Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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Um pobre sistema para ricos: as gravações de audiências


O Estado implantou um sistema de gravação da prova produzida em audiências que conseguiu o pleno do elevado custo e do péssimo funcionamento.
Ante a ratoeira da deficiência do sistema de documentação da prova - vozes inaudíveis, excertos por gravar - surgiu o problema: como controlar tais deficiências que punham em causa o direito constitucional a recorrer invocando a prova produzida em julgamento.
O racional seria o funcionário que está adstrito à audiência e que coloca o sistema em funcionamento, assegurar não só que ele estava a funcionar capazmente como que o dito era efectivamente gravado em termos de perceptibilidade.
Mas não, talvez porque durante a audiência o funcionário tenha mais que fazer, talvez por aquela razão endémica segundo a qual são os do costume a suportar o custo das disfunções.
E assim surgiu sobre o assunto a querela jurisprudencial, com decisões em todas as variantes: quando interessados em recorrer da matéria de facto e tendo assim que indicar onde estava gravada a prova que demonstrava o contrário do dado como provado ou não provado na decisão recorrida, os advogados, ao aperceberem-se que, afinal, em vez de uma voz estava um silêncio ou um ruído, deparavam-se com tribunais que tinham por legal esta ideia: cabia aos advogados no final de cada audiência solicitarem desde logo as gravações, ouvi-las e, no caso de haver qualquer falha, reportá-la logo num prazo que foi também discutível - o que é que no Direito é certo, seguro e indiscutível, pergunto eu - sob pena de já não poderem levantar a questão por se tratar de uma nulidade sanável.
Isto é, às horas e horas passadas em audiência somavam-se mais umas outras tantas ou quase tantas horas a ouvir o já dito para saber se tinha sido ouvido pelos esquisitos maquinismos que o Ministério da Justiça comprara para equipar os tribunais, alguns servidos com mesas misturadoras com mais botões que os de um estúdio de gravação em alta fidelidade mas inúteis e, assim, meramente decorativos
Claro que ninguém pensou que estas horas perdidas são mais custos para o cidadão que se cruza com a Justiça e torna os advogados serventuários de um sistema oficial que devia ser o sistema público a controlar. É que a ideia tornada jurisprudência tinha a vantagem de matar recursos sobre a incómoda matéria de facto, porque com base na regra do se não se ouve tivesse dito, pelo que reunia o aliciante de ser tentadora.
É este o contexto que subjaz ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 13/2014, de 3 de Julho de 2014 [texto integral aqui] segundo o qual «a nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada».
Claro que os advogados com meios para dedicarem horas a preparar audiências, horas a nelas intervir e horas a ouvirem o que nelas se passou e que supostamente deveria estar gravado não se importarão porque a facturação reflectirá esse tempo todo, assim haja quem pague. 
O problema são os outros, a esmagadora maioria, aqueles que subsistem de magros honorários pagos por remediados constituintes. 
Mas, nesta lógica, que importam esses postergados pelo sistema? No final ainda ficamos todos à mercê de haver uma Justiça para ricos quando é a própria Justiça que prepara tudo para que só o rico se aguente ao seu custo. Irónico, não é?

Quem suporta as deficientes gravações? Os do costume...


