Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Fatalidades irremediáveis

Nós, os que andamos pelo Direito, far-nos-á bem, não por auto-flagelação, mas só mesmo para sabermos que há mais mundos, pensar naqueles que não vivendo propriamente fora-da-lei, passam por ele, e pelo mundo em que ele se vive e sofre, com um sentimento de aversão.
Lembrei-me disto ao folhear, já cabisbaixo de sono, mais umas folhas da Irene Lisboa: «Já um dia falei do sobressalto e da repugnância que só a palavra lei me dá. De que servem as fórmulas dos homens? A da lei, então, só de vingança. Na origem, a lei é a perfeita antecipação da vingança. É a cautela maldosa, a repressão cominada, prevista - o passo tolhido, antes mesmo de ser dado. O homem prevenido, sicário do desprevenido. Um postura de lei é perfeitamente um assalto, uma guet-apens. Uns estão emboscados para desarmar e vencer outros, para lhes arruinar os planos. São detentores de uma arma curta, violenta e pessoal, e só eles a podem manejar. Como é difícil inutilizá-la, embotá-la! À custa de quanto tempo e astúcia, sobretudo».
Vinha tudo isto, a repugnância à lei, a propósito de uma conversa que ela teve com a Maripa que no fim de tarde, já escuro, a visitou mais à sua amiga Franz. A conversa rodou em torno de fatalidades irremediáveis.

Peritos e perigos

Leio na imprensa que o IML vai uniformizar os procedimentos em matéria de perícia a abusos sexuais de menores. Pois.
Um destes dias ouvi o Doutor Germano Marques da Silva insurgir-se contra certos juízes para quem as perícias são uma Bíblia. Lembrei-me de uma separata escrita pelo falecido Dr. Alfredo Gaspar, meu colega de curso, para quem o juiz é [mas não é] o perito dos peritos.
No meio disto tudo, três coisas são certas e estão por resolver.
Primeiro, as perícias penais são realmente um meio de prova com valor especial, pois o juiz para divergir do juízo delas decorrente tem que fundamentar especificamente o porquê da discordância.
Segundo, quem quiser oferecer prova «pericial» alternativa àquela que o tribunal tiver ordenado não encontra estatuto para que ela seja relevada, pois que tais especialistas, por muito sabedores que sejam, não são «peritos» em sentido técnico [pois que essa categoria só tem aqueles que o tribunal designa], «consultores técnicos» também não são [pois estes são espectadores da perícia com capacidade de sugestão apenas] e «testemunhas» é seguramente qualidade que não lhes pode ser atribuída, pois não presenciaram quaisquer factos.
Terceiro, continua por definir se é aceitável que funcionários da PJ, sujeitos à hierarquia desta Polícia e à dependência funcional do Ministério Público investigador/acusador, podem ser peritos, tendo pressupostamente, mau grado estas limitações, a independência, a isenção, a objectividade, a distância que, até por darem azo a uma prova que se impõe ao juiz até em demonstração em contrário, pode estar em dúvida visto estarem duplamente comprometidos com um dos sujeitos do processo, honra seja feita aos que com honestidade a tal se sujeitam, por ser esta a lei.
Em suma: o arguido, ante uma perícia feita por um funcionário da polícia que serve o seu acusador, pode designar para prova técnica da sua defesa um «qualquer coisa» [não encontro melhor nomenclatura] para fazer face a um meio de prova de valor tal que até há juízes que - retomo o pensamento do Doutor Marques da Silva - fazem dela uma Bíblia. É um sistema fantástico este. E estamos a falar num meio de prova que, ante as modernas formas de criminalidade [económica, financeira, informática, médica, enfim...], assume cada vez mais crucial importância.
Cuidado pois: cada perito é um perigo. Uma palavra sua e o juiz pode acreditar, por não poder duvidar.

