Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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Justiça: Arte ou Ciência?


Porque baseado no precedente, na lógica do stare decisis [ver aqui], o sistema de justiça norte-americano valora muito a prognose do comportamento judicial. O respeito pela decisão antecedente limita a capacidade de originalidade do subsequente e cria, por isso, balizas à possibilidade de antevisão do sentido da mesma.
Os estudos empíricos sobre o tema abundam e, a partir dos anos cinquenta, a crença nas virtualidades epistemológicas dos métodos quantitativos e o desenvolvimento da estatística levou surto de uma disciplina própria denominada jurimetria [jurimetrics, no original] cuja essência se pode captar aqui, a qual visava precisamente encontrar o algoritmo que - ainda que pela média probabilísticas - permitisse antecipar a sentença em espera.
Aparentemente a evolução do pensamento contemporâneo levou a minar a crença no positivismo que informa um tal modo de tentar conjecturar as decisões. Mas, como li aqui, ainda resta, talvez a nível analítico, essa crença na virtualidade da computação para achar uma racionalidade na diversidade do comportamento humano.
Tudo isto transporta a uma questão filosófica: a haver invariâncias descortináveis pelos resultados pode concluir-se que a justiça em concreto é, afinal, menos subjectiva e mais científica, concretização, assim, da Ciência do Direito, ou, bem pelo contrário, do que se trata é saber que decide um juiz, sobretudo quando se junta a outro juiz e, em conjunto podem ter comportamento diverso do que resultaria, diverso fosse o conjunto, tudo a mostrar que, no fundo, é do casuismo e do subjectivismo da Arte de Julgar que falamos?
E, honestamente, tudo leva a uma questão de fundo que tem a ver com a formação dos colectivos e a não intervenção do presidente nos tribunais superiores salvo em caso de empate: até que ponto a vontade que era suposta ser de três e passou a poder ser a de dois e não se está em risco de se tornar a de um acolitado com a concordância de um outro quanto ao pensado a solo e assim decidido em dueto?

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Fonte da imagem: aqui.

Notícias ao Domingo!



OCDE/Corrupção/pessoas colectivas: os países que integram a OCDE estão abrangidos por uma Convenção visando o combate à corrupção, complementada por diversos outros instrumentos jurídicos [ver aqui]. No âmbito das actividades daquele organismos está a ser conduzido um inquérito [ver aqui], baseado num relatório [ver aqui] quanto à aplicabilidade de mecanismos jurídicos específicos visando a responsabilização das pessoas legais (ditas também morais nos países francófonos ou colectivas segundo o nosso Direito).

Portugal/branqueamento de capitais: a CMVM mantém uma lista actualizada da legislação aqui

Brasil/violência doméstica/alteração à Lei Maria da Penha: A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) define que a renúncia à representação só pode ser feita durante audiência específica e na presença do juiz. O projeto do Senador Eduardo Lopes [ver aqui] prevê que seja marcada nova audiência, 60 dias após a primeira, para que a vítima possa confirmar seu posicionamento.

ReverLaw: baseado no conceito do jogo Pokemon foi lançado pela Universidade de Wetsminster um programa de ensino para juristas criminalistas visando, através da imersão na realidade virtual, fazê-los encontrar os meios de prova para um caso de homicídio. Para os incrédulos ver aqui a notícia e aqui o site oficial.

PGDL/legislação anotada: «dando continuidade e alargando o âmbito do trabalho que tem sido desenvolvido, relativo à publicação de legislação e jurisprudência, a PGDL, vai a partir de agora, proceder, à anotação, com jurisprudência, pareceres e doutrina, não só dos diplomas legais da área penal, mas também de outros diplomas, começando pelos da área laboral», informa o magnífico site da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa [ver aqui]

Revista Julgar/ASJP/CEJ/análise à alteração às leis penais/conferência/28.09: realiza-se no CEJ. Ver o programa aqui

Metáfora e ironia no Direito: visto ângulo de uma tese de doutoramento. Autor: Pedro Parini Marques da Silva. A ler aqui.

