Está publicada no último número da Jurismat, a revista jurídica do Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes. Não querendo prejudicar a leitura integral, deixo aqui o que é o tema de abertura dessa crónica sobre a presença do arguido no processo penal, o que ora é um estado de sujeição ora uma formalidade tida como dispensável, dependendo de razões que exigem que se convoquem os princípios para que tudo seja repensado. E foi esse o objectivo do que escrevi, o fomentar a discussão.
«Ao contrário do processo civil – de onde dimanaram historicamente alguns dos conceitos do primitivo processo penal – a presença do arguido na audiência de julgamento é um requisito lógico ante a natureza do sistema de justiça de que se trata e com ele compatível numa unidade indissociável.
Várias são as razões que podem ser alinhadas em tal sentido:
(1) Como forma única de o fazer sentir aquele acto processual como coisa sua, ante o qual ele haverá de interiorizar os termos em que decorre a tramitação, a produção da prova, afinal, o próprio ritual de julgamento, criando no seu mundo cognitivo a representação da Justiça em acção, e na sua emotividade, os sentimentos consequentes dos quais resultará a sua adesão ao sistema de valores do Estado de Direito;
Creio ser este o ponto nodal do sistema, tantas vezes esquecido por alguma da nossa prática judiciária: o julgamento não é uma formalidade em que a presença do arguido seja algo dispensável, sim momento formal essencial de um ritual que é – em caso de condenação – o primeiro passo para a interiorização pela sua pessoa dos valores basilares do Estado de Direito, das regras de vivência comunitária, em suma, o iniciar do caminho para a sua ressocialização.
(2) Como meio adestrado a garantir-lhe a percepção da prova que vai desfilar ante o pretório, aquela que o poderá incriminará e aquela de onde poderá resultar a sua exculpação, tudo lhe proporcionando a oportunidade de sobre isso formar um juízo e, em nome do contraditório, intervir, fazendo consignar a sua posição;
Como poderá alguém que não o próprio, cujos actos estão sujeitos a julgamento, percepcionar, até ao limite do pormenor relevante, o que é dito pelos coarguidos – tantas vezes propensos a exonerarem-se sobrecarregando no ausente – pelos ofendidos, pelas testemunhas, o que está nos documentos, o que é, em sede de prova pericial tida como verdade oponível autoritariamente ao próprio poder de julgar (veja-se o artigo 163º)?
Como poderá um defensor consciente sentir-se confortável ante factos ou alegados factos que atingem aquele que assiste sem ter consigo quem sobre eles dar-lhe o arrimo de uma versão, um comentário, uma sugestão quanto à forma de os contraditar?
Acaso não é a percepção de um tribunal prudente que, tendo diante de si o próprio arguido, pode fazer funcionar, nos seus rigorosos termos, a regra da imediação probatória, que não é um princípio atinente à forma do processo, mas meio instrumental essencial para se alcançar a íntima convicção, a qual é critério reitor da aferição da prova, consoante o artigo 127º do CPP?
Como, sem a presença do próprio, medir a reacção, até fisionómica, que a prova produz naquele contra quem ou a benefício de quem é produzida?
Como aferir, com empenhamento e profundidade, da personalidade de quem é julgado e assim a culpabilidade – que é o requisito ético de um Direito Penal da culpa – sem ter em julga-lo a personagem do qual se cura? E não se diga que se julgam apenas factos na sua dimensão objectiva, sim factos oriundos de seres humanos concretos que na sua possível prática se envolvem com a dimensão integral dos seus seres e que, julgados em ausência ou com rara presença, não são – diga-se – julgados sequer, sim avaliados apenas um corpo decapitado de ocorrências sem causa.
(3) Como local onde, por estar em causa o apuramento da sua responsabilidade, lhe é conferida a oportunidade formal (artigo 61º, n.º 1, b)) de a poder reconhecer, através de confissão (artigo 344º), de a negar, ou invocar circunstâncias mitigadoras da mesma, prestando declarações, querendo fazê-lo, pois que quanto aos factos a tal não é obrigado (artigos 343º, 61º, n.º 1, d)).
Estamos ante um sistema em que a confissão é acto pessoal, insusceptível de ser prestada mediante representação, mesmo nos casos em que, ausente, o arguido é representado pelo defensor (artigo 343º, n.º 4 e artigo 344º).
Trata-se daquela pessoalidade que não está coberta pela faceta da defesa em que esta, para além de garantir a assistência técnica ao arguido, opera como representação do mesmo (artigo 63º, n.º 1).
Toda uma progressiva aculturação que tem vindo a tomar conta do nosso subconsciente colectivo em matéria de justiça penal tem trazido, porém, a representação imagética do julgamento criminal com um figurino em que, tal como no processo civil, o arguido está ao lado do seu defensor, e não sentado na cena de julgamento, como o vértice para onde tudo naquele acto converge; assim é no que chega em doses maciças pela cinematografia, pela televisão, dos julgamentos norte-americanos.
De facto, a arquitectura das nossas salas de audiências para a justiça penal traduz bem essa triangulação de que o “banco dos réus” é o vértice, estando contidos no interior de tal corpo geométrico, na lateral, o Ministério Público, a representação forense dos ofendidos e os defensores, o funcionário que assiste ao acto e redige a acta e, presidindo, os juízes. É nesse espaço geométrico que tudo ocorre; o vértice determina o ponto de convergência, simbólica que denota o sentido e significado do que ali se passa.
A própria prova por declarações e testemunhal ocorre dentro dessa espaço e diante do arguido, se bem que nem sempre em termos de este poder visionar o rosto de quem é ouvido, construção que é apta a pôr em crise um requisito essencial da defesa, qual seja a plenitude da percepção da prova por aquele que sofre os efeitos da mesma.»