instruções são dirigidas.

4 - O dossiê de preparação e acompanhamento deverá ser sinalizado na capa física e eletrónica do processo em que a ordem ou instrução se destina a produzir efeitos.

5 - As ordens e instruções a que se refere o ponto 2 são sempre comunicadas ao imediato superior hierárquico do magistrado que as emanou.

6 - Quando, em obediência a ordem ou instrução a que se refere o ponto 2, cumprir o determinado pelo seu imediato superior hierárquico, o magistrado titular deve, na decisão a proferir no processo, fazer expressa menção de que atua por dever de obediência hierárquica, identificar, sinteticamente e com ponderação dos critérios estabelecidos para o acesso por sujeitos processuais, o conteúdo da ordem ou instrução recebida e indicar a identidade e a qualidade do hierarca que a emitiu.

7 - A menção, nos autos, da ordem ou instrução emanada é da competência exclusiva do magistrado que dela foi destinatário.

II - Recusa de cumprimento

1 - A declaração de recusa de ordens ou instruções que se destinem a produzir efeitos em concreto processo, e que não constituam atos processuais em sentido próprio praticados no âmbito de intervenções hierárquicas previstas na lei do processo, deve ser:

1.1 - Sempre reduzida a escrito e registada no dossiê de preparação e acompanhamento referido em I.2 e I.3;

1.2 - Devidamente fundamentada, com indicação da concreta causa da recusa e dos motivos, de facto e de direito, que a fundamentam;

1.3 - Comunicada simultaneamente ao magistrado que emitiu a ordem ou instrução e ao seu imediato superior hierárquico.

III - Acesso às ordens e instruções

1 - As ordens e instruções a que se refere o ponto I.2., e a posição que sobre a mesma for assumida pelo magistrado destinatário, podem ser consultadas por quem assuma a qualidade de sujeito ou interveniente processual no processo onde a mesma produziu efeitos, quando se verifiquem os seguintes pressupostos, de natureza cumulativa:

a) Seja titular de interesse legítimo para o efeito;

b) O seu conhecimento não prejudique os interesses da investigação, em particular nas situações em que o inquérito se encontre sujeito a segredo de justiça, e enquanto essas circunstâncias se verificarem;

c) A consulta não seja suscetível de ofender direitos fundamentais de outros sujeitos ou intervenientes processuais.

2 - Para salvaguarda dos interesses a que se referem as alíneas b) e c) deverá, em todo o caso, ser ponderado o acesso a parte da decisão em causa.

3 - É competente para decidir o pedido de acesso o hierarca que emanou a ordem ou instrução.

4 - Para efeitos da decisão a que se refere o ponto anterior, o magistrado titular do inquérito:

a) Elabora informação sobre a verificação dos pressupostos para o acesso e pronuncia-se quanto ao mérito do pedido;

b) Remete, pelo meio mais expedito, o dossiê de preparação e acompanhamento ao hierarca que emanou a ordem ou instrução, dele devendo constar a informação elaborada e, se necessário, outros elementos que habilitem à decisão.

5 - Da recusa de acesso cabe reapreciação hierárquica para o magistrado hierarquicamente superior.

IV - Impedimentos

O imediato superior hierárquico que, em momento anterior, tenha emanado ordem ou instrução hierárquica que não constitua ato processual em sentido próprio, deve, em caso de intervenção hierárquica nominada no mesmo inquérito (v.g. ao abrigo do artigo 278.º e do n.º 2 do artigo 279.º do Código de Processo Penal), ponderar a declaração do seu impedimento ou pedido de escusa, nos termos estabelecidos no Código de Processo Penal (v.g. quando a ordem ou instrução emitida tenha sido determinante para a conformação do resultado final do inquérito).

V - Comunicações hierárquicas

1 - Nos processos que tenham, ou se preveja que venham a ter, repercussão pública, decorrente, designadamente, da excecional complexidade e gravidade dos crimes e das suas consequências, da particular sensibilidade que revistam em razão da relevância dos interesses envolvidos, da qualidade dos sujeitos e intervenientes processuais (v.g. pessoas particularmente expostas) e da especial vulnerabilidade das vítimas, são objeto de comunicação obrigatória ao imediato superior hierárquico:

a) A instauração do inquérito;

b) Os atos processuais relevantes que tenham, ou se preveja venham a ter, especial repercussão pública;

c) As decisões finais proferidas em inquérito e as decisões finais proferidas nas fases subsequentes do processo.