Leitura/Espanha/Branqueamento culposo de capitais: da autoria de Calderón Tello, e Lyonel Fernando, trata-se uma extensa monografia sobre a criminalização do branqueamento culposo de capitais. [pode ser adquirido aqui]

«PARTE I. Elementos para configurar el delito de blanqueo de capitales culposo o por imprudencia grave Capítulo I. El delito culposo o imprudente Capítulo II. El delito de blanqueo de capitales imprudente 

PARTE II. Delimitación del ámbito de aplicación entre los delitos de blanqueo de capitales y receptación Capítulo III. Protección de bienes jurídicos o de la vigencia de la norma: consecuencias dogmático-prácticas de la discusión material respecto del blanqueo de capitales y de la receptación Capítulo IV. Bien jurídico protegido por los delitos de blanqueo de capitales: ¿Protegen el blanqueo y la receptación distintos bienes jurídicos? Capítulo V. Objeto material en los delitos de blanqueo de capitales: hacia una necesaria delimitación del ámbito de aplicación entre el delito de blanqueo de capitales y el delito de receptación» [da informação editorial]

O humor e a compreensão



O humor não ofende. Ajuda a compreender. A epistemologia contemporânea, sisuda e chata, dominada pela frieza lógica e seus resfriados mentais recolhe-a entre cobertores. 

H. L. A. Hart


Lembremos hoje H. [erbert]. L. [ionel] A. [dolphus] Hart [nasceu em 1907].

De origem polaca, trabalhou durante a Segunda Guerra nos Serviços Secretos britânicos.
Barrister de sucesso, seria professor de filosofia do Direito em Oxford. É uma personalidade central no pensamento jurídico contemporâneo [sobre a sua vida e obra ver um resumo aqui ou aqui] e autor de livros determinantes como Causation in the Law [1959], The Concept of the Law [1961], este uma exposição central sobre o positivismo jurídico contemporâneo, bem como especificamente na área jurídico-criminal como The Morality of Criminal Law [1965] e Punishement and Responsability [1968].
Foi um dos defensores da descriminalização em Inglaterra da homossexualidade, o que só se tornaria efectivo em 1967 relativamente a adultos de idade superior a 21 anos [ver o texto originário da lei aqui].

Nicola Lacey, professora na área criminal em Oxford, escreveu em 2006 uma sua biografia [ver aqui] intitulada The Nightmare and the Noble Dream. Um estudo sobre o seu pensamento, da autoria do Professor John Finnis pode ser lido aqui.

A Havard Law Review permite agora acesso gratuito ao seu estudo sobre o tema da discricionariedade, não apenas no domínio do Direito Administrativo mas, afinal, como uma categoria central da decisão jurídica, incluindo penal. Pode ser encontrada aqui.

Uma entrevista biográfica consigo levada a cabo pelo Professor David Sugarman está no youtube [consiste em nove partes; arquivei-a aqui].

O caminho pedregoso


Talvez ao sair da Faculdade eu já não tivesse do Direito a noção de que ele se exprimia more geometrico, como uma racionalidade de postulados demonstráveis, como uma escolástica de silogismos dedutíveis. Apenas o meu contacto com zonas crescentes do pensamento filosófico que então me povoavam o espírito e que me levaram a visitar a genialidade de Leibnitz e todos os outros que o antecederam, terminando então em Norbert Wiener, e a traduzir mesmo um capítulo do livro Giuscibernetica, macchine e modelli cibernetici nel Diritto do professor Mario G. Losano para uma antologia de textos sobre as novas epistemologias - a qual a PIDE entretanto apreendeu em ainda em fase de provas para revisão por suspeitar que poderia trazer o vírus da subversão, imagino porque alguns autores do livro viriam da "Cortina de Ferro" - apenas tudo isso me faziam supor que houvesse alguma homologia entre os modelos que a ciência do mundo físico estudava e aquilo de que o Direito tratava, uma possibilidade de extrapolar da lógica alética para a lógica deôntica, como imaginou o finlandês von Wright e eu aprendi, conhecendo-os, com o espanhol Miguel Sánchez-Mazas e o polaco Georges Kalinowsi.
Esse tempo passou. O que poderia ter sido um caminho, que me traria uma falsa pista intelectual, salvando o Direito do desprezo, mas talvez por troca com uma vida universitária, foi. Pelas minhas mãos, a incúria, a sorte da vida, sei lá.
Regressei à estrada por onde estão os marcos miliários romanos que mostram que o caminho do Direito se faz pelo solo pedregoso e pela heurística da tentativa e erro. Advogado, aprendi pela forma mais dura de se aprender, rasgando as mãos a abrir caminho onde caminho teria de haver.
Estou hoje convencido de que o apriori pesa muito em muitas mentes, o jurídico torna-se em pura legitimação para todas as possíveis soluções. Que a razão é apenas um modo.
Lembrei-me disso este começo de manhã, não por saudade desse tempo de vida acumulado mas por me perguntar se não haverá da decência da Justiça um modo pelo qual tudo se não resuma à retórica e à sofística da argumentação.

