Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Arresto preventivo: critério conforme o requerente


Haja idêntico critério para os arrestos preventivos requeridos pelo Ministério Público, em que a evidência do receio de perda de garantia patrimonial é quase feita decorrer da indiciação de crime de cunho patrimonial, sobretudo quando seguido de branqueamento, numa lógica de que este acto de ocultação faz presumir outros que impeçam o ressarcimento do dano ou a recuperação dos activos a declarar em perda.

Tratando-se de arresto requerido por lesado, mas estatuindo entendimento que não exclui, nem excluo, possa ser extensível sejam quem for o requerente, sentenciou o Tribunal da Relação de Guimarães no seu acórdão de 10 de Maio de 2021 [proferido no processo n.º 1492/17.4T9VRL-A.G1, relator Paulo Serafim, texto integral aqui], com apoio em outra jurisprudência: 


«I – Ressuma do disposto conjugadamente nos arts. 391º e 392º, nº1, do CPC, ex vi do art. 228º, nº1, do CPP, que os requisitos para o decretamento do arresto preventivo são: a) a probabilidade da existência do crédito; b) comprovação de justo receio de perda da garantia patrimonial para satisfação daquele crédito.
«II – A verificação do justo receio de perda da garantia patrimonial pressupõe que se alegue e prove que o devedor/requerido já praticou ou se prepara para praticar actos de alienação ou oneração relativamente ao património que possui, legitimando tal postura que se conclua, face às regras da experiência e da lógica, que se prepara para subtrair os seus bens à acção dos credores, assim criando o perigo de tornar impossível ou assaz difícil a cobrança do provável crédito constituído. Não se exige que a perda da garantia se torne efetiva, mas apenas que haja um receio justificado de que tal perda virá a ocorrer.
«III –O requerente tem o ónus de alegar e provar, ainda que indiciariamente, factos concretos que revelem o justificado receio à luz de uma prudente apreciação, não bastando o receio subjectivo, fundado em simples conjeturas ou generalidades, nem a mera recusa de cumprimento da obrigação.
«IV – In casu, não é alegado no requerimento inicial qualquer facto concreto suscetível de, a provar-se, legitimar um juízo positivo sobre a provável e iminente alienação ou oneração de património da Requerida e consequente perigo fundado de perda da garantia patrimonial das indiciárias credoras, risco sério que o decretamento do procedimento pretende acautelar.
«V - Não estamos perante uma deficiente alegação ou mera insuficiência dos factos invocados relativamente ao preenchimento do requisito do justo receio da perda da garantia patrimonial a impor ao juiz o convite ao aperfeiçoamento do alegado, mas sim perante a inexistência de tal alegação, pelo que nada há a suprir.»

A roda das horas


Se há uma regra de comportamento deste blog é ter-se tornado intermitente. São circunstâncias da vida do seu autor que determinam tal modo de ser.

Excesso de trabalho na profissão, o que há pudor em dizê-lo numa altura em que, infelizmente, muitos colegas estão à míngua de oportunidades  para satisfazerem os seus encargos, esse excesso é causa directa, mas aparente, afinal.

Sucede que, servida hoje por meios electrónicos, um computador com 16 GB de RAM e 2 TB de disco, com o arquivo alojado numa "nuvem", todos os documentos digitalizados, assinatura de tantas bases de dados que alojam informação relevante e com acesso on line, em suma, com a tecnologia supostamente a ajudar, tornei-me, e sei que nos tornámos escravos da profissão.

Há, evidentemente, a obsessão twitteriana de consultar em cada momento o smartphone para actualizar a informação sobre o que se passa no mundo, para além do nosso pequeno mundo, as newsletters que, uma a uma, se vão assinando, tão indispensáveis parecem, e que começam pela madrugada ao trazerem-nos as capas dos jornais e fecham à noite com o resumo do dia e inundam o dia com actualizações permanentes. Um amigo meu envia-me, em lote, dezenas de jornais, de que não leio um que seja, pois ler exigiria o dia inteiro. E agradeço muito, sem confessar-lho.

Há também o sem descanso das mensagens que chegam a todas as horas, dia ou noite, pelos mais diversos canais, do email, ao Whatsapp, deste ao Signal, pelo Telegram, pelo Skype, até pelo Messenger. E evito os podcasts, há semanas que não vejo televisão, raramente ouço notícias na rádio, na imprensa vejo o mais directo e passo adiante, poupando-me aos comentadores enciclopédicos. 

Não é falta de interesse cívico, é apenas o dia ter vinte e quatro horas, cada hora sessenta minutos e, cada vez mais, cada minuto ter mesmo e apenas sessenta segundos. A angústia é eu ter setenta e dois anos já gastos.

Ante tudo isto, troquei as horas do dia, dei comigo a acordar às quatro da manhã, qual vigília monástica, sem cantar matinas, em alguns dias a trabalhar até perto das quatro, qual coruja noctívaga de triste piar.

E, no entanto, ficam por ler os livros que vou comprando, as revistas que assino, por escrever os livros de há muito iniciados, até os artigos que me atrevi a prometer. A ausência aqui é, pois, parte de uma insuficiência maior.

Claro que, neste admirável mundo novo, há o computador a fazer longas actualizações, o sistema operativo a crashar por conflitos de software, a internet em baixa, a espera até restabelecer o sinal e até lá o pavor de não ter feito um backup.

Mas há sobretudo um inefável não sei o quê a ter tornado a vida insuportável. Faço listas, planos, programo, divido as tarefas pelos dias, dentro destes o trabalho pelas horas. E passo cada vez mais expectativas para o dia seguinte, promessas para logo que possível.

Comprei um fantástico livro do Umberto Ecco intitulado A Obsessão das Listas, magnificamente ilustrado. Folheei-o sem ler. Está ali, na estante, a servir de consolo.

Outrora a chegada do correio marcava o dia, a carta em papel era a má consciência do dever por cumprir. Além disso, era tudo lento. Tinha uma máquina de escrever, um telefone analógico em que se discava o número. Assinava fichas com jurisprudência, mensais, em cartolina azul, colava as actualizações aos códigos, cortando fotocópias da folha oficial e anotando à mão o sentido da mudança.

Tínhamos, porém, tempo, mais tempo.

A contemporaneidade é andar mais depressa num lugar cada vez mais pequeno, como ratos enlouquecidos na roda da incessante busca.

Outro dia, num julgamento, alguém, não importa quem e tão amigo foi, veio amigavelmente fazer-me saber que lia este espaço. E animar-me a que continuasse. Quase envergonhado terei murmurado: assim tenha oportunidade.

É claro que as redes sociais são espaços de liberdade; quando temos leitores há, porém, um difuso dever de corresponder à gentileza, sobretudo quando o que escrevemos visa dar aos outros o que encontrámos. 

Vim, por isso, aqui, neste Domingo. 

A inércia soma-se ao cansaço. Não sei sobre o que escreverei. Outra faceta da actualidade é parecer que está tudo dito, na variante perversa de aparentar ser inútil dizer seja o que for. Ante um mundo tão vocal, o silêncio tornou-se refúgio ou ao menos sinal de boas maneiras.

A Assassina da Roda


«Sob o título "A Desordenada Paixão de Apetecer", escrevi este texto para a folha de sala da peça de teatro "A Assassina da Roda", baseada num romance escrito por Rute de Carvalho Serra, com encenação e interpretação de Maria Henrique. O contexto da narrativa, a condenação pela Casa da Suplicação, em 1772, de Luiza de Jesus, acusada de ter morto 33 crianças retirada da Roda dos Enjeitados de Coimbra. Assisti a noite passada ao espectáculo no Teatro da Trindade. Interpretação magistral. 