2 - As comunicações a que se refere o ponto anterior, bem como as efetuadas em observância de diretivas, instruções e ordens previamente emanadas pelas estruturas hierárquicas competentes, ao abrigo dos respetivos poderes legais e estatuários de hierarquia, devem ser registadas e acompanhadas em dossiê, a instaurar ou já instaurado, da titularidade do magistrado hierarca.

VI - Avocação de inquéritos

1 - Os Procuradores-Gerais Regionais, de acordo com as caraterísticas das respetivas Comarcas e Departamentos de Investigação e Ação Penal, ponderarão a emissão de orientações que definam regras de avocação de inquéritos, em conformidade com regras legais estabelecidas no Estatuto do Ministério Público.

2 - Sem prejuízo de outros critérios que se considerem relevantes, designadamente relativos a específicas tipologias criminais ou a exigências de intervenção uniforme, e salvaguardada a avaliação que em concreto seja efetuada sobre a inadequação ou a desnecessidade de avocação, deverão ser ponderadas orientações dirigidas à avocação de inquéritos que correspondam aos critérios estabelecidos no ponto V.1.

VII - Disposições finais

1 - As regras ora adotadas não prejudicam os procedimentos e orientações constantes de outras determinações da Procuradoria-Geral da República antes formuladas e ainda vigentes, com elas devendo, se disso for caso, ser conjugadas, designadamente as determinações constantes das Circulares da PGR n.os 11/1995, 12/1999, 6/2002, 3/2011 e 5/2012.

2 - Revoga-se a Diretiva 1/2020/PGR, de 4 de fevereiro, e todos os instrumentos hierárquicos emitidos por qualquer órgão ou estrutura hierárquica do Ministério Público, de natureza vinculativa ou não, nos segmentos que contrariem ou conflituem com as determinações constantes da presente diretiva.

12 de novembro de 2020. - A Procuradora-Geral da República, Lucília Gago.

Forum Penal: em torno do TCIC, a 25!

 


Regresso e com notícias. O tema é actual e o Forum Penal decidiu trazê-lo à ribalta. A inscrição é livre, o evento terá lugar, já no próximo dia 25, on line na plataforma Teams. A matéria promete polémica: "Em torno do Tribunal Central de Instrução Criminal". 

Quem quiser pode inscrever-se  aqui


Presto!

 


O ano de 2020 está a aproximar-se do fim e eis que surge a 27 de Agosto uma lei, a Lei n.º 55/2020, de 27 de Agosto, a fixar as prioridades para a política criminal no biénio 2020/2022 [está aqui].

Como exprimir prioridades, a valer isso o que seja, implica não só proclamações políticas, mas definições regulamentares e alocação de meios e nada disso vai ser viável em termos de valer a sério para o corrente ano, então o dito biénio [que a serem os números verdadeiros seria um triénio] vai começar em 2021 e esgotar-se em 2022. A lei entra em vigor a 1 de Setembro.

Passo ao lado do que seja prioritário, pois é um catálogo que se alcança pela leitura, valha o que valha na prática o que ali se prevê. 

Anoto, sim, esta regra de preponderância do Ministério Público sobre o poder judicial, característica dos tempos que nos são dados viver [artigo 6º, n.º 5]: « Salvo se o juiz, fundamentadamente, entender o contrário, à atribuição de caráter prioritário na fase de inquérito [pelo MP] deve corresponder precedência na determinação de data para a realização de atos de instrução, de debate instrutório, de audiência de julgamento e na tramitação e decisão nos tribunais superiores, sem prejuízo da prioridade a conferir aos processos considerados urgentes pela lei.»

Os princípios e a falta deles

A comunicação social relata o que diz ter-se passado nos processos criminais como se estivesse lá e os processos criminais fundam-se no que vem publicado na comunicação social. É uma realidade circular, auto-sustentada e que, por isso, defende mutuamente esta relação.

As autoridades inspectivas, reguladoras e disciplinares tomam o que a comunicação social diz estar a passar-se nos processos criminais para inaugurarem procedimentos e, ao limite, tomarem medidas. O círculo dos comprometidos aumenta, a danosidade dos efeitos progride. 

Os visados, receosos amiúde de que seja prejudicial virem discutir na comunicação social o que se passa nos processos criminais em que são intervenientes, esclarecendo, desmentindo, rebatendo, permitem, como o seu silêncio, que fique para a opinião pública aquilo que a comunicação social quer que seja tido como a realidade, aquilo que os processos criminais  permitem que seja assim conhecido.

A tudo isto soma ter-se criado uma lógica perversa, a de ninguém acreditar no que possam dizer e fazerem fé no que a comunicação social afirma estar nos processos.

