Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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O preço da liberdade

Significativo: «[...] e tendo em conta, finalmente, que este Supremo Tribunal tem fixado compensações que raramente ultrapassam os € 15 000, mesmo em casos de perdas mais significativas do que as sofridas pelo autor (por exemplo, perda da liberdade por prisão ilegal ou manifestamente infundada) [...]». É o que se lê no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.12 [relator Nuno Cameira, texto integral aqui].
Eis pois quanto vale um dos supremos bens, a liberdade: quinze mil euros no máximo.

Bagatelas e peixe-miúdo

Eu acho que o Direito Penal está no caminho suicidário do seu aviltamento. Houve tempos em que ele era a última razão, em que os teóricos o qualificavam pela sua natureza subsidiária, pois que o Estado só permitiria a sua intervenção quando nenhum outro mecanismo fosse adequado a garantir a paz social e os direitos constitucionais de cidadania. Diga-se isso mesmo, por razões acrescidas em relação aos crimes punidos com pena de prisão.
Hoje, pelo que assisto, está tudo em "rebajas" de valor e de valia. Leio com espanto aqui que no âmbito ou à margem do Congresso dos Juízes de Paz foi dito que «há uma grande aceitação por parte dos juízes relativamente ao alargamento dos julgados de paz a outras matérias cíveis e eventualmente também a matérias das chamadas bagatelas penais (crimes com moldura inferior a cinco anos de prisão)». 
Leio e em maiúsculas pergunto-me, quase nem me atrevendo a perguntar alto não vá estarem as mentes de tal modo já contaminadas por este modo de ver que até a pergunta pareça uma provocação rude de um desalinhado com o sistema: bagatelas penais punidas até cinco anos de prisão? Mas andamos a brincar às cinco casinhas com o sistema penal, com as noções fundamentais do Estado de Direito, com a liberdade das pessoas, com a decência e a dignidade do judiciário de modo que o «até cinco de prisão» já passou ser, pois que uma «bagatela» uma espécie de carapau de gato jurídico-penal?
Ou quer-se dizer - já agora vamos a isto! - que no «até cinco anos» a palavra prisão é só para fingir porque ninguém vai preso, e é só para assustar os ingénuos e surpreender, quando calha, os incautos?
Confesso que não paro de me espantar à medida que a vida progride. E, espantado que estou, acho que ou paramos para pensar a sério por onde andamos ou um dia destes a casa vem abaixo!

O País da liberdade a saldos...

Cito na íntegra da RTP [edição de 18.10.11], uma notícia sobre um caso concreto, apenas pelo chocante princípio que da mesma decorre [pois no mais abstenho-me aqui de comentar casos confiados a outros, sendo advogado e não conhecendo os processos]:

«O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) condenou o Estado português ao pagamento de uma indemnização de 15 mil euros a um homem que esteve em prisão preventiva "ilegal" durante quatro meses e três dias.  A 27 de agosto de 1999, o juiz de instrução criminal do Barreiro aplicou prisão preventiva àquele homem, por indícios da prática de um crime de associação criminosa, seis crimes de falsificação de documento autêntico e um crime de detenção de arma proibida. Segundo a acusação, o arguido, agindo em comunhão e conjugação de esforços, com outros indivíduos, decidiu constituir com eles uma associação, tendo em vista o furto e falsificação de viaturas, bem como dos respectivos documentos identificativos, para a sua ulterior revenda em Portugal e em países africanos, para o que constituíram, em Moçambique, uma empresa de transportes e turismo. Além da gravidade dos crimes, da elevada moldura penal em causa e do "largo cadastro criminal" do arguido, o juiz sublinhou também que existia um "forte perigo de fuga" do arguido à justiça. Por isso, decidiu que o arguido ficaria preso enquanto decorresse o debate instrutório. A 30 de Dezembro do mesmo ano, o juiz de instrução despronunciou o arguido dos crimes pelos quais estava acusado e, consequentemente, "tirou-o" da prisão.
O arguido meteu uma acção em tribunal, exigindo uma indemnização de 204.500 pela prisão preventiva, mas tanto a primeira instância, na comarca de Porto de Mós, como a Relação consideraram-na improcedente. Recorreu para o STJ, que condenou o Estado a pagar-lhe uma indemnização de 15 mil euros, considerando que houve "erro grosseiro, ou pelo menos, ato temerário" na decisão de prisão preventiva. Segundo o Supremo, da factualidade indiciária "nada de concreto e concludente resulta no sentido de permitir, com a necessária segurança", imputar ao arguido a prática dos crimes referidos na acusação do Ministério Público. "Trata-se de indícios absolutamente indiretos, meramente circunstanciais, que de modo algum podiam ter-se como fortes indícios de modo a fundamentar a medida de coação de prisão preventiva. Não passam de meras suspeitas, alicerçadas, sobretudo, no anterior cadastro do arguido, que não em factos concretos e atuais que lhe pudessem ser seriamente imputados", sublinha o STJ. Acrescenta que o arguido, que sofre de perturbações mentais provocadas pelo stress pós-traumático que advém da sua participação na guerra do Ultramar, durante o tempo em que esteve à ordem deste processo "passou inúmeras noites sem dormir, chorou, gritou de raiva e sofreu de depressão durante a maior parte do tempo". Diz ainda que deixou, muitas vezes, de ter controlo sobre a sua pessoa, tomando vivências fictícias e sonhos pela realidade, que foi sujeito a diversos exames e consultas do foro psiquiátrico e que foi transportado em carrinhas celulares que, "muitas vezes, não eram lavadas e se encontravam impregnadas de fezes humanas e restos de vómito", com vários dias. "Nos tempos de espera dentro da carrinha, o ar tornava-se irrespirável, provocando mesmo a perda de consciência", refere ainda o STJ, para justificar a condenação do Estado».

Permito-me um comentário, fruto do espanto revoltado quanto ao valor da indemnização. 
É que no caso para além da prisão ilegal por 4 meses e 3 dias havia a acusação infundada por crimes muito graves. Tudo isso valeu 15 mil euros, uns dias de salário de um gestor público [só um deles recebeu entre prémios e bónus 3 milhões de euros por ano, o mesmo que veio dizer que acha que os cortes nos subsídios «é normal»!].
Ora para além do sofrimento, dos prejuízos, este homem teve que recorrer aos tribunais para se defender de tudo isto desde 1999, custeando muito presumivelmente todos os encargos e despesas inerentes à sua defesa. Pago tudo, quanto gastou quanto lhe terá sobrado dos 15 mil euros que só no STJ viu serem-lhe concedidos? 
O que é perguntar directamente: acham que 15 mil euros é uma indemnização justa num caso destes? Suficiente? Adequada? Que na verdade compensa? Reintegra a situação que existiria se não tivesse acontecido isto? É este o preço da liberdade?
E permitam-me a ousadia: um juiz gostaria de receber 15 mil euros se tivesse estado ilegalmente preso quatro meses e três dias acusado de associação criminosa, seis crimes de falsificação de documento autêntico e um crime de detenção de arma proibida e passado pelo que este homem passou? De nada valerá o princípio não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti?
Ou é a RTP que está errada na notícia? Ou nós que teremos de mudar de mundo, porque neste a liberdade está a saldos?


P. S. Um leitor amável indicou o link para o aresto que se encontra aqui.