«4. Nos termos do art. 10.º da Concordata de 2004, “A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil”, as quais podem assumir a natureza de Associações Públicas ou Privadas de Fieis.
«5. Estando em causa a (abstenção da) prática de actos de representação da segunda requerente – em violação de um Decreto Bispal de nomeação de uma comissão, à luz do Cân. 318 do Código de Direito Canónino – como sejam os de conferir mandatos, administrar bens, ou onerar bens de uma associação pública de fiéis, como é o caso da Pia União, a qual prossegue estatutariamente fins religiosos, como a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e normas da Igreja e a evangelização dos Pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia, e em que se prova que os respectivos membros sempre observaram e cumpriram, na sua actividade, as normas do Direito Canónico, os tribunais judiciais portugueses não podem interferir na apreciação daqueles actos, quando praticados em conformidade com o Direito Canónico, sendo, por isso, internacionalmente e em razão da matéria incompetentes (cfr.arts.65 nº1e 66 do CPC).», estatuiu o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 10 de Dezembro de 2013 [texto integral aqui].
Na fundamentação do decidido, que cita em seu apoio abundante literatura e jurisprudência, pode ler-se:
«Relativamente à separação de poderes entre, de um lado, as Igrejas e outras comunidades religiosas, e, do outro, o Estado, uns e outros são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto, tal como definido no art. 41.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) segundo o qual «A Igrejas e outras comunidades Religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto».
A respeito da separação de poderes entre a Igreja e o Estado, como se refere no acórdão deste Supremo de 26-04-2007, proferido nos autos de revista n.º 723/07 (Rel. João Bernardo), disponível in www.itij.pt «Está aqui uma emanação, em duas vertentes, da inviolabilidade de consciência, de religião e de culto: A primeira consiste na separação entre as igrejas e outras comunidades religiosas (princípio da não confessionalidade do Estado), por um lado, e o Estado por outro; A segunda, concatenada com a primeira, cifra-se na liberdade de organização e no exercício das funções e do culto que assistem àquelas (princípio de liberdade de organização e independência das igrejas e confissões religiosas).
A propósito deste regime de liberdade e seus limites, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, anotação a este artigo) acentuam a “não ingerência do Estado na organização das igrejas e no exercício das suas funções de culto”, com ressalva, que aqui não nos interessa e Jorge Miranda vai mesmo mais longe, admitindo apenas os limites resultantes do artigo 29.º, n.º 2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (A Concordata e a Ordem Constitucional Portuguesa, in A Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, ed. da Almedina, 79)».
O art. 41.º da CRP não permite definir qual o âmbito de competência da Igreja e do Estado mas, como referem Vital Moreira e Gomes Canotilho, “A separação entre o Estado e as igrejas e confissões religiosas não impede, em termos absolutos, a celebração de concordatas ou convenções entre um e outras, para regular as respectivas relações institucionais e concretizar alguma especificidade que possa haver lugar” (ob. e loc. cit.).
E como tal, no desenvolvimento do princípio de liberdade de organização e independência das igrejas e confissões, a definição de competências veio a ser plasmada nas Concordatas celebradas entre a Santa Sé e a República Portuguesa, em 7 de Maio de 1940 e 18 de Maio de 2004 (doravante designadas de Concordata de 1940 e de Concordata de 2004, respectivamente).
As Concordatas que Portugal assinou com a Santa Sé estão compreendidas no conceito de Convenção Internacional a que alude o art. 8.º da nossa Lei Fundamental e vigoram na ordem interna com primazia na escala hierárquica sobre o direito interno anterior e posterior – neste sentido o Acórdão de 26-04-2007 (já citado) e, conforme nele mencionados, os Acórdãos n.o 118/85, 409/87 e 218/88, no BMJ n.º 360, 501, 370, 175 e 380, 183, respectivamente.
Como se adianta no mencionado acórdão de 26-04-2007, «De acordo com os artigos 3.º e 4.º da Concordata de 1940 a Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas de Direito Canónico e constituir dessa forma associações ou organizações que se administram livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica.
(…) Se, porém, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários ou de encargos que onerem heranças, legados ou doações, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para essas associações ou corporações».
Por sua vez, a Concordata de 2004 também estabelece que «As pessoas jurídicas canónicas, reconhecidas nos termos do artigo 10.º, que, além de fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade, desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português».
Ou seja, é o próprio regime concordatário, que, olhado em primazia, conduz à aplicação do direito interno português no que concerne à actividade assistencial das instituições. Não é este que prevalece relativamente àquele ou que se coloca a par dele, mas aquele que determina, em plano superior, a aplicação deste.
Só que, no próprio artigo 4.º da Concordata de 1940 precisa-se que o regime instituído para o direito português para estas associações se tornará efectivo através do Ordinário competente.
Cremos estar aqui uma estatuição relativa à incompetência dos tribunais civis para impor o próprio «regime instituído pelo direito português». Não quiseram os outorgantes o normal, ou seja, que fossem os tribunais civis portugueses a velarem pelo cumprimento do direito interno nacional.
E, lembremo-nos sempre, estamos em plano hierarquicamente superior ao das normas de direito interno português.(...)
Esta nossa construção complica-se, no entanto, com a entrada em vigor, em 18.12.2004, da Concordata actualmente vigente.
Nela se continua, para além do regime de liberdade de organização em geral, o regime de livre constituição, modificação e extinção de pessoas jurídicas canónicas, com reconhecimento da personalidade jurídica por parte do Estado Português.
Tendo-se também atentado nas pessoas jurídicas canónicas que, além dos fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade. Estatuiu-se, em consonância com o que vinha da anterior concordata, que desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português e gozam dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas colectivas privadas com fins da mesma natureza.
Mas existe uma diferença.
Desapareceu a referência do artigo 4.º da Concordata de 1940 quanto à imposição do direito português pelo Ordinário competente. Pelo contrário, ficou estatuído, no artigo 11.º, que, regendo-se as pessoas jurídicas canónicas pelo direito canónico e pelo direito português, cada um é aplicado pelas respectivas autoridades.
Está em causa a violação do direito canónico: será chamada a intervir a autoridade da Igreja. Está em causa a violação do direito interno português: recorre-se aos tribunais civis».
Neste sentido cfr. também o Ac deste Supremo de 17.02.2009 ( Rel. Cons. Lopes do Rego) proferido nos autos de Revista nº 743/08 .0TBABT-A. E1.S1 ,acessível via www.itij.pt o qual concluiu que « Face ao preceituado nos arts.10º,11º e 12º da Concordata de 2004,não se situa no âmbito da jurisdição dos tribunais portugueses a dirimição de litígios situados na vida interna de pessoas jurídicas canónicas , regidas pelo Direito Canónico, aplicado pelos órgãos e autoridades do foro canónico que exerçam uma função de vigilância e fiscalização sobre as mesmas.»
Em síntese, no que importa à separação de poderes entre o Estado e as Igrejas Religiosas, perante a Concordata de 2004, o critério de distinção faz-se de acordo com esta destrinça: se está em causa a violação do direito canónico, será chamada a intervir a autoridade da Igreja; se está em causa a violação do direito interno português, recorre-se aos tribunais civis.
No seguimento do critério apontado pelo citado acórdão, que acolhemos, no que respeita à separação de poderes entre o Estado e as Igrejas, em face do que supra se expôs, cumpre, antes de mais, aquilatar se tais regras decorrem da aplicação do direito canónico ou do direito interno português.»