Abundância de direitos...

O tema promete porque o título provoca. Trata-se da alegada «abundância de direitos» em tempo de crise. Oradores, Cunha Rodrigues e Teresa Pizarro Beleza.
O evento tem lugar na Livraria Almedina, ao Saldanha, dia 22, pelas 18:00. Organiza o Instituto Europeu.
Onde encontrarão os oradores a abundância? E, sobretudo, quem detém os frutos da ubérrima colheita?

A inesperada definição

Há um modo de definir os conceitos não pelo enunciado das suas características essenciais, sim pela sugestão do que significam. Calhou, ao folhear o estudo Reconhecimento, do desejo ao Direito, obra conjunta de Maria Lucília Marcos e A. Reis Monteiro, tese universitária sobre essa noção transdisciplinar, encontrar do Direito esta ideia: «é a dialética pela qual o Homem se força a um melhor que ele inventa». Atribui-se a René Maheu, filósofo, que foi Director-Geral da Unesco entre 1961 e 1974.
Espantará este modo de conceber a todos quantos do Direito vêem a sua faceta repressiva, destinada a estripar o que se tem por mal e a erradicar o indesejado. E espantará ainda quantos o sentem, afinal, como floresta de regulamentos menores, por causa dos quais a liberdade contemporânea é garrotada a tal ponto que até o simples atravessar a rua está previsto e sancionado em qualquer norma que se quer lei.
Aquém do espanto, a fórmula, provinda deste amigo de Jean-Paul Satre e de Simone Beauvoir, que, porém, nem obra relevante deixou, diz mais do que muitas das tentativas feitas por ilustres jurisconsultos para acharem da noção a essência.
Está ali tudo, desde a coerção, tão cara aos positivistas, até ao optimismo legitimadora da norma justa, a que, mesmo quando edita o mal necessário o faz em nome do bem possível. 
Mas há sobretudo ali a invenção, essa expressão máxima da irrequietude de conceber, que anima todos os reformadores sociais, aqui a luta por um outro Mundo, além a luta por um novo Homem, através do Direito, isto é, com universalidade na previsão, com individualização na aplicação e sobretudo por bem fazer.

A floresta de silvas

Reduzido a uma técnica, transformado numa profissão, vergado a ter de cumprir formulários, trabalhado no contra-relógio da ameaça do prazo cominatório, torna-se o Direito naquilo que não é: uma função pública arrasadora da alma.
Houve tempos em que, ligado que estive à docência, dei comigo a perguntar-me se estava a ministrar ensino universitário ou formação profissional. Eram tempos em que, se para explicar um determinado preceito da lei me atrevia a recordar a sua origem histórica, logo a atenção do auditório se perdia, para logo regressar, assim eu regressasse à comezinha leitura da norma por outras palavras mais simples e vulgares.
Estariam a antecipar um tempo de regresso em que à funcionalização se juntaria a sobre-simplificação.  O argumento de autoridade - com o consequente desvalor inconsciente de quem o usa - faria o resto. É o tempo das fórmulas crassas como «na esteira de», a abrirem via para a desnecessidade de outra fundamentação que não seja o magister dixit ou - agora que se vive a época do desprezo pelos professores por causa da desvalorização dos pareceres, obra quantas vezes de suas mãos - o curia dixit.
Lembrei-me disto ao ter lido um breve estudo do António Braz Teixeira acerca da reacção ao positivismo nos estudos jurídicos. Cita nele o Professor Manuel Paulo Merêa, que faleceu em 1976. Historiador do Direito, tenho dele alguns [infelizmente poucos] livros, nomeadamente um sobre o Direito Visigótico.
Historiador do Direito, mas também seu filósofo, foi autor de uma análise do que chamou uma filosofia «eminentemente humana para o Direito», de pendor «acentuadamente anti-intelectualista, que via no homem, ao lado da inteligência e da razão, um fundo infinitamente rico de sentimentos, de instintos, de tendências, de necessidades, de aspirações, intraduzíveis por vezes em ideias claras e definidas justamente porque são irredutíveis à inteligência raciocinante.»
Estou na fase em que sinto a urgência em tirar o Curso de Direito. Não aquele que me trouxe até aqui, mas um outro, em que regressaria ao princípio, dando por írrito e nulo tudo quanto vivi e começando de novo, para usar a frase de Leonardo Coimbra que é uma proclamação estupenda de vida nova.
Talvez assim eu consiga encontrar onde se perdeu na floresta de silvas do Direito o Humano, que era o seu natural destinatário, a sua justa medida, o autor das leis e o primeiro a obrigar-se por elas.