«Tudo se move num mundo de horror, o mundo dos expostos e dos enjeitados.
Horror, o dos enjeitados, «filhos da desgraça», frutos indesejados, tropeços à conveniência, sobrepesos à miséria de quem os deu à luz.
Horror, o do seu abandono, condenados à sorte logo no acto de terem nascido, a somarem aos que nem chegaram a ter vida própria.
Horror o que mostram os números sobre as taxas de mortalidade destes desgraçados, tomando como exemplo a cidade de Lisboa e, nesta, o Hospital Real de Todos os Santos, que D. João II mandara erigir em 1492, depois de autorização do Papa Sisto IV, e do qual fazia parte um “criandário” destinado precisamente a receber os enjeitados, incorporando o Hospital do Colégio dos Meninos Órfãos, criado pela mulher de D. Afonso III, e cuja gestão estava confiada, desde 1530, por édito de D. João III, à Congregação dos Cónegos Seculares dos Lóios:
«No ano de 1743 entraram no Hospital Real de todos os Santos desta cidade, pela roda e pelo portal da casa dela, 1.038 crianças expostas, a saber 545 meninos e 493 meninas; com 1.717 que no princípio se estavam criando, faz o número de 2.755. Faleceram das mesmas crianças, na casa da roda, e das que se tinham dado a criar, 778.»
Para tudo isto confluíam vários factores, desde logo a noção de legitimidade da filiação, apenas reconhecida quanto àqueles que fossem fruto de matrimónio legalmente reconhecido, o que logo escorraçava para fora da lei quem não tivesse essa origem tida por legítima.
Nasce aí o conceito de enjeitados, de que é espelho a lei máxima da época, concretamente as Ordenações Filipinas (Título 88, § 11), as quais, codificando a legislação antecedente, estavam em vigor desde 1603, sobrevivendo mesmo à Revolução de 1640. E que, nesta parte, reproduziam quanto constava já das Ordenações Manuelinas, suas antecedentes (Título 67, § 11), publicadas entre 1512 e 1514 e que em 1521 substituiriam aquelas.
Em tal corpo normativo provia-se sobre os enjeitados, sintomaticamente na parte em que tratava dos órfãos, como se de uma mesma categoria se tratasse, e de facto, pela antiga legislação, os expostos eram considerados órfãos e, terminada a sua criação nas Casas de Caridade, eram entregues aos Juízes do Órfãos para lhes dar tutor, o qual devia mandar-lhes ensinar qualquer ofício.
E assim rezava a lei sobre «as crianças, que não forem de legítimo matrimónio, forem filhos de alguns homens casados, ou de solteiros» provendo que: «[…] primeiro serão constrangidos seus pais que os criem, e não tendo eles por onde os criar, se criarão à custa das mães. E não tendo eles, nem elas, por onde os criar, sejam requeridos seus parentes, que os mandem criar. E não o querendo fazer, ou sendo filhos de religiosos, ou de mulheres casadas, os mandarão criar à custa dos hospitais, ou albergarias, que houver na cidade, vila, ou lugar, se tiver bens ordenados para a criação dos enjeitados; de modo que as crianças não morram por falta de criação. E não havendo aí tais hospitais e albergarias se criarão à custa das rendas do concelho. E não tendo o concelho rendas por que se possam criar, os Oficiais da Câmara lançarão finta pelas pessoas, que nas fintas e encarregos do concelho hão-de pagar».
É, pois, a norma legal o ponto interessante de observação relativamente a muitos dos conceitos da época.
Primeiro, o conceito de enjeitado, amálgama que abrangia, desde logo, a filiação fora de matrimónio, pelo que o enjeitamento era, antes de ser acto individual de repúdio, acto legal de exclusão.
Depois, a ideia de que homem casado poderia ser obrigado a sustentar seu filho ilegítimo, mas sendo filho de mulher casada já a lei não criava sobre elas tal dever, empurrando desde logo a obrigação de sustento e “criação” para as instituições públicas, tal como no caso de filhos de religiosos.
Mas não se ficava por aqui o preceituado legal, pois havia que levar em conta o estatuído nas leis que completavam as Ordenações Filipinas e muitas delas posteriores até à Revolução de 1820.
De acordo com as normas jurídicas de então, a criação dos expostos era entregue, como vimos, a Casas de Caridade, à custa do erário público, mas chegados aos sete anos eram entregues aos Juízos dos Órfãos que os encaminhavam ou para famílias de acolhimento ou para o mercado de trabalho, conforme o lanço que os abrangesse.
A prevalência do encaminhamento para o mercado de trabalho tornou-se clara, e de tal modo que determinação legal, promulgada pouco antes da data dos actos de Luiza de Jesus, determinaria que em relação a estas crianças, sendo difícil arranjar-lhes emprego, poderiam ser repartidas por entre os lavradores, que até aos 12 anos não lhe pagavam soldada, tendo assim o benefício desta mão de obra infantil gratuita, dando-lhes educação, sustento e vestido (Alvará de 10 de Maio de 1783 e posterior Decreto de 6 de Dezembro de 1802).
Relegados todos eles a serem criaturas de segunda, sujeitos à triste sina, «os de cor preta ou parda» eram, porém, declarados “ingénuos”, querendo isso dizer, considerados originariamente livres e não meramente “libertos” (Alvará citado § 7, o qual seria revisto mais tarde por provisões de 26 de Junho de 1815 e de 22 de Fevereiro de 1823), sendo que só em 1846 se definiu que os expostos filhos de africanos livres não seriam escravizados (Alvará de 11 de Fevereiro de 1846).
Institucionalizados, os enjeitados estavam à mercê de abusos e do aproveitamento das suas pessoas e de tal modo para fins tidos por «imorais» que um Alvará da Rainha D. Maria I, de 12 de Fevereiro de 1783, «dado em Salvaterra de Magos», determinou que os mordomos da Casa dos Expostos da cidade de Lisboa promovessem, admoestando ou mandando prender, pelo máximo de um mês, aqueles que procurando os internados «para o honesto trabalho e serviço», no entanto, «se apartam da honestidade e modéstia com que devem sempre proceder, sendo aliciadas por pessoas que as pervertam ou procuram perverter».
Subentende-se na contida linguagem legislativa do que se tratava, afinal.
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É neste universo de sordidez pavorosa que a “Roda” surge como caridade entendida à maneira da época: caridade, porque tentativa de combater o infanticídio e o aborto, abrindo porta a que fossem recebidos, de modo anónimo, em instituição que era suposta assumir o encargo de cuidar da sua sobrevivência.
Só que, na prática, efeitos perversos surgiam a tornar abjecção o que teria na origem outra intenção, sendo lancinante a situação que se vivia em meados do século dezoito.
Logo o comércio das amas, fornecedoras de «leite mercenário», como numa expressão dorida lhe chamou Júlio Dantas, neste seu trecho que é o retrato tremendo do que era a repelência feita sistema:
«A Mesa dos Inocentes era o último recurso para o leite mercenário das amas. Algumas delas, para dobrarem a pataca de prata da criação de cada ano, saíam do Hospital Real com duas crianças penduradas dos peitos, levando, para o canto hediondo da sua alfurja de miséria a flor das suas vidas. Se alguma das crianças morria, a Casa da Roda lá estava, chilreando; trilando como um grande ninho; iam buscar outra. Se tinha a desgraça de resistir e de viver a criação estava paga até aos 7 anos.»
Mas não se quedava por aqui a triste sina destes deserdados, pasto de comércio e de exploração mercantil, porque confiados a este amparo de aleitação, ficavam, quantas vezes, à mercê do infortúnio, em perigo da própria sobrevivência.
Retomando a dura denúncia de Júlio Dantas:
«Depois, deixada as mantilhas e o leite das amas, o Calvário dos expostos começava. Se elas os queriam ainda, podiam tê-los em casa mais cinco anos, sem receber criação e sem pagar soldada. Mas aos doze, o juiz dos órfãos arrematava-os a quem desse mais por eles; e se havia algum enjeitado enfermiço ou débil que não tivesse lanço, animal de trabalho que ninguém quisesse, boca inútil que ficasse pesando no Cofre do Povo, a Roda enjeitava-o pela segunda vez, e lá ia, pobre Lázaro infantil, comer à Cadeia do Tronco na gamela dos presos, ou lamber com os cães na portaria de S. Bento da Saúde, o resto da sopa dos mendigos».
Enfim, visando pôr termo ao criminoso abandono de recém-nascidos, a Roda veio, afinal, permiti-lo a coberto do anonimato, porque nenhum esforço era feito para localizar os progenitores, alguns, aliás, eclesiásticos, outros de linhagem, cuja devoção e fama pública eram assim defendidas pelo manto da hipocrisia.
E até as próprias mães naturais os levavam para os recuperarem aos sete anos. Nasce aí a prática dos “sinais”, menções escritas ou físicas, apostas por vezes na própria roupa amortalhada que permitiria identificar aquela criança que ali fora deixada.
Era, enfim, o tentar evitar a morte certa através da escassa probabilidade de sobrevivência, a Roda tida, numa equação cruel, como o mal menor.
Local de acolhimento para as crias que a miséria não conseguia sustentar, era também lugar de albergue esconso para os filhos indesejados, frutos de amores clandestinos ou de abusos que assim se poderiam ocultar.
Para além disso, para os poderes públicos, era uma grosseira tentativa de inverter o decréscimo de população.
E, enfim, o encargo orçamental. Por Alvará de D. José de 11 de Fevereiro de 1775, manda-se cortar o tempo de permanência no Hospital dos Expostos que até aí era de nove anos e que somavam mais de novecentos por ano a somar aos «mais de quatro mil com trato sucessivo».
Legislação cruel determinava, entre outras cláusulas de exclusão, que «nenhum exposto, que exceder a idade de sete anos, possa entrar no Hospital por este título nem nele possa ser admitido como hóspede ou outro título que não seja o de artífice ou servente.»
Foi neste contexto que, a 10 de Maio de 1783 o Intendente Geral da Polícia Diogo Inácio de Pina Manique, fundador da Casa Pia, deu à Roda foros de coisa oficial, através de circular, ordenando a
sua abertura em todas as «cabeças de comarca» de Portugal.
A Intendência Geral da Polícia fora criada pelo Alvará com força de lei de 25 de Junho de 1760, para coordenar as atribuições de polícia exercidas pelos magistrados judiciais. Dela dependia a Real Casa Pia, criada por Decreto de 3 de Junho de 1780 e responsável pela integração social e profissional de jovens com actividades irregulares ou marginais.
Foi seu primeiro Intendente o desembargador Inácio Ferreira Souto, que desempenhou um papel fundamental na perseguição à família dos Távoras. Diogo Inácio de Pina Manique seria nomeado em 1780, pela Rainha D. Maria I, e manter-se-ia em funções até 1805. A instituição seria extinta a 8 de Novembro de 1833.
Por todo o país se disseminam, em alguns locais com notável atraso, e sucessiva legislação tentou dar ordem à instituição.
À Circular de 10 de Maio de 1783 sucederam outras, bem como alvarás régios, como, por exemplo, a 31 de Março de 1787, a 5 de Junho de 1800 e 9 de Novembro de 1808, tudo se prolongando até quase ao início do século vinte.
Ao chegar a Revolução de 1820, com ela uma mescla de liberalismo e das ideias que na França após 1789 haviam levado ao Terror pela guilhotina, tida esta por forma “humanitária” de pena de morte, a situação destas crianças era lancinante.
No seu acolhimento cumpria-se o ritual: recebidas pela “ama rodeira”, eram limpas e registadas com detalhe e baptizadas, se não houvesse sinal de o terem sido, e enfim confiadas a amas externas para que delas cuidassem.
Amas mal pagas, com remunerações amiúde em atraso, fazendo daquela criação modo de vida, eram mãos que valiam o que valesse a moral e o espírito de compaixão de cada uma.
Em 1823, números relativos aos expostos da cidade do Porto mostravam que dos 31.257 enjeitados que haviam entrado na instituição entre 1803 e 1822 haviam morrido 20.975; em Lisboa os valores não eram muito diferentes. Facto é que foi este século um dos períodos mais negros no que respeita ao abandono infantil e em que as taxas de mortalidade atingiam valores que chegaram a mais de 90%.
A Roda seria formalmente extinta apenas a 21 de Novembro de 1867, entrando esta determinação em vigor no ano seguinte, mas a sua implementação materializada por fases, tanto que em 1888 ainda se tentava dar execução a uma alternativa a este modelo em prol de uma nova ideia assistencial, através dos hospícios, agora custeada pelas recém-criadas Juntas Gerais de Distrito.
A lógica subjacente alterou-se, pelo menos, em uma parte: terminou o anonimato do abandono, obrigando-se à identificação da progenitura.
Como contraponto a este sistema, surgiu outro que o penalizava: é que a recepção das crianças que fossem levadas por mão identificada, ficava dependente de aceitação, o que excluía do acolhimento uma parte não despicienda do total das que ali eram presentadas.
Mas regressemos ao tempo e ao local dos crimes de Luiza de Jesus.
Neste covil de infâmias, eis-nos em Coimbra, lugar de tal horror onde em 1785 seria construído o Cemitério da Roda quando o sepultamento dos enjeitados atingia foros de escândalo, com os bebés a serem diariamente enterrados junto à igreja de S. Tiago, na zona da praça do mercado de legumes, carnes e peixes, «aonde por mal sepultado, em termos que por muitas vezes têm sido descobertos por vários animais».
É por aqui que o crime individual se soma ao crime da sociedade: aquele, repugnante pela violência do infanticídio, este, nojento pelo comércio da vida, pela morte lenta a que condenava esta legião de crianças.
A história de Luiza de Jesus é parte de tudo isto.
Confessando, sob tormentos, o infanticídio de 28 crianças, teriam sido encontrados 33 corpos que foram levados à formação da sua culpa.
Do seu caso cura o livro A Assassina da Roda, de Rute de Carvalho Serra, jurista, especializada em criminologia.
Trouxe-nos a narrativa como romance histórico, contando a história no contexto de outras histórias de personagens da época, que vão desfilando como seu cenário contextual. E eis o que chega agora aos palcos, adaptação da própria autora e interpretação de Maria Henrique.
Visto do ângulo ficcional, lido nos documentos da época, sentido agora pelo teatro, o episódio traz à tona aquela mescla de ideias e sentimentos que determinam a verdadeira e legítima compreensão histórica.
Com isto termino esta breve nota de apresentação.
No imediato, o horror dos factos, a morte de inocentes, alguns desossados, misto de «ambição e fereza» como lhe chamou a sentença que a condenou, ao «monstro de coração tão perverso, e corrompido, de que não haverá facilmente exemplo no presente século».
Ao contraponto dessas mortes infames, a pena de talião da morte da infanticida no patíbulo, sujeita à pena capital, esta cometida com atrocidade.
A 1 de Julho de 1772, após três meses de detenção, os juízes da Casa da Suplicação em Lisboa sentenciaram, em recurso, a infanticida a desfilar com baraço e pregão pelas ruas da cidade, ou seja, levando ao pescoço a corda em que seria enforcada e com um oficial de justiça a proclamar os crimes e as penas, para que disso ficasse clamor público.
A condenação era a de que morresse, mas não sem que antes lhe decepassem as mãos e «atenazada» fosse, o que vale dizer queimada com um ferro em brasa; morte sim, enfim, não pela sufocação de uma corda que a asfixiasse, mas pelo garrote que a isso juntava a lenta perfuração do pescoço.
E, enfim, «para que nunca mais houvesse memória de semelhante monstro» seria queimada e as cinzas dispersas, para que não pudessem ser recolhidas.
Condenação no plano civil, era também sentenciada no plano religioso, porquanto, incinerada e dispersas as cinzas, ficaria privada de enterro religioso.
Juntando à infâmia da pena, somava-se a sua condenação nas despesas do processo, calculadas em cinquenta mil réis.
Choca à nossa sensibilidade esta crueldade da Justiça.
E, no entanto, se pode ser considerada pena mais severa aplicada a uma mulher de que há memória em Portugal, não foi caso único.
O registo da pena capital impressiona até pelo que abrangia e pelo modo como se materializava.
Dois anos antes, tinham sido enforcados o Juiz dos Órfãos de São Sebastião da Pedreira e o seu escrivão, em 1769 outro juiz e seu escrivão por furto do «cofre das décimas». No ano de 1773 um
armador da Patriarcal de Lisboa, sentenciado por lançar várias vezes fogo à Igreja, foi queimado vivo. Acusado de ter atentado contra vida do Marquês de Pombal, um cidadão foi atado a quatro cavalos, arrastado, despedaçado, cortadas as mãos e, enfim, queimado. Em 1781 dois espanhóis são enforcados e esquartejados, por mortes e roubos.
Também mulheres não foram poupadas à morte com suplício antes da execução. Assim, em 1725 uma escrava acusada de matar o seu senhor com veneno; e no próprio ano de 1772, outra escrava que ajudara a matar o seu amo foi atenazada, cortadas as mãos e depois de morta, a cabeça decepada antes de ser enforcada.
A exposição da cabeça cortada fazia parte do ritual macabro visando dissuadir e prevenir pelo pavor.
Justiça de classe, a este cortejo de sofrimento escapavam, salvo excepções, de que os Távoras foram cruel demonstração, os de condição nobre: a decapitação a que eram sujeitos era tida por forma de compaixão, porque instantânea a dor.
Visto hoje, perguntamo-nos se tudo isto não poderia ter sido tratado como caso de loucura e, por isso, com a terapia psiquiátrica. Nada disso existia então. Vigiar e punir eram então e foram-no durante décadas, realidades indissociáveis, os possuídos de patologias da mente confundidos até com os que, em pecado, pela feitiçaria e bruxaria atentavam contra a religião. E essa a pista, qual ritual satânico de magia negra, que o livro de Rute Serra nos deixa.
História de malvadez, de malignidade, de cadeias de união no sofrimento, paixão tumultuosa, «essa desordenada paixão de apetecer», enfim, é toda uma sociedade que é assim desventrada.
Ao chegar ao fim, exaustos, os sentidos, leitores e espectadores anseiam por um momento que lhes restitua na vida a bondade, à alma, a doçura da paz. Breve intervalo seja.»

