Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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Quando o Estado se isenta do que ao País proíbe!


Que o Estado a si mesmo se permite o que aos particulares proíbe é princípio ao qual a consciência social dos portugueses já se acomodaram. Basta ver as condições de falta de segurança e insalubridade em que estavam e estão ainda muitos tribunais para não falar nas repartições públicas em geral.
Agora que o Conselho de Ministros haja aprovado um diploma pelo qual o Estado isenta a Administração Pública de pagar durante três anos as coimas que são exigidas aos cidadãos e empresas é intolerável se não fosse mais um de tantos funestos exemplos.
O princípio decorre do aprovado em sede de Regulamento Geral de Protecção de Dados no último Conselho de Ministros, quinta-feira passada.


Segundo o comunicado:

«O Governo aprovou a proposta de lei que assegura a execução do regulamento comunitário relativo à proteção das pessoas singulares sobre o tratamento de dados pessoais e sua livre circulação.
Através deste diploma, «o Governo aprova a legislação nacional necessária à execução do Regulamento Geral de Proteção de Dados, adotando as soluções que o Estado considera mais adequadas para proteger os direitos das pessoas» num contexto de crescente competitividade das empresas no quadro da União Europeia (UE), refere o comunicado do Conselho de Ministros de 22 de março.
Com entrada em vigor dia 25 de maio, o Regulamento tem como principais novidades:

• O reforço dos direitos dos titulares dos dados;
• A definição de categorias especiais de dados pessoais – como os biométricos ou os de saúde; 
• A obrigação de uma autoavaliação, pelos responsáveis do tratamento de dados pessoais e subcontratantes, cabendo-lhes a obrigação de notificação prévia à Autoridade Nacional de Controlo; 
• A criação de mecanismos de certificação para comprovar a conformidade das operações de tratamento de dados levadas a cabo pelos responsáveis e subcontratantes com o Regulamento; 
• A obrigatoriedade de notificar a Autoridade Nacional de Controlo em caso de violação de dados pessoais;
• A obrigatoriedade da existência de um Encarregado de Proteção de Dados nas entidades públicas e privadas; 
• O agravamento dos valores das coimas, em caso de violação do Regulamento.»


Mas, como informou a ministra da Presidência, citada pela comunicação social: «“O regulamento permite que as coimas não se apliquem às administrações públicas“, anunciou a ministra, na conferência de imprensa do Conselho de Ministros, esta quinta-feira, uma vez que o Estado, ao contrário das empresas, não comercializa esses dados. A proposta do Executivo prevê que a isenção “aconteça por três anos e que depois seja reapreciada”. É o tempo do Estado se organizar para o “novo paradigma”, diz Maria Manuel Leitão Marques.»

Naturalmente, Senhora ministra. É caso para sorrir. Sem mais comentários.

Notícias ao Domingo!


Tive a oportunidade de assistir às duas sessões do evento, organizado pelo Forum Penal [ver aqui], em Lisboa, na Sala do Senado da Assembleia da República - devido à afluência, o que é de registar e augura os melhores resultados a esta agremiação - dedicado à (possível mas necessária) reforma do sistema legal das contra-ordenações.
Isto permite-me deixar aqui, algumas breves reflexões, ante o que me foi dado presenciar, meros enunciados de três questões.
Primeiro, não me parecer ser possível que um sistema de punição não penal, concebido que foi como de «mera» ordenação social, pensado, aliás, na origem para suceder às contravenções - lembremos que na formulação inicial em 1979 havia uma inexequível e por isso abortada conversão automática de todas as contravenções em contra-ordenações - consiga resistir, sem uma mudança de estrutura, a um mundo novo, que se inaugurou desde então, com a hipertrofia das entidades administrativas de regulação financeira, bancária, seguradora, em suma, da economia em geral e do ambiente, e aplicação por estas de coimas que vão em alguns casos aos quinze milhões de euros, sendo de aplicação por igual, sem mudança de rito procedimental [pois há só uma forma de processo], às insignificâncias atinentes às prescrições de administração local, rodoviária e afins.
Um sistema de simplificação formal, estruturado na lógica de um procedimento disciplinar, em que a defesa judicial surge só após a pena e onde a entidade tutelar assume a plenitude das funções da investigação à sanção, choca diametralmente - a não ser que não se queira ver - com as necessidade de reforçar garantias, estando em causa coimas de valores que o Direito Penal não acompanha na prática com as suas multas.
E quando se fala em "garantias" que se não pense que estamos a reduzi-las às do arguido - torna-se necessário dizer isto num mundo que passou a olhar quase com desdém para as garantias deste sujeito como se fossem causa de entrave processual, luxo de prodigalidade liberal, razão da impunidade dos ilícitos - mas sim logo para começar garantia de certeza na busca da verdade - pois quem soma o poder de investigar com o de acusar e ademais o de punir é atreito a enganos derivados da visão unilateral das coisas e arrisca o seu prestígio em resultado desse superavit de poderes.
Além disso, porque um sistema que expressamente manda aplicar, como Direito subsidiário integrador de lacunas, normas do Direito penal e do Direito Processual Penal, que passam a ser, por isso, Direito a aplicar aos processos contraordenacionais e à concretização das coimas aplicáveis, não pode, sob pena de se sujeitar a uma evidente contradição de princípios, negar, para o enquadramento de tais normas, definição dos seus limites e tutela das situações que se apliquem, as garantias constitucionais estabelecidas por exemplo nos artigos 29º e 32º e outros da Lei Fundamental para as normas com aquela específica natureza criminal. Que justifica e como legitimar esta desnaturação?
É que, usar tal expediente, se serve as conveniências da prática dos reguladores, invalida, por um lado, o princípio da unidade e coerência do sistema jurídico - normas de cunho penal perdem tal natureza, ao serem remetidas, por imperativo legal, em ordem a regularem o domínio contraordenacional, sem que, no entanto haja razão para a degradação da sua qualidade jurídica; por outro, porque se trata, na verdade, de desguarnecer o âmbito e a intensidade da tutela de que estas normas de cunho criminal gozam, independentemente de operarem por aplicação directa ou através de remissão. 
Enfim, a partir daqui todo um universo de aporias surgem, nomeadamente quando se coteja o regime geral das contra-ordenações com os múltiplos regimes especiais, como o encontro amplamente evidenciou.
E, enfim, tive a possibilidade de lançar uma questão que me vem preocupando e para a qual ainda procuro resposta que se convença: se o Tribunal Constitucional já emitiu juízo de conformidade constitucional a um sistema - que é o que vigora - de cumulação na mesma entidade administrativa dos poderes para investigar, deduzir acusação, avaliar a defesa e sentenciar - sem se impressionar com a perda de isenção que é abstractamente possível, para não falar na lesão da regra da separação de poderes [porque isso implicaria aceitar, o que tal jurisprudência nega, que a regra do acusatório processual penal vale aqui], então, que pensar quando, a toda esta soma de poderes, se soma o poder de decretar normativos reguladores cuja violação aquelas entidades investigam, pelos quais acusam e no fim punem, tornando-se legisladores, intérpretes autênticos e aplicadores das normas às infracções que dão como verificadas?


