Na última edição do jornal SOL foi editado o seguinte artigo de minha autoria:
«AS NOVAS leis penais continuam a política de afrontamento contra o sistema judiciário. Ao fazê-las entrar em vigor de supetão, rasteirando os tribunais, o Governo quis mostrar quem manda: Muitas das soluções nelas consagradas agudizaram essa estratégia de tensão, aptas a gerar decisões judiciais discrepantes, que vão pôr em crise a segurança dos cidadãos e a autoridade dos tribunais. A aplicação da nova lei do processo penal aos processos pendentes, pois traz algumas normas mais favoráveis aos arguidos a par de outras que os prejudicam, é já causa de conflito, alguns a quererem, com razão, a aplicação ultra-activa da lei antiga. As normas que permitem a quebra da autoridade do caso julgado, para que se aplique a lei penal nova mais favorável ao arguido, já geraram, ante a ambiguidade da lei, três linhas de pensamento jurisprudencial, duas a recusar o novo sistema. Aqueles que trabalham com o novo diploma sentem, como nunca antes, incerteza na sua aplicação e insegurança quanto ao que vai ser assim o futuro da justiça penal. Além disso, as novas leis penais parecem leis de amnistia, originando conflitos jurisprudenciais, cuja decisão implicará anulações, abrindo a via para arquivamentos e prescrição do procedimento. Mais ainda, assumindo-se como inspiradas em casos judiciais mediáticos, oferecem soluções salvadoras para os mesmos, se não para os que vogam na penumbra. Não há pior chaga para uma lei do que ficar à mercê do epíteto de ser casuística, pior, individual. O MISTÉRIO do acrescento final ao artigo 30° do Código Penal, pelo qual se admitiu que os crimes sexuais reiterados sobre uma só vítima possam ser um só crime, beneficiando o pertinaz agressor, é disso exemplo. Foi apresentada como a consagração do que uma jurisprudência maioritária já teria definido. Depois, quando se descobriram as ambiguidades do processo legislativo, o presidente da Unidade de Missão veio dizer que não concordava com a mesma, enquanto a drª. Fernanda Palma publicitava que a continuação dificilmente se aplicaria a crimes sexuais. O estar-se «confortado» com a solução legal passou a ser embaraçoso. Todos rejeitam a paternidade da criatura legislativa. Descoberto o como e o para quê, a lei envergonha quando não embaraça. As novas leis penais causam suspeição aos próprios advogados, a princípio seduzidos pela retórica da reforma, pois deram conta da eventualidade de rejeição sumária dos recursos, o simplex aplicado aos recursos criminais, na lógica autoritária de que o sistema de Justiça dava «excesso de garantismo» a quem não o merecia. A prometida lealdade processual, pela qual, quando do interrogatório, o arguido deve ser informado «dos elementos do processo que indiciam os factos imputados» era, afinal, uma bandeira crivada de excepções, pois tal comunicação ocorre quando «não puser em causa a investigação nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime», ou seja, querendo-se, nunca! A irrecorribilidade da decisão instrutória, mesmo na parte em que decide as questões prévias, deu o sinal de toque a rebate: não só o juiz de instrução pode julgar, sem recurso, os actos próprios que praticou enquanto juiz do inquérito, como todas as invalidades prévias ficam sanadas quando o processo entra em julgamento: o novo CPP é o coveiro da fase de instrução, que evitava o julgamento injusto porque desnecessário. AS EXPECTATIVAS criadas com o texto inicial da Unidade de Missão mostram-se defraudadas pelo que saiu das mãos do Governo e o Parlamento viabilizou. Leis precipitadas, enxameadas de erros, passam agora pela humilhação das rectificações gralhadas: é a verdadeira lei da gralha. Mais, o legislador trapalhão republicou oficialmente o texto dos dois Códigos e esqueceu-se de publicar os preâmbulos que deles fazem parte integrante... Sobre as novas leis penais, a drª. Fátima Mata-Mouros escreveu um livro com críticas a algumas das soluções que se anteviam, chamado O direito à inocência. Eis que se começa a mostrar estarmos ante uma reforma politicamente nada inocente.