Ocultação de riqueza: a proposta da ASJP

 


A Associação Sindical dos Juízes Portugueses formulou uma proposta de criminalização da ocultação da riqueza durante o período de exercício de altas funções públicas. O texto pode ser lido aqui.

Trata-se de propostas de redacção relativamente à  Lei 52/2019, de 31 de Julho [cujo texto pode ser consultado aqui], complementadas com considerações sobre a necessidade, oportunidade e constitucionalidade dos temas subjacentes à noção que visa ser alternativa à derrotada ideia da criminalização do enriquecimento ilícito, que fora reprovada pelo Tribunal Constitucional [Acórdão 377/2015], como se pode ler aqui.

O texto está estruturado numa linha de diálogo crítico ante a iniciativa governamental consubstanciada na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção [2020-2024, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 37/2021, RD nº 66, Série I, 6ABR2021], em cuja discussão pública a ASJP participou [mediante documento entre na Assembleia da República a 16 de Outubro de 2020], quer pela recuperação pública que o dito órgão associativo lançara em 2011 através de um jornal diário.

Clarificando a noção de «altas funções públicas», o documento refere que com ela se abrange os «sujeitos das obrigações declarativas da Lei 52/2019, de 31 de Julho», ou seja:

Artigo 2.º
Cargos políticos

1 - São cargos políticos para os efeitos da presente lei:
a) O Presidente da República;
b) O Presidente da Assembleia da República;
c) O Primeiro-Ministro;
d) Os Deputados à Assembleia da República;
e) Os membros do Governo;
f) O Representante da República nas Regiões Autónomas;
g) Os membros dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas;
h) O

s Deputados ao Parlamento Europeu;
i) Os membros dos órgãos executivos do poder local;
j) Os membros dos órgãos executivos das áreas metropolitanas e entidades intermunicipais.
2 - Para efeitos das obrigações declarativas previstas na presente lei, excecionam-se do disposto na alínea i) do número anterior os vogais das Juntas de Freguesia com menos de 10 000 eleitores, que se encontrem em regime de não permanência.
3 - Para efeitos das obrigações declarativas previstas na presente lei são equiparados a titulares de cargos políticos:
a) Membros dos órgãos executivos dos partidos políticos aos níveis nacional e das regiões autónomas;
b) Candidatos a Presidente da República;
c) Membros do Conselho de Estado;
d) Presidente do Conselho Económico-Social


Artigo 3.º
Altos cargos públicos

1 - Para efeitos da presente lei, são considerados titulares de altos cargos públicos:
a) Gestores públicos e membros de órgão de administração de sociedade anónima de capitais públicos, que exerçam funções executivas;
b) Titulares de órgão de gestão de empresa participada pelo Estado, quando designados por este;
c) Membros de órgãos de gestão das empresas que integram os sectores empresarial regional ou local;
d) Membros de órgãos diretivos dos institutos públicos;
e) Membros do conselho de administração de entidade administrativa independente;
f) Titulares de cargos de direção superior do 1.º grau e do 2.º grau, e equiparados, e dirigentes máximos dos serviços das câmaras municipais e dos serviços municipalizados, quando existam.
2 - Para efeitos das obrigações declarativas previstas na presente lei são equiparados a titulares de altos cargos públicos:
a) Os chefes de gabinete dos membros dos governos da República e regionais;
b) Os representantes ou consultores mandatados pelos governos da República e regionais em processos de concessão ou alienação de ativos públicos.

A intervenção da ASJP segue num caminho diverso daquele que vinha sendo proposto quando das precedentes iniciativas quanto à criminalização do então denominado enriquecimento ilícito, visando claramente evitar as questões de constitucionalidade que se haviam suscitado a propósito desta figura. A propósito consta do documento:

«Parece razoavelmente evidente que os comportamentos potencialmente corruptivos relacionados com o exercício de altas funções públicas, independentemente da sua tipificação penal, apresentam, em abstracto, um denominador comum: aquisição e ocultação de património incongruente com os rendimentos conhecidos no período coincidente com o exercício das funções. É do senso comum que as pessoas que adquirem rendimentos ou património por via da prática de crimes, não o declaram às autoridades nem os colocam em posição de serem facilmente detectados. Não é, por isso, temerário estabelecer uma relação causal de alta probabilidade entre a ocultação intencional de riqueza adquirida naquele período e a existência uma prévia acção ilícita. Por outro lado, conhecem-se as dificuldades de investigar e provar a prática de crimes de corrupção e conexos no exercício de altas funções públicas. É reduzido o número de casos investigados e punidos, quando comparado com a percepção existente sobre a dimensão do fenómeno. Daí resulta que as normas penais incriminadoras e a multiplicação dos tipos legais para prevenir e reprimir comportamentos dessa natureza são reconhecidamente tidos como ineficazes. Foi precisamente para superar esta dificuldade que surgiram as tentativas anteriores de criminalização do enriquecimento ilícito. Sendo razoável supor, com base nas evidências do senso comum, a existência de um nexo causal entre os actos corruptivos e o enriquecimento incongruente e não sendo viável, em muitas situações, punir o fenómeno pela efectiva comprovação da ilicitude do acto causal, procurou-se fazê-lo através da incriminação do seu resultado objectivo. Essa não é, contudo, uma via constitucionalmente aceitável. O Tribunal Constitucional, através dos acórdãos nºs 179/2012 e 377/2015, julgou inconstitucionais as normas que visavam criminalizar o enriquecimento ilícito ou injustificado, aprovadas, respectivamente, pelos Decretos da Assembleia da República nºs 37/XII e 369/XII. Para o Tribunal Constitucional uma norma dessa natureza (i) não respeita o princípio da proporcionalidade, por ausência de bem jurídico definido na esfera de protecção da norma e por violação do princípio da subsidiariedade do sistema penal; (ii) não respeita o princípio da legalidade, pois não identifica a acção ou omissão proibida e (iii) não respeita a proibição da presunção de inocência, nos segmentos da inversão do ónus da prova, do in dubio pro reo e do direito ao silêncio e à não auto-incriminação. Deve, pois, ter-se como adquirida e indiscutível a inconstitucionalidade de qualquer solução de criminalização do enriquecimento ilícito ou injustificado, com o sentido das anteriores tentativas legislativas.»

