Tive a oportunidade de assistir às duas sessões do evento, organizado pelo Forum Penal [ver aqui], em Lisboa, na Sala do Senado da Assembleia da República - devido à afluência, o que é de registar e augura os melhores resultados a esta agremiação - dedicado à (possível mas necessária) reforma do sistema legal das contra-ordenações.
Isto permite-me deixar aqui, algumas breves reflexões, ante o que me foi dado presenciar, meros enunciados de três questões.
Primeiro, não me parecer ser possível que um sistema de punição não penal, concebido que foi como de «mera» ordenação social, pensado, aliás, na origem para suceder às contravenções - lembremos que na formulação inicial em 1979 havia uma inexequível e por isso abortada conversão automática de todas as contravenções em contra-ordenações - consiga resistir, sem uma mudança de estrutura, a um mundo novo, que se inaugurou desde então, com a hipertrofia das entidades administrativas de regulação financeira, bancária, seguradora, em suma, da economia em geral e do ambiente, e aplicação por estas de coimas que vão em alguns casos aos quinze milhões de euros, sendo de aplicação por igual, sem mudança de rito procedimental [pois há só uma forma de processo], às insignificâncias atinentes às prescrições de administração local, rodoviária e afins.
Um sistema de simplificação formal, estruturado na lógica de um procedimento disciplinar, em que a defesa judicial surge só após a pena e onde a entidade tutelar assume a plenitude das funções da investigação à sanção, choca diametralmente - a não ser que não se queira ver - com as necessidade de reforçar garantias, estando em causa coimas de valores que o Direito Penal não acompanha na prática com as suas multas.
E quando se fala em "garantias" que se não pense que estamos a reduzi-las às do arguido - torna-se necessário dizer isto num mundo que passou a olhar quase com desdém para as garantias deste sujeito como se fossem causa de entrave processual, luxo de prodigalidade liberal, razão da impunidade dos ilícitos - mas sim logo para começar garantia de certeza na busca da verdade - pois quem soma o poder de investigar com o de acusar e ademais o de punir é atreito a enganos derivados da visão unilateral das coisas e arrisca o seu prestígio em resultado desse superavit de poderes.
Além disso, porque um sistema que expressamente manda aplicar, como Direito subsidiário integrador de lacunas, normas do Direito penal e do Direito Processual Penal, que passam a ser, por isso, Direito a aplicar aos processos contraordenacionais e à concretização das coimas aplicáveis, não pode, sob pena de se sujeitar a uma evidente contradição de princípios, negar, para o enquadramento de tais normas, definição dos seus limites e tutela das situações que se apliquem, as garantias constitucionais estabelecidas por exemplo nos artigos 29º e 32º e outros da Lei Fundamental para as normas com aquela específica natureza criminal. Que justifica e como legitimar esta desnaturação?
É que, usar tal expediente, se serve as conveniências da prática dos reguladores, invalida, por um lado, o princípio da unidade e coerência do sistema jurídico - normas de cunho penal perdem tal natureza, ao serem remetidas, por imperativo legal, em ordem a regularem o domínio contraordenacional, sem que, no entanto haja razão para a degradação da sua qualidade jurídica; por outro, porque se trata, na verdade, de desguarnecer o âmbito e a intensidade da tutela de que estas normas de cunho criminal gozam, independentemente de operarem por aplicação directa ou através de remissão.
Enfim, a partir daqui todo um universo de aporias surgem, nomeadamente quando se coteja o regime geral das contra-ordenações com os múltiplos regimes especiais, como o encontro amplamente evidenciou.
E, enfim, tive a possibilidade de lançar uma questão que me vem preocupando e para a qual ainda procuro resposta que se convença: se o Tribunal Constitucional já emitiu juízo de conformidade constitucional a um sistema - que é o que vigora - de cumulação na mesma entidade administrativa dos poderes para investigar, deduzir acusação, avaliar a defesa e sentenciar - sem se impressionar com a perda de isenção que é abstractamente possível, para não falar na lesão da regra da separação de poderes [porque isso implicaria aceitar, o que tal jurisprudência nega, que a regra do acusatório processual penal vale aqui], então, que pensar quando, a toda esta soma de poderes, se soma o poder de decretar normativos reguladores cuja violação aquelas entidades investigam, pelos quais acusam e no fim punem, tornando-se legisladores, intérpretes autênticos e aplicadores das normas às infracções que dão como verificadas?