Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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O processo que cria o facto

 


O livro chegou há semanas. O autor, Filippo Sgubbi, morreu em Julho deste ano. Tenho estado a lê-lo, aquela leitura lenta, porque se pensa enquanto se lê. O que pareciam apenas 88 páginas expandiu-se ante o que elas contêm.

E nele encontro a ideia que a vida vai formando e que tantos livros de texto iludem: a de que frequentemente  não é o processo que vai em busca da realidade, tal como o historiador tenta reconstituir o passado, mas é pelo processo que se forma o que se assume como a realidade e como verdade prática passa a ser.

Mais: assume-se, melhor, assume a acusação pública, ao recortar na complexidade da vida e pelo processo, não a materialidade relevante para a norma incriminadora que possa estar em causa, mas as ocorrências e apenas essas que confiram consistência ao teorema prévio que se queira fazer valer:  trata-se não da demonstração de uma eventualidade, sim da legitimação de um apriori.

Mais ainda: traz-se ao poder judicial, sob a forma de acusação, não da realidade o todo, mas dela a parte construída, a qual será doravante a única cognoscível, submete-se a juízes, que se supõem independentes na decisão, a dependência de só julgarem o que lhes é submetido a julgamento: o silogismo judicial fica sofismado ante o construtivismo da premissa menor, como já seria discutível ante a incerteza interpretativa da premissa maior, a volubilidade jurisprudencial ajudando.

Através da miscigenação com os media, torna-se assim aquilo que é suposto ser uma "hipótese de trabalho", como se dizia ser a acusação pública, no veredicto que verdadeiramente conta, estigmatizante para o suspeito, que nem acusado ainda seja, aquele que, como seus efeitos colaterais, abre a oportunidade para o sujeitar à "morte civil", o cerco ao seu património, a privação da sua liberdade, assim haja juiz que seja complacente ante essa verosimilhança dita indiciária.

Que a sentença final venha a decretar tudo isso insubsistente, conta amiúde pouco, pois mesmo  absolvição chega, ao limite, a ser irrelevante; o sistema atinge pela sua desesperante duração e pela álea das suas decisões, um tal ponto tal de degradação social e anímica das pessoas que estas, enfim, na recta final do julgamento estão dispostas a aceitar o que seja, assim se libertem da opressão a que foram sujeitas.

Dir-se-á, como é costume dizer-se, que nem sempre é deste modo  e exagero ao criar a noção de que é maioritariamente assim. É o costume quando se analisa uma tendência; fica-se à mercê dos que, em nome das excepções, se envergonham da regra, por honradamente nela se não reverem.

Tendências: o triunfo do número


Com a massificação dos processos, os tribunais são tentados a refinar as exigências formais para a aferição dos casos, inviabilizando-se, a ser assim, o prosseguimentos de processos por razões estritamente adjectivas.
A legitimação de tal procedimento assenta num pressuposto: a de que é exigível um patrocínio técnico, profissionalmente habilitado e, por isso, capaz de cumprir os ónus que progressivamente a lei e a jurisprudência - mais esta do que aquela - vão reclamando como indispensáveis para quem agir em juízo. E qualquer discrepância no formalismo, qualquer forma incorrecta de colocação do argumento, o que não é difícil ante a labiríntico suceder de leis e critérios jurisprudenciais - fá-lo perder a possibilidade de o ver recebido, antes surgirá a rejeição sumária, cada vez mais frequente.
Em suma: perde-se ou ganha-se uma acção cível ou até um processo penal, afinal, todos eles, pode ser-se absolvido ou condenado em função da razões estritamente processuais, as quais oferecem ao tribunal a vantagem da proclamada celeridade processual que, de direito dos cidadãos - tutelado pela convenções internacionais - passou a ser modo de funcionamento do sistema de administração da justiça.
Por outro lado, com os critérios de rating das grandes firmas de advogados baseadas no critério PPP [profit per partner] a advocacia corre o risco de se transformar numa empresa de facturação de horas, gerando extensas peças processuais e multiplicando reuniões e consultas preparatórias para as respectivas intervenções e a isso somando, numa lógica interdisciplinar, o recurso a assessoria técnica, incluindo no plano mediático.
Há aqui uma contradição, entre a redução de trabalho que o primeiro modelo implica e o excesso de trabalho que o segundo supõe. A questão surge quando os resultados não correspondem, isto é, quando ao custo do patrocínio não corresponde o benefício do resultado pretendido.
Visto o cruzamento das duas tendências, ressalta a alta probabilidade de ocorrerem duas perniciosas realidades: a primeira, que a satisfação da justiça fica aquém do mínimo exigível, quer pela não decisão das razões substanciais colocadas ao tribunal, denegado o conhecimento do mérito da causa, quer pela extrema onerosidade do recurso à obrigatória representação profissional.
Do ponto de vista social o sistema gera a, pelo sistema criticada, justiça de classe; para além disso, jogando no critério estritamente estatístico, avalia os intervenientes, todos os intervenientes, pelo que os números evidenciem. É que não é só na advocacia societária o rating poder decorrer do lucro por sócio, independentemente dos resultados alcançados a favor dos clientes ou da possibilidade de menor onerosidade do acompanhamento profissional; é também, no rating da avaliação dos sistemas de justiça de cada País, os tribunais poderem ser avaliados em função do número de processos "despachados", seja o que for que signifique o termo e, nesta magnífica língua portuguesa, a sua ambivalência tem a força da sua sugestão.