Perante tal perspectiva [a de não aceitar qualquer solução que assente na criminalização], sugere a Associação;

«O sentido da proposta da ASJP é, portanto, outro. Uma proposta que, a bem da necessidade de clarificar conceitos e não inquinar a discussão pública, abandona de vez designações como “enriquecimento ilícito”, “enriquecimento injustificado” “enriquecimento incongruente” ou outras equivalentes. O que está em causa, primordialmente, não é apontar o foco para o desvalor da ilicitude do enriquecimento no exercício de altas funções públicas, mas sim reforçar a protecção do bem jurídico da transparência no exercício dessas funções, aperfeiçoando os mecanismos previstos na LOD de declaração da situação patrimonial dos titulares de altas funções públicas e de responsabilização criminal em caso de incumprimento. Consequentemente, por razões de coerência sistemática e de melhor identificação do bem jurídico protegido, defende-se a alteração das normas pertinentes da LOD e não a criação de qualquer tipo criminal autónomo, a inserir no Código Penal ou noutro diploma legal.»

E assim, eis o que vem proposto:

Artigo 14º (actualização da declaração) 

Número 5 (novo): 

Nas declarações previstas neste artigo deve constar também a descrição de promessas de vantagens patrimoniais futuras que possam alterar os valores declarados, referentes a alguma das alíneas do nº 2 do artigo anterior, em montante superior a 50 salários mínimos mensais, cuja causa de aquisição ocorra entre a data de início do exercício das respectivas funções e os três anos após o seu termo. 

Explicação: Visa-se incluir nas obrigações declarativas a que se refere o artigo 14º, que são aquelas que permitem fiscalizar as variações ocorridas no período já considerado relevante por lei, as promessas de obtenção de vantagens futuras com valor económico. Sem uma norma como esta, a protecção do bem jurídico da transparência no exercício do cargo é incompleta, na medida em que o recebimento da vantagem depois de 3 anos após a cessação de funções pode traduzir-se num aumento significativo de riqueza não sujeita a qualquer tipo de fiscalização ou sanção. 

Número 6 (novo): Nas declarações previstas neste artigo deve constar também a indicação dos factos geradores das alterações que deram origem ao aumento dos rendimentos ou do activo patrimonial, à redução do passivo ou à promessa de vantagens patrimoniais futuras.

Explicação: Na declaração correspondente ao início do cargo a indicação dos factores geradores da riqueza não é relevante para a protecção do bem jurídico em causa na LOD. Porém, nas declarações subsequentes, previstas no artigo 14º (60 dias após a cessação de funções, 30 dias após as alterações patrimoniais relevantes e 3 anos após o fim do exercício de funções), que permitem fiscalizar as variações ocorridas no período correspondente, considera-se que as declarações devem também indicar a fonte da riqueza adquirida, visando aumentar a protecção do bem jurídico e tornar mais efectiva a possibilidade de fiscalização.


Artigo 18º (incumprimento das obrigações declarativas) 

Números 4, 5, 6 e 7: Eliminar.

Explicação: A tipificação penal da omissão de entrega de declaração ou de ocultação de rendimentos e património deve ser feita em norma autónoma. 


Artigo 19º (desobediência qualificada e ocultação intencional de riqueza) 

1 – Sem prejuízo do disposto do artigo 18º, a não apresentação intencional das declarações previstas nos artigos 13º e 14º, após notificação, é punida por crime de desobediência qualificada, com pena de prisão até 3 anos. 

2 – Quando a não apresentação intencional das declarações referidas no número anterior não tenha sido acompanhada de qualquer omissão de declaração de rendimento ou elementos patrimoniais perante a autoridade tributária durante o período do exercício de funções ou até ao termo do prazo previsto no artigo 14º nº 4, a conduta é punida com pena de multa até 360 dias. 

3 – Quem, fora dos casos previstos no º 1, com intenção de ocultar elementos patrimoniais, rendimentos ou promessas de vantagens patrimoniais futuras que estava obrigado a declarar em valor superior a 50 salários mínimos mensais, não apresentar a declaração prevista no artigo 14º nº 2 ou omitir de qualquer das declarações apresentadas a descrição ou justificação daqueles elementos patrimoniais ou rendimentos ou promessas de vantagens patrimoniais futuras nos termos do artigo 14º nºs 5 e 6, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos. 

4 – Incorre na mesma pena prevista no número anterior quem, com intenção de os ocultar, não apresentar no organismo ali previsto as ofertas de bens materiais ou serviços a que se refere o artigo 16º, quando o seu valor for superior a 50 salários mínimos mensais. 

5 – Os acréscimos patrimoniais não justificados apurados ao abrigo do regime fiscal tributário, de valor superior a 50 salários mínimos mensais, são tributados, para efeitos de IRS, à taxa especial de 80%.

Explicação: Nº 2: Visa-se aperfeiçoar a redacção por o período relevante para a fiscalização prevista na LOD não ser apenas o correspondente ao exercício de funções, como erradamente parece decorrer do actual nº 5 do artigo 18º, mas dever incluir também os 3 anos a que se refere o artigoº 14º nº 4. Nº 3: O nº 1 (correspondente ao actual nº 4 do artigo 18º) pune como desobediência a não entrega da declaração devida após notificação para o efeito da entidade fiscalizadora. Simplesmente, tratando-se da alteração patrimonial ocorrida no exercício de funções, prevista no artigo 14º nº 2 al. a), a entidade fiscalizadora dificilmente notificará o titular do cargo para apresentar a declaração em falta porque não terá, em regra, conhecimento dessa alteração. Daí resulta que, no regime em vigor, o titular do cargo que não apresente a declaração de alteração patrimonial superior a 50 salários mínimos mensais não é punido. Não comete crime de desobediência porque não foi notificado previamente para a apresentar e não comete o crime do actual artigo 18º nº 6 porque este não se refere à falta de entrega de declaração mas sim à omissão de indicação de elementos patrimoniais ou rendimentos numa declaração entregue. Ora, no caso de se verificar no decurso de funções uma alteração patrimonial superior a 50 salários mínimos mensais, o que deve ser punido como ocultação intencional de riqueza é a própria omissão de apresentação da respectiva declaração. Nº 4: Com o regime em vigor, o titular do cargo que no período correspondente ao seu exercício receba ofertas de bens ou serviços e não as apresente ao organismo competente, nos termos do artigo 16º, não sofre qualquer consequência penal. Tratando-se de uma oferta com valor superior a 50 salários mínimos mensais, a omissão dessa apresentação com intenção de a ocultar deve ser equiparada para efeitos penais à omissão de declaração de elementos patrimoniais ou rendimentos. No que respeita ao agravamento da pena proposto, ele resulta do facto de haver um aumento de ilicitude da acção, resultante do maior desvalor da violação da obrigação não apenas de declarar os rendimentos e património mas também de justificar a respectiva proveniência. Por outro lado, mesmo com o regime actual, considera-se que existe uma desproporção nas medidas das penas previstas nos números 4 e 6 do artigo 18º, que esta proposta também elimina. É diferente e maior o desvalor da acção de ocultação intencional de riqueza adquirida no período do exercício de altas funções públicas que relativamente ao desvalor da simples omissão de entrega da declaração. No primeiro caso está em causa a falsidade de uma declaração com intenção de ocultar riqueza, ao passo que no segundo se trata apenas da desobediência a um comando legal, sem essa intenção. A pena que se propõe, de 1 a 5 anos de prisão, é a que corresponde actualmente aos crimes de falsificação de documentos por funcionários no exercício de funções, previstos nos artigos 256º nº 4 e 257º do Código Penal, que se consideram de desvalor jurídico equivalente. 

União Europeia: estratégia contra a criminalidade organizada


Foi anunciada a 14 do corrente, a Estratégia da Comissão Europeia de luta contra a criminalidade organizada [2021-2025]. O documento pode ser encontrado aqui. A iniciativa enquadra-se na Estratégia para a União da Segurança [2020-2025] que foi divulgado 24 de Julho de 2020 e a que se pode aceder aqui.

De acordo com a nota pública divulgada, a nova estratégia visa:
 
-» Reforçar a cooperação policial e judiciária: Uma vez que 65 % dos grupos criminosos ativos na UE são compostos por diferentes nacionalidades, o intercâmbio de informações entre as autoridades policiais e judiciárias de toda a UE é fundamental para combater eficazmente a criminalidade organizada. 

A Comissão alargará, modernizará e reforçará o financiamento da Plataforma Multidisciplinar Europeia contra as Ameaças Criminosas (EMPACT), estrutura que, desde 2010, reúne todas as autoridades nacionais e europeias que identificam e combatem coletivamente as ameaças de criminalidade prioritárias. A Comissão irá propor uma atualização do quadro jurídico de Prüm para o intercâmbio de informações sobre ADN, impressões digitais e matrículas de veículos. A fim de garantir uma melhor cooperação policial em toda a UE, no quadro de um conjunto de normas modernas, a Comissão proporá a adoção de um Código de Cooperação Policial da UE, que simplificará a atual miscelânea de instrumentos da União e acordos de cooperação multilaterais. A consecução do objetivo de 2023 de tornar interoperáveis os sistemas de informação para a gestão da segurança, das fronteiras e da migração ajudará as autoridades policiais a detetar e a combater melhor a fraude de identidade, frequentemente utilizada pelos criminosos. Por último, para combater melhor as redes criminosas que operam a nível internacional, a Comissão propõe hoje igualmente iniciar a negociação de um acordo de cooperação com a Interpol.

-» Apoiar investigações mais eficazes para desmantelar as estruturas de criminalidade organizada, centrando-se em crimes prioritários e específicos: Para desmantelar as estruturas de criminalidade organizada importa intensificar a cooperação a nível da UE. 

Para garantir uma resposta eficaz a formas específicas de criminalidade, a Comissão proporá a revisão das regras da UE contra a criminalidade ambiental e criará um conjunto de instrumentos da UE contra a contrafação, em especial de produtos médicos. Apresentará ainda medidas para combater o comércio ilícito de bens culturais. A Comissão apresenta hoje igualmente uma estratégia dedicada à luta contra o tráfico de seres humanos.