P. S. Vivo, aliás, na ânsia de reencontrar-me com o que gosto e tentar ler tudo sobre isso mesmo. Amanhã vou ver se encontro o texto que acima cito, o qual data de 1913. Foi publicado pela Imprensa Nacional mais recentemente. Começo por ali e vou adiante.

O assoreamento crminal

O assoreamento da sociedade civil pelo Direito Criminal vai gerando a sobrecarga dos tribunais. À falta de melhor método para implementar as suas prescrições, o legislador edita sempre umas normas a criminalizar a conduta dos que forem prevaricadores com penas pesadas na sua aparência abstracta, julgando que assim serve a prevenção geral e mostra aos eleitores que, em matéria punitiva, o Poder leva a sua missão a sério. Vistas depois - mas quase ninguém vê - as penas concretas aplicadas pelos tribunais, chega-se à conclusão de a realidade desmente a dosimetria abstracta. 
Que tudo isso contribua, como seu efeito directo, para a sobrecarga da Justiaç Penal, é patente. Que tudo isso tenha efeito nas erradicação das condutas, é mais do que duvidoso.
Uma coisa é certa: o Direito Penal, contra o que se ensina nas escolas de Direito, de há muito que deixou de ser a ultima ratio na censura legal às condutas. A sua banalização está em vias de o tornar inoperante. Doem mais as coimas que o legislador prevê tanta vez entre mínimos ridículos e máximos absurdos.
O fenómeno não é português. Leia-se o que se passa na Alemanha, aqui, País que é um farol hipnótico de muito do nosso pensamento jurídico.

A Cultura e a função

Ninguém se deve esgotar na profissão. Mas os que no Direito vivem e de todos eles aqueles que directamente na Justiça se aplicam tudo devem fazer para que a Justiça os não esgote. Deve impor-se um sentimento de vergonha quando se deixa de ir ao cinema, quando já não se lê um livro, quando em matéria de televisão se prefere a soporífera. Quando dos jornais se compram os da banalidade factual feita "notícia".
A sociedade organizada, com a sua minúcia exploradora, esgota no indivíduo a vertente criadora: robotiza-o pela rotina, secundariza-o, funcionalizando-o. Além disso, torna-o executante ainda que dourando-o de executivo, para que perca da originalidade a capacidade de ser criativo. Enfim, tudo massifica e assim nivela, e esgota, esfalfando, os que assim submete à aniquilação, prelúdio da rendição.
Que em cada acto em que um humano encontre na Justiça alguém trajado para uma função ali esteja, com todo o catálogo de cicatrizes da luta, convicções na formação do ser e angústias no convívio com a existência, um Homem e nele toda a História da Humanidade.
É pela Cultura que a Ciência se torna Arte. E o Direito não é mais do que apenas isso. As arrogâncias em contrário são a ideologia do autoritarismo mecanicista da máquina de punir e dos funcionários da coacção.