Claro que a lei tem a boca cheia de sacrossantos princípios como o segredo de justiça, o dever de reserva e o sigilo profissional, e, esquecia-me, a presunção de inocência. São conceitos que se tornaram ridículos, submersos pela velhacaria de um sistema, baseado numa hipocrisia. 

Tenho mantido como regra de vida que o que se passa nos processos é nos processos que se discute. É uma moral decrépita, talvez, mas é a minha. Mas o mundo hoje tornou-se todo outro. Os princípios conservadores tornaram-se fúteis, pois ao atrevimento triunfante é permitida a vitória.

No final, temos as absolvições de pessoas cujas vidas foram entretanto destruídas. A comunicação social rarissimamente as relata e quando o faz é, com frequência, para lançar suspeita sobre a justiça da decisão. 

Nessa altura, a da suspeita sobre o decidido, aqueles que nos processos conviveram com o vazamento para os media do que nos processos supostamente se passava, mesmo quando sofrem o achincalho de verem posta em causa a honorabilidade das suas decisões, ficam inertes. 

No meio deste mundo de faz de conta, há os que fazem estrelato a comentarem os processos dos outros, processos que não conhecem salvo pelo que vem na comunicação social. É uma passerelle de exibicionismos a ajudar a tornar credível o que tanta vezes é aparente.

No final, a justiça tornou-se na degradação cívica dos cidadãos, a pendência do processo a pena infligida. 

Estamos num momento histórico em que ninguém quer saber. Há sempre quem ache que a falta de princípios lhe pode ser útil, para além dos que fazem comércio precisamente da sua ausência.

Estamos a um passo de um certo dia os que se têm calado acharem que é demais. E virem para a praça pública fazer como veem fazer. Nesse dia, os processos passarão a ser em directo através de debates televisivos, cada um a argumentar com a sua parte da verdade. Como nos jogos de futebol, o desafio rude e os comentários ferozes e, em casa, todos serão  juízes de bancada.

Quando for assim, é porque onde não há dever de reserva, não tem de haver segredo profissional, onde a presunção de inocência se tornou uma inutilidade processual, será defendida, com as próprias mãos, no espaço público. O resultado será grotesco de se ver e trágico de se sentir.

O populismo reinante e sua filosofia revanchista e demagógica, sentirá que essa é a sua oportunidade. A anarquia começa com a deslegitimação, prossegue com a relativização de todos os valores. Como se escreveu nas paredes adjacentes ao extinto Tribunal da Boa Hora, como se prenunciando esse advento: «a sentença é uma opinião». E nisso se tornará.

Não sei se deseje estar cá nesse dia. Formei-me a acreditar nas instituições e a respeitá-las, mesmo quando elas não se dão ao respeito. Cansa, porém.

Ministério Público: pecar e absolver-se do pecado

O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.05.2020 [proferido no processo n.º 95/19.3JAPRT-C.G relator Paulo Serafim, texto integral aqui] trouxe-me a memória de uma das derrotas que lamento ter sofrido enquanto jurista: não por ter sido eu a perder, sim por continuar a achar que foi a Justiça quem perdeu. O relato que no aresto se faz do tema, por citação à anotação efectuada no Código de Processo Penal Anotado por Simas Santos e Leal Henriques é fiel, e por isso permito-me citá-lo:

«Assim, M. Simas Santos e M. Leal Henriques, in "Código de Processo Penal Anotado", I Volume, 2ª edição, 2004, Rei do Livros, pág. 596, referem que, na Comissão Revisora da primitiva versão do Código, durante a apreciação do artigo 118º, «o Dr. J. A. Barreiros propôs que se lhe aditasse um n.º 4, onde se impusesse que as nulidades e irregularidades fossem declaradas pelo juiz, sem prejuízo da prévia revogação do acto e sanação dos seus efeitos pela entidade que o tivesse praticado.
Face a tal proposta, o Procurador-Geral da República considerou ser dever e faculdade do M.º P.º declarar essa nulidade na fase do inquérito, sem necessidade de intervenção do juiz, mal se compreendendo que o M.º P.º, numa óptica de defesa dos direitos fundamentais do arguido, não pudesse pôr fim a qualquer nulidade.
Na mesma linha se posicionou Figueiredo Dias, acrescentando que se tratava aqui não de uma declaração formal de nulidade, mas de uma revogação, uma sanação, sendo errado sustentar-se que ao reconhecer essa faculdade ao M.º P.º, ficaria o arguido impedido de apresentar a sua defesa, uma vez que o Código prevê altura própria para a arguição de nulidades (al. c) do n.º 3 do art.º 120.º).
Em resultado deste entendimento e da sugestão do Procurador-Geral da República para que, a fim de se evitarem confusões, se eliminasse a menção ao juiz feita no art.º 122.º, n.º 3, o mesmo Prof. Figueiredo Dias adiantou que no caso do art.º 122.º n.º 3 há uma formalização na declaração da nulidade, ao passo que no inquérito apenas existe o acto de pôr cobro aos efeitos de uma nulidade processual no cumprimento de um dever próprio do M.º P.º, mas sem materialização em qualquer acto formal de declaração de nulidade (auto-correcção).
E termina afirmando que a formalização durante o inquérito da declaração de nulidade de um acto descaracterizaria o sistema do Código, possibilitando uma fase de recurso, sendo certo que no inquérito se reclama e não se arguem nulidades, arguição que só ocorre depois do inquérito e perante o juiz.»».