Que o sistema de gravação existente nos tribunais é oneroso e ineficiente é uma realidade; que o risco de ficarem excertos do que que se disse em julgamento por compreender porque a gravação os não alcança, também é verdade; que, além disso, num processo com muitos intervenientes que se sobreponham intervindo sem se identificarem primeiro há risco de não se saber quem fala, eis mais outra constatação. E tantas outras.
Ante tudo isto fica o saber quando é que logicamente a questão do mal gravado deve ser suscitada.
A prática fazia com que os sujeitos só tomassem a gravação como relevante quando dela carecessem nomeadamente para interporem recurso da matéria de facto e estivesse em causa retirar da gravação excertos que convencessem o tribunal de recurso de que havia factos mal julgados como o demonstraria tal prova. E era então que se confrontavam com a circunstância de haver falhas na gravação e aí, nesse momento do recurso, que suscitavam o vício.
A jurisprudência de há muito que vem assumindo outro critério, liquidando aquele modo de entender. Cito, como exemplo, o Acórdão da Relação de Guimarães de 29.09.2013 [proferido no processo n.º 100/12.4JABRG.G1, texto integral aqui], de que extracto mais abaixo o sumário relevante: a questão tem de ser suscitada em prazo contado logo a seguir ao dia em que a gravação foi efectuada, o que implica ter de as ir ouvindo a todas na íntegra...
Ou seja. Ante a gravação da audiência, os advogados têm de passar todo o tempo nas audiências  e em rigor igual tempo a ouvir o que se gravou porque se não suscitarem a tempo que a gravação está deficiente - por culpa que não é obviamente sua - correm o risco de não o poder invocar mais tarde.
Imagina-se ante o labor de um advogado, sobretudo daqueles que trabalham sós, o que significa ter a somar ao tempo de julgamento, que por vezes são dias inteiros várias vezes por semana, o tempo de conferência por audição das gravações dessas ausiências. E pense-se naqueles advogados que não têm clientes abonados - e na crise financeira grave que se vive é a ampla maioria - para poderem suportar essa despesa duplicada.
Mas é assim: o sistema de gravações é uma técnica que o Estado determinou, que o Governo instalou com péssimas condições e custos extravagantes, que funciona mal, mas cujos defeitos sobram sempre para o cidadão, que é agredido com a perda de direitos e com o encargo económico de tudo isso.

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Eis o excerto do Acórdão: «A deficiência da gravação configura nulidade sanável, tal como previsto no artigo 120º,1 do CPP e deve ser arguida no prazo de 10 dias, nos termos do artigo 105º do mesmo Código, pois não consta do elenco das nulidades insanáveis do art. 119 do CPP, – o artigo 120 nº 1 do CPP dispõe que “qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados…”.

Trata-se de uma nulidade da «audiência» e não da «sentença». O julgamento tem fases distintas – os “actos preliminares”, a “audiência” e a “sentença” (Livro VII da Parte Segunda do Código de Processo Penal), sendo que a nulidade invocada, a ter existido, ocorreu na audiência.
Não está em causa uma nulidade da sentença, porque estas são só as previstas no art. 379 nº 1 do CPP.
Para a sentença as nulidades da sentença está previsto um regime específico de arguição, podendo as mesmas ser arguidas em recurso (art. 379 nº 2 do CPP).
As demais nulidades devem ser arguidas perante o tribunal onde foram praticadas, nos termos previstos no nº 3 do art. 120 do CPP, ou, se não houver norma especial, no prazo de 10 dias indicado no art. 105 nº 1 do CPP, que se contará a partir do conhecimento da ocorrência da nulidade, sendo que, naturalmente, a arguição nunca poderá ser posterior ao trânsito em julgado da sentença.
Por isso, a nulidade em causa deveria ter sido arguida perante o coletivo, requerendo-se que fosse repetida a audiência, ou os depoimentos deficientemente gravados (a declaração de nulidade determina os atos que devem ser repetidos – art. 122 nº 2 do CPP). Caberia, então, recurso da decisão que viesse a ser proferida. Isto é assim, porque salvo os casos restritos das questões de conhecimento oficioso, os recursos visam apenas modificar as decisões recorridas e não criar novas decisões sobre matérias ou questões novas que não foram suscitadas ou conhecidas pelo tribunal recorrido. É pacífica a jurisprudência no sentido de que "a missão do tribunal de recurso é a de apreciar se uma questão decidida pelo tribunal de que se recorreu foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes; o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questão nova, salvo se isso for cometido oficiosamente pela lei" - por todos, acs. STJ de 6-2-87 e de 3-10-89, BMJs 364/714 e 390/408.
O presente recurso foi interposto apenas da sentença e não de algum incidente processual que teve decisão desfavorável ao arguido. Está limitado ao seu conteúdo, às questões que nela foram ou deviam ter sido decididas. Se a relação decidisse agora sobre a alegada deficiência das gravações estaria a conhecer de questão nova, que não foi submetida, como podia e devia, à decisão do tribunal recorrido.
Não tendo sido submetida à decisão do tribunal de primeira instancia a questão da invalidade da audiência, não pode agora esta relação conhecer dela. A consequência é a normalização dos efeitos originariamente precários da nulidade, a qual, no caso de ter ocorrido, ficou sanada.»