-» Garantir que o crime não compensa: Mais de 60 % das redes criminosas ativas na UE estão envolvidas em corrupção e mais de 80 % das mesmas utilizam negócios legítimos como fachada para as suas atividades, sendo apenas confiscado 1 % dos bens de origem criminosa. Combater o financiamento do crime é fundamental para descobrir, punir e dissuadir a criminalidade. 

A Comissão irá propor a revisão das normas da UE sobre o confisco de lucros de origem criminosa, desenvolver as normas da UE contra o branqueamento de capitais, promover o lançamento rápido de investigações financeiras e analisar as normas em vigor no domínio da luta contra a corrupção. Tal contribuirá igualmente para evitar a infiltração na economia legal.

-» Adequar os serviços policiais e judiciários à era digital: Os criminosos comunicam entre si e cometem crimes através da Internet, deixando vestígios digitais. Uma vez que 80 % dos crimes têm uma componente digital, os serviços policiais e judiciários necessitam de ter acesso rápido aos indícios e provas digitais. Necessitam igualmente de dispor de tecnologias modernas e de ferramentas e competências que lhes permitam acompanhar a evolução do modus operandi dos criminosos. 

A Comissão irá analisar e delinear possíveis abordagens de conservação de dados, indicando o caminho a seguir para se ter acesso lícito e direcionado a informações cifradas, no contexto de investigações criminais e ações penais que protejam igualmente a segurança e a confidencialidade das comunicações. A Comissão irá também envidar esforços, em conjunto com as agências da UE competentes, para dotar as autoridades nacionais dos instrumentos, conhecimentos e competências operacionais necessários às investigações digitais.

A 12 de Abril foi apresentado o Relatório Europol sobre ameaças graves e organizadas à União Europeia, que pode ser lido aqui na sua versão em português.

Os velhos demónios


Às vezes tudo começa com o encontro num alfarrabista de um discreto opúsculo, arrumado, entretanto, numa estante e reencontrado por mero acaso, a trazermos a noção de como tudo é relativo no plano da coerência das ideias e quão frágeis são as noções que temos sobre as correlações com que simplificamos a vida, nomeadamente da ligação das pessoas ao que supomos serem as suas ideais

A noção, por exemplo, de que a defesa estrénua do princípio da legalidade incriminatória é património quase genético do pensamento democrático e liberal e nenhum ser que desse espírito se reclame ousou alguma vez pensar a sua derrogação e quem passe para a História como um demo-liberal não pode ter tido outro ideário, cede ao revermos as suas breves folhas e com elas, morre a ingénua ilusão.

Adelino da Palma Carlos (1905-1992), o primeiro-ministro da democracia, após o 25 de Abril, advogado que defendeu figuras relevantes da oposição ao salazarismo como o general Norton de Matos e mandatário que foi da candidatura deste à Presidência da República, advogado também do advogado Vasco da Gama Fernandes, e do matemático Bento de Jesus Caraça, é o mesmo que, em 1937, apresentaria relatório ao 2º Congresso da Academia de Direito Internacional, e nesta sua comunicação, não hesitaria em pôr em causa o princípio saído da Revolução Francesa nullum elictum nulla poena sine lege.

Aquilo que ainda hoje é pressuposto de uma concepção racionalista do Direito Penal, baluarte e limite ao arbítrio e garantia de proporocionalidade, foi para ele considerado então incompatível com «uma boa defesa social».

Seguindo em torno da sua linha argumentativa e relevando sobretudo tempo histórico em que se pronunciou tudo parece estranho e, sobretudo problemático.

Logo, a legislação que lhe serve de modelo, como o Código Penal soviético de 1922, que expressamente cita, ao prever a incriminação por analogia e a rectroactividade penal [artigos 6º e 16º] e ao definir, numa lógica de tipologia aberta [artigo 1º], como crime toda a acção ou omissão dirigida contra a estrutura do Estado soviético ou lesiva da ordem jurídica criada pelo regime dos trabalhadores e dos camponeses para a era da transição rumo ao comunismo.

Mais ainda, o aplauso que abertamente exprime ao o projecto de radicalização daquele sistema jurídico-penal estalinista, firmado por Nikolai Krylenko, Comissário do Povo para a Justiça e Procurador-Geral da URSS, para quem a criminalização não deveria conhecer limites que a determinassem, antes ser confiada à casuística que valorasse a perigosidade do agente, o móbil do crime e a sua classe social. Krylenko, diga-se, que viria a ser, aliás, uma das vítimas das purgas do regime do terroe vermelho, preso pelo NKVD e condenado à pena de morte em 1949, após um julgamento que durou vinte minutos.

Depois, a lógica da atribuição de poderes discricionários aos juízes em matéria penal, citando expressamente e com concordância aberta o estabelecido na lei penal italiana de então, o artigo 132º do Código Penal, afinal, o Código de Alfredo Rocco aprovado em 1930 em pleno fascismo, segundo o qual: «Nei limiti fissati dalla legge, il giudice applica la pena discrezionale; esso deve indicare i motivi che giustificano l'uso di tale potere discrezionale . Nell'aumento o nella diminuzione della pena non si possono oltrepassare i limiti stabiliti per ciascuna specie di pena, salvi i casi espressamente determinati dalla legge.».

Lendo hoje esse breve opúsculo, tudo nos reconduz a uma linha de pensamento que, reorganizado embora na sua aparência, vai formando uma certa mentalidade, alienada das suas raízes históricas, até pela incultura grassante, vai firmando terreno no campo do Direito Criminal e seus agentes e essa a  segunda desconcertante sensação: é a noção de que o Direito Penal tem de se demitir da sua função redutora de repressão do crime pretérito para assumir o papel preventivo do crime futuro, não punir quia peccatum est para aplicar sanções ut ne peccatur; é a recuperação da analogia incriminatória, ainda que travestida pela noção de interpretação extensiva e, ao limite, o carácter meramente exemplificativo do catálogo de crimes enunciados na lei penal; enfim, o conceito da indeterminação da duração da pena, a juntar-se às medidas destinadas a enfrentar já não o delito em si, mas a perigosidade do delinquente independentemente do que tenha cometido.

Às vezes tudo começa com um velho alfarrábio. Os que supõem que os princípios da escola clássica em que se formaram e pela qual combateram, jogando a liberdade própria em nome da liberdade dos outros, que se desencantem: os novos tempos trazem os velhos demónios, para um novo Inferno. A lógica securitária, nascida do caos, tem aqui as suas raízes.


MDE sem garantia de retorno

 


O tema da finalidade e âmbito do mandado de detenção europeu [regulado na Lei n.º 65/2003,  de 23 de Agosto (texto aqui), foi configurado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.03.2021 [proferido no processo n.º 34/21.1YREVR, relator Renato Barroso, texto integral aqui].

Elucidativo, explicita o respectivo sumário:

«1 - O objectivo de um MDE destinado à entrega do requerido para procedimento criminal não é, ao contrário do que às vezes se supõe, a mera transferência de pessoas para interrogatório na qualidade de suspeitos, pois para este efeito outras medidas existem em alternativa, como a decisão europeia de investigação, que pode ser utilizada para obter provas provenientes de outro Estado-Membro e que abrange qualquer medida de investigação, incluindo o mero interrogatório do suspeito no âmbito de um procedimento criminal no qual ainda não foi deduzida a acusação, o qual pode até ser feito através de videoconferência, a fim de determinar se deve, ou não, ser emitido, posteriormente, um MDE tendo em vista o julgamento.

«2 - O caso de um MDE em que se solicita a entrega do requerido para procedimento criminal é algo de diferente, abrangendo, também, a fase de julgamento, pois implica, necessariamente, que a sua devolução ao Estado de que é natural ou residente, apenas aconteça após a sua audição em julgamento, se a tal houver lugar, pois não se concebe que este corra à sua revelia, assim se justificando que a execução do respectivo mandado possa ficar dependente da prestação da dita garantia por parte do Estado emitente, nos termos do artº 13º, al. b), da L. 65/2003 de 23/8.

«3 - Tratando-se a norma em causa de um direito de protecção dos nacionais ou residentes do Estado de execução, a verdade é que, como resulta linearmente do seu texto, a mesma não é de aplicação automática, estando apenas reservada para situações em que, ponderadas as circunstâncias do caso concreto, as reais e concretas ligações familiares sociais, laborais e comunitárias da pessoa procurada ao Estado de execução, se conclua que os laços entre ambos são fortes o bastante que justifique a aplicação da norma em causa, no sentido de ser assegurado, perante o Estado emitente, que aquela será devolvido ao Estado de execução, assim que termine a intervenção judiciária daquele.»

O cerne do decidido no caso teve a ver com a prestação daquela aludida garantia [que também decorre do nº3 do Artº 5 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI [texto aqui], ou seja aquela segundo a qual:

«b) Quando a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente no Estado membro da execução, a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada no Estado membro de emissão.»

Ora para fundamentar a sua conclusão, considerou-se no referido acórdão:

-» primeiro, a distinção entre a entrega para procedimento criminal face à mera transferência para interrogatório como suspeito, porquanto [cito] «[...] para este efeito outras medidas existem em alternativa, como a decisão europeia de investigação, que pode ser utilizada para obter provas provenientes de outro Estado-Membro e que abrange qualquer medida de investigação, incluindo o mero interrogatório do suspeito no âmbito de um procedimento criminal no qual ainda não foi deduzida a acusação, o qual pode até ser feito através de videoconferência, a fim de determinar se deve, ou não, ser emitido, posteriormente, um MDE tendo em vista o julgamento.»;

-» depois, que não se trata de entrega automática [referindo-se neste sentido o Acórdão do STJ, de 20/06/12, proc. 445/12.3YRLSB.S], antes sujeita a uma avaliação de substância nomeadamente aquela que releva para o efeito de obtenção da aludida garantia e assim: «Tratando-se a norma em causa de um direito de protecção dos nacionais ou residentes do Estado de execução, a verdade é que, como resulta linearmente do seu texto, a mesma não é de aplicação automática, estando apenas reservada para situações em que, ponderadas as circunstâncias do caso concreto, as reais e concretas ligações familiares sociais, laborais e comunitárias da pessoa procurada ao Estado de execução, se conclua que os laços entre ambos são fortes o bastante que justifique a aplicação da norma em causa, no sentido de ser assegurado, perante o Estado emitente, que aquela será devolvido ao Estado de execução, assim que termine a intervenção judiciária daquele. (Cfr., neste sentido, Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Grande Secção, de 17/07/08, Proc. C-66/08)».