A reserva, de caça

Uma pessoa vai a um julgamento. A imprensa relata o que acha que lá se passou. Se às vezes não é assim, outras vezes não é bem assim e muitas vezes não é sequer mesmo assim. Isto quando as audiências são públicas e há testemunhas que podem ler o jornal e compararem atónitas o lido com aquilo a que assistiram.
As causa dessa disfunção mediática são conhecidas: desatenção, impreparação, vontade de fazer notícia aquilo que muitas vezes é o lado menor do que foi julgado e coisas piores que são a alma e o motivo de certas «fontes».
Nasce daí a chamada «opinião pública».
A concorrência feroz nos media lança-os na caça ao escândalo, nivelando-os pelo sensacionalismo! Os partidos da governação já não se distinguem, a comunicação social já se confunde. Mesmo alguma imprensa económica, que deveria ser uma referência de rigor e distância, segue na onda.
Ora os blogs, e falo dos jurídicos, ganharam o hábito de copiar o que vem proclamado nos jormais, raramente os desanimados desmentidos, muitos menos os que saem encafuados desprezivelmente como cartas dos leitores. Os seus fiéis, que são juristas na sua esmagadora maioria, tomam como referência o «post», como se o ter afixado a notícia num tal sítio a torne mais credível.
Chega então a vez dos comentadores, quantos anónimos. A coberto dessa máscara, tomando como certezas o que leram, largam a opinar quase sempre agrestes, reprovadores, ásperos no adjectivo, impantes no julgar dos outros.
Seguem-se os que opinam sobre os que opinam. O tom sobe de ardor e a linguagem desce de nível. Chegam quase a vias de facto, num ridículo pugilato de cegos, sem nome, sem referência, luta de pseudónimos virtuais.
Passadas umas horas muda-se de asunto. Passou o jornal da manhã, veio a notícia on line da tarde, mais logo é o zapping na televisão: o matadouro prossegue, em busca de sangue fresco e de mais cadávares.
Uma pessoa vai a um julgamento e corre o risco de ver-se maltratada na praça pública pelo que fez e pelo que não fez, por uma caricatura de si.
Quando o processo ainda é secreto para os interessados e esburacado para certos meios, é o que se imagina.
Mandam as regras que, ante o que se diz nos media sobre processos pendentes se fique de bico calado. A mesma lei que impõe o dever de reserva aos profissionais forenses, abre as goelas aos que propalam, aos que especulam, aos que caluniam.
É um sistema magnífico este, apto a achincalhar impunemente.
Chama-se a liberdade de expressão e a publicidade das audiências e é isto um dos pilares da democracia. Magnífico sistema que a democracia inventou para rebentar de vez com a democracia!

Da precipitação ao precipício

Deve um director de polícia comentar um processo que está sob a alçada do MP? Deve o MP comentar processos que estão sob a alçada das polícias? Devem juízes, advogados, procuradores, polícias e paisanos comentarem os processos de uns e de outros, mesmo que sobre eles saibam nada?
Deve uma frase precipitada, a falar em precipitação, dar azo a tanta opinião precipitada? Andamos todos a reboque do individual sempre a pôr em causa o geral?
Aceita tanta gente ter minutos de tempo de antena para falar de coisas que têm anos de história e levam meses a mudar?
Não estamos a precipitarmo-nos pelo abismo da vulgaridade, com o país, divertido, a ver?
São perguntas, só perguntas, não estou em posição de afirmar.

Repetição e inovação

Num momento de um curso de formação organizado pela ASJP, permiti-me que, convocando a lição da vida, perguntar:
«Fale a experiência, na forma de uma pergunta: em quantos casos em que, tendo havido, por via da anulação, repetição do julgamento, não se obteve uma outra versão, quando não mesmo uma outra história diversa da que resultou do antecedente julgamento?

Exaspere-se a pergunta: quantas vezes cada repetição [e há casos de julgamentos repetidos três e quatro vezes] não se obteve de cada vez uma realidade, criando a séria convicção de que outras repetições dariam à Justiça a hipótese de encontrar uma nova fantasia de um real inatingível?

Do ponto de vista gnoseológico, o sistema de recursos deveria permitir, pois que reexaminando-se o julgado, uma melhor, mais rigorosa e mais exacta reconstituição do real, como se numa epistemologia genética, o conhecer se alcançasse pela reiteração da observação. Assim não é!»

À pai Adão

Estou a acabar de ler a «correspondência» trocada entre o Vergílio Ferreira e o Jorge de Sena, que a Imprensa Nacional editou em 1987 na sua «Biblioteca de Autores Portugueses».
Sena foi uma daquelas criaturas que tinha de si a mais extremosa opinião e que considerava, num registo que em si já era amável «a humanidade vil, hipócrita, porca e canalha»; o Vergílio Ferreira, que também se não tinha em má conta, embora se angustiasse com a tragédia dessa sua grandeza, lá lhe ia respondendo, dorido, em letra miudinha e escrita minuciosa.
Vem isto aqui, neste blog jurídico que deveria tratar de desumanidades, por causa de um instante de uma carta sua, escrita, a partir da sua casa na Avenida dos Estados Unidos da América, estando Sena na própria América e já naturalizado americano. Comentavam a extinção da Sociedade Portuguesa de Autores, ocorrida nesse ano de 1965: «Voltámos à justiça bíblica que condenou a Humanidade só porque Adão gostava de fruta».
Aqui fica, como tema para a meditação dominical de Vossas Excelências.