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Fonte da foto: aqui



Gravações e prazo para recorrer

Haver matérias que deveriam ser mais do que claras mas que ainda continuam a ser controversas é a evidente demonstração da insegurança do Direito. 
A lei admite que quando em matéria penal o recorrente queira discutir os factos provados tenha de se habilitar com os suportes magnéticos - no caso CD's - onde está registada a prova oralmente produzida na audiência de julgamento. Sem isso, como conseguirá ele citar a prova que justificaria decisão contrária?
A partir daqui é uma miríade de problemas.
Primeiro, porque muitas vezes, mau grado o aparentemente sofisticado sistema de registo audio, há problemas de audibilidade, excertos que não ficaram gravados, pedaços em que o microfone estava desligado ou demasiadamente longe. 
Ante isso, os tribunais entendem que quando o interessado der por ela - o que sucederá quando, tendo decidido recorrer obteve os ditos suportes e os ouviu, sendo que por vezes se reportam a sessões de julgamento que levaram meses - já é tarde demais, pois que...deveria ter-se apercebido da irregularidade da falha até três dias depois do dia em que a gravação foi feita, o que quer dizer que, ao terminar o seu dia em tribunal tem de pedir logo a gravação dessa sessão, ouvi-la depois toda - duplicando o tempo de envolvimento com o que sucedeu - para aquilatar se ficou tudo gravado ou não! 
Em suma: uma falha do tribunal na cuidadosa gravação transforma-se num modo de prejudicar gravemente o interessado, amiúde o arguido, amputando-lhe o direito a recorrer. Fantástico não é? 
E mais fantástico porque isto tudo pressupõe que a audição do gravado seja feita quando  quem se der ao trabalho de pedir os registos e proceder à sua audição ainda não sabe se vai ou não recorrer, pelo que de esforço inútil e despesa inútil se tratará! Não me digam que não é igualmente fantástico!
Mas não se fica por aqui o admirável mundo novo que as novas tecnologias introduziram nos tribunais. É que há a questão de saber quando começa a correr o prazo de trinta dias que há para recorrer em matéria penal quando se discutir a matéria de facto e não apenas questões de Direito: quando a sentença é depositada? Quando o interessado tem, enfim, em seu poder os suportes da prova gravada que lhe permitem então recorrer sabendo do que faz? Eis o que um acórdão da Relação de Évora de 25.09.12 veio decidir [processo n.º 5/10.3TAFTR.E1, relator Sénio Alves, texto integral aqui], por esta forma: 
« Diz a arguida – e a Magistrada do MºPº na 1ª instância acompanha esse entendimento – que em caso de impugnação da matéria de facto o prazo para interposição de recurso se conta a partir da disponibilização das cópias dos suportes informáticos.
Não cremos que assim seja.
Nada na lei permite, salvo o devido respeito, o entendimento de que o pedido de cópia da gravação dos depoimentos inutiliza o período de tempo até aí decorrido, fazendo com que a contagem do prazo se inicie a partir da recepção da citada cópia.
A elevação de 20 para 30 dias do prazo para recorrer, quando o recurso tenha por objecto a reapreciação da prova gravada, já salvaguarda de forma suficiente o esforço acrescido que o recorrente irá ter com a audição das gravações e com o cumprimento das injunções previstas no artº 412º, nºs 3 e 4 do CPP. Entender que o prazo para interposição de recurso, em caso de pedido de reapreciação de prova gravada, se inicia com a entrega das cópias das gravações pode, no limite, levar à duplicação do prazo legal, bastando para tal que o interessado formule o pedido de cópias no último dia do prazo de que legalmente dispõe.
A assim ser, estaríamos perante o premiar da negligência, beneficiando aquele que só no último dia do prazo (ou a 3, 4 dias do mesmo, pouco importa) vem a tribunal requerer as cópias das gravações, em detrimento daquele que, com a diligência normal, vem requerer tais cópias no momento em que as mesmas estão presumivelmente disponíveis, isto é, no dia imediato ao depósito da sentença.
É verdade que o Tribunal Constitucional decidiu, no seu Ac. nº 545/2006 (citado pela arguida no seu requerimento de interposição de recurso), “julgar inconstitucional, por violação do artº 32º, nº 1 da CRP, a norma constante do artº 411º, nº 1 do CPP, interpretado no sentido de o prazo para a interposição de recurso em que se impugne a decisão da matéria de facto e as provas produzidas em audiência tenham sido gravadas, se conta a partir da data do depósito da sentença na secretaria, e não da data da disponibilização das cópias dos suportes magnéticos, tempestivamente requeridas pelo arguido recorrente, por as considerar essenciais para o exercício do direito de recurso”. Como é verdade, aliás, que o mesmo Tribunal, agora no seu Ac. nº 194/2007 (também citado pela arguida no seu requerimento de interposição de recurso), reafirmou esse entendimento, aliás reproduzindo integralmente a fundamentação do Ac. 545/2006.