Ora, no caso, o sentido do decidido decorreu de uma circunstância factual aferida sem mais indagação, e que este passo do acórdão sumariou:

«[...] nos autos, nada mais se sabe do arguido, a não ser que o mesmo é português e tem residência em Portugal, o mesmo é dizer, como muito bem assinala o MP junto deste Tribunal na sua resposta à oposição deduzida “…não vem aportado nem documento nenhum facto que permita fundadamente concluir pela verificação daquele indispensável grau de integração social, isto é, não está demonstrada nem documentada nenhuma circunstância relevante que evidencie a ligação com aquela profundidade, da pessoa procurada, o oponente, ao Estado de execução e que, por isso mesmo, seja suscetível de conduzir à exigência de prestação da garantia de que a este será devolvido, para cumprimento da pena ou medida de segurança privativas da liberdade, como condição de entrega às autoridades do Estado de emissão.…
A nacionalidade e a residência, só por si e sem mais, não permite, sem outros elementos que demonstrem a centralidade da vida profissional, social e familiar do oponente em Portugal, concluir pela verificação daquele indispensável grau de integração social, e por isso mesmo, conduzir à exigência da prestação da garantia de que a este Estado de execução será devolvido, para cumprimento da pena ou medida de segurança privativas da liberdade, como condição de entrega às autoridades do Estado de emissão do MDE.»

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Entre a já significativa literatura sobre o tema, interessante o seguinte estudo sobre o caso português, visto na óptica de um jurista brasileiros [ver aqui]

Insuficiência do inquérito


 É conhecida a orientação jurisprudencial no sentido de restringir o alcance das invalidades previstas na lei processual penal. É neste contesto que se integra o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.03.2021 [proferido no processo n.º 167/18.1T9STS.P, texto integral aqui], relator Horácio Correia Pinto] quando sentenciou a propósito do que tem por incompetência do juiz de instrução criminal para avaliar a suficiência do inquérito, determinando que:

 «I – A omissão de diligências em inquérito, ainda que legalmente obrigatórias, não configura a nulidade insanável de falta de promoção do processo pelo Ministério Público, prevista no artigo 119.º, b), do Código de Processo Penal

«II – A nulidade, dependente de arguição, de insuficiência do inquérito, prevista no artigo 120.º, n.º 2, d), do Código de Processo Penal, requer interpretação restritiva, cingindo-se à falta de interrogatório do denunciado, pois as restantes diligências estão no âmbito da autonomia do Ministério Público, não podendo ser ordenadas pelo Juiz de Instrução e podendo a omissão de alguma diligência no inquérito ser suprida na fase de instrução.»

No caso, o Ministério Público arquivara um inquérito omitindo diligências que o tribunal a quo considerou relevantes para a descoberta da verdade.

Na sua fundamentação, o aresto afastou e bem a eventualidade de o vício invocado se relacionar com a sua ausência de promoção por parte do Ministério Público e a propósito enunciou situações que integrariam a mesma, ao considerar, e é interessante rememorá-las: 

«[...] o MP tem apenas de assegurar os meios de prova necessários (artº 267 do CPP) para a realização das finalidades previstas no artº 262 nº 1 do CPP. Efectivamente, exceptuando aquelas declarações, nenhum outro acto de inquérito foi praticado, apesar de requerido. Não excluímos a ausência de indícios suficientes para a verificação de crime, desde que esta manifestação assente em diligências concretas e irrefutáveis. Julgamos contudo que não é apropriado falar de falta de promoção do processo nos termos do artº 119 alª b) do CPP. Esta invalidade plena não foi prevista para omissão de diligências ou não prática de actos legalmente obrigatórios (artº 120 nº 2 alª d) do CPP). Aquela nulidade absoluta refere-se a casos muito mais graves como por exemplo: omissão de despacho final de encerramento de inquérito - não pronúncia sobre a totalidade do objecto do inquérito – Acórdão do TRP de 08/03/2017 in Processo nº 97/12.0GAVFR.P1, relatado pelo Desembargador Manuel Soares. Situação idêntica foi decidida no Acórdão de Jurisprudência do STJ de 16 de Dezembro de 1999: integra a nulidade insanável da alª b) do artº 1119 do CPP a adesão posterior do MP à acusação deduzida pelo assistente relativa a crimes de natureza pública e semi-pública, fora do caso previsto no artº 284 nº 1 do mesmo diploma legal – O MP tinha notificado o assistente, para deduzir acusação num crime de natureza semi-pública, sem que tivesse encerrado o inquérito com adequado despacho. O mesmo se diga da situação prevista no Acórdão do TRC, de 06/11/2003 in Processo nº 310/12.4T3AND-A.C1. Relator: Maria Pilar de Oliveira – ter sido declarada aberta a instrução sem ter sido realizado inquérito. Ainda o Acórdão do TRG, de 12/07/2016 in Processo nº 679/14.6GCBRG-B.G1. Relator João Lee Ferreira – omissão absoluta de pronúncia sobre crime semi-público denunciado pelo ofendido.»

Reconduzindo o tema à sua correcta configuração, a de insuficiência do inquérito [nulidade relativa prevista no artigo 120º, n.º 2, d) do CPP], o acórdão considerou, porém, estar subtraída ao poder judicial o conhecimento da mesma. Eis o que ali se escreve a este propósito: 

«É evidente que as identificadas diligências não foram praticadas mas, não podemos olvidar que os autos já estão sob controlo jurisdicional, em sede de instrução. Como também não podemos afirmar que a audição dos denunciados é obrigatória, uma vez que o MP disse claramente no despacho de arquivamento que os factos indiciados não são susceptíveis de configurar a prática de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido nos termos do artº 360 do CP. Esta é uma competência do MP que tem completa autonomia durante o inquérito (artº 221 da CRP e Estatuto do MP – Lei nº 47/86 de 15 de Outubro) para exercer a acção penal de acordo com as suas atribuições – princípio da autonomia - o que decorre da estrutura acusatória do processo estabelecida no artº 32 nº 5 da CRP.
Não basta declarar nulidades, mais do que uma intervenção formal, impõem-se aferir dos efeitos desta medida para lá do disposto no artº 122 do CPP. O caso flagrante de nulidade insanável, como a falta essencial de promoção ou de inquérito, impõe-se ao MP com a consequente obediência à decisão judicial, sindicância que muitas das vezes é reparada por intervenção hierárquica. O dever de conhecer estas anomalias é oficioso e deve ser declarado em qualquer fase do procedimento, salvo as que forem cominadas em outras disposições legais. O Tribunal a quo na defesa do despacho recorrido vem dizer (fls. 890 do translado) que uma vez considerada procedente (nulidade insanável), prejudica a finalidade da instrução aludida no artº 266 nº 1 do CPP, bem como a utilidade do debate instrutório. Além de já termos arredado esta nulidade, com fundamentação esforçada, urge interpretar o corpo do artº 119 do CPP. O termo oficiosamente não suscita dificuldades mas o mesmo não se pode dizer da expressão qualquer fase do procedimento.
Compete ao JIC proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste código (artº 17 do CPP). Praticar determinados actos durante o inquérito (artºs 268 e 269 do CPP) e durante a instrução (artºs 286 a 310 do CPP).
A interpretação, qualquer fase do procedimento significa que o JIC intervém em momentos previstos no CPP. O JIC foi chamado a intervir para decidir uma instrução requerida pelos denunciados, onde além do mérito, o magistrado tem o dever legal de se pronunciar sobre a regularidade da instância, designadamente apreciar as nulidades. A Lei 59/98 de 25 de Agosto introduziu o disposto no artº nº3 do artº 308 do CPP: no despacho proferido no nº 1 – despacho de pronúncia ou não pronúncia – o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer. O JIC pode entender que não deve avançar para a apreciação de mérito – se nada obstar ao conhecimento do mérito da causa – contudo sempre decidirá se deve pronunciar ou não pronunciar. Já deixamos devidamente esclarecido que não resulta dos autos que o inquérito enferme de nulidade insanável, porém há uma clara insuficiência de diligências importantes para a descoberta da verdade material. Esta nulidade está devidamente invocada no RAI e pode ser sanada com a realização das requeridas diligências ou, até, ser alvo de interpretação distinta: não há interrogatório por não se vislumbrar crime, ficando desta sorte as restantes diligências prejudicadas. Lembramos que este Tribunal Superior não pode dar ordens ao MP para a prática de actos não obrigatórios, pelo que a falível discussão sobre a insuficiência de inquérito pode terminar com a prática de actos inúteis.
Com esta excursão pretendemos dizer liminarmente que não há nulidade insanável por falta de promoção do processo e que a alegada nulidade por insuficiência de inquérito requer interpretação restritiva de que o denunciado tem sempre de ser ouvido. As restantes diligências estão no âmbito das atribuições do MP.
A finalidade da instrução constitui um instrumento de controlo jurisdicional para aferir da decisão de acusar ou arquivar, tomada no fim do inquérito. O juiz pratica todos os actos necessários à realização das finalidades previstas no artº 286 nº 1 do CPP. A instrução é um puro instrumento de controlo, posto a cargo de um juiz, a ter lugar após fase processual especificamente destinada à investigação criminal – A Nova Face da Instrução – Nuno Brandão - Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 3/2008, páginas 227/255.
O Tribunal a quo tem de declarar aberta a instrução, tomar posição sobre o RAI e considerar, eventualmente, os actos a praticar, seguindo-se o debate instrutório e consequente decisão. Recordamos o teor do artº 308 nº 3 do CPP – no despacho de pronúncia ou não pronúncia o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que possa conhecer.»



Julgar em ditadura-julgar em democracia

 


Curso de Direito Penal


O autor é professor convidado da cadeira de Direito Penal do Curso de Licenciatura em Direito na Universidade Europeia, função que cumula com a de juiz de Direito, tendo obra publicada no domínio do cibercrime.

O livro, publicado neste mês de Março de 2021, anuncia-se como tendo «um carácter essencialmente teórico», mas não deixando de «ter igualmente uma componente prática».

Trata-se de um tomo primeiro, dedicado às questões fundamentais da teoria geral do crime, o que faz pressupor um outro sobre o que se denomina o tema das consequência jurídicas do crime.

O elenco dos temas é o tradicional na matéria, embora sem sistemática que os aglutine de modo mais estruturado. Trata-se, no entanto, de obra de fácil leitura, pensada primacialmente para fins pedagógicos.