A questão configurou-se-me suficientemente clara na altura e por isso ma bati pela solução que ali está expressa. Isto com uma rectificação relevante: é que o debate não ocorreu na Comissão que redigiu a versão inicial do Código de Processo Penal, sim a Comissão que em 1995 ensaiou a sua formulação. Porque na primeira, ficou claro que a competência para declarar nulidades cabe ao juiz e tão só ao juiz. Para isso basta ler o n.º 3 do artigo 122º do diploma.
Por isso, quando na Comissão ulterior, que igualmente integrei, ante prévias arremetidas do Ministério Público no sentido de que lhe caberia também competência para decidir temas de nulidade em sede de inquérito, propus que o assunto ficasse resolvido em sede da norma clarificadora, tive de enfrentar dois argumentos expressos pelo Presidente da Comissão, o Professor Figueiredo Dias: primeiro, de que, estava clara a competência judicial ; segundo o que que a comissão revisora não tinha como função redigir clarificações.

Guardo na memória o argumento que o sucinto da impropriamente citada acta não reflecte: no dia em que foi permitido ao Ministério declarar a nulidade dos seus actos [e concomitantemente o poder de se negar a declará-la], o que significa sem recurso, estamos a dinamitar o regime de garantias processuais que o Código de Processo Penal visou consagrar. E foi isso mesmo que foi decidido e ficou: sem atrevimento de mudar a letra do Código, abriu-se a porta a que a jurisprudência se encarregasse de consagrar o que não estava consagrado.

Vencido mas não convencido, ficou consagrada a tese que é, afinal, a do apagamento do poder judicial, o que legitima a conclusão legal do acórdão citado:

«I - Durante o inquérito, o Ministério Público e o juiz de instrução têm ambos competência para declarar um ato processual inexistente, nulo ou irregular ou uma prova proibida. Todavia, esta competência concorrente é balizada em função da estrutura acusatória do processo penal, que se estriba na separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas e que se desenvolve mesmo na fase de inquérito.
«II – Em conformidade, durante o inquérito, o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade de atos da sua competência e o magistrado do Ministério Público só pode conhecer da invalidade de atos da sua competência, ou seja, de atos processuais por si presididos ou delegados a órgão de polícia criminal.
«III - Cabendo ao Ministério Público, enquanto dominus do inquérito, a competência para apreciar da validade da apreensão de objetos levada a cabo por órgão de polícia criminal, impunha-se que fosse a digna magistrada do MP a quem foi dirigido o requerimento da arguida a alegar a irregularidade do despacho por ela proferido a validar a apreensão realizada, a decidir, também por despacho (cf. art. 97º, nº4, do CPP), sobre o mérito de tal arguição, e não, como sucedeu, o Mmo. juiz de instrução, que não dispunha para tanto de competência legal atribuída.»

Claro que a fundar a teoria em causa, é citado o princípio do acusatório como legitimador da solução, como se a solução oposta à vitoriosa, na essência a que sugeri, desse fundamento a uma intromissão judicial num âmbito que tem de ser privativo do Ministério Público. É claro que quem isto defende esquece duas circunstâncias: primeira, a de que se trata não de um juiz a controlar ou a dirigir o inquérito, usurpando a competência do Ministério Público, sim de um juiz a garantir que o inquérito cumpre a legalidade e as nulidades sejam declaradas com possibilidade de impugnação; segundo que, ao limite, a tese em causa daria fundamento a que houvesse quase nenhum juiz no inquérito e o Ministério Público, enquanto "dono" do mesmo, tivesse o poder para, em regime auto-centrado, praticar a totalidade dos actos, pois já tem o direito a pecar e o poder de se auto-absolver do pecado.