Porém, havia uma razão para o Tribunal Constitucional assim ter decidido naquele Ac. nº 545/2006 e que, aparentemente, não terá sido devidamente ponderada em acórdãos posteriores dos nossos tribunais superiores, que o vêm citando. É que na situação em análise naquele aresto as cópias das gravações foram pedidas antes de iniciado, sequer, o prazo para interposição do recurso, porquanto a sentença foi lida e depositada no dia 19/7/2005, em plenas férias judiciais do Verão [1]. Assim, o prazo para interpor recurso iniciar-se-ia em 15/9/2005, sendo certo que 3 dias antes, 12/9/2005, o arguido requereu as cópias das gravações. Não fazia sentido aqui, pois, falar em suspensão de um prazo que ainda se não havia iniciado. E daí, cremos, a redacção do sumário desse aresto.
Note-se, aliás, que naquele Ac. nº 545/2006 o TC começa a sua apreciação de mérito salientando duas notas preliminares, a primeira das quais é, precisamente, uma chamada de atenção para o facto de “a questão colocada pelo recorrente não foi a da extensão aos recursos penais do regime do alargamento do prazo de interposição de recurso previsto no artigo 698º, nº 6 do Código de Processo Civil (…) mas antes a da suspensão desse prazo enquanto não lhe forem disponibilizadas as cópias das cassetes contendo a gravação da prova produzida em audiência de julgamento” (subl. nosso) [2].
O TC, no seu Ac. nº 17/2006 [3], considerando que “não tendo o recorrente solicitado, podendo tê-lo feito, o acesso à gravação da prova logo após a notificação da sentença, e considerando-se que com a possibilidade desse acesso o arguido ficava em condições de exercitar – consciente, fundada e eficazmente – o seu direito de recurso” decidiu “não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 411.º, n.º 1, e 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que o prazo de interpo­sição de recurso penal em que se questione a decisão da matéria de facto e em que se proce­deu a gravação da prova produzida em audiência se conta da data em que o arguido, agindo com a diligência devida, podia ter acesso ao suporte material da prova gravada, e não da data em que foi disponibilizada a transcrição dessa gravação”.
E a verdade é que o Tribunal Constitucional, no seu Ac. 546/2006 (também citado pela arguida, no seu requerimento de interposição de recurso), desenvolvendo a tese sustentada naquele Ac. nº 17/2006, acabaria por “julgar inconstitucional a norma do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição, interpretado no sentido de ao prazo de 15 dias referido nesse preceito não acrescer o período de tempo em que o arguido não pôde ter acesso às gravações da audiência, desde que se pretenda impugnar a matéria de facto e desde que o arguido actue com a diligência devida” (subl. nosso).
Em suma: Estando as gravações dos depoimentos prestados em audiência disponíveis (como é regra e a arguida/recorrente nada alegou em contrário) no final de cada sessão de prova, no momento em que a sentença é depositada na secretaria a recorrente tinha, seguramente, acesso ao suporte material da prova gravada.
É, pois, a partir desse momento (depósito da sentença) que, em obediência à regra prevista no artº 411º, nº 1, al. b) do CPP, se deve contar o prazo para interposição do recurso.
Ao prazo assim contado deve acrescer o período em que o arguido não pôde ter acesso às gravações, isto é, o período entre a formulação do pedido de cópias com fornecimento do suporte técnico (artº 101º, nº 3 do CPP) e a entrega, pelo tribunal, das ditas cópias.
Ou, como se afirma no Ac. RC de 9/1/2008 (proc. 423/05.9 PBVIS.C1), «Quando o recorrente pretende impugnar a matéria de facto e, logo no primeiro dia, do prazo de 15 dias a que alude o art.411.º, n.º 1 do C.P.P., se apresenta ao Tribunal a solicitar o suporte material da prova gravada, com entrega do suporte para a realização da cópia, o prazo de recurso não deverá iniciar-se sem que o recorrente tenha acesso efectivo àquele suporte material com a entrega das cópias pelo Tribunal. Se o recorrente não se apresenta logo no primeiro dia, do prazo de 15 dias a que alude o art.411.º, n.º 1 do C.P.P., a solicitar o suporte material da prova gravada, aquele prazo de interposição do recurso inicia-se, mas deverá suspender-se entre o momento em que o recorrente solicita a gravação e entrega o suporte para a realização da cópia e o momento da entrega da cópia ao recorrente pelo Tribunal ou em que, actuando diligentemente, podia ter ficado em condições de ter acesso a essa cópia. Por outras palavras, aos 15 dias de prazo para a interposição do recurso deverão ser “descontados” os dias em que o recorrente, depois de ter solicitado a prova gravada em audiência não pôde ter acesso à mesma prova por o Tribunal não lha ter disponibilizado» [4].