No âmbito das questões fundamentais (i) o conceito de Direito Penal (ii) a finalidade do Direito Penal e das medidas de segurança (iii) o conceito material de crime (iv) os princípios fundamentais do Direito Penal.

No domínio da Teoria do Direito Penal a obra abrange (i) o temas de interpretação e da integração da lei penal (ii) a aplicação temporal, espacial e pessoal.

Quanto à Teoria da Infracção Penal configuram-se (i) as questões fundamentais (ii) o tipo objectivo de ilícito (iii) a imputação objectivo do resultado (iv)o tipo subjectivo de ilícito nos crimes dolosos por acção (v) as questões fundamentais da ilicitude (vi) a legítima defesa (vii) o estado de necessidade justificante (viii) o conflito de deveres (ix) o consentimento do ofendido (x) outras causas de justificação (xii) a imputabilidade (xiii) a inexigibilidade (xiv) a punibilidade (xv) a tentativa (xvi) a comparticipação criminosa (xvii) os crimes negligentes (xviii) os crime omissivos (xix) o problema da unidade e pluralidade de infracções.

A obra está apoiada numa extensa bibliografia e num índice de remissão para alguns acórdãos que considera relevantes.

Branqueamento de capitais: conferência

 

Por gentileza do Conselho Regional de Faro da Ordem dos Advogados, é-me grato poder participar neste evento. A assistência pode ser alcançada a partir daqui.

Branqueamento de capitais: uma tese

 


O livro é uma tese de doutoramento, mas uma tese [em Ciências Sociais/Estudos Estratégicos, sustentada ante o ICSP da Universidade de Lisboa], escrita em estilo prático por quem tem experiência no terreno, porque inspector, inspector-chefe na Polícia Judiciária, na área do combate à corrupção e  posteriormente a isso na Direcção do Departamento de Investigação Criminal de Setúbal daquela Polícia onde desempenha actualmente a função de Director da Unidade de Informação Financeira.

Reconhecer-se-á, pois, na obra não apenas o fruto das leituras e reflexões que o autor evidenciou, não apenas no domínio jurídico, mas por igual no campo sociológico, da economia e da teoria das organizações, como, de modo dominante, o produto da sua experiência no terreno: é disso evidência o que escreve a propósito da offshores [que, fazendo-se eco de uma doutrina firmada nos sectores teoria como pertencentes do domínio do "terror financeiro"], ou o que apelida de «breves considerações sobre o lucro ou ganho financeiro».

Antecedida de uma capítulo dedicado à metodologia da investigação, a obra [publicada em 2020]  divide-se em três partes, culminando com um apêndice documental de fontes e pistas para aprofundamento.

A primeira é dedicada ao "Teatro de Operações", centrada, em primeiro lugar, na caracterização da sociedade de risco e sua natureza global, e perspectivada, de seguida, na lógica jurídica, quer quanto ao enunciado do conceito de branqueamento e sua origem, à rememoração do bem jurídico em causa, como no que se refere à revisitação das noções típicas neste domínio, nomeadamente da criminalidade organizada transnacional, território onde se situa hoje o núcleo essencial do problema.

Na segunda parte centra-se no Direito em acção, logo o que decorre das propostas oriundas da EUROPOL e também da própria NATO [entroncado o tema numa lógica securitária global] e de seguida o papel que desempenham as estruturas nacionais de informação e investigação, o DCIAP, a UIF/PJ, a própria PJ como entidade de investigação e o GRA.

A terceira parte está orientada à actuação estratégica, a dois níveis: a da actuação, de acordo com um modelo operativo que o autor sugere como o adaptado às novas circunstâncias e o enunciados dos checklist a ter em conta  na investigação e na prevenção porque indiciadores de situações de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.

Morte do assistente: efeitos


Decisão interessante, a resolver tema que a mesma considera polémica, a decorrente do Acórdão da Relação do Porto de 1301.2021 [proferido no processo n.º 345/18.3PASTS.P1, relator Borges Martins, texto integral aqui] quando consigna que a morte do assistente, que entretanto requerera instrução, não permite aos seus sucessores virem desistir da fase que aquele desencadeara.


Consta do sumário do aresto em causa: «A morte do/a assistente não extingue a instrução por ele/a requerida, mesmo que os seus sucessores indicados no artigo 113.º, n.º 2, do Código Penal pretendam essa extinção, não sendo aplicável analogicamente a esta situação o disposto nesse preceito.». 

Cita-se o artigo do Código Penal em causa para melhor compreensão do tema:

«Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertence às pessoas a seguir indicadas, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime:

a) Ao cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou à pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, aos descendentes e aos adoptados e aos ascendentes e aos adoptantes; e, na sua falta
b) Aos irmãos e seus descendentes.»

Questão que o acórdão abordou, pela lógica da legitimação processual, foi, pois, a de saber se morto o assistente a ele sucediam em termos de adquirirem o respectivo estatuto, os respectivos sucessores, rememorando, para fundamentar o seu raciocínio, o previsto no artigo 68º do Código de Processo Penal [quando admite os ofendidos a integrarem, com legitimidade, o estatuto de assistentes] para depois ponderar a possibilidade de se equiparar em efeitos o previsto no artigo 113º, n,º 2 do Código Penal quanto à morte do ofendido ao caso de morte do assistente.

Citando o excerto relevante:

«No caso que nos interessa, tal faculdade pode ser atribuída ao ofendido, considerado na sua veste de titular do interesse que a lei quis proteger com a incriminação – al. a).
Também aqui se concebe o lugar paralelo ao analisado supra, no caso de morte do ofendido - atribuição da possibilidade de se constituírem assistentes tanto o cônjuge como outros familiares próximos. Igualmente se o ofendido não tiver renunciado à queixa, entretanto – presumindo-se que já a apresentou previamente – al. c).
Só no caso de o ofendido ter morrido sem se ter constituído assistente tem lugar a aplicação desta norma – cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 16.ª edição, 2007.
Como escreveu José António Barreiros (Processo Penal-1, Almedina, 1981, pág. 504), a posição judiciária de assistente extingue-se com a morte do individuo que revestia tal estatuto. Nesse caso, a lei permite que que se habilitem as pessoas previstas no n.º 4 do art.º 4.º do DL n.º 35 007 – norma correspondente ao actual art.º 68.º,n.º 1, al. c) do CPP.
Na hipótese dos autos, vemos que a Assistente, entretanto falecida, requerera abertura de instrução. Os substitutos legais possíveis renunciaram a tal faculdade.
Determina o art.º 69.º, n.º2, do CPP que compete, em especial, ao assistente oferecer provas; e requerer as diligências que se afigurarem necessárias, deduzir acusação independente da do MP e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza; interpor recurso das decisões que o afectem.
A Assistente exerceu tais poderes que a lei lhe confere.
Entretanto, deixou de haver nos autos Assistente como sujeito processual capaz ou interessado em exercer tais poderes no futuro.
Mas, e no que diz respeito ao RAI anteriormente deduzido?
Este tinha sido judicialmente admitido; e tinha sido publicado despacho determinativo de inquirição de duas testemunhas no mesmo indicadas; e de realização subsequente e imediata do debate instrutório.
No âmbito do processo civil – sempre a ter em conta, dado o disposto no art.º 4.º do CPP – vigora o princípio da aquisição processual: Os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária (…). Quanto ao seu outro aspecto, o princípio traduz-se na comunidade das provas. Desta comunidade deriva que a parte não pode renunciar às suas provas, uma vez produzidas – embora delas possa desistir antes disso (arg. do art.º 571.º) resulta claramente do disposto no art.º 515.º. – cfr. arts. 465.º, 594.º,n.º 4 e 595.º, todos do NCPC, Manuel da Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 383.
No novo CPC determina o art.º 498.º, n.2 que a parte pode desistir a todo tempo da inquirição de testemunhas que tenha oferecido, sem prejuízo da possibilidade de inquirição oficiosa, nos termos do art.º 526.º.
Não existe norma equivalente no CPP e cremos que a aplicação da mesma no processo penal é pelo menos polémica, dado o princípio de demanda da verdade material que constitui a sua trave mestra.
No caso dos presentes autos, constata que a Assistente ofereceu prova de duas testemunhas; não tendo as mesmas ainda sido inquiridas.
Ora, o JIC, nos termos do disposto no art.º 291.º, n.º1 do CPP tem a possibilidade de indeferir a produção de depoimento de testemunhas que entenda inúteis para a finalidade da instrução – que é comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem de submeter ou não a causa a julgamento. Pode inclusivamente rejeitar a repetição de depoimentos já prestados em inquérito – n.º 3 do citado art.º 291.º do CPP.
Se designou data para a sua inquirição e imediata realização do debate instrutório, foi porque considerou o respectivo depoimento como à partida útil para a realização daquela finalidade.
Por outro lado, a não presença do Assistente não afecta a regularidade deste, conforme teor do art.º 297.º do CPP; recordando que tal debate e decisão instrutória não deixarão de reflectir sobre os pressupostos processuais, maxime, legitimidade para prossecução do procedimento criminal – questão não abordada pela decisão recorrida.»

Ora o tema tem, permito-me opinar, um outro ângulo de perspectiva, o qual conduzirá, no entanto, ao mesmo nó problemático: é que sendo discutível que ao assistente falecido possam suceder, na aquisição do estatuto respectivo, os seus sucessores [e aí os que estão indicados do citado n.º 2 do artigo 113º do Código Penal quanto ao caso da morte do ofendido], tendendo eu, numa primeira reflexão, a divergir da conclusão do aresto a que me refiro, já parece que, centrando-se a análise da matéria agora na questão da admissibilidade da desistência da instrução, o tema ganha outra dimensão e outra generalidade: é que, admitir-se que, tratando-se de fase facultativa, pode ocorrer desistência da mesma [ainda que possa ser questão saber se uma vez admitida tal fase não se torna irrecusável], tal faculdade, a ser pecúlio do assistente constituído, não haverá, creio, razão para ser negada a quem lhe suceder no estatuto [a admitir-se, e voltamos ao início, que a norma de habilitação para tal sucessão seja, em aplicação analógica, o citado artigo 113º, n.º 2 do Código Penal].


Recusa de juiz: um tema no limiar


É tema delicado, o da recusa de juiz. Move-se no limiar da luta por uma justiça que seja tida, generalizadamente, como imparcial e a assunção por alguns, de que se trata de ofensa pessoal àquele cujo critério é posto em causa. Tudo depende, também, reconheça-se, do modo como o tema é equacionado. Mas a formulação legal não ajuda à clareza.