Monsaraz

O quadro é simbólico. Está em Monsaraz esse magnífico e mítico lugar. Chama-se O Juiz das Duas Caras. É um fresco do século dezasseis. Representa o bom e o mau juiz, a boa e a má Justiça. É um elogio ao juiz recto e honesto. Só sabendo do mal se valoriza o bem.

A Brave New World

Até aqui a discussão sobre o processo penal era o problema do Estado e dentro dele a questão corporativa e assim o tema do poder: quem manda? A matéria desdobrava-se numa miríade de assuntos mas todos em torno do mesmo: a quem compete o poder de dirigir o inquérito, aos procuradores ou a juízes? pode o Ministério Público decretar nulidades ou tal é pecúlio privativo do poder judicial? Deve a instrução ser um acto de cassação sobre a decisão da acusar ou arquivar ou um acto de sobreposição jurisdicional determinando o caso julgado do definitivo arquivamento pela não pronúncia e a forçosa submissão a julgamento mesmo que em termos discrepantes com o acusado? Deveria, em matéria de medidas de coacção, o juiz ir para além do requerido pelo Ministério Público? Fazia sentido a "correcionalização" do processo penal pelo qual se singularizava, sem que o poder judicial se pudesse a tal opor, em detrimento da competência natural do colectivo, assim o Ministério Público o quisesse?
A degradação da vítima, a diabolização da defesa faziam parte da retórica pela qual o Estado se impunha à sociedade civil.
Hoje, olhando para o panorama que começa a ganhar corpo, esse mundo acabou.
Talvez porque o Estado tenha deixado de querer ser muito Estado e tenha perdido legitimidade moral para se assumir como Estado, talvez porque os do Estado o foram cedendo à sociedade comercial, "outsourcizando-o" interesseiramente; talvez porque os jovens que hoje determinam a agenda pública cheguem às escadarias do mando e do pensamento que mandará seduzidos pelo neoliberalismo político, filho espúrio do serôdio capitalismo em que vivemos. Assim como os seus pais foram o fruto do marxismo ideológico, do qual emergiu a centelha da cultura judiciária que ainda impera.
Virou a página. Hegel morreu, envenenado por Marx.
Olhando para o que começa a emergir, o modelo é o americano. Fez a sua entrada pela porta da criminologia radical. A escola sociológica abriu as portas a que toda uma literatura tida por científica fizesse a sua aparição na cultura jurídica portuguesa e através dela a civilidade do quantitativo como critério de validação pragmática da verdade eficaz. O que fora a sedução pela germanofilia que centrara arraiais durante a Guerra no pensamento coimbrão, com a exportação da pesada sistemática alemã e sua dogmática imperial, tida como a única inteligente e universalmente pertinente, enquanto abstracção conveniente à legitimação dos voluntaristas diktats necessários e seus contrários, está a finar-se.
Ontem passei pela "Arco Íris" que há anos que já é Coimbra Editora. Ali estava Paulo Dá Mesquita e um grosso tomo sobre o direito probatório...segundo o modelo americano. Já o tinha visto anunciado aqui. A Brave New World.

O discurso final

Que no nevoeiro do ideal abstracto se não esqueça a materialidade do concreto, que no formulação aglutinadora do geral se não perca a referência do individual, que na construção dos sistemas sociais se não abandone o humano, que na contabilidade aos contribuintes se não despreze o cidadão, que na valoração do indivíduo se não apouque a sua pessoa. Que na hora de julgar os outros não nos condenemos.
 

Arreando bandeiras

O economicismo que a troika impôs como critério à Justiça, mais o "liberalismo" que, vindo da política, contagiou a cultura judiciária, encontrou, de mãos dadas com a lógica do pragmatismo, agora os seus instrumentos de acção. Chamam-se funcionalização das magistraturas, taylorização do processo, negocismo sentencial.
Tudo com o aplauso dos que querem mais poder, a complacência dos que querem menos trabalho, a instigação dos que querem mais processos findos em menos tempo.
A aparência de moralidade com que o produto é servido chama-se a «filosofia do consenso».
Servida por magistrados tratados cada vez mais como simples funcionários, cuja valorização é aferida estatisticamente considerando como importante respectiva produtividade quantitativa, a Justiça é agora confrontada com um sistema pelo qual ao juiz caberá entrar em negociações com os procuradores e com os arguidos quanto à medida da pena para que, confessando estes, os processos andem mais depressa.
A isto junta-se o fenómeno galopante da desjudicialização, retirando cada vez mais casos aos tribunais e conferindo aos tribunais cada vez menos meios.
O modelo, dizem, seduzidos, vem da América. Percebe-se. Com o silêncio dos que desfraldaram em tempos bandeiras pela justiça soviética e pela justiça chinesa. 
Nada como o autoritarismo para conviver com o liberalismo. Divergem no que pensam quanto ao Estado, convergem no que sentem pela Nação: desprezo!