Temos, então e na situação em apreço, que o prazo (de 30 dias, no caso) para interposição do recurso se iniciou em 15/3/2012.
A arguida requereu cópia das gravações por carta enviada em 28/3/2012; porém, só entregou o suporte técnico por carta enviada em 2/4/2012, razão pela qual só nesta data se suspenderia o prazo em curso, não fora dar-se o caso de estar o prazo suspenso desde o dia anterior, início do período de férias judiciais da Páscoa.
É que, como claramente resulta do artº 101º, nº 3 do CPP, pressuposto da entrega da cópia da gravação é que o sujeito processual a requeira e forneça ao tribunal o suporte técnico necessário. Admitir que a suspensão do prazo para interposição do recurso ocorre com o simples pedido de fornecimento da cópia da gravação levaria a que, em abstracto, o prazo ficasse indefinidamente suspenso, enquanto o interessado, depois de requerer a dita cópia, não entregasse o necessário suporte técnico. E que a interpretação que defendemos (isto é, que a suspensão do prazo para interposição do recurso só ocorre com a verificação conjunta dos dois requisitos enunciados no nº 3 do artº 101º do CPP – requerimento do interessado e entrega do suporte técnico) tem conformidade constitucional, já o decidiu o TC no seu Ac. nº 293/2012: «Não julgar inconstitucionais as normas do artigos 101.º, n.° 3, 411.º, n.ºs 1 e 4, 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, interpretadas conjugadamente no sentido de o prazo para o exercício do direito ao recurso em que se impugne a matéria de facto só se suspender quando, simultaneamente com o requerimento de solicitação das gravações, for entregue no tribunal o suporte técnico necessário à execução da cópia, mesmo que à data o tribunal não possua os meios técnicos necessários à gravação e só em momento posterior venha a deferir, por despacho judicial, o fornecimento das pretendidas cópias».
No caso em apreço, o prazo estava, porém, suspenso desde dia 1/4/2012, início das férias judiciais. Terminou a suspensão com a entrega da cópia da gravação, enviada à arguida em 3/4/2012, como se vê de fls. 956, e por ela – rectius, pelo seu il. mandatário – presumivelmente recebida em 9/4/2012, posto que dia 6 coincidiu com um dia feriado e dias 7 e 8 com sábado e domingo, respectivamente.
Curiosamente, foi precisamente nesse dia 9/4/2012 que terminou o período de férias judiciais durante o qual, em qualquer dos casos, o prazo não correria.
Reiniciado o prazo no dia 10/4/2012, terminou o mesmo em 23/4/2012 (ou em 27/4/2012, se acrescido de 3 dias úteis).
O recurso da arguida foi enviado por carta com registo de 10/5/2012, esgotado que estava, há muito, o prazo de que dispunha para recorrer.
No caso, note-se, o recurso é intempestivo mesmo que se entenda (mal, em nossa opinião) que a notificação da arguida só tem lugar com a recepção da carta que lhe foi enviada, contendo cópia da sentença (fls. 950) e que o prazo para recorrer se deve contar desde essa notificação.
Na realidade, depositada a carta enviada à arguida em 19/3/2012 [5] (cfr. fls. 957), a notificação teria ocorrido no 5º dia posterior, como constava da carta que lhe foi enviada e, portanto, em 24/3/2012. Ainda que se entenda que, por se tratar de sábado, o dia correspondente à notificação se transfere para o 1º dia útil seguinte, então ter-se-ia a arguida por notificada em 26/3/2012. Consequentemente, o prazo de 30 dias (contados a partir desse dia) terminaria em 4/5/2012 (ou em 9/5/2012, se contarmos os 3 dias úteis posteriores). E a motivação de recurso só foi, como vimos, enviada no dia seguinte (10/5/2012), dando entrada em tribunal no dia 11/5/2012.
Em suma: o recurso interposto pela arguida é extemporâneo e, como tal, não devia ter sido admitido – artº 414º, nº 2 do CPP. Tendo-o sido, tal decisão não vincula este tribunal de recurso – nº 3 do mesmo dispositivo – sendo fundamento para a sua rejeição – artº 420º, nº 1, al. b) do CPP – a determinar em decisão sumária, neste exame preliminar – artº 417º, nº 6, al. b) do CPP.»