O ilícito dito de "mera" ordenação social


A princípio, visto do ponto de vista ingénuo das meras categorizações jurídicas abstractas, parecia lógico e isento de problemas de maior, tinha a sedução do que ainda não se vira pelo ângulo dos efeitos práticos e preenchia a necessidade de racionalização dos que supõem o Direito como um teorema da geometria.
Nessa altura o teoria do Direito Criminal fazia-o recuar para as zonas subsidiárias que o tornavam algo de fragmentário no campo do Direito punitivo, subsidiário, enfim - para usar uma expressão latina clássica a ultima ratio - no campo da repressão, algo que só entraria em acção quando e na medida em que estivessem em causa valores e interesses - bens jurídicos se lhes chamou a partir de então - com consagração constitucional.
Eram tempos em que a categoria das contravenções, pertencendo como coisas menores ao domínio do Direito Penal, pareciam no campo substantivo um excesso para este, e no campo das competências judiciárias e do processo, uma sobrecarga, incongruentes, em suma, com a valia e a solenidade que presidiriam por essências ao que do Direito Penal se reclamasse. E daí que tivessem de ser dele expurgadas e substituídas por algo de diverso.
Veio assim, sugestivo, o universo das contra-ordenações, ilícitos de cunho estritamente administrativo e as coimas, sanções pecuniárias que no seu âmbito se poderiam aplicar. Era assim na Alemanha e isso valia como critério de legitimação a quantos no Direito se reviam em tudo o que de germânico houvesse, ainda que discrepante com a nossa cultura ou com o nosso tipo de sociedade, ou com a globalidade do nosso sistema jurídico.
O ilícito de mera ordenação social fez assim a sua entrada como forma de punir, uma outra forma acrescida de punir, que rapidamente se espraiou pelos sectores das actividades de cunho patrimonial, financeiro, mas não só, afinal em todos os campos em que a regulação administrativa se tornava necessária, como o da concorrência, o dos mercados, o financeiro, o bancário, o ambiente, o fiscal, e tantos e tantos outros.
Foi atribulada a sua aparição no nosso sistema jurídico: aprovado pelo Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho [ver aqui], foi esvaziado e colocado no limbo da suspensão pelo Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro [ver aqui], pois que se tornava inviável torná-lo mera conversão automáticas das antigas contravenções e transgressões e sem encontrar as entidades públicas, a quem se destinava, providas de estruturas para a sua aplicação. Só entraria em vigor com o Decreto-Lei n.º 432/82, de 27 de Outubro [ver aqui a redacção em vigor]
Vista a realidade com os olhos desses tempos, início da década de oitenta, pareceria que doravante as realidades de menor censurabilidade social passariam a ser reprimidas por esse Direito Administrativo punitivo, através de um procedimento administrativo também adequado a este ramo jurídico, pautado pela ductibilidade formal, simplificação e celeridade; tudo garantido com controlo judicial das decisões. E que tudo se pautaria numa lógica de proporcionalidade de não intromissão excessiva nos direitos de defesa nem na liberdade patrimonial dos cidadãos.
Olhando hoje que panorama encontramos?
Primeiro, o valor elevadíssimo a que podem chegar as coimas, tornando-as, no ângulo prático, bem mais agressivas para o património dos cidadãos do que era suposto suceder naquele tipo de processo.
Segundo, o facto de o Direito Penal ter estado em expansão, abrangendo progressivamente territórios onde dificilmente se concebe a sua natureza supostamente subsidiária, cumulativamente com a repressão contra-ordenacional, ambas concorrendo para uma sobrecarga punitiva sobre a mesma realidade.
Terceiro, a circunstância de o procedimento contra-ordenacional, privado que está de garantias formais, servir amiúde de forma expedita de captação de prova para uso subsequente no processo penal; assim um processo em que o investigador é também acusador e julgador, torna-se, como se forma de processo justo, meio de obtenção de prova que acaba por ser incorporada no processo penal com as gravosas consequências daí decorrentes.
Dito de "mera" ordenação social este tipo de ilícito tornou-se, pois, num instrumento complementar e por isso acessório da repressão penal, com ela miscigenada na prática dos seus efeitos.

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Quadro: Pieter Brueghel, o jovem