Razão e sentimento no Direito

Inauguro este ano com um dos mais belos textos que me foi dado ler nos últimos tempos, sobre o Amor e a Justiça. Poderia transcrever, se citar não fosse uma forma de lhe enrugar o viço, empalidecendo-lhe a cor. Escreveu António Manuel Hespanha. Pode ler-se aqui. É um estudo sobre os sentimentos, quantas vezes defendidos com paixão e julgados com contida emoção, no território da Justiça humana e para esse ser que morre quando lhe pára o coração, o Homem, o único sujeito de todos os direitos e de todas as obrigações.

O certo e o errado

É uma filosofia de pequenos passos. Um trabalho de pessoa a pessoa. Damon Horowitz ensina filosofia através do Prison University Project, levando aulas de nível universitário aos reclusos da Prisão Estadual de San Quentin. Nesta poderosa e curta palestra, conta a história de um encontro com o certo e o errado que rapidamente se torna pessoal, que evidencia como o pensar se pode tornar no fazer. A ver e ouvir, na íntegra, aqui.

Levante-se o Véu!

A editora não levará a mal que revele o que é este texto de abertura do que escrevi. Espero que os leitores não tomem esta citação como vaidade. É apenas uma forma de prevenir para o tom e para agradecer a oportunidade que me deram de, levantando a cabeça do quotidiano, pensar o que tenho visto e vivido.

«Num mundo dual, num mundo que se simplificou, num mundo em que o maniqueísmo virou modo de sobrevivência dos ingénuos e de dominação dos perversos, a distinção entre o bem e o mal [na Justiça] tem sentido e sucesso: os críticos ganham o seu espaço hiperbólico, o de diabolização do que há, os apologistas o seu território de redenção, legitimando quanto é. A pequena esquadra destes, mercenários tantos deles, não consegue, porém, nem se atreve, a enfrentar o esquadrão de todos os outros. Nem batalha há, mas longo cerco, com o seu cortejo de depredação, desânimo, ruína. É a crise permanente da Justiça, a banalização da noção de crise, a indiferença ante tudo isso.
Olhando para quantos estão no intra-muros da Justiça não há gente feliz. Nenhuma testemunha, nenhum ofendido, nenhum arguido, nenhum cidadão gostou do que viu ou gostaria de viver aquilo pelo que passou, fosse só uma outra vez».

More geometrico

Paulo Ferreira da Cunha é um daqueles pensadores de que nunca se aproveitou o suficiente, pela invulgaridade, o atípico, o surpreendente modo de ver. Guardo os primeiros livros e o remorso de ter lido pouco. Esta noite li-o no "As Artes entre as Letras", um jornal cultural que se edita no Porto e de que é colaborador. Escrevia, tristonho, sobre o abaixamento do nível universitário, a «infatilização da Universidade», a «liofilização dos cursos». E de passagem aludia aos «burocratas da coacção», e pela palavra fui transportado ao mundo daqueles para quem o Direito é uma técnica e a Justiça um reflexo condicionado, quantos fruto dos que tornaram aquele Ciência para que não pudesse ser Arte, formação profissional para não ser Universidade e geraram esta tão desapegada como inumana Justiça.
O rancor enfrenta o ódio que se defende como se comoção apenas fosse e revolta. A uma aritmética ilusória que os manuais ensinam segue-se uma álgebra de incógnitas que é a equação em que se torna o acto de julgar. 
É um mundo em que os sentimentos só entram quando silenciosos e encontram, more geometrico um lugar possível, diminuto. Morto o homem fica a função. Objectivada. Ilusoriamente racional. É um mundo em que o riso e as lágrimas valem como sintoma, raramente como pretexto, por vezes como argumento.