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[2] Seja como for, convém lembrar – como o faz a RL, no seu Ac. de 11/1/2011, proc. nº 629/04.8PASXL.L1-5, www.dgsi.pt – que “o panorama legal é agora muito diferente daquele que existia ao tempo em que foram proferidos (…) os acórdãos do TC n.º 545/2006 e n.º 194/2007. Então, o prazo de interposição de recurso era de 15 dias e era uniforme na jurisprudência do TC e do STJ (veja-se o acórdão n.º 9/2005 do Pleno das Secções Criminais deste tribunal supremo) o entendimento de que, mesmo em caso de impugnação da decisão sobre matéria de facto, não havia lugar a extensão (10 dias) do prazo, por ser inaplicável no processo penal o n.º 6 do art.º 698.º do Cód. Proc. Civil. Se o tribunal demorasse a fazer a entrega das cópias dos suportes magnéticos com a gravação das declarações oralmente prestadas na audiência, o prazo para elaborar e entregar, tempestivamente, o recurso ficava muito encurtado (isto, claro, sempre no pressuposto de que seria impugnada a decisão sobre matéria de facto). Então, sim, podia dizer-se que o direito de defesa, designadamente o direito ao recurso, ficava seriamente comprimido. Por isso se compreende que o TC tenha dito (no citado acórdão n.º 545/2006) que aquele prazo de 15 dias era desrazoável e inadequado uma vez que o suporte material da prova gravada não fosse disponibilizado desde o termo a quo desse prazo. Presentemente, a partir da reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o prazo de interposição de recurso é o dobro daquele, se for impugnada a decisão sobre matéria de facto. Simultaneamente, foi alterado o art.º 101.º, n.º 3, do Código de Processo Penal para acelerar a entrega dos suportes das gravações da prova oralmente produzida para permitir o controlo, quase imediato, pelos sujeitos processuais, não só da regularidade da audiência, mas também do conteúdo das declarações nela prestadas e assim habilitá-los, desde logo, a ponderar uma eventual impugnação da decisão sobre matéria de facto. Agora, sempre que um sujeito processual lha solicite, o funcionário entrega, em 48 horas, uma cópia da gravação audiográfica (ou videográfica, quando a houver) da prova produzida em audiência. Basta que lhe forneça o suporte técnico necessário para a gravação”.