Tem, por isso, interesse a leitura deste Acórdão da Relação de Guimarães de 11.01.2021 [proferido no processo n.º 2944/17.1T9BRG-B.G1, relatora Teresa Coimbra, texto integral aqui], de cujo sumário consta:


«1. Da lei processual penal ( art. 43 nº 1 do Código de Processo Penal) não se retira o que deve entender-se por “motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade de um juiz” capaz de justificar a recusa da sua intervenção num processo e o consequente afastamento do princípio do juiz natural, razão pela qual se impõe uma análise casuística dos motivos invocados de acordo com parâmetros objetivos ou subjetivos, na certeza de que quando a imparcialidade de um juiz ou a confiança da comunidade nessa imparcialidade são justificadamente postas em causa, o juiz deve ficar impedido de administrar a justiça.
«2. Quando um processo chega a julgamento o juiz já teve contacto com o processo e já proferiu diversas decisões que o levaram a ponderar sobre a eventual prática do crime (já recebeu a acusação ou a pronúncia, já recebeu a contestação, já ponderou sobre os meios de prova a produzir…), mas nenhuma destas decisões é suscetível de comprometer a imparcialidade do juízo a fazer perante a prova que venha a resultar do julgamento.
«3. De igual modo se o juiz do julgamento, anteriormente, em serviço de turno, teve contacto com o processo e ordenou a realização de busca domiciliária, tal intervenção, por si só, não é suscetível de pôr em causa a posição “equidistante, descomprometida e desprendida em relação ao objeto da causa e a todos os sujeitos processuais” que necessariamente terá de ter no julgamento, sob pena de alienar o mais importante património moral que possui e que é pressuposto fundante da dignidade das funções que exerce.»

Permito-me opinar, quanto às afirmações vertidas nos ponto 2 e 3: se concordo com a primeira delas, permito-me pôr em dúvida a segunda, configurando, diga-se, o tema em abstracto, porque, face ao caso, e lendo o teor do decidido, flui a noção de que o comprometimento da juiz em causa com os pressupostos probatórios da busca domiciliária que ordenou não terão ficado evidenciados e foi com esse fundamento que a Relação decidiu. 
É que, creio, não pode concluir-se que o envolvimento em uma diligência tão gravosa como uma busca domiciliária, não possa pressupor genericamente uma avaliação rigorosa da indiciação que esteja em causa. O mesmo vale, por maioria [se não por identidade -] de razão para a autorização de intercepções telefónicas ou a selecção do fruto das mesmas: aquele acto, tal como estes, não são, não podem ser, actos tabelares, de mero escrutínio de legalidade formal, antes actos decisórios que implicam um juízo sobre o substracto de possível indiciação daquele que irá ser depois julgado.
Trata-se, pois, de uma avaliação a efectuar de forma casuística, como ressalta da decisão.
Tema é - mas não é o que está em causa - saber se só haverá fundamentação para a recusa quando a dúvida sobre a imparcialidade se traduzir em actos processuais do recusando cujo sentido a possam evidenciar como motivo razoável, ou se a autoria objectiva de actos processuais prévios já pode implicar, em regime automático, a impossibilidade de julgar, em lógica de escusa, ou quando não actuada, de recusa.
Avançando uma opinião, creio ser de relevar que, ao ter clausulado como impedimento [no artigo 40º do CPP] essa impossibilidade de julgar [em audiência de primeira instância ou recurso, ainda que de revisão] quando da prática prévia dos actos processuais ali elencados de modo tipificado, o legislador traduziu a ideia de que, a participação em outros actos processuais não gera o automatismo do impedimento, e só casuisticamente a situação terá de ser avaliado como fonte de recusa; mas, ainda assim, fica esta questão irresoluta pois a letra da lei não clausula que, a juntar à participação em actos processuais que não os previstos no artigo 40º, mas que sejam actos aptos a gerar a formação de uma determinada convicção quanto ao mérito, ainda que indiciário do caso, ou à sua valia jurídica, haja que se somar, a demonstração exuberante em julgamento [ou recurso] de que o comprometimento existe e o juiz já tem, contra o seu distanciamento legalmente exigível, o apriori de uma ideia que formou quanto à matéria relativamente à qual tem de decidir.

Para que haja Justiça, inexista o facto!

 


É uma leitura inocente e, no entanto, ilustrativa. A conferência é singela, o tema daria hoje azo a um turbilhão de comentários. Apenas o foro em que foi lida, a solene Academia das Ciências, lhe empresta uma certa áurea. Só que não só de grandeza ou grandiloquència é feita a vida, antes no inesperado e breve se surpreende o digno e notável..

Pedro Pitta foi várias vezes Bastonário da Ordem dos Advogados, de 1957 a 1971. Democrata, Homem de Cultura, a ele se deve a posição de antítese ao regime político que então nos governou contra o qual a Ordem dos Advogados se bateu, sabendo resistir e elevar a sua voz face à perseguição a que tantos advogados foram sujeitos.

Chegou-me seu este breve livrito, de trinta e oito páginas em oitavo, pelas mãos daquele a quem já chamo «o meu alfarrabista», o que me abre crédito de cem euros, que vou repondo em pontual conta-corrente, tendo de ser eu a perguntar se já esgotei já o plafond com o meu vício pelas velharias, pois a sua elegância quase o embaraça de lembrar-mo.

E entre velharias e a partir delas que o conferencista encontrou o seu tema, velho e gasto farrapo de jornal francês, que lhe embrulhara uns livros que nem chegou ler, sim o remanescente do periódico onde se deteve na notícia que lhe daria azo à prelecção, lida a 23 de Janeiro de 1930.

Narrava então o jornal uma insignificante notícia, a do caso de dois faroleiros, exaustos pela vigília a que se sujeitavam, em quartos sucessivos de sentinela, por dias e noites de tempestade, já no limite febril do esgotamento e da renúncia, mas porfiando em manterem-se no seu posto, para que as embarcações que ali arrostavam, atiradas pelo turbilhão marítimo,  tivessem, pela luz do farol e pelo ronco da sereia, o sinal salvífico que as poupariam ao naufrágio e nele a perda de vidas humanas e das fazendas com que iam carregadas.

Mestre na escrita, Pitta centra-nos na cena como se estivéssemos no hediondo lugar. 

E surge então, insidiosa, a trama trágica, ditada pelo sortilégio da má fortuna, o ciúme de um deles, fruto da descoberta no bolso do seu companheiro, de uma carta íntima que dava razão à suspeita de que era com ele que se consumava o adultério já pressentido de sua mulher.

Com o ciúme, eis a ideia do homicídio, passional no momento em que ideia irrompe, mas adiada esta, minado o espírito do assassino entre o desejo aguilhoante de o perpetrar, e a consciência de que deveria manter vivo aquele que, fosse morto, impossibilitado estaria de o render nos turnos de vigia, e deixaria o farol desamparado e com isso barcos, mercadorias e sobretudos vidas humanas entregues à sua sorte e funesta esta se adivinhava.

Adiada a consumação da morte, foi ela infligida precisamente no momento em que, acalmado o mar, chegava a guarnição que asseguraria a rendição dos dois. Morte testemunhada, o homicida a entregar-se voluntariamente à prisão; esta sua opção impedira-o de cometer um crime que, realizado tivesse sido no momento em que o pensou. passaria oculto pela história possível de que o companheiro desparecera, sim, mas tragado pelas ondas do mar revoltoso, versão que o encobriria e lhe traria a falsa inocência.

Jurista, Pedro Goes Pitta, centrando o seu auditório ante o caso, encara o tema de que fez conferência: no sistema do Código Penal de 1886, afinal nesta parte o que já ere desde 1852, a premeditação no homicídio - e era este um caso insofismável com essa natureza, formado que fora o desígnio criminoso com antecedência superior a vinte e quatro horas - agravava necessariamente a responsabilidade criminal, impedindo a sua atenuação, privando os juízes de aplicarem esta por causa do valor imperativo da agravação.

E eis a luta entre o ditame da lei e o que dita o coração: defrontando-se entre estas antinomias, o rigor legal e a compreensão humana do caso, o conferencista convoca argumentos em favor da ideia, que faz sua, da possibilidade de a atenuação, que no caso tinha por devida, poder ter o seu lugar. 

Socorre-se, incerto, do então artigo 40º do Código Penal quando este previa que as circunstâncias, indicadas como agravantes deixavam de o ser «quando a lei expressamente o declarar, ou as circunstâncias e natureza especial do crime indicarem que não devem agravar e devem atenuar a responsabilidade dos agentes em que concorram». 

Mas sabe que «alguns escritores da especialidade de muitos julgadores» consideravam que tal favor não se aplicaria à premeditação e honradamente reconhece-o, não ocultando o que desmente a tese que patrocina. 

Discorda, porém. E clama, em revolta. É este o ponto tocante da sua contenda, intelectual e emotiva, ante a Lei. 

Esgrimindo, advogado, face a um caso hipotético, que o acaso de um resto de jornal lhe trouxera, Pedro Pitta resiste, e virando-se ao que a regra da tipicidade traria em desfavor, clama, no anseio de Justiça: «não pode haver normas inflexíveis, sobretudo em matéria penal; definições, não são de admitir quando se trata de circunstâncias absolutamente variáveis, diversas de indivíduo para indivíduo, e que são influenciadas por tantas e tão diferentes causas».

Desamparado ante a sua própria inteligência, ciente que não advogará contra ela, e perde a razão quando a razão não lhe trouxer íntima convicção do fundamento do que argumenta, irrompe, em desespero: e se «há casos em que as circunstâncias que rodeiam o acto praticado o justificam, se não à face da lei, ao menos ante a consciência dos homens», este homicídio adiado em nome dos valores de outras vidas que o criminoso quis fossem salvas, teria de encontrar homens que impedissem a agravação pela ineludível premeditação. 

Fossem, pois, esses homens juízes ou jurados,  que, ao abrigo do poder de julgar o facto, impedissem a aplicação da lei, dando como não provada a premeditação, que assim ficaria sem aplicação ao caso.

Voz irada, voz dos sentimentos, voz da revolta: «[...] a minha revolta crescia, crescia sempre, contra essas normas legais quasi inflexíveis, que não apreciam em matéria criminal cada caso em si próprio, com as características que o revestem, o precedem e o seguem, e que apenas encontram correcção na consciência dos julgadores e na liberdade que a si próprios avaramente se reservam e muito bem».

Lê-se e um frémito de emoção irrompe, tantos anos depois..