O menor denominador comum

Vistas com mais minúcia, decomposto o raciocínio que lhes está subjacente, muitas decisões jurisprudenciais e quanta literatura jurídica - aquilo a que [de novo a recorrência teológica] se chama "doutrina" - são manifestações puras de voluntarismo infundamentado e autoridade não convincente. As excepções notam-se.
Voluntarismo, porque afirmam e decidem, dizendo que ante o problema é esta a solução, sem que, primeiro, problematizando a questão, verifiquem da sua correcta configuração, e depois se ocupem da adequação do modo de enunciar os problemas que cabe resolver. São diktats emanados de quem sente poder sem ter interiorizado que há, em anterioridade a esse poder, o dever. E no caso o dever é o de convencer. E na Justiça o convencimento do outro só pode resultar da força do eu. De outro modo um qualquer maquinismo faria as vezes, fazendo de conta. Ora não há convencimento sem fundamentação. E não há fundamentação sem argumentação em que o ser de quem decide se jogue todo, na plenitude do seu intelecto e do seu afecto pela vida, no acto de ter decidido. De outro modo entre um copista e um amanuense a coisa resolver-se-ia.
E aqui entra a questão da autoridade: o fundamento do decidido passou a ser, em cada vez mais vezes, o previamente pensado por outrem. É a lógica da citação, com o seu caudal de fórmulas tão ocas quanto seguidistas do estilo do «na esteira de», ou o «conforme já doutamente» e quejandas, quantas vezes mais não sendo do que a abdicação do pensar o pensado. A ideia inqualificável da «jurisprudência maioritária» ou da «doutrina dominante» passou a entrar nas formas de fundamentação jurídica, como se na interpretação da norma a questão fosse a votos, triunfando quem mais espingardas tivesse do seu lado, ainda que irrazoáveis, o triunfo da força sobre a razão! E, no entanto, se mais vezes se voltasse sobre os mesmos passos, menos vezes se percorreriam caminhos erróneos.
Claro que há em tudo isto equívocos, aporias,  incertezas.
Logo uma que decorre de se dar como igual o que nem sempre é sequer idêntico. Os que se viciaram na erudição jurídica comparatista nem se perguntam, quantas vezes na exibição de leituras que traduzem nos seus escritos, se o que imputam a certo e quantas vezes ignoto autor [germânico de preferência] tem sustentação em igual norma, igual sistema, igual contexto, em suma, igual ordenamento. Vale o mesmo para quantos em "copy paste" que a informática hoje permite, transcrevem como adequado, por ser o mesmo exemplo, o que, pensado em função do caso, se mostraria exemplarmente impertinente.
Mas não só. Logo outra fragilidade existe ao supor-se que a segurança jurídica impõe que o já decidido decidido esteja e que essa lógica do caso julgado passe dos factos para o Direito, abrindo a porta - por comodidade claro e celeridade - às decisões sumárias por semelhança, injustas até, mas despachadas.
Há em tudo isto uma falha grave, imposta por uma deficiência séria.
A falha grave é que à individualização humana do caso e à interiorização mental do problema - a primeira por respeito à dignidade de quem é julgado a segunda por respeito à dignidade de quem julga - segue-se hoje em dia uma lógica de massificação, nivelamento e padronização que torna toda a riqueza da vida sub iudice em categorias redutíveis ao menor denominador comum. A justiça do caso passou a ser uma espécie de atendimento personalizado para uns poucos, tudo o mais enfileirado na mesma lógica com que se resolvem as filas de espera no Serviço Nacional de Saúde. A pergunta se é possível fazer-se melhor.
A deficiência séria é que, se não fosse assim, o sistema funcional incumbido de julgar soçobraria ante a massa crítica de casos no qual se move. E não é só a quantidade de vida que se reduz à quantidade de processos e a quantidade de decisões a que se reduz a tarefa do sistema e avaliação de quem o serve. À tirania da estatística irmana-se a tirania da forma. A processualite passou a ser uma patologia grave dos fígados do sistema jurídico. Um destes dias se falará aqui disso mesmo.