[3] Os acórdãos do Tribunal Constitucional aqui referidos podem ser, todos eles, consultados em www.tribunalconstitucional.pt.

[4] No mesmo sentido, cfr. Ac. RP de 17/1/2007, proc. nº 0615418.
 

Reforma do CPP (3): artigos 356º e 357º

O nosso sistema de Justiça Penal é baseado na desconfiança. Desconfia-se da objectividade do Ministério Público e, por isso, coloca-se um juiz a controlar a sua decisão de arquivar os processos, para que não ocorram o que o professor Emygdio da Silva - que além da Faculdade de Direito foi Director do Jardim Zoológico e escreveu um notável porque corajoso livro sobre a investigação criminal - chamava as possíveis «amnistias administrativas». 
Claro que se justifica aqui a judicialização porque de outro modo, havia o risco de os processos morrerem no segredo dos inquéritos quando, assim, ao menos pelo impulso dos ofendidos - havendo-os - podem ter uma hipótese de vingarem e levarem ao funcionamento da Justiça.
Mas o que hoje escrevo tem a ver com outra desconfiança, a que incide sobre a isenção da polícia, desconfiança que se torna em verdadeira suspeita quando a lei impõe que as declarações que forem prestadas ante ela não valham como prova em tribunal, salvo raríssimas excepções, valendo o consentimento ao uso.
Digo suspeita porque do que se trata é de pura e simplesmente inutilizar um meio de prova em nome de uma lógica que só pode radicar no preconceito, oriundo dos fantasmas da polícia política, de que poderão ter sido obtidas por meios musculadamente persuasivos. 
O sistema é caricato nos seus termos. Primeiro, porque essas declarações valem para o Ministério Público incriminar alguém, acusando-o, o que é grave e enxovalhante - mas aí as declarações valem por boas e úteis - valem para o juiz de instrução que, confirmando a acusação pública - sem recurso se a receber obedientemente - valide a sujeição de alguém a julgamento, porque então continuam a ser muito boas, mas  ante a audiência já não valem nada.
Ou melhor, dizendo a verdade toda neste mundo de hipocrisia velhaca: não valem para serem formalmente lidas em audiência; não valem para que um juiz, descuidado, consigne na sentença que se ateve a elas como prova, porque na verdade elas ali estão, incorporadas no processo, a orientar as perguntas do Ministério Público e dos advogados e só não são lidas pelo juiz que, num assomo de escrúpulo, nem passe os olhos por cima delas. Porque, no mais, há mil maneiras de sugerir em julgamento que a pessoa não disse no inquérito o que está a agora a dizer em julgamento, torneando a proibição legal por meio manhoso.
Como na nossa cultura preferimos invocar grandiloquentes valores, porque belos, para esconder comezinhas realidades, quando feias, proclama-se que é por causa e em nome do princípio da oralidade - só valem para a sentença as provas produzidas ou examinadas em audiência - que se afasta o valor probatório do que foi prestado ante a polícia, quando o que se quer dizer é que na verdade se desconsideram esses autos de polícia porque sobre esta radica a suspeita de os terem produzido de modo que só pode ser desconsiderado, inutilizando-os. E o cidadão nem pode dizer - sobre isto já disse quando fui à polícia isto ou aquilo e tinha na altura a memória mais fresca - porque vai ter de declinar tudo de novo, ainda que com a pior memória, ainda que já sugestionado pelo devir das coisas e muitas vezes pela projecção pública das mesmas.
É um sistema, em suma, que ordena à polícia que obtenha o melhor testemunho, porque o mais espontâneo, e depois o destrói em favor do pior testemunho, porque mais tardio.
Pergunta-se: com as modernas tecnologias não é possível gravar-se tudo o que se passou durante uma audição policial? É. É até possível filmar, embora quem for um dia à Cintura do Porto Interior, onde está o serviço de investigação criminal da PSP de Lisboa ver as condições de miséria - encurralados em cubículos - em que trabalham os polícias, talvez desconfie de que os meios financeiros para tal a existirem poderão estar antes aplicados ao serviço dos sumptuosos gastos de fachadas mediáticas que da Justiça dão a aparente imagem da sua eficácia.
Pois nem é essa ideia de valorar essas declarações policiais, desde que gravadas, o que consta do projecto de revisão do Código de Processo Penal.  O que se pretende é que valham as de que forem prestadas apenas ante o Ministério Público e juiz e mesmo assim quando «sejam documentadas através de registo áudio visual ou áudio, só sendo permitida a documentação por outra forma, quando aqueles meios não estiverem disponíveis». E, desde que esteja presente defensor. Quanto às prestadas ante polícia, devem ser registadas pelos mesmos meios tecnológicos mas... «sem susceptibilidade de posterior utilização em julgamento».
Claro que, estando tudo gravado por aqueles sofisticados meios, poderia prever-se o seu uso em julgamento, sujeito embora à apreciação judicial, com possibilidade de arguição de qualquer invalidade probatória decorrente de violência ou ameaça anterior ou contemporânea à respectiva produção ou de falsificação do registado. Sempre se contribuiria com aquela prova, por escrutinável que fosse e teria de o ser. Não! Nada como gastar dinheiro "para o boneco".
Continuaremos pois com os polícias a produzir autos para o Ministério Público, agora com gravações, para depois, em julgamento se fazer de conta que aquilo foi para nada. No meio, ficam os idiotas dos cidadãos que não percebem, os tristes dos polícias sérios que tentam ser fiéis ao que lhe dizem os declarantes, e aqueles que em julgamento, fiéis aos princípios, não utilizam aquilo que e lei proíbe que seja usado, colocando, porém, o fruto proibido ali mesmo, qual maçã bíblica da qual resultou a danação da Humanidade.
Tudo isto é absurdo. Ou eu já não me entendo nesta Terra.
 