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Fonte da imagem: aqui

Arreando bandeiras

O economicismo que a troika impôs como critério à Justiça, mais o "liberalismo" que, vindo da política, contagiou a cultura judiciária, encontrou, de mãos dadas com a lógica do pragmatismo, agora os seus instrumentos de acção. Chamam-se funcionalização das magistraturas, taylorização do processo, negocismo sentencial.
Tudo com o aplauso dos que querem mais poder, a complacência dos que querem menos trabalho, a instigação dos que querem mais processos findos em menos tempo.
A aparência de moralidade com que o produto é servido chama-se a «filosofia do consenso».
Servida por magistrados tratados cada vez mais como simples funcionários, cuja valorização é aferida estatisticamente considerando como importante respectiva produtividade quantitativa, a Justiça é agora confrontada com um sistema pelo qual ao juiz caberá entrar em negociações com os procuradores e com os arguidos quanto à medida da pena para que, confessando estes, os processos andem mais depressa.
A isto junta-se o fenómeno galopante da desjudicialização, retirando cada vez mais casos aos tribunais e conferindo aos tribunais cada vez menos meios.
O modelo, dizem, seduzidos, vem da América. Percebe-se. Com o silêncio dos que desfraldaram em tempos bandeiras pela justiça soviética e pela justiça chinesa. 
Nada como o autoritarismo para conviver com o liberalismo. Divergem no que pensam quanto ao Estado, convergem no que sentem pela Nação: desprezo!

Levante-se o Véu!

A editora não levará a mal que revele o que é este texto de abertura do que escrevi. Espero que os leitores não tomem esta citação como vaidade. É apenas uma forma de prevenir para o tom e para agradecer a oportunidade que me deram de, levantando a cabeça do quotidiano, pensar o que tenho visto e vivido.

«Num mundo dual, num mundo que se simplificou, num mundo em que o maniqueísmo virou modo de sobrevivência dos ingénuos e de dominação dos perversos, a distinção entre o bem e o mal [na Justiça] tem sentido e sucesso: os críticos ganham o seu espaço hiperbólico, o de diabolização do que há, os apologistas o seu território de redenção, legitimando quanto é. A pequena esquadra destes, mercenários tantos deles, não consegue, porém, nem se atreve, a enfrentar o esquadrão de todos os outros. Nem batalha há, mas longo cerco, com o seu cortejo de depredação, desânimo, ruína. É a crise permanente da Justiça, a banalização da noção de crise, a indiferença ante tudo isso.
Olhando para quantos estão no intra-muros da Justiça não há gente feliz. Nenhuma testemunha, nenhum ofendido, nenhum arguido, nenhum cidadão gostou do que viu ou gostaria de viver aquilo pelo que passou, fosse só uma outra vez».

O processo

O processo. Assim se chama a obra mais conhecida de Kafka. Não é desse que falo mas também é desse que falo. Não deste ou daquele outro, mas do conceito que ele traduz, o meio de que ele se tornou instrumento e ideia por antonomásia.
É o processo que permite criar a verdade possível, a realidade hipotética em que uma acusação se consubstancia. É através do processo que se faz a experimentação da compatibilidade da demonstração com o demonstrável, o transformar o postulado em axioma.
É essa acusação um recorte do real, uma amputação do real, uma deformação do real, uma simplificação do real? Que importa? O processo dá-lhe dignidade jurídica e legitimidade moral transmutando tudo isso no que chama «o objecto do processo», que o sistema assume como sendo o limite do cognoscível e do decidendo.
Julgam-me por aquilo pelo qual tantos outros não são sequer acusados e grito por injustiça relativa? Que vale isso se para quem me julga interessa apenas, e nisso trabalha como missão, aquele meu caso e não os possíveis casos outros que, pois que não acusados, é como se não existissem e nenhum deles fará mais do que história não judiciária, mundo de irrelevâncias que sendo escândalos por isso se tornam em nada.
É o processo que permite a selecção, o jogo da oportunidade acusatória pelo qual todo o crime tem de ser acusado mas só é julgado aquele em que houve acusação? Para quê gritar se tão tantos os chamados e tão poucos os escollhidos e nisso assenta certa Justiça maior que a humana, a própria Justiça Divina, que anatemiza a eleição incondicional?
Vem a História mostrar mais tarde que a realidade não coincide com a verdade que o processo substanciou como sendo o transitável, cognomimando-a de «material»? Que importa se faz parte da dogmática do sistema ele impôr-se como autoridade por esgotamento, o plausível como convicção, a experiência comum do comum vulgo como critério final onde devia haver o escrúpulo do mais sábio e do mais prudente?
É o processo isto mesmo, a coisa em si, o meio pelo qual o processado no final do longo corredor está pronto para o que for que lhe ponha termo, clamando apenas pelo termo da sujeição, porque pior que condenado é ter sido processado.
Por lenitiva que seja a condenação, por agraciante que seja a absolvição, todo o sofrimento, o rebaixamento, a diminuição estatutária, a diminuição cívica, a redução patrimonial, a perda mesmo, provisória que seja, da liberdade, cumprem os fins o gosto da vitória do processado confunde-se-lhe com o da derrota, insípidos e indiferentes. 
O fim de que o processo deveria ser instrumento atinge-se pelo próprio processo. Ei-lo, pois, como a criatura do máximo poder pela mínima substância, o labirinto das formas pejado dos alçapões das formalidades, a liturgia cerimonial do acto, de que não há ressurreição, iniciada pela defunção do ser. Sujeito à arguição ele é a antítese da sua pesumida inocência. «Para encontrar a paz, o acusado quer encontrar uma justificação para a sua pena: o castigo procura o crime». Milan Kundera disse-o. A metamorfose transforma o ser em insecto.