 
P.S.1. Claro que já ouvi dizer que se valessem em audiência os autos policiais haveria não só contaminação da prova boa pela prova má, mas também haveria alguns juízes que, para simplificar e acelerar, perguntariam aos declarantes se confirmavam ou não aquela prova e, obtido o sim, passariam adiante. É evidente que num cenário em que temos dos actores esta ideia moral só pode ser um filme de terror!
P.S.2.  Questões curiosas: na fórmula prevista para a alínea b) do n.º 1 do artigo 357 [uso de declarações de arguido] não se prevê a necessidade de estarem consignadas em auto ou registadas, ao contrário do que se prevê para o n.º 3 do artigo 356º. Porquê? No n.º 2 do artigo 357 prevê-se que «as declarações anteriormente prestadas pelo arguido e lidas em audiência estão sujeitas à livre apreciação da prova nos termos do artigo 127º». Porquê? A demais prova não o está também?

Prova gravada prazo alargado

Diz a lei [artigo 411º, n.º 4 do CPP] que há um prazo alargado [30 dias] para recorrer se o recurso tiver por objecto a reapreciação da «prova gravada». Ora há que ter em mente que a jurisprudência já definiu que tal significa que o prazo assim estendido abranja os casos em que o recorrente pretende impugnar a matéria de facto, mas apenas aquele em que o pretende fazer através do cotejo do que ficou registado nos suportes onde a prova oralmente produzida em audiência é consignada.
Eis este elucidativo excerto do Acórdão da Relação de Lisboa de 31.01.12 [relator Carlos Gominho, texto integral aqui] «em face do tempo entretanto decorrido e as indicações jurisprudenciais emitidas pelas Relações, era pressuposto encontrar-se já uma maior sedimentação no cumprimento dos aspectos formais decorrentes do art. 412.º e dos ónus aí contemplados, maxime, na hipótese da irresignação apresentada versar matéria de facto.
É que, com efeito, o prazo de 30 dias referido no n.º 4 daquele art. 411.º, destina-se apenas aos recursos que tiverem “por objecto a reapreciação da prova gravada” e não quando nos mesmos se pretenda discutir a matéria de facto [sublinhado meu].
Tais conceitos não são totalmente coincidentes. A reapreciação da prova é uma via adjectiva que se abre na decorrência da impugnação de facto operada com observância do respectivo ritualismo legal, que por sua vez é uma das formas de legitimar a sua modificação, nos termos do art. 431.º
O escopo essencial para que aponta aquele art. 412.º, tem em vista, como é sabido, tornar facilmente apreensível às partes e ao tribunal ad quem, o que o recorrente entende estar mal julgado e as razões pelas quais considera que assim aconteceu. [...]
Pergunta-se então: deverá daí concluir-se que o arguido não pretendeu reapreciar a prova gravada?
Julgamos que não.
Como é sabido mantemos uma posição de alguma abertura nesta matéria, posto que se aceite que tal benevolência possa não ser a melhor forma de ajudar à estabilização do cumprimento daquelas mesmas exigências, observação tanto mais pertinente, quando, como no caso presente, até houve convite ao aperfeiçoamento.
Em função da centralidade do direito ao recurso no nosso sistema adjectivo, entendemos no entanto ser de conceder mais algum tempo para a interiorização do funcionamento daquele mecanismo, sancionando apenas com a rejeição as situações em que manifestamente tal actividade recursória esconde a simples intenção de beneficiar indevidamente de um alongamento de prazo e daquelas outras, em que minimamente não se foi capaz de cumprir o essencial da processualização das razões porque se discorda do julgamento de facto».